Debates plurais: historiografia e história | História Debates e Tendências | 2022

O ex presidente boliviano Evo Morales Foto Bertand LangloisAFP Historiografia
O ex-presidente boliviano Evo Morales | Foto: Bertand Langlois/AFP

É com satisfação que apresentamos o volume 22, número 1, da revista História: debates e tendências, publicação científica que, ao longo de seus vinte e três anos de existência, tem desempenhado relevante papel de divulgação acadêmica e intercâmbio institucional na área de História. Editada pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade de Passo Fundo, a revista espelha as problemáticas que se articulam em torno da área de concentração do programa, História, Região e Fronteiras, em uma perspectiva transdisciplinar.

A edição atual, Debates plurais: historiografía e história, revela pesquisas com temáticas e fontes diversificadas, de autoria de pesquisadores vinculados à instituições do Brasil e do exterior, e está composta pelas seções Dossiê, Artigos Livres e Entrevista. Leia Mais

História e música na América Latina: interlocuções historiográficas | História e Cultura | 2021

A proposição do dossiê “História e Música na América Latina: interlocuções historiográficas” foi feita com o intuito de ampliar as oportunidades de publicação acadêmica nos estudos que articulam Música e História. Nesse quesito, a revista História e Cultura, da UNESP Franca, tornou-se uma importante parceira, proporcionando um novo espaço depois de ter lançado um dossiê semelhante em 2013.

Passados oito anos, inúmeras pesquisas no Brasil e no exterior dedicaram-se a aprofundar as diferentes dimensões da relação entre História e Música, sempre envolvida nas tensões entre as especificidades da linguagem musical e as características dos contextos históricos. Desde então, novas fontes, temas e abordagens ampliaram consideravelmente a ocupação desse território híbrido entre a musicologia e a historiografia. Leia Mais

Golpe de 1964 e a Ditadura militar: Processos históricos e historiografia | História Revista | 2015

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É com muita satisfação que apresentamos o Dossiê que a História Revista publica neste número. Passados mais de 50 anos do Golpe de Estado de 1964 e da implantação da Ditadura Militar (1964‐1985) o debate sobre seu caráter e significado continua mais vivo do que nunca. Isto porque além da herança deixada por 21 anos de governos ditatoriais seguir muito presente na dinâmica econômico‐social e na estrutura política da sociedade brasileira atual, a disputa ideológica acerca do seu caráter e legado marca fortemente o debate político atual. E foi com o propósito de refletir sobre esses fatores que organizamos este Dossiê.

Os seis artigos que compõem o dossiê expressam, com grande êxito, resultados de pesquisas que jovens historiadores vêm desenvolvendo sobre o assunto, sobre particularidades institucionais de fundamental importância no período do golpe militar e na ditadura militar que se seguiu. Trata‐se, portanto, de modo inquestionável, de uma grande contribuição da História Revista para a reflexão historiográfica brasileira em seu público leitor especializado, assim como para com o público leitor em geral. Leia Mais

Historiografia e Ensino de História | Revista Territórios & Fronteiras | 2021

A produção de um conjunto de trabalhos que tome as relações entre historiografia e ensino de História como objeto de análise insere-se na tradição da produção bibliográfica acerca do ensino de História que tem envolvido, principalmente, os debates e reflexões que vêm sendo produzidos por historiadores e professores no âmbito de instituições de pesquisa e ensino, ou como partícipes de debates em torno de programas ou políticas educacionais. Ademais, envolve também um conhecimento historicamente produzido, resultante de projetos e propostas de investigações, experiências e práticas concretas. Do ponto de vista do arcabouço teórico os trabalhos sugerem a opção e adesão aos fundamentos teóricos e filosóficos da ciência da História como referenciais para reflexões, investigações e debates. Esta opção e adesão tem caracterizado, de maneira específica, a qualidade e a especificidade para um recorte diferenciado da produção no âmbito do Ensino de História. Uma das principais contribuições a este debate tem sido o princípio indicado pelo historiador Jörn Rüsen acerca da Didática da História como ciência da aprendizagem histórica, porqueela produz de modo científico (especializado) o conhecimento necessário e próprio à história, quando se necessita compreender os processos de aprendizagem e lidar com eles de modo competente. Ou, todo conhecimento acerca do que seja a aprendizagem histórica requer o conhecimento do que seja história, daquilo em que consiste a especificidade do pensamento histórico e da forma científica moderna em que se expressa. No cerne da questão está a capacidade de pensar historicamente, a ser desenvolvida nos processos de educação e formação. Leia Mais

Historiografia em tempos de urgência: do horizonte de expectativas ao fechamento das esperanças | História e Cultura | 2021

Durante uma entrevista concedida à Véronique Mortaigne em 2005, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss – então com 97 anos – quando perguntado sobre o futuro, respondeu:

Não me pergunte nada desse gênero. Estamos num mundo ao qual já não pertenço. O que conheci, o que amei, tinha 2,5 bilhões de habitantes. O mundo atual conta com 6 bilhões de seres humanos. Ele não é mais o meu. E o do amanhã, povoado por 9 bilhões de homens e mulheres – mesmo se for o pico de população, como nos asseguram para nos consolar -, proíbe-me qualquer previsão… (LEVI-STRAUSS, 2011, p. 57). Leia Mais

Lugares da História no século XXI | Revista Latino-Americana de História | 2020

O trabalho historiográfico necessita de teoria e método, mas não se faz apenas um ofício. É necessário a/o historiador/a atribuir sentido ao que pesquisa. Através do engajamento, teoria e prática se encontram, ultrapassando os limites da universidade e, até mesmo, criando uma ponte entre essa e a comunidade.

A História precisa abarcar a todos, sem excluir suas particularidades. Necessita contemplar vários aspectos, incluindo diferentes ângulos, sendo crítica em seus olhares. O fazer histórico deve estar aliado à educação e, atualmente, à tecnologia, se fazendo conhecer entre os especialistas e o grande público. Leia Mais

Comunismo chileno: un área historiográfica en expansión | Cuadernos de Historia | 2020

Durante mucho tiempo, la historiografía del comunismo chileno se redujo casi exclusivamente a los aportes del profesor Hernán Ramírez Necochea sobre el Partido Comunista de Chile (PCCh)1 o a aquellos de otros exponentes referidos al destacado líder obrero Luis Emilio Recabarren, fundador en 1912 del Partido Obrero Socialista (POS) devenido en PCCh en 1922 2. Varios autores abordaron aspectos puntuales de la historia del comunismo criollo en libros o artículos sobre otros temas de historia social o historia política, pero no existía un corpus de obras que pudiera constituir un área de estudios específica con suficiente masa crítica. Como suele ocurrir, además de las obras de Ramírez Necochea, se disponía de manuales canónicos para los militantes que eran el contrapunto de las visiones características de la “leyenda negra” sobre el comunismo. No obstante, hacia fines de la década de 1970, el historiador británico Andrew Barnard marcó con su tesis doctoral un hito que, aunque en ese momento no tuvo mayores repercusiones, terminaría siendo reconocido como una inflexión fundamental3, abriendo paso dos décadas más tarde a una nutrida producción que ha logrado conformar un campo historiográfico pujante en Chile4. Leia Mais

Anarquismos: história e historiografia em perspectivas multidisciplinares e interseccionais / Crítica Histórica / 2020

O anarquismo acabou. Viva o anarquismo!

Hoje engendra amanhã.

O presente projeta sua sombra

muito longe no futuro.

Emma Goldman, 1923.

O século XXI emerge com a efervescência de “novos” movimentos sociais: os movimentos antiglobalização, anticapitalista, Occupy Wall Street, a “primavera árabe”, as ocupações das praças e escolas por jovens estudantes, movimentos pela mobilidade urbana e, no Brasil, as “jornadas de junho” em 2013. São movimentos sociais ressignificados, horizontalizados, de ação direta, com agenda clara e específica ligadas a direitos sociais fundamentais: educação, saúde, transporte. Desses eventos, ressurgem elementos do tradicional pensamento anarquista, ressurgem movimentos que lembram o anarquismo histórico, seja lá o que isso signifique.

Concomitantemente, novas pesquisas, novas reflexões, novas abordagens, novos temas, novos recortes, novos sujeitos e outros tantos nem tão novos assim, começaram a elaborar aproximações entre o pensamento e a prática anarquista ao longo da história com demandas atuais, como as questões de gênero, especismo, questões ambientais e aquecimento global, discussões pós e decoloniais, raciais e étnicas. Há pesquisas e estudos que sistematizam a contribuição anarquista histórica para essas questões e vice- versa, que articulam a contribuição atual dessas questões ao pensamento anarquista. Em uma outra seara, porém não isolada, há pesquisas sobre as experiências de autogestão e formas horizontais e autônomas de gestão, como as fábricas recuperadas na Argentina e em movimentos e movimentações sociais nesse século. Há ainda o desafio do pensamento e do movimento anarquista diante do levante conservador recente, com destaque para apropriação do discurso libertário pelos ultraliberais, com o chamado anarco-capitalismo, por exemplo. Aqui, pesquisadores enfrentam o desafio entre a crítica à conciliação de classes proposta pelas esquerdas que foram vitoriosas recentemente (se expondo à traição) e à cooptação do discurso anarquista pela ultra direita e pelos neoliberais.

Ainda que o dossiê Anarquismos: história e historiografia em perspectivas multidisciplinares e interseccionais não tenha contemplado esse horizonte de expectativas, tal qual se apresentou na chamada de artigos, o resultado aqui apresentado diz muito sobre o estado da arte da pesquisa sobre o anarquismo na historiografia nacional e em como, algumas outras áreas das ciências humanas, têm se aproximado do debate e das aproximações teórico-metodológicas sobre o anarquismo.

Entre os artigos aqui organizados, abrem o dossiê dois textos de caráter teórico que, como recomenda a boa historiografia, intervêm diretamente na pesquisa empírica. O primeiro deles, “Anarquismo italiano, transnacionalismo e emigração ao Brasil: Contribuições ao debate teórico”, do historiador e professor Carlo Romani (UNIRIO), demonstra como, no entre séculos (XIX-XX), a formação de redes transnacionais entre os ativistas anarquistas, apesar de já bastante conhecida da historiografia, transforma-se em regra. Nesse sentido, Romani indica como a vinda de imigrantes anarquistas para o Brasil é parte constitutiva dessa história transatlântica e como, especialmente em São Paulo, esse encontro de anarquistas italianos permitiu a criação de grupos organizados em rede que foram determinantes para a difusão do anarquismo no Brasil no início do século XX.

O segundo, “A bandeira negra entre outras: (trans) nacionalismo e internacionalismo na construção do anarquismo no Brasil (1890-1930)”, do historiador Kauan Willian dos Santos (doutorando em História Social / USP), articula a conexão entre anarquismo, internacionalismo e transnacionalismo, a qual se organiza pela imigração, pelas redes de ativistas e pela circulação de ideias e experiências, durante a chamada Primeira República. Nesse sentido, traz à tona a visão de nação, nacionalismo, patriotismo e, aqui é importante ressaltar, a visão de raça de seus agentes, naquilo que orienta conceitos e práticas de classe, no interior do debate entre trabalhadores nacionais e estrangeiros. Sugere, então, a divisão em três momentos diferentes da história do anarquismo.

Em um segundo bloco, estão integrados os artigos que dizem respeito a desdobramentos e especificidades da história do anarquismo, no início do século XX, no Brasil. “Nos bastidores de um jornal anarquista: as particularidades do processo de produção de um jornal libertário na Primeira República Brasileira (1900-1935)”, do doutorando em História (UNESP / Assis-SP), Lucas Thiago Rodarte Alvarenga, apresenta as minúcias da produção de alguns jornais de propaganda anarquista, no início do século XX. Assim, demonstra como ativistas organizaram seus periódicos libertários da escolha temática à impressão, da tipografia à distribuição. Já Luciano de Moura Guimarães, também doutorando em História Social (PUC-Rio) e professor do Colégio Pedro II, apresenta uma instigante perspectiva sobre o movimento anarquista fora do eixo Rio-São Paulo, tradicionalmente espaços de excelência da historiografia sobre o tema. O artigo, “Anarquia na Bahia (1920-1922) – militância, repressão e circulação geográfica na trajetória de Eustáquio Marinho”, refaz os passos do anarquista Eustáquio Marinho na circulação de ideias e de como sua presença em Salvador- BA, após voltar de um período no Rio de Janeiro onde atuou nas greves de 1918 e da “Insurreição Anarquista” no mesmo ano, será importante para a organização do movimento operário soteropolitano. Participando ativamente da organização dos trabalhadores da construção civil e da transformação das estratégias de luta operária, no que podemos chamar de anarcossindicalismo de caráter revolucionário, foi protagonista da emergência do anarquismo na Bahia. Ao mesmo tempo em que acompanha a trajetória do ativista anarquista, o autor empreende uma análise bastante perspicaz da repressão policial que se seguia a cada ação dos trabalhadores na luta por direitos, através da grande imprensa.

