Historiografia / Estudos Históricos / 1996

Fiel como sempre aos compromissos que nortearam sua fundação. Estudos Históricos retorna às questões historiográficas. Fidelidade às origens e também preocupação de seus editores. O caráter ainda modesto dos estudos historiográficos em relação ao conjunto da produção brasileira no campo da História justifica por si só a organização deste número. Tal como ocorre ainda em outras latitudes, inclusive na França, a investigação crítica e reflexiva acerca da produção e da natureza do discurso histórico não é uma característica das mais difundidas entre os historiadores.

Os trabalhos que agora publicamos foram divididos em cinco blocos, de acordo com as características formais e temáticas de cada um deles. Lamentamos ter sido impossível incluir, como desejávamos, um bloco que contemplasse as chamadas historiografias regionais, reconhecidamente um segmento dos mais expressivos da produção historiográfica brasileira recente.

No entanto, para efeito desta “Apresentação”, pensamos ser mais eficaz reunir o material aqui publicado em quatro tópicos; as visões historiográficas mais gerais; as abordagens mais teórico-metodológicas; as avaliações e perspectivas sobre as relações entre história e política; os textos de cunho mais bibliográfico.

No primeiro tópico situamos o trabalho de Carlos Fico e Ronald Polito, e o nosso próprio texto. Neste tentamos elaborar uma síntese das Caraterísticas e transformações do que entendemos como “duas identidades” – da História e do historiador. Projetadas sobre a evolução do ensino e pesquisa da disciplina a partir dos anos 50, estas identidades revelam a persistência de dualismos que ainda sobrevivem, quer referidos às tendências historiográficas internacionais, quer às nacionais.

A importância da contribuição apresentada por Fico e Polito extrapola em muito o próprio texto. Estes dois historiadores, responsáveis pela criação e desenvolvimento do “Centro Nacional de Referência Historiográfica” (UFOPMG), já publicaram um levantamento quase exaustivo da produção historiográfica brasileira dos anos 80 – A História do Brasil (1980-1989), 2 vols. – e sua presença aqui, através desta “Avaliação preliminar”, relativa às teses e dissertações defendidas em 1995, constitui uma pequena amostra do levantamento que estão realizando para a década de 90.

Incluímos no segundo tópico, de um lado, os artigos de Verena Alberti e Henry Rousso, os quais abordam duas funções teórico-metodológicas mais genéricas, e, do outro, os textos de Regina Moreira, Maria Celina D’Araujo e Maria Luiza Ritzel Remédios, os quais têm um mesmo objeto de análise – o Diário de Vargas.

A hermenêutica ocupa hoje em dia uma posição-chave nas discussões historiográficas e mobiliza seus defensores e adversários em torno de intensos debates. É sabido que a ênfase crescente no caráter interpretativo do conhecimento histórico vem sendo ora justificada, ora denunciada por diferentes historiadores. Justifica-se assim o propósito de Verena ao oferecer ao leitor, especialmente ao não iniciado, uma explicação sobre a hermenêutica, “entendida como uma certa maneira de pensar”, e sua trajetória intelectual. Tampouco se exime a autora de apontar alguns dos riscos e possibilidades que a hermenêutica pode apresentar para o trabalho historiador.

O arquivo, lugar natural das fontes documentais escritas, parece destinado ao esquecimento em face das implicações lógicas de certas concepções filosóficas, lingüísticas e literárias mais recentes. É pensando em tais implicações que Rousso enuncia a presença de uma contradição e analisa a realidade de um problema, os quais remetem, em conjunto, à questão do “lugar” do arquivo na “construção do conhecimento histórico”. Contradição, no caso, é a da oposição entre as denúncias “pós-modernas” sobre a possibilidade de uma “restituição objetiva do passado” e a demanda social (e política) por uma “história verdadeira e transparente”. Com efeito, não mais se está diante daquelas brochuras que, em 1815, acreditavam poder “provar” que Napoleão “jamais havia existido”. Hoje, dispomos de denúncias muito sérias, como as enunciadas, entre outros, por Pierre Vidal-Naquet em Os assassinos da memória e Jean Chesneaux em Devemos fazer tábua rasa do passado? Assim, em meio à maré dos “revisionismos” e à presença dos eternos “falsificadores da História”, não estará no arquivo a única saída?

Problema, por outro lado, segundo o mesmo autor, é a tendência atual a opor dois tipos de fontes – a escrita, que representa a parte mais significativa dos acervos arquivísticos, e a oral Conservada ou não em arquivos) – e privilegiar o primeiro em termos de maior “autenticidade” ou fidelidade do ponto de vista da narração dos acontecimentos passados, em detrimento do segundo.

Os artigos aqui agrupados no “Dossiê Diário de Vargas” possibilitam ao leitor ter acesso a alguns dos inúmeros problemas formais e interpretativos que podem suscitar a edição e a leitura de um diário, sobretudo quando se trata de tomá-lo como “documento histórico”. Trata-se a bem dizer de três olhares distintos endereçados a um mesmo objeto. Regina Moreira preocupa-se com a explicitação de problemas, surgidos durante o processo de preparação do texto do Diário para publicação, e com a questão mais geral dos prós e contras que marcam a utilização dos diários em geral como “fonte histórica”.

