A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna | Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky vivemos já a era hipermoderna, dividida entre a cultura do excesso (o hedonismo de massas) e o elogio da moderação (valorização da saúde, dos direitos humanos, dos afetos, da consciência ambiental etc.). Vivemos não o fim da modernidade – o que o termo pós-moderno parece acusar – mas o aprofundamento do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica.

Com efeito, o avanço vertiginoso da globalização e das novas tecnologias de comunicação de massa, a partir da segunda metade do século XX, bem como da legitimidade dos prazeres do consumo, revolucionaram o cotidiano das massas. Decerto, a leveza do ser e os gozos privados da ordem do efêmero e da sedução das coisas, instaurados através da reestruturação da cultura de massas pela lógica da moda – isto é, o mercado organizado pelo efêmero, sedução e novidade permanente – conferiu legitimidade aos valores hedonistas e psicologistas, à renovação contínua, direito à felicidade individual e ao presentismo social [2]. Ou seja, as causas da derrocada do otimismo iluminista (o progresso ilimitado da razão) não se encontram apenas nas decepções comunistas e nas guerras do século XX, mas também em causas positivas da economia do consumo de massas, passando nós de um futurismo social (característico de uma primeira modernidade, nas teleologias de futuro paradisíaco encarnadas nas promessas revolucionárias) a um aqui-agora, e ao correspondente imperativo do carpe diem [3].

Esta concepção geral sobre a atualidade, supracitada, que já era tratada por Lipovetsky em “O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas” e seria sintetizada em “Os Tempos Hipermodernos”, é agora estendida em direção à análise da proliferação de telas e de uma cultura telânica, que não deixa de ter efeitos existenciais, contígua à era hipermoderna, de individualização crescente. Assim, rompendo com as especialidades entediantes das ciências humanas, Jean Serroy (estudioso do cinema) e Gilles Lipovetsky, um verdadeiro outsider dentro da academia, por suas ideias e temáticas, vêm com Tela Global tratar da extensão quase onipresente e certamente hiperespetacular das telas, pois se o século XX foi o século do cinema, sua segunda metade e o século XXI anunciam a era do tudo-tela.

Destarte, numa passagem que integra o último livro aos precedentes, os autores afirmam:

A mutação hipermoderna se caracteriza por envolver, num movimento sincrônico e global, as tecnologias e os meios de comunicação, a economia e a cultura, o consumo e a estética. O cinema obedece à mesma dinâmica. É no momento em que se afirmam o hipercapitalismo, a hipermídia e o hiperconsumo globalizados que o cinema inicia, precisamente, sua carreira de tela global. (p.23)

Vivemos assim uma mediocracia (de mídia, no plural do latim media), ou ecranocracia (ecrã é como usualmente chama-se tela, no português de Portugal), um poder telânico que se imiscui até nas esferas mais banais do cotidiano dos indivíduos comuns.

Como salientam os autores,

A expressão ‘tela ou ecrâ global’ deve ser entendida em vários sentidos. Em sua significação mais ampla, ela remete ao novo poder planetário da ecranosfera, ao estado generalizado de tela possibilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (p. 23),

tais como TV, VHS e depois DVD, videoclipe, celular com internet WAP e já WiFi, computador, videogame, câmeras pessoais e/ou de vigilância, publicidade, conversação online, o saber digitalizado, arte digital, telas de ambiente, PCTV, TV que acessa a internet, os recentes Tablets etc.

Na vida inteira, as nossas relações com o mundo e com os outros são cada vez mais mediatizadas através de telas (…). Se convém falar de tela global é também em razão do espantoso destino do cinema, que perdeu sua antiga posição hegemônica e que, confrontado à televisão e ao novo império informático, parece um tipo de expressão ultrapassada pelas telas eletrônicas. (pp. 23-5)

As estatísticas de diminuição do número de salas de cinema traduziriam isto, ou seja, um apregoado (por alguns observadores) “fim do cinema” ou “pós-cinema”.

É contra essa ideia que Lipovetsky e Serroy escrevem o livro. Aqui se encontra, portanto, a tese central da obra, pois é “no momento em que o cinema não é mais a mídia predominante de outrora que triunfa, paradoxalmente, seu dispositivo próprio, não material, é claro, mas imaginário: o do grande espetáculo, o da transformação em imagem, do star-system” (p. 25), isto é, o sistema de constituição de estrelas, que se na era de ouro do cinema eram inacessíveis e idealizadas, hoje são celebridades mais people e em muito maior número, quer dizer, democratizadas num certo sentido.

Deste modo, em vez do “fim do cinema”, o que “vivemos [é] a expansão do espírito cinema em nossa cultura hipermoderna, um espírito que fagocita a cultura telânica, que se encontra nas transmissões esportivas” (p. 23), por exemplo, com suas multicâmeras e zooms, slow motion, igualmente nos reality shows com sua filmagem do cotidiano de pessoas comuns, na cinefilia narcísica que os celulares e câmeras digitais proporcionaram, até mesmo nas violências que são filmadas pelos próprios agentes, e tudo isso é reencontrado (na interatividade, nos downloads) pela tela do computador, que dá acesso ao mundo pela internet. Uma cinemania generalizada, portanto. Uma cinevisão do mundo, por conseguinte.

O cinema como mundo e o mundo como cinema, pois aqui, mais do que nunca, é a vida que imita a arte. E é importante lembrarmos que o cinema é em si mesmo uma arte compósita, que funde fotografia, música, representação, poesia, espaço e tempo etc (p. 302). O cinema que, outrossim, é arte para além da evasão: tem a função social de criar vínculo humano (reunir os espectadores numa mesma sala) e que já foi chamado por isso de “a catedral do século”, e grande força de aculturação que forjou a modernidade, bem como se transformando em vetor de debates, mesmo politizados, especialmente no gênero dos documentários (pp. 301-3). Em vez do declínio do cinema, o que assistimos atualmente é seu auge, o tudo-cinema: “A época hipermoderna consagra o cinema sem fronteiras, a cinemania democrática de todos e feita por todos. Longe da morte proclamada do cinema, o nascimento de um espírito cinema que anima o mundo” (p. 27).

Para finalizar, uma questão profunda debatida pelos autores é a denúncia comum de que essa crescente “espetacularização” nos despojaria da verdadeira vida, nos levaria à desrealização do mundo (a imersão completa no mundo das imagens/fantasia), que o processo de cinematização induziria ao controle dos comportamentos, ao empobrecimento das existências, à derrocada da razão, à padronização da cultura (p. 309); alienados ficaríamos, em suma. Ainda que os autores aceitem a existência de uma tendência superficializante e de certa padronização dos produtos culturais, eles não subscrevem, no todo, esta visão apocalíptica. Assim,

O que o universo telânico trouxe ao homem hipermoderno é menos, como se afirma com frequência, o reinado da alienação do que uma nova capacidade de recuo crítico, de distanciamento irônico, de julgamento e de desejos estéticos (…). Nenhuma derrocada da cultura da singularidade no reinado da barbárie estética, mas também nenhum triunfo daquilo que [Paul] Valéry chamava o ‘valor espírito’. Nenhum filme catástrofe, mas também nenhum happy end. (p.310).

Notas

2. Gilles Lipovetsky. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia das Letras, 1989. pp. 257-60.

3. Gilles Lipovetsky. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. pp.51-65.

Walter Luiz de Andrade Neves – Mestre em História pela UFRuralRJ. Doutorando do PPGHIS-UFRJ.


LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. 326p. Resenha de: NEVES, Walter Luiz de Andrade. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.4, p.173-175, jan. jun. 2012. Acessar publicação original [DR]