Retomando a história da “Insurreição Anarquista”, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1918, Hamilton Moraes Theodoro dos Santos, doutorando em História Comparada (UFRJ), aprofunda as análises o sindicalismo revolucionário de inspiração anarquista e que teve papel central na organização do movimento operário brasileiro na Primeira República. Percorrendo os mecanismos de resistência direta ao capitalismo, o autor traça elementos de influência da Revolução Russa na articulação de novas perspectivas de organização e de ação do movimento operário. O artigo seguinte, “Educação, sindicalismo revolucionário e anarquismo nos Congressos Operários Brasileiros (1903-1921)”, do historiador (UFF) e mestre em Educação (UNIRIO), Antonio Felipe da Costa Monteiro Machado, retoma a organização dos três grandes Congressos Operários Brasileiros (1906, 1913 e 1920), a partir das propostas educacionais voltadas para os trabalhadores e seus filhos.

Fechando esse bloco, o artigo “A condição social da mulher e o debate sobre gênero e patriarcado: contribuições de Maria Lacerda de Moura”, das autoras Tatiana Ranzani Maurano (psicóloga e doutoranda em Educação / UNESP) e Glaucia Uliana Pinto (psicóloga e doutora em Educação / Unimep) apresentam aproximações entre a obra da anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura e o debate sobre a condição feminina. Ancorando suas análises no materialismo histórico dialético, focam no livro Renovação, no qual Lacerda de Moura explicita como a mulher trabalhadora tem seu corpo subjugado e, por conta disso, seu lugar social é o da procriação e cuidado dos filhos. Único artigo escrito por mulheres sobre uma mulher anarquista, demonstra como ainda é preciso abrir fronteiras e derrubar muros para pensar na historiografia da desigualdade de gêneros e do papel das trabalhadoras na luta operária.

Os dois artigos seguintes empreendem análises sobre as influências teóricas no movimento anarquista da virada do século XIX para o XX. No artigo “Apropriação e produção de teorias evolucionistas nos periódicos anarquistas brasileiros (1900-1930)”, Gilson Leandro Queluz, mestre em História (UFPR) e doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), analisa a apropriação e produção de teorias evolucionistas presentes nos periódicos anarquistas brasileiros nas primeiras décadas do século XX. Segundo o autor, essa apropriação pelos movimentos anarquistas passou também pela crítica ao colonialismo autoritário, racista e hierárquico. Pensando a partir da ideia de hibridismo, o artigo nos brinda com um feliz encontro de ideias, as quais forneceram elementos para a produção de uma teoria crítica libertária a respeito da ciência.

Hugo Quinta, mestre em Estudos Latino-Americanos (UNILA) e doutorando em História (UNESP, campus de Assis), no artigo “Os estudos do crime sob a ótica de um anarquista: Pietro Gori e a revista Criminalogía Moderna”, examina os estudos do crime sob a ótica de Pietro Gori (1865-1911), personagem múltiplo, um anarquista-poetadramaturgo-advogado italiano que, entre 1898 e 1902, reside em Buenos Aires e ali funda a Criminalogía Moderna, primeira revista de criminologia da América Latina. O autor propõe uma análise “radiográfica” do trabalho de Gori sobre criminologia, ciência recentemente criada e ainda, naquele momento, em fase de consolidação. O artigo levanta indícios de como o anarquismo e a criminologia conviveram, às vezes não sem contradições, em um personagem tão múltiplo.

Fechando o dossiê, estão três artigos que articulam o (trans)nacionalismo no movimento anarquista em outros países e períodos. Abrindo este último bloco, o artigo “Repassando a chama – sindicalismo e anarquismo na Alemanha, do período imperial até a segunda guerra mundial”, do doutorando em História Moderna (JGU Mainz-Alemanha), Moritz Peter Herrmann, propõe-se a uma tarefa difícil, porém realizada com brilhantismo. O artigo parte da ideia de que pensar anarquia e anarquismo na Alemanha é sempre tomado por certo obscurantismo, como ele afirma, “tanto pelo suposto caráter nacional, como pelo fato de que a história da classe operária alemã ser dominada pela social-democracia, um movimento centralizador e estatista, defendendo o socialismo científico de Marx e Engels.” Nesse sentido, faz um esforço bastante interessante de mapear, entre fins do século XIX e início do XX, os projetos radicais rechaçados pela hegemonia da social-democracia, assim como os ativistas que se recusaram ao dirigismo e que, mesmo como minoria, tiveram papel importante nas lutas operárias e na formação do anarcossindicalismo alemão. Ao final, ainda, ganhamos de brinde a presença das mulheres no anarquismo alemão e como o debate já se colocava em termos de uma percepção da existência de uma dupla opressão para as mulheres trabalhadoras e anarquistas. Essa é uma pesquisa que precisamos fazer com urgência.

Viajando pela Europa e chegando no período entreguerras, encontramos o poeta anarquista espanhol, Léon Felipe. “La Insignia e o Anarquismo: a experiência da guerra civil espanhola na poética de Léon Felipe”, artigo escrito pelo mestre em Literatura (UFES), que além de professor da área é também advogado criminalista, Felipe Vieira Paradizzo, aborda a Guerra Civil Espanhola e a produção poética de Felipe e demonstra as relações estreitas entre o ativismo anarquista e a criação.

Fechando o bloco das experiências (trans)nacionais, no artigo “A prática de luta armada da Organización Popular Revolucionária – 33 Orientales no Uruguai (1968-1972)”, Rafael Viana da Silva, doutor em História (UFRRJ), busca analisar a formação e ação do “braço armado” da Federación Anarquista Uruguaya, em um período de endurecimento do regime constitucional. Pensando nas influências da Revolução Cubana na América Latina, o artigo busca suas interconexões com a prática guerrilheira uruguaia.

Aproveito a deixa e recomendo a resenha, que se encontra no final do dossiê, elaborada pelo mestrando em História (UFAL), Igor Ribeiro, da coletânea de artigos História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas (Curitiba: Editora Prismas, 2018), organizada por dois dos autores deste dossiê, Kauan Willian dos Santos e Rafael Viana da Silva.

Por fim, encerro esta apresentação com o artigo de Flávio José de Moraes Junior, mestre em História (UFRJ), “Manifestações de rua como laboratório político – 2013 e suas emergentes formas”. Analisando os mecanismos de comunicação entre diferentes grupos sociais nas manifestações de rua no Rio de Janeiro, entre 2013 e 2014, a partir de um contexto mais geral e inseridos nos movimentos “antiglobalização”, o artigo aponta para características de organização que tem como fundamentos na ação política, a horizontalidade. Ao mesmo tempo, tenta entender o surgimento da tática black bloc em meio à brutal repressão policial e a relação deles com “velhos” movimentos sociais e partidos políticos de esquerda.

Não à toa, a criminalização dos movimentos sociais ocorrida durante as “jornadas de junho” serviu também para disseminar “velhas” ideias de que o anarquismo é inimigo da sociedade e do estado. Mas o que fica é a certeza de que é da experiência de luta dos trabalhadores, daquele longínquo final do século XIX e início do século XX e que se segue, por onde encaramos o presente e miramos o futuro.

Ana Paula Palamartchuk

Julho / 2020


PALAMARTCHUK, Ana Paula. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 11, n. 21, julho, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia (I) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2020

A Revista Clio abre este número com a primeira parte do Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia, que traz artigos voltados às interfaces entre o poder, as culturas políticas e a sociedade, a partir de perspectivas teórico-metodológicas que focalizem as rupturas, as permanências, os antagonismos e as ambivalências historicamente tecidas nas múltiplas formas de relações sociais entre as elites e as camadas populares no Brasil durante o século XIX, nas mais diversas dimensões de envolvimentos do poder e seus reflexos na sociedade e na economia. A inserção da esfera micro na dimensão macro, as atualizações e ressignificações do local e do regional diante das injunções produzidas pela dinâmica do global, como também apreender os processos e as tramas que singularizam as histórias do local e regional, e o espaço de negociação estabelecido pelos seus atores sociais instituídos nacionalmente. As práticas políticas, a cultura do clientelismo, a organização social e econômica, bem como a inserção e participação das famílias livres e pobres em meio ao universo escravista. As relações e articulações políticas, e econômicas, bem como o perfil dos movimentos sociais, entre os diversos atores, são fundamentais para entender a participação e o protagonismo político de diversos grupos de elite e das camadas populares no “longo século XIX”.

Os cinco primeiros artigos tratam do mundo rural no XIX, a partir do debate sobre o trabalho e as políticas de colonização. Abre esse bloco o artigo de Júlia Leite Gregory, Esquecidos, desclassificados e sem razão de ser? Revisitando a historiografia para localizar o pobre no mundo rural, que traz uma importante análise historiográfica sobre o universo das famílias de trabalhadores livres no meio rural nos séculos XVIII e XIX. Gregory focou sua investigação nos trabalhos que discutem as trajetórias e experiências dos lavradores na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e mostra os avanços da historiografia em torno deste vasto grupo, que numericamente era maior do que o universo de trabalhadores escravos, mas que ainda apresenta várias lacunas em torno de temas importantes para a compreensão de um grupo complexo e heterogêneo, e que ainda constituem um campo “em aberto” às investigações dos historiadores.

Ainda sobre o universo das famílias livres e pobres do mundo rural no oitocentos, temo o segundo artigo de autoria de Leandro Neves Diniz, intitulado A política de mão de obra no Império brasileiro: da conturbada unificação à precarização do trabalho livre, que discute a precarização do trabalho livre na Paraíba após o fim do tráfico internacional de escravos na década de 1850. Diniz parte da análise do impacto das revoltas regenciais sobre o universo do trabalho livre, especialmente nas relações estabelecidas entre os pequenos lavradores e os grandes proprietários. A desarticulação do tráfico internacional tem destaque na análise de Leandro Diniz, que mostra que o fim da alternativa de renovação das senzalas, mesmo que pela obtenção ilegal de escravizados, criou uma série de ameaças aos libertos, além do direcionamento das políticas de estado para a solução da “crise de braços” para a contratação de imigrantes europeus, relegando-se a um segundo plano os lavradores livres e pobres nacionais. Um cenário que contribuiu para a precarização do trabalho livre no Brasil da segunda metade do século XIX.

As dinâmicas do mundo do trabalho e a superexploração de trabalhadores rurais são o tema do terceiro artigo do dossiê, de autoria de Christine Paulette Yves Rufino Dabat, intitulado Ópio e açúcar: o capitalismo e suas drogas na superexploração dos trabalhadores rurais (Índia e Brasil, séculos XVIII-XIX). Dabat realiza uma investigação comparativa entre o Brasil e Índia no “longo século XIX”, permitindo ao leitor uma boa experiência metodológica da história conectada, tão em voga em Portugal na atualidade. Nesse artigo são analisadas as cadeias produtivas do açúcar e do ópio e o impacto desses produtos no universo do trabalho. Esses dois produtos distintos em suas propriedades e efeitos foram utilizados na expansão na expansão industrial e colonial da Grã-Bretanha: o ópio para enfraquecer os trabalhadores chineses frente às imposições coloniais inglesas, o açúcar como fonte de energia para os trabalhadores na indústria.

Ainda em torno do debate sobre a questão da mão de obra e a colonização no Brasil oitocentista, temos em seguida o artigo de Marcos Antônio Witt, intitulado Projetos de desenvolvimento para o Brasil: imigração, colonização e políticas públicas, que analisa os projetos de imigração no Império do Brasil articulados com as mesmas políticas em curso nos países vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o Uruguai. Witt discute esses projetos de colonização mostrando as suas várias faces: da questão da mão de obra às teses do “branqueamento”. Além disso, Witt inova o debate ao analisar os limites desses projetos no Brasil oitocentista, especialmente no caso da imigração alemã no sul do Brasil. As políticas imperiais em torno da imigração encontraram barreiras de origens diversas, que frearam os projetos do Império em torno da colonização europeia.