Maria Celina D’Araujo aborda três aspectos: o do papel que se pode atribuir a todo diário – o de fazer parte da construção do self (caso, o de Vargas); a caracterização do Diário em tela como sendo mais exemplar do tipo de diário que os especialistas convencionaram chamar de ”diários modernos”; as sensíveis e significativas diferenças existentes, Diário de Vargas, entre volume e a natureza das informações e reflexões respeitantes à “esfera pública” e “esfera privada” da vida do autor, respectivamente.

Maria Luiza Ritzel, nem historiadora, nem socióloga mas, sim, especialista em literatura, sublinha o lugar da subjetividade de Vargas e situa o Diário entre os chamados “relatos confessionais”, de gênero autobiográfico.

Nosso terceiro tópico compreende os trabalhos de Angela de Castro Gomes, Márcia D’Alessio, Maria de Lourdes Janotti, Vavy Borges e Maria Helena Capelato. A dimensão “política” de uma parte da produção historiográfica é a preocupação comum que une todos estes textos. No entanto, salvo o artigo de Angela Gomes, os demais trabalhos derivam da história política para a presença da “esfera do político” quando se trata de examinar a produção histórica.

O propósito explícito de Angela Gomes é analisar historicamente as “relações complexas e muitas vezes ambíguas” entre História e Ciência Política enquanto saberes disciplinares distintos, ou academicamente separados. No seu texto, muito denso e sistemático, a autora contempla tanto a política, como objeto / dimensão da produção historiográfica, quanto a história, como objeto / dimensão dos “estudos políticos”. A par de oportunos insights sobre a renovação da História Política, a autora revela seu pessimismo quanto às possibilidades de diálogo entre historiadores e cientistas políticos, pois, no seu modo de entender, suas “linguagens” teórico-metodológicas são muito diferentes.

O trabalho de D’Alessio e Janotti representa O resultado de um esforço notável das duas autoras no sentido de detectar e recensear, através de fichas-resumos, a presença da política, ou da história política, na produção historiográfica dos programas de pós-graduação. Da busca da “política” passaram as autoras à “esfera do político” e revelaram assim a presença “do político” numa grande quantidade de teses e dissertações não classificáveis, em princípio, como de “história política “.

Vavy Borges e Maria Helena Capelato tomam como ponto de partida o comentário do trabalho das duas autoras acima mas logo introduzem reflexões bastante enriquecedoras. Vavy Borges interessa-se pelo problema das relações entre história política e ideologia e o examina de modo original ao sublinhar o papel do “imaginário político” brasileiro na própria elaboração das muitas “interpretações” do Brasil e da “história nacional” desde os anos 20 / 30. Maria Helena Capelato preferiu analisar a noção de “resistências” a fim de compreender as razões e características da verdadeira febre historiográfica que, a partir dos anos 70, levou a tantas pesquisas, boas e más, sobre “as resistências” na História do Brasil, não deixando de apontar os perigos e equívocos teóricos presentes nessa tendência.

Apesar das muitas diferenças que os distinguem, forçamos a junção, no quarto tópico, dos textos elaborados por Marcelo Jasmin, Marco Antonio Pamplona e José Augusto Drummond. O artigo de Marcelo Jasmin, ao enfocar o tema da “historiografia e liberdade” a partir do famoso texto de Alexis de Tocqueville, propõe, na verdade, uma leitura compreensiva na qual preponderam as “intenções” do autor francês e sua inserção num certo “lugar” histórico, ou seja, um certo pragmatismo e um evidente presentismo. Concordemos ou não com Marcelo Jasmin, seu trabalho é inteligente e ousado, especialmente quando conclui, com Tocqueville, acerca do trabalho historiador em geral.

O trabalho de Pamplona, bem estruturado e bibliograficamente rico, sintetiza e discute os clássicos da historiografia do “protesto popular” em ambientes urbanos, com destaque para Rudé, Hobsbawm, Tilly e Cohn. A discussão dos conceitos, as tentativas de elaborar tipologias, as questões que permanecem em aberto e os possíveis caminhos de investigação constituem os pontos altos deste texto. Mais que simples revisão bibliográfica, o texto de Drummond constitui um verdadeiro ensaio a propósito do livro de Warren Dean. O entusiasmo de Drummond pelo autor e sua Obra não o impedem de discordar aqui e ali e apontar alguns lapsos ou ausências cujo caráter “acidental” não hesita em pôr em dúvida. Enfim, um diálogo inteligente do leitor / admirador com o autor que admira mas de cuja “inocência” desconfia.

Agora, boa sorte! Prossiga o leitor, por sua própria conta, este diálogo que tentamos apenas sugerir.

Francisco José Calazans Falcon – Editor convidado.


FALCON, Francisco José Calazans. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.17, jan. / jun. 1996. Acessar publicação original [DR]

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