O governo Vargas e os 80 anos de Estado Novo / Oficina do Historiador / 2017

“O Estado Novo, de novo, e de novo…”

A Revista Oficina do Historiador apresenta ao leitor, neste número, um dos temas seminais da historiografia brasileira contemporânea: o Estado Novo [2] , nome pelo qual ficou conhecida a experiência histórica brasileira entre os anos 1937-1945. Para além da efeméride dos seus 80 anos, o Estado Novo, de um modo geral, é percebido através dos reflexos de disputas políticas, de debates acadêmicos, e de designações que vão sendo sobrepostas no tempo. Por isso um tema sempre atual.

Além da já tradicional ruptura com a chamada República “Velha”, o Estado Novo é concebido como momento do engendramento do dualismo brasileiro, opondo os setores agrário-latifundiários aos setores urbano-industriais.[3] O regime também é interpretado como ditatorial, autoritário, populista, desenvolvimentista, antiliberal, modernizante, industrializante, intervencionista, fascista, corporativista, nacionalista, popular, trabalhista, e etc. Termos e interpretações muitas vezes complementares e tantas outras, antinômicos e conflitantes. Portanto, campo de disputa política e de memória, o Estado Novo é atualizado no presente e diluído na chamada “Era Vargas”, ora como um legado que deve ser abandonado, ora com um legado legítimo de ser mobilizado. [4]

Nessas disputas nada se dá ao acaso. O próprio Estado Novo e seus ideólogos trataram de gerar uma memória e uma interpretação de si. Primeiramente, buscando legitimar-se frente aos seus adversários, os “comunistas”, categoria ampla e difusa, mas eficiente para legitimar o Estado de exceção frente aos “inimigos externos”, e, depois, as oligarquias regionais, ligadas ao federalismo, ao atraso, e a uma tendência centrífuga da Nação. Assim, a Constituição de 1937, no discurso de seus ideólogos, buscava reparar esses erros, fortalecendo o poder do Estado, centralizando o poder no executivo e aumentando a capacidade de intervenção estatal em todos os setores da vida social.[5]

Dessa forma, o discurso estadonovista também buscava legitimação a partir de uma interpretação da realidade histórica que operava uma leitura dos acontecimentos. Nesse sentido, repetiam sistematicamente que o golpe era um desdobramento natural, e mesmo inevitável, da Revolução de 1930, sendo o Estado Novo o garantidor dos objetivos de 1930, corrigindo os desvios de 1932, e da Constituição de 1934, e justificando seu autoritarismo. É claro que esse discurso estava sendo alicerçado há mais tempo, principalmente nas críticas dirigidas à experiência da Primeira República e à Constituição de 1891 e seu arcabouço institucional liberal.

Outro sentido para justificar o Estado Novo era o contexto internacional, a constatação das transformações mundiais no pós-Primeira Guerra mundial alterando as condições do comércio internacional, o equilíbrio de forças entre as nações, e o surgimento de modelos políticos que se apresentavam como mais funcionais para responder a crises, principalmente, a crise liberal, tais como o fascismo e o nazismo. Dessa forma, a emergência de uma sociedade de massas vem pari passu ao crescimento de um discurso autoritário que se opõe ao chamado “ idealismo liberal”. Nesse sentido, o Brasil apenas seguiu a vaga internacional ao implementar o Estado Novo e ao buscar o chamado “idealismo orgânico” buscando reformar as bases do pacto republicano numa nova ordem.[6]

O Estado Novo tem sido amplamente analisado pela historiografia contemporânea como um tema-chave para compreensão da relação entre Estado e sociedade no Brasil. Entretanto, ainda é uma temática de estudos relativamente recente. Em início dos anos 1990, René Gertz, no texto, Estado Novo: um inventário historiográfico [7], ressaltava os poucos estudos sobre o período e a diluição do Estado Novo na Era Vargas. De lá para cá muita coisa mudou, como já ressaltava Maria Helena Capelato, no texto Estado Novo. Novas histórias [8], chamando atenção para uma profusão de estudos sobre o Estado Novo, já em fins dos anos 1990.

Com essas breves observações introdutórias, fica evidente a imensa carga de disputas políticas e memoriais que o Estado Novo contém e que ainda é mobilizada na atualidade. Por isso, mostra-se uma temática seminal da historiografia contemporânea brasileira, sempre revisitada para a compreensão da nossa história.

O Dossiê O governo Vargas e os 80 anos de Estado Novo é composto por cinco artigos de diferentes temáticas que refletem essa produção recente. No artigo de abertura, O declínio do Estado Novo, a Legislação Eleitoral e a atuação Otávio Mangabeira na campanha da UDN baiana (1945), Eliana Evangelista Batista analisa os impactos do Ato de nº 9 e do Decreto-Lei nº 7.856 sobre as eleições de 1945, no contexto de crise estadonovista, e sobre os partidos políticos de oposição a Vargas, sobretudo a UDN baiana. Ainda a respeito da UDN baiana, a autora também analisa a relação do partido com seus eleitores e as estratégias dos seus dirigentes frente à nova legislação eleitoral. Nesse sentido, a autora destaca a atuação oposicionista de Otávio Mangabeira a Vargas, durante os anos 1930 e 1940, e a articulação da UDN baiana frente à reorganização político-partidária de 1945.