No processo de colonização o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas teve, a partir de 1860, um papel central. No quinto artigo dessa coletânea, Pedro Parga em seu trabalho intitulado O funcionamento da Diretoria de Agricultura e as solicitações de adiamento de prazo para medição entre 1873 e 1889, discute as políticas e o papel do órgão na promoção da colonização. Parga discute a atuação desta repartição nas solicitações de adiamento do prazo de medição e demarcação de terras e também na aplicação das leis agrárias oitocentistas. A investigação desses mecanismos permitiu uma análise dos interesses de grupos específicos articulados em tonos do Estado Imperial.

Em seguida temos um bloco de trabalhos voltados à História Política do Brasil Império. No sexto capítulo temos o artigo de Kelly Eleutério Machado Oliveira intitulado O tempo da província”: revisão bibliográfica crítica da política imperial no Brasil oitocentista, no qual analisa a abordagem historiográfica das províncias e das assembleias provinciais no debate sobre a construção do Estado nacional. Oliveira parte da discussão da obra de Francisco Iglésias sobre a Província de Minas Gerais que, para a autora, criou um divisor de águas na historiografia ao privilegiar a esfera da província na investigação. A partir da obra “Política econômica do governo provincial mineiro (1835-1889)” Kelly Oliveira percorre as obras herdeiras do legado de Francisco Iglésias, debatendo as correntes historiográficas formadas a partir das pesquisas em torno das administrações provinciais.

Em seguida temos o sétimo artigo, intitulado Rupturas e Continuidades na Assembleia Constituinte de 1823: a autoridade do monarca e o lugar do poder local, de autoria de Glauber Miranda Florindo, no qual analisa a estruturação do Estado brasileiro a partir da primeira constituinte do Brasil. Florindo parte da discussão da Constituinte de 1823 no que diz respeito ao debate em torno das administrações dos municípios e províncias. O autor mostra os caminhos percorridos em torno das reformulações das esferas municipais e provinciais, e como elas se apresentavam no debate em torno do pretendido equilíbrio dos poderes no arranjo monárquico-constitucional brasileiro. Glauber Miranda Florindo destaca em seu trabalho uma continuidade discursiva e prática, de alguns elementos oriundos do estado português antes da Constituição de 1822, a base da formação do Estado brasileiro. Florindo mostra as continuidades dos elementos basilares da velha ordem colonial na Constituinte do Brasil de 1823.

Sérgio Armando Diniz Guerra Filho, é o autor do nosso oitavo artigo, intitulado As Câmaras e o Povo: a crise antilusitana de 1831 no interior da província da Bahia, no qual analisa os acontecimentos políticos ocorridos no interior da província da Bahia que tiveram como pano de fundo a crise antilusitana de 1831. Guerra Filho centrou a sua análise na atuação das câmaras municipais, especialmente àquelas do recôncavo baiano, região de grande importância econômica e política para a Bahia. O autor trata das tensões e conflitos políticos ocorridos nestas localidades, demonstrando o impacto dos acontecimentos protagonizados pelos de setores populares nas deliberações das câmaras. Ainda discute a atuação política do povo em geral nesse processo, além dos posicionamentos das autoridades frente aos movimentos rebeldes de 1831 na Bahia.

Seguindo no debate sobre a política no Estado Imperial, o nono artigo cognominado O Visconde da Parnaíba e a construção da ordem imperial na Província do Piauí de autoria de Pedro Vilarinho Castelo Branco, no qual analisa a trajetória de Manuel de Sousa Martins, o Visconde da Parnaíba, um dos personagens centrais da História do Piauí Oitocentista. Castelo Branco investigou a trajetória de vida do visconde, da sua construção a partir dos seus horizontes de expectativas no final do século XVIII, no Piauí. O autor mostra que, apesar das adversidades e das barreiras iniciais impostas pelos limites das suas redes de relações sociais, Manuel de Sousa Martins teve a oportunidade de utilizar as ferramentas de ascensão social presentes nas sociedades colonial e imperial, para si e sua parentela: poder, honra, prestígio social e patrimônio. Pedro Vilarinho Castelo Branco discute ainda a longevidade do visconde frente ao Governo Provincial do Piauí (1823-1843), mostrando várias faces da história política do Império na trajetória do Visconde da Parnaíba.

Amanda Barlavento Gomes é a autora do décimo artigo do dossiê, cognominado Negócios de família: políticos, traficantes de escravizados e empresários pernambucanos no século XIX. Gomes analisa a trajetória do comerciante pernambucano de grosso trato Francisco Antonio de Oliveira e seu filho Augusto Frederico de Oliveira, negociantes que aturam em diversos ramos do comércio e também no tráfico atlântico de escravizados. A autora mostra que em função da proximidade da Lei Antitráfico de 1831, eles diversificaram as suas atividades a partir de investimentos modernos de capitais e na fundação de empresas, contando com articulações políticas importantes dentro e fora do Império do Brasil. Amanda Barlavento Gomes analisou a atuação política desses personagens, que ocuparam os cargos de vereador e deputado geral, mostrando os mecanismos através dos quais eles defenderam os seus interesses familiares, especialmente a partir de suas redes de relações sociais com políticos e comerciantes, o elemento central para o sucesso financeiro da família.

Encerra esse bloco de trabalhos voltados à História Política o artigo de André Átila Fertig e Guilherme Gründling, intitulado Dos campos de batalha à Corte imperial: a relação entre os militares Visconde de Pelotas e Marquês do Herval através de suas correspondências (1869-1879). Fertig e Gründling abordam a trajetória política dos militares sul-rio-grandenses José Antônio Correa da Câmara (Visconde de Pelotas) e Manoel Luís Osório (Marquês do Herval) na segunda metade do século XIX, especialmente as suas articulações após a Guerra do Paraguai. Os autores investigaram as correspondências trocadas entre eles, tecendo uma interessante análise do fenômeno histórico do ingresso de militares no sistema político nas últimas décadas do Império do Brasil.

O décimo segundo artigo do dossiê é de autoria de Carlos Alberto Cunha Miranda, intitulado Médicos e engenheiros no Recife oitocentista: higienismo, implantação de projetos arquitetônicos e de serviços urbanos. Carlos Miranda analisa alguns aspectos dos saberes médicos na cidade do Recife, na perspectiva de implantação de um urbanismo higiênico no século XIX. Neste trabalho foi mostrado que o alto índice de epidemias e de insalubridade dos lugares públicos passou a preocupar os médicos, engenheiros e autoridades governamentais que, a partir daí, procuraram intervir no espaço urbano, nos novos prédios públicos, nos serviços de abastecimento de água e no saneamento, com o objetivo de modernizar a cidade e diminuir o perigo das epidemias que assolavam a Província de Pernambuco, especialmente a cidade do Recife no século XIX. Miranda discute a influência dos médicos e engenheiros nas construções de novas edificações e na implementação de serviços urbanos.

Encerra o Dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia o artigo de Vandelir Camilo, intitulado Homem de cor: as performatividades de um “mulato” frente ao racismo Doutor José Mauricio Nunes Garcia Junior (1808-1884). Camilo analisa a trajetória de vida de José Mauricio Nunes Gracia Junior, um homem de cor que, apesar das adversidades do racismo no XIX e ciente das suas estratégias de sobrevivência naquele meio, logrou a formação na Academia Médico Cirúrgica em 1831, e ainda alcançou a docência Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e na Academia de Belas Artes. Vandelir Camilo traz uma perspicaz análise de temas como a liberdade e cidadania no Brasil Império a partir deste estudo de caso.

Cristiano Luís Christilino – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor adjunto na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-9683-2885

Suzana Cavani Rosas – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora associada na Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-5528-0909

Maria Sarita Cristina Mota – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Atualmente é Investigadora Integrada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-1705-3999


CHRISTILINO, Cristiano Luís; ROSAS, Suzana Cavani; MOTA, Maria Sarita Cristina. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.38, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a escrita e o tempo / Anos 90 / 2020

O número que aqui apresentamos aos leitores da Revista Anos 90 é composto por sete trabalhos relativos ao Dossiê A Historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a Escrita e o Tempo, além de dois artigos livres. Todos eles se debruçam sobre um tema cuja trajetória é tão extensa quanto volumosa: a atividade missionária da Companhia de Jesus, e a produção historiográfica a respeito dela.

Podemos dizer que a ação dos inacianos em relação às populações dos territórios não europeus, para onde eles se expandiram desde os inícios do século XVI, foi uma das marcas mais significativas da primeira globalização (ALMEIDA, 2010; ARANHA, 1998; CARNEIRO DA CUNHA, 1998; GRUZINSKI, 2004). Nos territórios do Novo Mundo, a nova Modernidade buscou ser, como afirmou Bartomeu Meliá (MELÍA, 2006), “sem limites”, uma vez que visava a agir sobre os colonos europeus, assim como sobre as populações ameríndias, trabalhando para uma transformação que se processava em todos níveis, na sociedade e na economia, na vida familiar e material, no espiritual e no simbólico. As suas “missões”, especialmente aquelas que tinham por método a reducción a pueblos, foram uma singular “experiência de contato”, cuja complexidade e cujos desdobramentos gerou perene interesse de especialistas de variados campos. De uma perspectiva geral, aquilo que os jesuítas definiram como “missão por redução” pode ser entendida, assim, como um “fato social total”, não isenta de tensões.

No Brasil, os estudos sobre os vários espaços missionários em que os jesuítas atuaram, conheceram uma significativa renovação desde os finais do século XX, quando foi possível superar, a partir de uma produção acadêmica gestada no âmbito dos cursos de pós-graduação, em franca expansão na época, os tradicionais enfoques de elogio ou detratação. Na mesma medida, produziu-se, desde então, uma fecunda ampliação dos temas e das abordagens emprestadas às missões, acompanhando a própria trajetória do campo da história naquele momento. Perspectivas que dirigiam seu interesse a questões do campo da Antropologia relativas ao cultural e ao simbólico fecundaram, assim, as tradicionais histórias sobre esta temática.

Mais recentemente, a este movimento associou-se outro igualmente renovador, capaz de produzir uma mudança substancial na perspectiva pela qual se analisa o tema, dizendo respeito à recuperação, para as populações não europeias, de um lugar ativo na configuração dos elementos simbólicos e materiais que constituíram essa história. Tratou-se, fundamentalmente, no caso das Américas, como disse Celestino de Almeida (MOSTACCIO, 2010), de trazer as populações indígenas, dos “bastidores para o palco”.

A partir dos anos 1990, a história dos índios, negligenciada pelos historiadores brasileiros, desenvolveu-se produtivamente no campo da Antropologia, em que surgiram as primeiras vozes críticas, questionando as velhas concepções que lhes reservavam o lugar de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização. Antropólogos e historiadores como Manuela Carneiro da Cunha (ROBERTSON, 1997) e John Manuel Monteiro (ROBERTSON, 1997) representaram as primeiras tentativas de pensar neles como sujeitos históricos. Ambos foram as principais forças motrizes da história dos índios em contato com as sociedades coloniais e pós-coloniais, transformando-os em agentes históricos.

O diálogo com a Antropologia e a fecundidade das abordagens culturais e etno- históricas foram essenciais na reconfiguração do entendimento sobre a dinâmica indígena da missão. Isso em termos de estratégias, lógicas e práticas locais, associadas a uma adoção de certos dispositivos de poder – como a escrita – para fins diferentes daqueles do colonialismo.

Seguindo estes pressupostos teórico-metodológicos, foi possível, dessa maneira, superar a visão clássica que percebia as missões como resultado do talento organizador dos jesuítas, considerando os indígenas como sujeitos passivos e submissos a ele. Outro elemento de “densificação” das histórias que se passaram a produzir, residiu em aportar uma compreensão mais complexa dos espaços missionários, no sentido de superar visões idílicas de sociedades utópicas que puderam viver um “cristianismo feliz”, tal como na definição de Ludovico Muratori (1743)¹.

Trabalhos recentes, partindo de uma perspectiva mais complexa, concebem as missões como espaços ao mesmo tempo religiosos, culturais e políticos, bem como de interações e negociações, individuais e coletivas, em que se transformam tradições, fundamentalmente nativas, mas nas quais, igualmente, sob certos aspectos, as europeias necessitaram ser adaptadas aos contextos locais. Se, por um lado, a análise “global” nos permite situar missões no contexto das políticas de evangelização da Companhia de Jesus no Brasil, por outro lado, a perspectiva “local” integrará, modificará e / ou alterará a implementação de estratégias etnomissionais à escala mundial, bem como envolverá todos os aspectos da colonização europeia. Uma tensão entre agência política, cultura local e redes globais que alguns teóricos definiram como “glocal”².

