Estudos sobre Fronteiras / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2012

Apresentar a Revista Eletrônica História em Reflexão (REHR), volume 6, número 11, de jan / jun de 2012, cujo dossiê tem como tema Estudos Sobre Fronteiras, é uma grande satisfação. Primeiramente, por que a exposição dessa abordagem está profundamente associada à proposta epistemológica do Programa de Pós-Graduação em História da UFGD, instituição de ensino e pesquisa qual a REHR está veiculada. Portanto, a diversidade dos vieses temáticos e a qualidade das reflexões presentes nas páginas a seguir contribuirão para que a temática “fronteira” seja pensada como objeto de múltiplos olhares para historiadores e pesquisadores das Ciências Humanas.

Em segundo lugar, a dinâmica da produção do conhecimento histórico demonstra uma necessidade cada vez mais urgente em divulgar estudos dos mais diversos temas de pesquisa relacionados às múltiplas possibilidades de análises do passado. É, portanto, a diversidade de vertentes analíticas que alimenta a produção intelectual das Ciências Humanas e dão novo fôlego para a compreensão da realidade histórica das sociedades do presente. Fatores como a velocidade dos meios de comunicação, o alcance mundial da internet, a organização dos setores historicamente excluídos da sociedade, por exemplo, são elementos que renovam os limites das relações humanas ao mesmo tempo em que recriam novos contornos dos vínculos entre homens, mulheres e o passado. Historicamente, as fronteiras foram formadas para “distinguir” e / ou separar territórios, povos e culturas. No entanto, as reorientações paradigmáticas das Ciências Humanas fizeram esse conceito angariar significados tanto de aproximação quanto de distanciamento entre grupos étnicos e sociedades urbanamente estabelecidas. As análises históricas, antropológicas, sociológicas, entre outras, atingem proporções que podem ser problematizadas pela discussão da fronteira ou do estudo sobre seus variados significados, entre campos do conhecimento que muitas vezes se completam rumo a uma análise multidimensional.

O deleite de expor tal assunto refere-se à importância dessa questão para a historiografia brasileira. Fronteira foi, inegavelmente, importante objeto para as primeiras análises do passado nacional. No entanto, a compreensão da temática fronteiriça durante muito tempo esteve relacionada aos limites da ordenação geopolítica e diplomática do território. Partindo da concepção limítrofe geográfica dos textos de Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu a fronteira passou a ser assimilada sob a ótica da conexão entre as sociedades portuguesa, africana e indígena. Foi Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Caminhos e Fronteiras (1957), quem apontou que paisagens, hábitos, instituições, técnicas e idiomas heterogêneos interagiam e criavam produtos mistos, re-significando os limites e resultando em novas acepções de fronteira.

A edição traz aos leitores artigos referentes ao dossiê, bem como demais pesquisas sobre temas livres e resenhas. O artigo que abre o dossiê da XI Edição da REHR é Nas fronteiras do Império e um conceito de guerra no século XIX: “nessas terras de fronteiras, vinha sentindo cotidianamente as dificuldades de se fazer a guerra”, que trata da ocupação do Rio Grande do Sul pela análise do conceito de fronteira de guerra, arregimentado à historiografia militar e constituído como uma alternativa de análise do passado pela chamada Nova História Militar. Nesse texto Carlos Eduardo de Medeiros Gama tem como baliza espaço-temporal a fronteira sul-rio-grandense do Império brasileiro durante a primeira metade do século XIX. O autor ressalta a importância em notar que o lócus fronteira sul do Império deve ser interpretado como ponto nevrálgico para o desenvolvimento dos distúrbios sul-americanos do século XIX, espaço de consolidação dos estados platinos e de conexões sociais, econômicas e culturais do espaço fronteiriço.

Alessandro Batistella apresenta uma proposta de análise da construção da identidade paranaense a partir do paranismo, movimento regionalista que surgiu após a emancipação política daquele estado em meados do século XIX e que atingiu o auge de sua popularidade na década de 1920. Dessa maneira, o autor buscou os elementos simbólicos que compõe essa análise, bem como a distinção dos grupos sociais emergidos e excluídos pelo paranismo através da compreensão das características desse movimento. Esta análise está presente no texto O Paranismo e a invenção da identidade paranaense.

Raimundo Nonato de Castro escreve As Representações Indígenas no Processo de Colonização do Brasil. No artigo, o autor reflete que as imagens e os textos, produzidos pelos europeus, serviram para criar imaginários sobre as populações indígenas, passando a ser utilizadas para assegurar e garantir o incremento do processo de dominação colonial. Nesta perspectiva, analisa algumas das observações realizadas pelos navegadores europeus, verificando que apresentam os nativos como seres que necessitavam ser cristianizados.

A formação da fronteira oeste no sul do Brasil é apresentada por Hermes Gilber Uberti. Essa análise é estruturada a partir das estratégias para incorporar o território fronteiriço ao Império brasileiro pela concessão de sesmarias, a criação de núcleos urbanos, e, principalmente, o comércio entre colonos do Vale do rio Jaguari, na região central da província, e a cidade fronteira de Uruguaiana durante o século XIX. As discussões presentes em O Vale do Jaguari no processo de construção da fronteira oeste do Rio Grande do Sul demonstram a questão fronteira como espaço ativo na construção das atividades produtivas e das relações sociais entre os homens da fronteira, utilizandose, para tanto, da metodologia da micro-história.