O mito da união nacional: a construção das “famílias brasileiras” na ditadura do Estado Novo, de Fábio Roberto Wilke, analisa a construção da mitologia política associada a Getúlio Vargas, o “pai dos pobres” e a construção retórica da política estadonovista em relação à família. Para isso, analisa o modo como o Estado Novo interferiu nela através de uma concepção pública, ou materializada, demonstrando ações efetivas do Estado, notadamente através de políticas públicas que buscaram transformar a força de trabalho. No mesmo sentido, o autor também analisa como o Estado Novo utilizou-se de uma ideia privada de família, para criar uma retórica política de união nacional através do trabalho.

Em Considerações sobre justiça de transição no Estado Novo, Enio Viterbo analisa o processo de redemocratização, em 1945, e a carência de uma justiça transicional, principalmente, para as violações de Direitos Humanos cometidas durante o Estado Novo. Para o autor, o modelo de “transição pactuada” acabou sendo responsável pela impunidade dos agentes estatais durante o período ditatorial. Para tanto, o autor analisa a doutrina internacional sobre justiça de transição empreendendo uma análise de direito e história comparada com a Itália pós Mussolini.

Já Marina Contin Ramos, no artigo Cruzeiro: a renovação monetária no Brasil e o Governo Vargas, analisa a renovação do sistema monetário nacional, através do lançamento de uma nova moeda, o cruzeiro, em 1942, pelo Decreto Lei 4971. Nesse sentido, ressalta as questões inflacionárias e a desvalorização que levaram à mudança monetária, seus estudos técnicos e debates, tendo por objetivo principal mostrar que a renovação no nosso meio circulante não implicava em uma questão apenas econômica, mas também numa questão simbólica que envolvia o fortalecimento do Estado e a formação da nação, questões caras ao projeto varguista.

O artigo que encerra esse dossiê é O “bom imigrante”: as religiosidades católica e protestante luterana como fator de identidade nacional (ou não) durante o Estado Novo. O autor, Sérgio Luiz Marlow, analisa a chamada “Campanha de Nacionalização” durante o Estado Novo, buscando compreender como o processo de nacionalização impactou os protestantes luteranos através da importância que o Catolicismo adquiria como uma espécie de fomentador da identidade nacional. Mais especificamente, o autor busca compreender de que forma um dos sínodos luteranos no Brasil, o Sínodo de Missouri, percebia a possível ligação entre o Estado Brasileiro e o Catolicismo Romano, quanto à perspectiva do nacionalismo que se desejava impor.

Assim, desejo que esse dossiê entre nessa senda de produções relevantes sobre a temática do Estado Novo, ampliando os horizontes de análise dentro do campo da história, e mais particularmente, de uma história recente do Brasil. Entendo que esse dossiê contribui em duas perspectivas: primeiramente, ao trazer novos debates e novas reflexões; e ainda, abrindo possibilidades de pesquisas futuras sobre a experiência histórica do Estado Novo.

Notas

2 Cabe lembrar que o nome oficial do regime implantado em 10 de novembro de 1937 era Estado Nacional, como aparecia na Constituição outorgada por Getúlio Vargas. Estado Novo era o nome do regime implantado em Portugal, 4 anos antes por Salazar. Entretanto, no Brasil, a imprensa e os intelectuais trataram o regime como o Estado Novo brasileiro, em referência ao Salazarismo e como superação da República Velha, e acabou se tornando o nome popular do regime.

3 FAUSTO, Bóris. (1994).

4 Penso aqui nas referências explicitas dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, que situava a necessidade de “acabar com a Era Vargas”, e de Luís Inácio Lula da Silva, de ser um “ continuador do varguismo”.

5 Dentre os principais ideólogos do Estado Novo estão Oliveira Viana, Francisco Campo e Azevedo Amaral.

6 Os termos “idealismo orgânico” e “idealismo constitucional” pertencem a analise de Oliveira Viana. Ver: VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939. 2a edição.

7 SILVA, Jorge. L. Werneck. (org.) O feixe e o prisma. Uma revisão do Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

8 FREITAS, Marcos Cézar. (org.) Historiografia em Perspectiva. São Paulo, Contexto, 1998.

Cássio A. A. Albernaz – Doutor em História – PUCRS. Professor colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Pós- Doutorando em História pela PUCRS / PNPD / Capes. E-mail: [email protected]


ALBERNAZ, Cássio A. A. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 10, n. 2, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Estado Novo, 80 anos: arquivos e histórias/Acervo/2017

A revista Acervo apresenta ao leitor, neste número, um dos temas mais importantes da história brasileira: o Estado Novo, nome pelo qual a ditadura de Getúlio Vargas ficou conhecida (1937-1945). Implantado pelo golpe de estado, desferido em 10 de novembro de 1937, esse regime político completou, em 2017, oitenta anos. Seu nome oficial, entretanto, era Estado Nacional, como de fato aparece na Constituição outorgada pelo presidente. Oficialmente, Estado Novo era o nome da ditadura portuguesa de Antônio de Oliveira Salazar, instituída quatro anos antes do golpe, e cujo nome acabou sendo adotado livremente no Brasil. Leia Mais