Finalmente, podemos mencionar a importância de estudos empenhados em superar os prejuízos analíticos comportados por visões compartimentadas do espaço missionário, construídas pelas historiografias nacionais decimonônicas. A elas se opõem, com evidente avanço interpretativo, perspectivas que problematizam a noção de fronteira e que apontam para a ideia de “região”. Podemos, assim, concluir que os estudos contemporâneos sobre os espaços missionários são abertos e interdisciplinares, apontando para a importância de avaliações historiográficas que hoje em dia retomam e reinterpretam criticamente as fontes que permitem estudá-los.

Ao trabalho missionário jesuíta, que se estendeu desde o século XVI, para amplas porções do planeta, está associada uma notável produção historiográfica. Trata-se, portanto, de um tema que tem condensado fortemente, sob muitos aspectos, o interesse de historiadores de diferentes épocas e matrizes historiográficas.

Podemos dizer, efetivamente, que, no esforço de promover e “fazer memória” da sua atuação, as primeiras narrativas das missões foram construídas pelos próprios jesuítas coetâneos a elas, muitas vezes como exercício de propaganda das suas atividades apostólicas. Entretanto, há́ elementos para afirmarmos que o estudo dos espaços missionários permanece revestido de importância e densidade analítica no momento presente.

Ele é, assim, um bom ponto de partida para pensarmos, em vários sentidos, a nossa Modernidade. Entre os mais importantes ou evidentes desses sentidos, podemos apontar a atenção para as respostas locais (ou culturais) à expansão europeia iniciada junto com a Idade Moderna. É de fato possível, a partir daí, instalar-se uma profícua discussão sobre os processos de contato cultural e seus desdobramentos, tema absolutamente contemporâneo. Assim sendo, ao remetermo-nos inapelavelmente às questões das alteridades, das culturas (e, por conseguinte, do relativismo cultural), de seus trânsitos, empréstimos e apropriações, compreendemos que a importância dos espaços missionários jesuíticos justifica o número da Revista Anos 90 aqui apresentado.

Nosso Dossiê é uma amostra da variedade de reflexões que podem ser acionadas a partir da temática sobre a qual discorremos anteriormente, e de como tais problemáticas renovam uma historiografia que já é multissecular. Desejamos que a leitura seja proveitosa e estimuladora de novos trabalhos.

Notas

  1. Erudito italiano, Ludovico Antônio Muratori (1672-1750) ficou particularmente conhecido por meio da obra Cristianesimo felice nelle missioni de’ padri della Compagnia di Gesù nel Paraguay, publicada em Veneza, em 1743. A obra, conhecida como O Cristianismo Feliz defende o trabalho dos jesuítas nas Missões do Paraguai, quando elas eram fortemente criticadas.
  2. Como consequência da tese de doutoramento na Universidade de Chicago (1985), Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo (1994), Monteiro deu visibilidade ao protagonismo dos índios na construção da sociedade colonial da capitania paulista, mostrando que as dinâmicas de conquista e colonização dependiam, em grande medida, das populações indígenas, cujas ações se baseavam nas dinâmicas de suas próprias sociedades.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

ARANHA, Paolo. “Glocal” Conflicts: Missionary Controversies on the Coromandel Coast between the XVII and XVIII centuries. In: CATTO, Michela; MONGINI, Guido; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, [1992] 1998.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. In: História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-15.

GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004.

MELIÁ, Bartomeu. As missões jesuíticas nos sete povos das missões. IHU on-line, setembro de 2006. Disponível em: http: / / www.ihuonline.unisinos.br / artigo / 407-as-missoes-jesuiticas-nos-sete-povos-das-missoes. Acesso em: 20 ago. 2020.

MOSTACCIO, Silvia (eds.). Evangelizzazione e globalizzazione. Le missioni gesuitiche nell’età moderna tra storia e storiografia, Itália: Società editrice Dante Alighieri, 2010. p. 79-83.

ROBERTSON, Roland. Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scot; ROBERTSON, Roland (eds.). Global Modernities. Londres: Thousand Oaks; Nova Delhi: Sage Publications, 1997. p. 25-44.

Alex Coello de la Rosa – Professor da Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Catalunha, Espanha. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-5079-6180

Giovani José da Silva – Professor da Universidade Federal do Amapá, Macapá, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0003-4906-9300

Maria Cristina Bohn Martins – Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-7835-9062


ROSA, Alex Coello de la; SILVA, Giovani José da; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia e ensino de história em tempos de crise democrática / Revista Transversos / 2020

Em outras palavras, na representação da felicidade vibra

conjuntamente, inalienável, a (representação) da redenção. Com a

representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o

mesmo.

Walter Benjamin

Um primeiro elemento do que podemos chamar de uma crise contemporânea da disciplina história e, neste caso específico, da teoria da história, da história da historiografia e do ensino de história está relacionado à temporalidade.

O que precisamos lembrar, antes de qualquer reflexão sobre a história, a teoria da história, a história da historiografia e o ensino de história hoje, é que a temporalidade no interior e para a qual a disciplina se constituiu, trazia desafios significativos, provocando, por exemplo, a perda de sua imediatidade, de seu poder de determinação mais transcendental, ou como Rüsen escreveu, trata-se de uma disciplina que não estaria mais “legitimada pela sua mera existência”. (RÜSEN, 2011: p. 27)

O que precisamos sublinhar aqui é que a constituição da disciplina – e com ela a teoria, a história da historiografia e o ensino de história – se torna possível (e necessária) no interior de uma temporalidade marcada pelo que Koselleck chama de “aceleração do tempo”. Ela se constitui, por um lado, a partir da redução do “espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e, por outro, do alargamento do “horizonte de expectativas” (Erwartungshorizont), ou ainda em outras palavras, da redução da confiança em passados e da acentuação da estratégia antropológica que é a da projeção. (Cf. KOSELLECK, 1989)

O que precisamos reter aqui é que se, por um lado, a modernidade se constituiu como um espaço marcado pela perda da imediatidade dos sentidos – Deus e Bíblia –, por uma espécie de multiplicação de mundos ou regiões possíveis, organizadas, por sua vez, com base em determinados sentidos, significados e afetos, ela também assiste, por outro lado, a uma disputa entre estas regiões no que diz respeito à possibilidade de que uma delas pudesse se generalizar e (re)ocupar um espaço mais central (transcendental).

A modernidade (mais propriamente ocidental) pode ser compreendida exatamente como uma temporalidade (um horizonte histórico) marcada pela ampliação considerável de experiências e perspectivas que até então eram pouco conhecidas, de modo que o que temos é o aparecimento de outras possibilidades e limites que precisariam ser experimentados e tematizados. A ideia aqui é justamente a de que a partir dessa ampliação, o conjunto de sentidos, significados e afetos reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia deixou de ser suficiente (adequado, sachlichkeit) para responder de forma mais ou menos razoável àquela realidade (efetiva, Wirklichkeit).

O que se dá, então, é que boa parte ou mesmo a maior parte dos homens e mulheres (no ocidente) procuram se dedicar ao exercício existencial-intelectual (experiência + atividade do aparato intelectivo: da imaginação e do entendimento em termos kantianos) que é o de projetar, a partir do presente (também em diálogo com passados, neste caso menos evidentes ou disponíveis), outros futuros possíveis, outras combinações constituídas exatamente por aquelas experiências e perspectivas que de alguma forma apareceram para e no ocidente. O que significa, assim, menos passados (ao menos aqueles mais evidentes, reunidos em torno das noções de Deus e Bíblia) e mais futuros, ou ainda, menos tradição e mais prospecção. O ocidente acaba se dedicando mais à estratégia antropológica de imaginar (ou sonhar), pensar e, então, constituir outros mundos possíveis (Cf. BENJAMIN, 1994). Temos o que Koselleck chama de um alargamento significativo do “horizonte de expectativas”. (Cf. KOSELLECK, 1989)

Mas qual a relação desta argumentação com a crise atual da disciplina história, da teoria, da história da historiografia e do ensino de história?

A resposta se relaciona ao que sublinhamos logo no início, à compreensão de que é justamente nessa temporalidade marcada pela redução do “espaço de experiência” e pelo alargamento do “horizonte de expectativas” que elas são constituídas. Elas se organizaram com o objetivo de participar do esforço mais geral de reorganização temporal, ou seja, da reconstituição de determinada estabilidade. O problema aqui, certo nó podemos dizer, é justamente um sentimento de perda de confiança em passados que atinge, em cheio, a história e, neste caso, o ensino de história. A disciplina participa de um movimento de reconstituição de um mundo comum, no entanto, ela (já) havia perdido parte de seu poder (mais imediato) de prescrição (Cf. GUMBRECHT, 2011)

As filosofias da história e os historicismos procuraram participar dessa reconstituição de um horizonte comum (mais geral, transcendental) e, se por um lado, obtiveram certo sucesso, e isto porque conseguiram, de alguma forma, reencantar razoavelmente a relação epistemológicopragmática com passados (especialmente a partir da estratégia temporal do progresso), o que temos, por outro lado, é que as próprias filosofias da história e os historicismos também acabaram participando e provocando o que podemos chamar de uma aceleração dessa aceleração ou instabilidade temporal, na medida em que também tivemos, ao fim, a própria multiplicação de sentidos e significados que seriam ideais. (Cf. KOSELLECK, 1989, RANGEL, 2019 e RANGEL; ARAUJO, 2015)

Portanto, temos o que podemos chamar de certo êxito em relação ao reencantamento da história, logo, da relação com passados (e mesmo de certa reestabilização temporal), mas, também (e apenas aparentemente de maneira paradoxal), a própria intensificação da aceleração, da instabilidade temporal. Ou em outras palavras, por mais que se tenha tornado possível certo reencantamento da relação epistemológico-pragmática com o passado, ele já era percebido como menos adequado e próprio à tematização e rearticulação do presente. (Cf. GUMBRECHT, 2011: p. 30)

De modo que a fórmula – o passado necessariamente nos auxilia no enfrentamento de questões próprias ao nosso mundo (ao presente) – nunca mais retomou o poder de prescrição (mais imediato ou automático, irresistível) que tivera, e mais, vem perdendo força desde então.

Vem perdendo força exatamente porque o que temos ao longo do século XIX e boa parte do século XX é algo que se aproxima desse esquema circular: 1- com a aceleração ou instabilidade temporal temos uma perda significativa da confiança epistemológico-pragmática em passados, 2- na medida mesmo em que temos essa redução do “espaço de experiência” temos uma aposta significativa na estratégia antropológica que é a da projeção, da prospecção, da constituição de outros mundos possíveis muitos mais a partir da imaginação a qual, por sua vez, atua compactando, reunindo, organizando parte do que vinha aparecendo para e no ocidente (inclusive com base em passados, mas neste caso menos óbvios ou disponíveis). 3- à medida que se dedica mais a projeções, acaba tornando possível a diferenciação entre hoje e ontem, logo a intensificação da instabilidade temporal; de modo que muito próximo à lógica do Sattelzeit o que se tem é que cada hoje se diferencia ainda mais do seu ontem. E, 4- na medida em que temos ainda mais diferenciação entre hoje e ontem do que havia entre ontem e anteontem, o que temos é um aprofundamento disto que podemos chamar de uma desconfiança em passados (no que diz respeito ao estudo e à reunião de orientações no presente em nome de outros futuros possíveis).

Situação dramática que tem sido aprofundada, atualmente, pela dinâmica própria à técnica, num mundo que vai se sofisticando tecnologicamente e vai produzindo cada vez mais a impressão, especialmente no que diz respeito aos mais jovens (aos nossos alunos) de que passados e futuros são ainda mais diferentes e distantes (Cf. RANGEL, 2018). A impressão, portanto, de que passados teriam muito pouco ou mesmo nenhuma condição de nos auxiliar no enfrentamento de possibilidades e limites colocados pelo mundo contemporâneo.