O artigo de Vanderlei Sebastião de Souza, intitulado As Ideias Eugênicas no Brasil: ciência, raça e projeto nacional no entre-guerras abre a sessão de artigos livres. O trabalho analisa o discurso eugênico no Brasil, destacando o modo como essas idéias mobilizaram setores importantes da elite intelectual do país nas primeiras décadas do século XX. Considerando que a eugenia brasileira deve ser vista como um interessante caso de relação entre ciência e ideologia social, busca compreender que arranjos científico, político e institucional fundamentaram o movimento eugênico, quais foram e o que pensavam os intelectuais, cientistas e autoridades públicas que promoveram esse debate no Brasil. Para tanto, demonstra que os adeptos da eugenia se organizaram como um movimento que procurou articular ciência, raça e nação com vistas à formação de projetos de reforma da sociedade brasileira e de construção nacional.

Fernand Braudel e a Geração dos Annales é o nome do artigo de José D’Assunção Barros, que examina as especificidades do modelo historiográfico proposto pelo principal autor pertencente à segunda fase do movimento dos Annales: Fernando Braudel. Depois de uma discussão inicial sobre o contexto histórico e institucional que preside uma nova fase dos Annales sob a direção institucional de Fernando Braudel, discute a contribuição historiográfica deste historiador francês, enfatizando aspectos como a concepção braudeliana sobre o tempo e a dialética das durações, a importância do espaço para a historiografia braudeliana, o projeto de História Total neste historiador francês, e sua dinâmica de diálogos interdisciplinares.

Antonio Carlos Sardinha, em seu artigo O Percurso Histórico da Organização Política por Direitos Sexuais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em Mato Grosso do Sul apresenta os principais resultados de estudo sobre a trajetória histórica e as características que marcaram a constituição do movimento social de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT) em Mato Grosso do Sul. Recuperar o passado desse movimento social, por meio de pesquisa exploratória, contribui com a construção da memória de luta política pela garantia de direitos humanos a identidades sexuais que demarcaram, a partir da atuação pública, espaço próprio de interlocução em meio às demandas colocadas por outros grupos na esfera de conflito que permeia as lutas sociais.

O artigo El Bonaerense e Tropa de Elite: um debate sobre a segurança pública abordada nas telas do cinema argentino e brasileiro no século XXI, de autoria de Luiz Eduardo Pinto Barros analisa elementos comuns entre as sociedades argentina e brasileira no que se refere à segurança pública de ambas as nações, caracterizada por problemas como corrupção policial, guerra entre traficantes de drogas e deficiências dos governos para superar estes problemas. A análise é realizada a partir do olhar para as produções El Bonaerense (Argentina, 2002), dirigido por Pablo Trapero, e Tropa de Elite (Brasil, 2007), dirigido por José Padilha. As duas produções são heranças do estilo italiano Neo-realista surgido em meados do século XX, com características antihollywoodianas. Essa corrente cinematográfica visa tratar a realidade social como o objeto principal, o que é visualizado nas duas produções analisadas.

Bárbara Figueiredo Souto e Roger Aníbal Lambert da Silva, no artigo Representações e Combates Discursivos: práticas da imprensa nas décadas finais do século XIX refletem sobre como o jornal é uma valiosa fonte para os estudiosos de fins do século XIX e sua utilização na produção do conhecimento histórico. O objetivo do trabalho é discutir certas práticas da imprensa na construção de suas representações e seus discursos, ou seja, as estratégias das quais os jornais se utilizavam para legitimarem suas posições diante da opinião pública. Para tanto, elegeram como foco de análise representações acerca das mulheres e alguns combates discursivos sobre o tema da “rebeldia dos escravos”, objetos de atenção constantes por parte da imprensa nas décadas finais do século XIX.

O Gigante Adamastor Camoniano: nexos entre memórias e profecias é o nome do artigo de Cleber Vinicius do Amaral Felipe. No trabalho, problematiza o papel desempenhado pelo gigante Adamastor na epopeia Os Lusíadas (1572), de Camões. Ao se deparar com este personagem, Vasco da Gama ultrapassa uma fronteira e, do local onde se encontra, o nauta português consegue apreender tanto o “antigo” quanto o “novo”, sob uma perspectiva singular. Adamastor é um hiato situado entre o passado e o futuro, entre o vício e a virtude, entre o comedimento e o excesso. Afinal, o que suas profecias dão a entender? Quais são as memórias forjadas pelo gigante? Enfim, como ele relaciona passado, presente e futuro?

O artigo intitulado De Frente para o Mar: as representações da paisagem litorânea na cidade de Rio Grande (1904-1976), de Felipe Nóbrega Ferreira, analisa as diferentes representações da paisagem, dando a ler um mundo social em suas sensibilidades, entre os anos de 1904 e 1976. Assim, contribui para uma apropriação da idéia da paisagem junto ao campo da história. Para tal estudo, apresenta um conjunto de fotografias que circundam o universo do litoral de banhos.