A história e, neste caso, especialmente o ensino de história tem perdido espaços importantes e mesmo parte da atenção de alunos e do público em geral, especialmente se pensada a partir do ambiente escolar, porque desde a modernidade boa parte de nós (claro que nem todos, e que bom!) tem tido cada vez menos empatia por passados, nos reconhecendo cada vez menos neles. (Cf. ABREU; RANGEL, 2020)

Seria interessante pensar, então, em meio à temporalidade contemporânea (que provoca ao menos a impressão de que hoje e ontem são muito diferentes e estão muito distantes), em uma reelaboração da (de certa) empatia por passados. Uma empatia a partir e junto a passados obscurecidos e periferizados para uma espécie de reorganização ainda mais radical do hoje em nome de outros futuros possíveis. Ainda temos muitos passados (e outros futuros possíveis) pela frente!

“Crise”. Talvez seja essa a palavra mais recorrente no debate público contemporâneo, no Brasil e no mundo. Basta ligarmos a TV na hora do noticiário para que todo tipo de crise seja lançado em nosso colo: crise política, crise econômica, crise sanitária. Este dossiê pretende, justamente, lançar luz sobre a experiência de crise que caracteriza a contemporaneidade, e não apenas no que se refere à dimensão epistemológica da história, como destacamos acima, mas também no que diz respeito às crises democráticas contemporâneas.

Falar em “crises democráticas contemporâneas” ainda é pouco para explicar o propósito deste dossiê. É que não é apenas o conceito de “crise” que é polissêmico. “Democracia” também é. O que está em crise é o experimento democrático liberal-burguês, fundado no século XVIII, na Europa e nos EUA, e que se tornou hegemônico no final do século XX com o fim da Guerra Fria. A democracia liberal-burguesa está morrendo de dentro para fora, a partir da disfunção de suas instituições, cada vez menos capazes de sustentar seu valor fundamental: a possibilidade da representação política através do voto (LEVITSKY; ZIBLATT, 2017). O “povo está contra a democracia”, para utilizar as palavras de Yascha Mounk (2019).

Ainda é cedo para conhecer as consequências dessa crise. Não faltam autores apontando tendências e fazendo previsões. O já citado Yascha Mounk aposta no divórcio entre democracia e liberalismo, manifestado na forma de um “liberalismo autoritário” e de uma “democracia iliberal”. Já o diagnóstico de Jason Stanley é mais sombrio e aponta para a possibilidade de renascimento dos fascismos: caracterizados pela recusa da representação política indireta e pelo clamor pela relação direta, afetiva e sem mediações entre “povo” e líder carismático, visto como o único que seria verdadeiramente honesto e digno de representar o interesse público.

No caso brasileiro, o principal efeito da crise democrática na arena do conhecimento histórico é a implosão de teses relativamente estabelecidas a respeito de eventos traumáticos que marcaram a história nacional. O “negacionismo histórico” é um projeto político-epistemológico da “nova direita” que ganha espaço na política brasileira desde pelo menos 2013, cujo objeto é negar o teor traumático de experiências que marcam o passado brasileiro, especialmente a escravidão e a ditadura militar (1964-1985) (CHALLOUB; PERLATO, 2016). Por trás disso, está o interesse em deslegitimar as políticas públicas que nos primeiros anos do século XXI estavam fundadas no horizonte da reparação histórica, como, por exemplo: as políticas afirmativas voltadas à população negra e as indenizações para as vítimas dos crimes de Estado cometidos durante a ditadura. Também não podemos esquecer da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, que ao investigar os crimes de Estado praticados pela ditadura serviu como gatilho para a manifestação de toda sorte de negacionismos, até então diluídos no senso comum. Analisando o verbete “regime militar brasileiro” da enciclopédia universal wikipedia, Mateus Pereira mostra como, já em 2012, os negacionistas estavam atuando na internet, negando a natureza golpista da intervenção militar de 1964 e justificando os crimes cometidos pela ditadura.

Como era de se esperar, os(as) historiadores(as) não ficaram passivos diante da avalanche negacionista e se lançam, cada vez mais, ao “combate”, como diz o lema da atual gestão da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), presidida por Márcia Motta (UFF). Podemos dizer, portanto, que no campo de atuação dos profissionais de história, a crise democrática resultou no chamado, ou melhor, na convocação à intervenção no debate público, em um “giro ético-político”, nas palavras de Marcelo Rangel e Valdei Araujo (2015). Esse engajamento assumiu várias formas, todas de alguma maneira questionando o rígido processo de especialização disciplinar que desde a década de 1970 fortaleceu a autonomia do campo historiográfico no sistema universitário brasileiro, na mesma medida em que isolava os historiadores profissionais do restante da sociedade (ARAUJO 2016). Essa autonomização não significou, entretanto, total ausência de engajamento público, pois, como mostra Rodrigo Perez (2018), a historiografia brasileira contemporânea é marcada por um “engajamento historiográfico” que, desde o final da década de 1970, é praticado através de abordagens interpretativas comprometidas com o empoderamento retroativo dos “sujeitos subalternos”. As novas modalidades de engajamento deflagradas pela crise democrática, no entanto, são movidas por um espírito mais combativo, de confronto mesmo, já que do outro lado está um projeto político que, em última instância, questiona a existência da historiografia como ciência social legítima e merecedora de investimentos públicos.

É comum, por exemplo, a utilização do termo “história pública” como uma espécie de guarda-chuva semântico para definir o movimento coletivo dos historiadores profissionais brasileiros no sentido da intervenção no debate público. O uso inspira alguns cuidados, pois parece que o termo vem sendo demasiadamente alargado, o que acaba desgastando-o. O que significa exatamente fazer história pública? Há várias respostas possíveis. Alguns autores tratam a história pública na chave da divulgação científica (CARVALHO; TEIXEIRA, 2019). Fazer história pública, então, seria o esforço de criação de canais de comunicação capazes de divulgar para o “grande público” os resultados das pesquisas que os historiadores profissionais desenvolvem nas universidades. Outros autores argumentam que a história pública não deve se restringir ao expediente da divulgação científica, mas precisa se comprometer a formular uma agenda epistêmica adequada à publicização, o que pode significar o diálogo com outros campos de pesquisa – como, por exemplo, a história oral (SANTIAGO, 2018) -, com a própria sociedade em geral. Seja como for, a sensação que temos é que a “história pública” se transforma, cada vez mais, em uma área especializada da historiografia, entre outras tantas. O risco é que a autonomização e os debates teóricos endógenos levem os especialistas em história pública a não fazerem história pública, o que seria uma contradição em termos.

O fortalecimento dos estudos especializados no ensino de história, que costumavam ser considerados menos nobres pelo mainstream historiográfico, é outro desdobramento da crise democrática no campo da ciência histórica. Especialmente depois do surgimento do movimento “Escola Sem Partido” (criado em 2004, mas projetado nacionalmente pelo horizonte da crise democrática aberto em 2013), o ensino de história vem sendo uma trincheira de resistência, onde os professores de história se afirmam como produtores de conhecimento e reivindicam liberdade política / pedagógica para o pleno exercício de seu ofício. Qual história deve ser ensinada e como deve ser ensinada? Circe Bittencourt (2018) demonstra como essas perguntas não são pertinentes apenas ao ambiente escolar, ou aos campos disciplinares com interesses diretamente pedagógicos. Trata-se de questões políticas fundamentais que tocam nos temas da identidade nacional e dos usos políticos do passado. Como mostra Daniel Pinha (2017), à luz das discussões propostas por Nicole Loraux e Marc Bloch acerca do anacronismo subjacente à tarefa historiográfica, o tempo presente orienta as aulas de história enquanto fundamento epistemológico inescapável ao ofício do professor, se este é compreendido com base numa dimensão autoral (nos termos propostos por Ilmar de Mattos, 2005). Isso é especialmente verdadeiro em um momento de crise tão aguda como essa que vivemos, quando consensos são implodidos e o professor de história / historiador precisa negociar com sua audiência o conteúdo de seu saber, o formato de sua abordagem. Os estudos especializados em ensino de história vêm explorando essas tensões e mostrando como as aulas de história ministradas no ensino básico são talvez o mais importante canal de diálogo e de comunicação do conhecimento histórico especializado com o “grande público”.

Há também autores que apontam para a insuficiência da ciência histórica, constituída a partir da temporalidade historicista ocidental, em tematizar outras experiências de passados. Para aumentar a capacidade da historiografia em acolher diversos registros de memória, Valdei Araujo (2017) propõe um alargamento das competências do historiador profissional, que ao invés de se comportar apenas como o produtor de sentido, deveria ser também um “curador”, capaz de “acolher criticamente” a pluralidade das histórias que circulam pela sociedade. Em outra perspectiva, mas partindo do mesmo diagnóstico de que a historiografia profissional não é capaz de dar conta dos “diversos passados que circulam socialmente”, Arthur Ávila, Fernando Nicolazzi e Maria da Glória (2020) propõem a “indisciplinarização do conhecimento histórico”. Dialogando diretamente com as perspectivas pós-coloniais e decoloniais, os autores identificam uma crise de representatividade na nossa disciplina, dada pela incapacidade de uma ciência forjada com base nos valores ocidentais em representar passados não ocidentais.

Como o leitor e a leitora podem perceber, o ambiente da crise democrática suscitou diversos debates na historiografia brasileira contemporânea, dando forma a diferentes agendas de pesquisa, tanto no âmbito da modalidade acadêmico-universitária quanto na escolar, propondo distintas soluções para a atuação do especialista em história no debate público. O dossiê ora apresentado vem se somar a esses esforços de enfrentamento da crise epistemológico-ético-política também resultante da crise democrática.

Em nosso artigo de abertura, intitulado “Memory, historical culture, and history teaching in the contemporary world”, Marcelo Abreu e Marcelo Rangel propõem um debate em torno de questões teórico-historiográficas relacionando memória, cultura histórica e ensino de história, tendo em vista o enfrentamento de dilemas ético-políticos do mundo contemporâneo tais como: a necessidade de democratização, a problematização do etnocentrismo e as múltiplas formas de produção de presença envolvendo a produção de enunciados historiográficos.

Em seguida, no artigo “Ditadura civil-militar e formação democrática como problemas historiográficos: interrogações desde a crise”, Daniel Pinha problematiza o topos “Ditadura civil-militar” – sobretudo entre os anos de 2004 e 2014, aniversários de 40 e 50 anos do Golpe Militar – enquanto chave de análise utilizada por historiadores brasileiros para nomear e caracterizar a experiência do regime autoritário instaurado no Brasil em 1964. Rodrigo Perez parte de temática semelhante, indagando sobre as formas de circulação do discurso historiográfico em ambientes de crise, mas investe na análise de textos de outra natureza: a chamada historiografia comercial. “Por que vendem tanto?” pergunta Perez, focalizando dois estudos de caso: o “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de Leandro Narloch, publicado em 2009, e “A elite do atraso”, de Jessé Souza, publicado em 2017. Viviane Araujo, por sua vez, investiga o discurso conservador em meio à crise democrática no contexto latino-americano, e a mobilização dos conceitos de gênero e família como formas de assegurar uma oposição reativa à agenda de igualdade de gênero que vem ganhando espaço no debate político atual. Como explicita, na mesma linha do “Escola Sem Partido”, velho conhecido do público brasileiro, o movimento “Con Mis Hijos No Te Metas”, surgido no Peru (2016) e que se espalhou rapidamente por toda a região, apresenta um discurso contrário ao que chamam de “ideologia de gênero”, afirmando uma identidade política apartidária, mas que fortalece e fomenta lideranças políticas ultraconservadoras. Vistos em conjunto, estes três artigos refletem sobre os efeitos da crise democrática contemporânea na historiografia e as disputas políticas pelo passado no espaço público latino-americano e brasileiro, em particular.

Breno Mendes discorre sobre o lugar do currículo no ensino de história, associando teoria da história, história da historiografia, ensino de história e teorias do currículo. Para o autor, a versão da Base Nacional Comum Curricular, aprovada no governo Temer, revela, sobretudo, uma atualização das teorias tradicionais do currículo em detrimento de teorias pós-críticas. Raone Ferreira, por sua vez, analisa reflexões de professores de história acerca de suas práticas, trazendo à tela duas dimensões fundamentais que atravessam a tarefa docente nestes tempos de crise: os movimentos conservadores e o ciberespaço. O artigo de Domingos Nobre, Anna Beatriz Vechia e Carolina Oliveira tematiza o ensino de história no âmbito da educação escolar indígena, apresentando a experiência no Curso de Ensino Médio com Habilitação em Magistério Indígena realizado com os Guarani Mbya no Estado do Rio de Janeiro. Há, nestes três artigos, um propósito comum: refletir sobre o ensino da história no espaço escolar, em tempos de crise, revelador de tensões envolvendo recuos e alargamentos na intensificação de valores democráticos e na incorporação do desafio ético de repercussão da diferença.