Vinicius Fattori, em Um Charlatão, Padres Devassos e Escritores Libertinos: popularização de ideias no período pré-revolucionário francês reflete sobre obras e ideias do historiador estadunidense Robert Darnton. Este autor analisa aquilo que poderíamos denominar de “popularização de ideias iluministas”, uma vez que se foca em diversos escritores marginais que pareciam ter como missão pessoal disseminar as ideias do Iluminismo no francês comum pré-revolucionário, uma tarefa que não seria possível aos autores e filósofos clássicos do Iluminismo, com seus complicados tratados políticos. Estas pessoas, charlatães, padres devassos e escritores libertinos costumavam ser muito populares no século dezoito, mas atualmente estão esquecidos.

Em A invenção do Brasil no mito fundador da Umbanda, Mario Teixeira de Sá Junior apresenta uma perspectiva histórico-sociológica da criação da Umbanda no Brasil do início do século XX. Tendo como eixo discursivo a mitologia umbandista de Zélio de Morais o autor buscou contextualizar esse fenômeno cultural aos aspectos históricos da transição do século XIX para a centúria seguinte. Dessa forma, a alteração na estrutura política nacional e a modificação nas relações entre trabalhadores e as classes dominantes contribuíram para a formação da nação brasileira no mesmo momento em que a Umbanda surgia como religião resultante das interações culturais africanas e brasileiras.

O artigo Memórias e Práticas Pedagógicas: a escola multisseriada em Novo Hamburgo / RS e a trajetória da professora Élia Thiesen (1958-1983), de José Edimar de Souza apresenta fatos da trajetória de uma professora cuja docência acorreu na zona rural de Novo Hamburgo – RS, entre 1958-1983. Para tanto, analisa como a trajetória docente se entrelaça à prática pedagógica em classes multisseriadas, considerando para esse fim a memória como fonte documental. A pesquisa, de natureza qualitativa, utiliza metodologia da História Oral valendo-se de entrevistas semi-estruturadas. O referencial teórico fundamenta-se na perspectiva da História Cultural, tendo as memórias como documento. As memórias desta professora permitiram conhecer um pouco sobre os primórdios da escola pública em Lomba Grande enfatizando o processo de construção das Escolas Isoladas.

Resquícios de Al-Andaluz em Norte de África: aspectos da autobiografia de Ibn Khaldun (1332-1406), da autora Elaine Cristina Senko finaliza a seção de artigos livres. O historiador medieval Abu Zaid Abd’ul-Rahman Ibn Khaldun (732-806 H. / 1332-1406 J.C.) revela por meio de sua Autobiografia (parte integrante da Muqaddimah) que seus antepassados teriam origem sevilhana. Nesse contexto do outono da Idade Média se faz pertinente discutir as formas de migração dos muçulmanos de grande parte de AlAndaluz por iniciativas da Reconquista cristã, em que Fernando III (1217-1252 J.C.), filho de Afonso IX rei da Galícia, era o perpetrador indireto da fuga da família Khaldun para a região de Túnis. Essa análise torna primordial, pois que a atuação de muçulmanos em cargos dos governos de Al-Andaluz se apresenta por meio dessa família. Nesta perspectiva, a o artigo demonstra a participação dos antepassados de Ibn Khaldun em cargos específicos e como esses personagens interferiram na maneira de pensar desse erudito.

Em memória ao historiador e indigenista Antonio Jacó Brand, que faleceu no dia 03 de julho de 2012, em Porto Alegre / RS, republicamos a entrevista do pesquisador concedida a REHR, no ano de 2009, em sua VI Edição. A notícia de seu falecimento foi recebida com muita tristeza pelos familiares, amigos e aqueles que conheciam os trabalhos desenvolvidos por Brand, sobretudo, em defesa das populações indígenas. Para além de pesquisador, Brand foi um lutador da causa indígena, atuando junto aos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, estado em que viveu aproximadamente 30 anos. A dor da perda é enorme, mas as contribuições intelectuais de Brand, sua militância e ensinamentos vivem.

A XI Edição da Revista Eletrônica História em Reflexão ainda oferece aos leitores duas resenhas. Pedro Paulo Abreu Funari resenha o livro Nazi Germany and the Jews, 1933-1945, do autor Saul Friedländer. A outra resenha é de Daniel Rincon Caires, que resenhou o livro (Des)medidos – A revolta dos quebra-quilos (1874-1876), da autora María Verónica Secreto.

Desejamos uma agradável e proveitosa leitura dos textos publicados. Agradecemos pela credibilidade confiada e que os trabalhos da XI Edição da REHR possam nos instigar a percorrer os caminhos e descaminhos da História.

Fabiano Coelho,

Bruno Mendes Tulux

Anatólio Medeiros Arce

(Editores)

Dourados / MS, Inverno de 2012.


ARCE, Anatólio Medeiros; COELHO, Fabiano; TULUX, Bruno Mendes. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 6, n. 11, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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