Nara Cunha, Rosiane Bechler e Cyntia França focam a produção de sentidos históricos em torno das tragédias-crimes ambientais nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. As autoras examinam a relação entre historiografia escolar e a abordagem de temas sensíveis, tendo em vista o tratamento do trauma provocado pela queda das barragens. O texto de Andrea Ribeiro, por sua vez, aborda o ensino de história no sistema socioeducativo, voltado à formação de adolescentes que vivem e acumularão em suas experiências de vida a experiência da privação de liberdade por meio do sistema prisional. Qual o lugar da história na constituição identitária desses sujeitos? Estes dois artigos nos revelam o potencial da narrativa histórica em oferecer possibilidades de restauração e orientação de vidas que experimentaram determinadas tragédias, traumas etc.

Os artigos deste dossiê nos oferecem uma boa oportunidade de enfrentar aquele que talvez seja o maior desafio ético dos(as) especialistas em história, pesquisadores(as) e professores(as) no contexto contemporâneo: intensificar valores democráticos por vezes desgastados e enfraquecidos em ambiente de crise democrática.

Referências

ABREU, Marcelo; RANGEL, Marcelo. Memory, historical culture, and history teaching in the contemporary world. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 18, abr. 2020.

ARAUJO, Valdei. O regime de autonomia avaliativo no sistema nacional de pós-graduação e o futuro das relações entre historiografia, ensino e experiência histórica. In: Revista Anos 90. Porto Alegre, V. 23. N. 44. Dezembro de 2016.

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KOSELLECK, Reinhart. Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.

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__________. Temporalidade e felicidade hoje. Uma relação possível entre o pensamento histórico, a democracia e a experiência da felicidade / Can One Be Happy Today? Revista Artefilosofia, v. 25, 2018.

RANGEL, Marcelo; ARAUJO, Valdei. Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. In: História da historiografia. Ouro Preto. n. 17. abril de 2015.

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SANTIAGO, Ricardo. História Pública e autorreflexividade: Da prescrição ao processo. In: Tempo e argumento. Florianópolis, v. 10, n. 23, 2018.

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. São Paulo: Editora LP&M, 2018. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 18, abr. 2020.

Daniel Pinha

Marcelo Rangel

Rodrigo Perez


PINHA, Daniel; RANGEL, Marcelo; PEREZ, Rodrigo. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 18, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa / Vozes Pretérito & Devir / 2019

Ao elaborarmos a proposta deste dossiê sobre História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa tivemos a intenção de fomentar a reflexão em torno de estudos recentes relacionados ao campo da história militar fossem eles voltados para a análise de eventos bélicos, os chamados temas tradicionais da história militar, e seus desdobramentos sociais, fossem eles voltados para a atuação de grupos, instituições e eventos militares em tempos de paz. O leitor da presente edição da revista Vozes, Pretério & Devir se deparará, portanto, com um conjunto de trabalhos que se debruça com maior empenho sobre a preparação da sociedade para a guerra, o papel das forças armadas na organização cotidiana da sociedade brasileira, a construção de mitologias e legitimidades em torno da atuação política de militares, o papel normatizador da instituição sobre a população, como também a problematização da escrita existente sobre essas temáticas. A multiplicidade de enfoques oferece ao leitor o afastamento em relação aos campos de batalha, o que permite perceber estes enquanto apenas um dos palcos de atuação dos militares e de seus projetos para a sociedade. Os artigos arrolados apresentam contextos e relações sociais diversos, pondo em suspeição imagens simplistas e heroicizantes. Trata-se da efetivação do dever estruturante da História enquanto ciência: questionar as certezas herdadas do passado.

É interessante perceber que todos os trabalhos apresentados se alicerçam em episódios transcorridos no Brasil, tradicionalmente rotulado enquanto um país pacífico e que não se envolveu em guerras de forma significante. Na contracorrente deste lugar comum, o dossiê mostra o amadurecimento da História Militar em nosso país, fomentado a partir da década de 1990, devido ao distanciamento do período ditatorial (1964-1985) e à expansão das pós-graduações nas universidades brasileiras. Ressalte-se que no regime militar o espaço acadêmico não teve interesse (ou liberdade) em discutir as Forças Armadas e os poucos estudos voltaram-se para a pesquisa do envolvimento militar na política, desconsiderando outras análises sobre a instituição (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004, p. 13). A profissionalização dos arquivos militares, com o ingresso nesses espaços de historiadores e arquivistas de formação, a progressiva abertura de acervos produzidos ou relacionados ao meio castrense, bem como a crescente profissionalização dos pesquisadores através dos cursos de pós-graduação proporcionaram o crescimento dos estudos nesta área (FIGUEIREDO, 2015, p.12-14).

O estudo dos militares e sua relação com aspectos da vida social como a política, a cultura e a sociedade, em suas várias temporalidades, é fundamental para a compreensão da trajetória histórica dos povos, especialmente na América Latina, onde os militares ou se apresentam historicamente como força democrática, de acordo com tese de Nelson Werneck Sodré (CUNHA, 2010, p. 07-17), ou como força conservadora e até reacionária. Sendo assim, o uso de novos temas, fontes e abordagens na produção da História Militar articulada à expansão dessa área de estudo no universo acadêmico vem contribuindo de forma relevante para a interpretação do papel dos militares nos movimentos históricos, tanto em seus avanços quanto em seus retrocessos, assim como a influência sofridas por eles do mundo social.

Dessa forma, levando em consideração a relevância do tema na atualidade e a necessidade de se compreender as relações que se estabeleceram ao longo do processo histórico entre Militares, política e sociedade, a Revista de História da Universidade Estadual do Piauí torna público o dossiê História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa, composto por oito artigos.

Os dois artigos que abrem o dossiê afastam-se do teatro de guerra, mas apresentam outras formas de encenar o poder, qual seja a construção de legitimidades. Ronaldo Zatta e Ismael Antônio Vannini abordam as comemorações e a ritualização nacionalista durante o período ditatorial civil-militar. Ao dirigirem sua atenção para o município paranaense de Francisco Beltrão em 1980 nos propiciam compreender como as autoridades locais buscaram alinhar-se aos símbolos e à pedagogia militarista apresentada em celebrações do sete de setembro. Os esforços em cumprir determinações militares terminaram por adequar associações civis e estudantes em nível escolar à disciplina determinada pelos presidentes-generais.

Bárbara Tikami de Lima, por sua vez, investe em balanço da História Militar e a da Arte. Para tanto, explora as trajetórias dos pintores das obras que imortalizaram a participação do exército e marinha do Brasil na guerra do Paraguai. Telas como Batalha do Avahy e Batalha Naval do Riachuelo são frequentemente evocadas na liturgia militar, enquanto símbolos do denodo e sacrifício realizados em nome da pátria. O argumento da autora aposta na indissociação entre a experiências dos artistas e a dos militares na elaboração da imagética iconográfica.

Os dois artigos seguintes examinam a importância que as guerras civis tiveram no país. Gustavo Figueira Andrade explora a associação entre duas experiências diferentes. A Vozes Pretérito & Devir Ano VI, Vol. X Nº I (2019) Apresentação ISSN: 2317-1979 6 primeira é a da guerra civil em si, neste caso a transcorrida entre 1893 e 1895 no Rio Grande do Sul. A segunda é a da mobilização de efetivos ao longo do país e seu deslocamento para frentes muito diversas das que originalmente serviam os soldados. Valendo-se das memórias de um praça cearense recém-chegado ao território sulista, Andrade nos oferece tanto a análise sobre as condições de vida de um soldado na jovem república brasileira quanto a perspectiva de estranhamento de um oriundo de parte muito diversa da mesma. Vivência castrense e civil se misturam, apontando as limitações da homogeneização do treinamento militar.

Determinado a recapitular o desenvolvimento do tenentismo, Amílcar Guidolim Vitor passa em revista as ações que deram origem a esta categoria. A alternância entre a narrativa e a análise da repercussão das manifestações de jovens oficiais em jornais da época aponta para o sofisma que é afirmar que no Brasil os combates militares estiveram ausentes. De fato, nas mobilizações dos “tenentes” foram recorrentes as marchas forçadas e o confronto com outras unidades do exército ou de polícias militares estaduais. A guerra brasileira teve uma manifestação endêmica e interna.

O artigo de Johny Santana de Araújo foca na ação do exército enquanto transformador dos cidadãos brasileiros, um objetivo praticado com particular recorrência na primeira república. Ao verificar a implantação do 25º batalhão de caçadores em Teresina, o professor nos apresenta o quanto a promoção de atividades de entretenimento e de sociabilidade foram utilizadas para oferecer uma imagem positiva do exército e, por conseguinte do Estado brasileiro. No Piauí, estado no qual as Forças Armadas e o poder central tinham presença pouco expressiva, fazia-se necessário não apenas atuar, mas também ganhar corações e mentes da população. Para tanto, lançava-se mão do soft power como meio de adesão.

Mas o que será de um exército sem um inimigo? Wilson de Oliveira Neto nos mostra que a definição de um antagonista não era óbvia, obrigando a uma pedagogia política para apontar aos cidadãos quem eram os opositores da pátria. No caso da II Guerra Mundial a imprensa, articulada com a propaganda estado-unidense foi fundamental para transformar os alemães, outrora aliados, no inimigo nazista que deveria ser combatido. Novamente, coloca-se em jogo a legitimidade das ações militares e sua relevância política no cotidiano.

Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti, por sua vez, discute como carreiras militares se desdobraram em carreiras políticas, valendo-se para tanto das biografias elogiosas ao brigadeiro Eduardo Gomes. Tendo as biografias surgido no embalo das discussões para apontar o candidato da UDN à presidência da república em 1945, eram menos estudos desinteressados do que peças de propaganda. Nesse sentido, tratavam não apenas de relatar as proezas militares do brigadeiro, mas construir a figura de um líder nacional.

Fechando o dossiê, Marcelo Cardoso examina as escritas acadêmica e institucional produzidas sobre a Polícia Militar Brasileira e Piauiense entre os anos de 1975 e 2010. O autor analisa os distanciamentos e aproximações existentes entre essas narrativas levando em consideração o lugar social de produção e os procedimentos metodológicos utilizados. A partir desse debate, Cardoso apresenta através de seu percurso acadêmico uma proposta para a história acadêmica da Polícia Militar no Piauí.

Além do material do dossiê o leitor conta com a seção de Artigos Livres, que totaliza seis trabalhos autorais. O primeiro deles realiza uma transição entre o militarismo do dossiê e as demais contribuições, ao explorar a utilização de corsários pelo movimento revolucionário e emancipador de Buenos Aires no início do século XIX. Eduardo Sartoretto analisa a participação de marinheiros e oficiais que vendiam seus serviços a favor da revolução, mas também visando a própria sobrevivência. Valendo-se de um diálogo sólido com a historiografia internacional, percebe como a definição da soberania da nação nascente foi atravessada por questões internacionais que se evidenciavam na ação corsária.

Erick Matheus Bezerra Mendonça Rodrigues retorna ao século XVI para averiguar o quanto a obtenção de informações e sua transformação em conhecimento era fundamental para a monarquia hispânica manter sua dominação sobre territórios ultramarinos. Conhecer para conquistar era uma prática recorrente no mundo moderno e os espanhóis fomentaram o conhecimento científico pautados pelo uso imediato que poderiam lhe dar.

Rodrigo de Morais Guerra também se ocupa de analisar a ação sobre o espaço, mas seu esforço se desenvolve no sentido de uma reflexão teórica em torno de como diferentes historiadores pensaram esta categoria. Procurando distanciar-se de uma perspectiva na qual o espaço seria tão somente o palco da ação humana o autor enfrenta o desafio de contrastar nomes díspares como Koselleck, Foucault e Benedict Anderson, entre outros.

As políticas públicas são objeto em dois artigos distintos. Werbeth Serejo Belo se ocupa do sistema de proteção social em Portugal, no início do século XX. Joseanne Zingleara Soares Marinho tem por recortes o Piauí entre 1930 e 1945, estudando a saúde maternoinfantil. Em ambos os casos há uma preocupação com grupos muitas vezes excluídos da história, embora as categorias de análise sejam diferentes: o trabalho e a divisão social para o primeiro, o gênero para a segunda.

Finalmente, Elaine Ignácio e Erasmo Marcio Falcão nos oferecem um trabalho sobre educação patrimonial, o que permite a sempre salutar aproximação com a antropologia. Seu alvo é a importância das práticas culturais populares, incluindo as elaborações que fazem da sua memória social e consequentemente do seu pertencimento ao espaço social.

Para encerrar o volume, a resenha de Pedro Pio Fontineles Filho sobre a coletânea Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, retoma em alguma medida a História Militar proposta no dossiê, da mesma maneira que nos permite revisitar e repensar a experiência brasileira no conflito. Ao dedicar-se a uma fração do Brasil, o livro nos convida a conhecer histórias que foram por muito tempo ofuscadas pela narrativa centralista do centro-sul. O que o leitor encontra no presente volume, seja em artigos articulados pelo dossiê temático, seja em contribuições livres, é a necessidade de concatenarmos múltiplos pontos de vista para a compreensão dos fenômenos sociais do presente e do passado, sempre complexos e desafiadores.

Com votos de uma boa leitura,

Referências

CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vítor; KRAAY. Da história militar à “nova” história militar. In: Nova história militar brasileira. Rio de janeiro: Editora FGV, 2004. p. 11-42.

CUNHA, Paulo Ribeiro. Um clássico mais que contemporâneo. Prefácio. In: SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 7-17.

RODRIGUES, Fernando da Silva; FERRAZ, Francisco; PINTO, Surama Conde Sá (orgs.). Introdução. In: História militar: novos caminhos e novas abordagens. Jundiaí / SP: Paco Editorial, 2015. p. 11-17.

Adriano Comissoli – Professor Doutor. (Docente Permanente do PPGH / UFSM)

Clarice Helena Santiago Lira – Mestra (Professora da UESPI / Doutoranda do PPGH / UFSM)


COMISSOLI, Adriano; LIRA, Clarice Helena Santiago. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.10, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960) / Tempos históricos / 2019

I

O presente número da Revista Tempos Históricos, o periódico científico do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em História da Unioeste, apresenta o seguinte dossiê: O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960).

O objetivo desse dossiê é dar vazão à produção historiográfica fundamentada em fontes de natureza intelectual, ou seja, obras publicadas, destinado aos leitores. Por isso, duas questões logo se impõem: o que é um intelectual e qual seu público?

A ideia do intelectual como agente social aparece primeiro na Europa Ocidental do século XIX, em particular na França. Convém lembrar que não há uma unidade em torno dos intelectuais, dos artistas, ou dos escritores, uma vez que podem assumir diferentes narrativas e posições. Norberto Bobbio (1997: 116) observa os intelectuais como “porta-vozes” da opinião pública, fossem eles “progressistas ou conservadores, radicais ou reacionários, libertários ou autoritários, liberais ou socialistas, céticos ou dogmáticos, laicos ou clericais (…)”. O que os une é o fato de utilizarem o texto como mecanismo de intervenção na vida pública, seja na ciência, na política, nas artes, na literatura, etc.

Os intelectuais, para se expressarem, necessitam um público alfabetizado, sistemas de edição, publicação e distribuição de livros. Precisam também de um complexo conjunto de mediadores, como professores e jornalistas, que divulgam e animam os ambientes letrados.

Em termos políticos, um momento importante de afirmação dos intelectuais foi o célebre caso Dreyfus, na França de 1894, quando um oficial judeu das forças armadas francesas, Alfred Dreyfus, foi injustamente acusado de traição à pátria, por supostamente transmitir informações confidenciais aos alemães. Em 14 de janeiro de 1898, no jornal L’Aurore, o escritor Émile Zola liderou o “Manifesto dos Intelectuais”, que congregava jornalistas, professores, artistas e escritores. O texto mobilizou importantes setores da opinião pública francesa em defensa de Dreyfus, demonizados pelos conservadores franceses (BEGLEY, 2009). [3] O episódio consolidou o papel do intelectual como um agente público importante nas sociedades contemporâneas. O próprio termo intelectual passou a significar não só um profissional que praticava atividades eruditas, em torno do texto, mas também um sujeito que se posicionava politicamente frente às grandes questões de seu tempo (MARLETTI, 1998).

Pierre Bourdieu, ao abordar os intelectuais, menciona a existência de um “microcosmo”, regido por uma lógica e regras próprias. A perspectiva de relativa autonomia do “campo” intelectual contribui na compreensão do funcionamento das disputas e alianças. É importante insistir que os homens de letras estão conectados com as questões amplas da vida social, de seu tempo e de suas circunstâncias.

Ao se fazer História usando como fonte a produção de intelectuais, de escritores ou de artistas, é preciso observar um elemento decisivo: quem escreve, lê. Assim como as opções políticas, estéticas, éticas, os interesses, os pertencimentos institucionais e uma série de outras questões também repercutem no texto, inclusive a recepção que uns autores fazem dos outros. Para Pocock (2003: 45): “todo e qualquer ato de fala que o texto tenha efetuado pode ser re-efetuado pelo leitor de maneiras não idênticas às que o autor pretendeu.” Em outras palavras, as narrativas e perspectivas interpretativas são mais dinâmicas, pois portadas de um complexo sistema de interpretação, apropriação e recepção. Roger Chartier também destaca a historicidade da leitura e não apenas a da escrita. O autor afirma que um livro se transforma justamente pelo fato de não mudar, uma vez que o mundo e os tempos mudam, transformando os significados dos textos (CHARTIER, 1988: 131).

Ainda em termos metodológicos é importante observar o que Jean-François Sirinelli definiu como “estruturas de sociabilidade”, ou seja, os ambientes institucionais nos quais os intelectuais circulam: revistas, academias, universidades, centros de estudo e pesquisa, jornais, associações científicas, etc. Os lugares de formação e difusão de conhecimento e de narrativas, ou mesmo a formação de uma rede de alianças e confrontos é importante para compreender a maneira como os intelectuais interferem no espaço público (SIRINELLI, 2003).

Quando se aborda uma rede de intelectuais ou artistas e escritores é preciso observar que seus integrantes não se resumem aos grandes autores, mas também é também constituída nomes menores, às vezes jovens aspirantes, semelhantemente importantes na difusão de narrativas e na formação das hierarquias e dos grupos, observa Claudia Wasserman (2015: 72).

A consolidação da modernidade oitocentista, sobretudo a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, imprimiu uma inédita aceleração da história, envolvendo um crescente número de pessoas, via ampliação da cidadania, da alfabetização, e da valorização da ciência e dos saberes laicos, tornando a intervenção pública dos homens e das mulheres de letras profundamente associadas às de expansão de futuro e de progresso. “A consciência de que o mundo pode ser transformado numa direção ou outra deu aos chamados “homens de cultura” projeção até então inédita, tornando o engajamento político dos intelectuais particularmente importante, de modo que a história dos intelectuais é uma abordagem relevante na construção de um olhar para sociedades contemporâneas” (SCHNEIDER, 2019).

II

Abrimos o dossiê com o artigo do professor Daniel Pinha (IFCH-UERJ) intitulado “Calcanhar de Aquiles da Geração 1870: Machado de Assis e o problema da recepção do repertório externo”. Nele, o autor parte da crítica feita por Machado de Assis à Geração de 1870, sobretudo no texto “A nova geração” (1879), no qual o Bruxo do Cosme Velho sintetiza na produção letrada de toda uma geração, inclusive Sílvio Romero, marcado pela receptividade do discurso de modernidade no Brasil, impulsionado pela circulação do cientificismo em meio à crise política e ao esgotamento do modelo romântico de fins do Oitocentos. Assim, tomando Romero como “exemplo-síntese” dos letrados dessa época, Pinha analisa o desafio enfrentado por esses homens na adaptação das “novas ideias” que vinham de fora às “particularidades do meio brasileiro” para, somente então, darem origem a uma nova forma. Eis o “Calcanhar de Aquiles da Geração de 1870” descrito neste artigo.

No segundo artigo deste dossiê – “A libertação linguística da literatura nacional: tramas de política, língua e literatura no Brasil (1930-40)” – as historiadoras Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes (UNICENTRO) e Maria Paula Costa (UNICENTRO) problematizam as disputas políticas e intelectuais em torno da unidade linguística nacional durante a década de 1930. A preocupação das autoras está em compreender a importância atribuída à unidade linguística nacional por parte de críticos literários, articuladores do Estado Novo e “romancistas sociais”, notadamente Jorge Amado. Desta forma, elas mapeiam textos e pensamentos sobre a temática e revelam as tensões político culturais do período de busca pela definição da identidade nacional, mostrando que os usos da língua presidiam muitas das escolhas políticas e estéticas.

Na sequência, o artigo “As migrações internas à luz do pensamento de Roberto Simonsen: uma análise crítica do ensaio ‘recursos econômicos e movimentos das populações’”, da socióloga Lidiane Maria Maciel (UNIVAP) e do cientista social Arthur de Aquino (UNICAMP), apresenta análise dos debates em torno da formação da mão de obra livre para o desenvolvimento econômico do país no período do Estado Novo. O texto aborda a temática das migrações internas e internacionais através do debate presente na obra de Roberto Simonsen (1889-1948), especialmente do ensaio “Recursos econômicos e movimento de população”, publicado originalmente em 1940. Após empregar uma análise discursiva do texto de Simonsen, os autores chamam atenção para o seu pioneirismo ao apontar para a responsabilidade do Estado na promoção de políticas de planejamento migratório a fim de melhorar os níveis de vida no país.

Já o quarto artigo que compõe o dossiê é de autoria do historiador Cairo de Souza Barbosa. No estudo intitulado “Do ‘vigor democrático’ à floração do golpe: interpretações da crise brasileira no pensamento político-social de Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos (1954-1962)”, o autor propõe a discussão de duas interpretações sobre a crise brasileira durante as décadas de 1950 e 1960. Ampara-se em premissas da História Intelectual, seu texto empreende uma análise da obra “Existe uma crise de democracia no Brasil?” (1954), de Florestan Fernandes, e “Quem dará o golpe no Brasil?” (1962), de Wanderley Guilherme dos Santos. Barbosa busca explicitar que a visão distinta desses intelectuais sobre a intensificação dos sentimentos de conflitos e impasse na história do Brasil em meados do século XX estava relacionada às grandes transformações no espaço da experiência política, além, é claro, das tradições teóricas às quais cada autor se filiava. Não é por outra razão, portanto, que esses intelectuais acabaram desenhando propostas distintas de superação aos dilemas postos à época para a permanência da democracia no Brasil.

Já o quinto artigo deste dossiê –“O socialismo em movimento (para frente ou para trás) da Revista Movimento Socialista” – assinado pelo historiador Lineker Noberto (UFRGS / UNEB), apresenta um periódico marxista intitulado Movimento Socialista, que teve apenas duas edições: julho e dezembro 1959. A partir de uma ampla análise do conteúdo dessa revista, o autor discute a compreensão teórica da vida nacional apresentada nas páginas do periódico, explicitando uma perspectiva revolucionária do marxismo brasileiro que, segundo o autor, acabou por engendrar as linhas mestras de uma nova experiência na organização do movimento comunista no Brasil.

Fecha o dossiê o artigo “Paranismo: entre a ideologia e o imaginário”, do historiador Fabrício Souza. A pesquisa traz uma análise de dois estudos acerca do movimento paranista: Regionalismo e antirregionalismo no Paraná (1978), do sociólogo Ruben Cesar Keinert, e Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da I República (1997), do historiador Luís Fernando Lopes Pereira. Em seu texto, o autor analisa as profundas diferenças verificadas em ambos os trabalhos, centrando foco na comparação das filiações teóricas dos autores, nas fontes empregadas por ambos, nos recortes temporais, nos procedimentos metodológicos e em suas respectivas modalidades de escrita da história.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que eles possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Notas

3. Sobre as questões histórica envolvidas, destaco o segundo capítulo: “O passado nunca está morto”, p. 57-89.

Referências

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

BEGLEY, Louis. O Caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

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POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil. São Paulo: Alameda, 2019.

SIRINELLI, Jean-François. “Os Intelectuais”. In RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora FGV, 2003.

WASSERMAN, Claudia. História intelectual: origem e abordagens. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, vol. 19, 2015, pp. 63-79.

Alberto Luiz Schneider1 -Professor de História do Brasil e do Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2005), com Pós-Doutorado no King’s College London (2008) e no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP, 2011).

Claércio Ivan Schneider2 – Professor de História do Brasil II no curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE. Doutor em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita (UNESP, 2009).


SCHNEIDER, Alberto Luiz; SCHNEIDER, Claércio Ivan. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.23, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cultura Material e Impressa na construção da História | Temporalidades | 2018

O que se imprime e o que se lê?

Oportuna é a proposta deste dossiê da Temporalidades de evidenciar reflexões que privilegiem o diálogo temático da cultura impressa com a perspectiva de análise historiográfica que busca na leitura dos objetos o caminho instrumental da compreensão histórica. Os elementos materiais da cultura – como prefiro nominar o que normalmente se chama de “cultura material” – apresentam-se ao historiador como documentos de realidades sociais. Não são apenas simples reflexos da construção social, mas, repertórios de objetos criados e feitos pelo homem e integrados em sua constituição histórica. Os artefatos não são, ainda, simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais. Leia Mais

Historiografia dos Espaços / Revista Espacialidades / 2018

Frequentemente, para respondermos qual o cerne da História como disciplina, recorremos à relação da ação humana ao longo das diferentes temporalidades, portanto, centralizamos o Tempo como a dimensão fundamental do conhecimento histórico. Todavia, conforme a História foi avançando, a sua complexidade também o foi, deste modo, à dimensão temporal – que ainda permanece como dimensão central da ciência histórica – foi incorporada outras dimensões fundamentais de serem perscrutadas para a compreensão da disciplina. Escopo da Revista, o Espaço surge, destarte, como uma dessas novas dimensões a serem questionadas para o enriquecimento das produções historiográficas sob os mais diversos prismas e problemáticas.

Partindo do pressuposto teórico de que a produção histórica é circunstancial, logo, suscetível de mudanças, de acordo com as diferentes interpretações da mesma, a dimensão espacial traz consigo novas perspectivas capazes de questionar a história e a memória oficial; traz consigo a capacidade de descristalização do conhecimento histórico consagrado; traz, sobretudo, um novo campo de análises que ainda tem muito a dizer. Como afirmou, certa vez, à Revista Espacialidades, o Prof. Dr. Durval Muniz: “A história, para mim, é uma empresa crítica, no sentido de abrir possibilidades de vermos coisas diferentes. Não é crítica no sentido de oferecer uma alternativa, no sentido de dizer o que é correto, mas crítico no sentido de abrir possibilidades de pensarmos diferente, de sermos diferentes, de caminharmos diferente. A história não é para oferecer receitas, mas para abrir horizontes, abrir possibilidades, fazer a gente enxergar num dado lugar, numa dada estrada, muitas veredas, muitas possibilidades de divergir, sair para o diverso, perceber os devires”. Logo, os estudos que analisam, para além do tempo, a historicidade dos espaços, preenche uma lacuna, possibilitando novos insights e representando a essência da história como ciência questionadora.

Dito isso, o presente dossiê traz artigos que contemplam a dimensão espacial como posto basilar de suas discussões, contribuindo, assim, para a Historiografia dos Espaços. Agradecemos imensamente aos membros do Conselho Consultivo que com muita generosidade, celeridade e, acima de tudo, competência, contribuíram com pareceres sérios e consistentes que garantiram a qualidade do presente dossiê. Agradecemos também aos colaboradores que, através de suas contribuições, garantem a continuidade da discussão crítica sobre diversos conceitos que abordam as espacialidades enquanto objeto histórico.

Abrindo o dossiê temos o artigo “A geografia-histórica da região metropolitana de Belém”, de Luiz Augusto Soares Mendes. O doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense busca fazer uma análise histórica da produção do espaço das cidades que compõem a região metropolitana de Belém. Desse modo, o objetivo é revelar os aspectos econômicos, populacionais, sociais e a incorporação das cidades no processo de metropolização, gerando marcos espaço-temporais comuns a história das cidades alvo desse processo.

Em seguida temos o artigo “Taperoá: a capital literária do sertão-reino de Ariano Suassuna”, da historiadora Jossefrania Vieira Martins, doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O artigo relaciona história, literatura e espaço, além de explorar alguns elementos da obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. A autora faz um paralelo entre a dinâmica espacial presente na vida do autor e suas marcas na produção literária do mesmo. Um dos objetivos do artigo é o de entender como as interações entre esses espaços vividos pelo autor se relacionam com um conceito de sertão a partir da literatura.

O próximo artigo do dossiê intitula-se “A experiência da espacialidade colonial: São Luís, cercanias e sertões (final do século XVII e início do século XVIII)”, escrito por Mariana Ferreira Schilipake. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, a autora busca discutir a espacialidade do território do Maranhão entre o final do século XVII e início do século XVIII. A perspectiva trabalhada pela historiadora, a qual busca compreender a relação de São Luís com as cidades circundantes, ajuda-nos a pensar a complexa dinâmica social da região nestes séculos, para além de contraposições entre espaços urbanos e rurais.

Compondo o volume 14 da revista espacialidades, trazemos a resenha do livro “The secret War: Spies, Ciphers and guerrilhas 1939 – 1945”, do historiador britânico Max Hastings e feita por Raquel Anne Lima de Assis. O livro busca apresentar como ocorreram as batalhas da guerra secreta entre o Eixo e os Aliados durante a segunda guerra mundial.

Na sessão “Entrevista”, temos a honra de apresentar a entrevista concedida pelo professor doutor Dilton Cândido Santos Maynard, professor colaborador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC / UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS (PPGED / UFS) e do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFS (Profhistória UFS).Na entrevista, Dilton Maynard falou sobre seu trabalho com representação, História do Tempo Presente e Ciberespaço.

Para fechar o volume 14 da Revista Espacialidades, trazemos a segunda parte do corpo documental referente à história da escravidão no Ceará. Essas fontes foram catalogadas pelo Programa de Educação Tutorial em História da Universidade Federal do Ceará, tendo como objetivo mapear documentos ligados à compra e venda de escravos no estado, ao longo do século XIX, entre os anos de 1843 a 1879. O Projeto, intitulado Fundo Documental e Guia de Fontes para a História da Escravidão no Ceará, foi realizado pelos bolsistas do Programa e teve início em 2007, com o mapeamento do corpo documental e catalogação destes, no qual resultou em fichas / resumo e sistematização desses documentos, concluída em 2012. O projeto catalogou cerca de 12 livros, que se encontram em sua versão original, no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Nesse sentido, é com imenso prazer que a Revista Espacialidades apresenta aos seus leitores, mais um trecho destas fichas / resumos. Agradecemos novamente ao Programa de Educação Tutorial pela confiança, em especial à Kênia Rios, Viviane Nunes e Tayná Moreira.

O editor-chefe e a Equipe editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma boa leitura!

Editor-chefe: Magno Francisco de Jesus Santos

Equipe editorial:

Arthur Fernandes da Costa Duarte – (mestrando do PPGH / UFRN)

Emanoel Jardel Alves Oliveira – (mestrando do PPGH / UFRN)

Maria Luiza Rocha Barbalho – (mestranda do PPGH / UFRN)

Matheus Breno Pinto da Câmara – (mestrando do PPGH / UFRN)

Ristephany Kelly da Silva Leite – (mestranda do PPGH / UFRN)

Rodrigo de Morais Guerra (mestrando do PPGH / UFRN)

Thaís da Silva Tenório – (mestranda do PPGH / UFRN)

Victor André Costa da Silva (mestrando do PPGH / UFRN)


SANTOS, Magno Francisco de Jesus et al; Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.14, n. 01, 2018. Acessar publicação original [DR]

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As ditaduras militares no Brasil e no Cone Sul: história, historiografia e memória  | SÆCULUM – Revista de História | 2018

“Um povo sem História não é gente, não pode ser gente, não tem como ser gente.” A frase, pronunciada por uma lavradora analfabeta e transcrita em nota da ANPUH-DF ao tratar da destruição recente do Museu Nacional3 , sintetiza a função social e o compromisso ético da História com as gerações atuais e futuras. A História, fruto da construção epistemológica do conhecimento na modernidade, encontra-se hoje envolvida numa trincheira em favor da democracia, da ciência, dos direitos humanos, do qual é caudatária. Dos diversos temas e objetos que são de interesse dos historiadores, aqueles dedicados à História recente, sobretudo, aos regimes ditatoriais do século XX vêm sendo alvo de negação considerados frutos do anti-intelectualismo emergente e de uma política do ódio que desconsidera o “Outro”, suas diferenças, direitos e pluralidades. Neste sentido, este número temático assumiu o compromisso de trazer a público, a partir dos cânones epistemológicos da pesquisa histórica, artigos dedicados às ditaduras no Cone Sul, considerando seus aspectos transnacionais e as especificidades das experiências nacionais. A pluralidade de temas, recortes, fundamentação teórica, fontes e metodologias reforçam os princípios da multicausalidade na construção da narrativa histórica, cujo rigor não está na exclusão de abordagens, mas na valorização de diferentes referenciais teórico-metodológicos, no domínio da historiografia e no uso de fontes. Leia Mais

História e Historiografia da escravidão negra no Brasil / História em Revista / 2018

Como devaneia o poeta angolano José Eduardo Agualusa – “Nada passa, nada expira. O passado é um rio adormecido, parece morto, mal respira, acorda-o e saltará num alarido”. Foi por nos sentirmos provocados por esse caráter insubmisso do passado e da história e angustiados pelos fantasmas dos retrocessos que assolam o nosso presente, que nos sentimos motivados a organizar esse dossiê. Vai longe a parceria entre os organizadores desse dossiê, que não se esgota na proximidade das temáticas com que trabalham e nem no prazer que sentem na frequência dos arquivos, mas que se reatualiza na indignação com que olham o passado e no desconforto que os acompanha na apreciação crítica ao momento político nacional.

Como docentes e pesquisadores nos acalentam os sonhos e os projetos políticos desejar um país balizado na inclusão e não na exclusão social. Almejamos uma sociedade em que as reivindicações do povo negro sejam ouvidas e acatadas, que o preconceito racial e o racismo institucional sejam debelados, onde se combata o sexismo e o feminicídio, que o ensino público, gratuito e de qualidade prospere. Por isso investimos em reunir um conjunto de textos que abordem temas da histórica presença da população negra de forma crítica.

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tem sido palco de um grande número de estudos sobre a escravidão negra. Reunindo uma série de pesquisas com notáveis contribuições nacionais e internacionais e utilizando-se de um leque variado de fontes documentais, o panorama atual apresenta uma diversidade de temáticas e enfoques que vão desde a história social e econômica até os estudos de caráter mais político e cultural. O presente dossiê pretende reunir pesquisas que abordem os diversos temas relacionados à temática da escravidão negra no Brasil. É também uma homenagem a Beatriz Ana Loner, que em toda sua vida acadêmica se dedicou ao tema da escravidão e pós-abolição. Dedicou-se também na construção do Núcleo de Documentação Histórica da UFPel e na realização da História em Revista, que em 2019 completa 25 anos de existência. Dedicamos a Beatriz o presente trabalho, por ter legado uma vasta influência às novas gerações de pesquisadores e pesquisadoras.

O artigo “O 13 de Maio nos Relatos do Impresso Negro Pelotense A Alvorada (1931-1935)”, de Ângela Pereira Oliveira Balladares, trata a comunidade negra da cidade de Pelotas de forma plural. Localizada na região sul do mais meridional estado brasileiro, Pelotas sempre se caracterizou pela consistente e ativa presença negra. Uma das formas pelas quais a população negra local afirmou suas reivindicações e constituiu-se enquanto ágil e contestadora coletividade, foi a militância associativa e a publicação de periódicos. Recentemente, a imprensa negra tem sido tratada pelos historiadores com mais cuidado, mostrando através dela a agência de intelectuais / letrados negros e a constituição de agendas reivindicativas próprias. O artigo ora publicado toma como tema central a forma como o periódico A Alvorada, abordou as comemorações sobre o 13 de maio, captando os significados que aquelas comunidades atribuíam a essa data comemorativa.

Já o texto dos historiadores Ane Caroline Câmara Pimenta e Elaine Leonara de Vargas Sodré – “A escravidão no Arraial do Tejuco (1731-1733): ensaio acerca da dinâmica social e hierarquização, sob a ótica dos registros batismais”, analisa a escravidão negra no arraial do Tejuco, na então capitania de Minas Gerais. A pesquisa maneja os batismos católicos de escravizados, ocorridos entre os anos de 1731 a 1733 naquela paróquia, tratando de temas como comportamentos, hierarquias sociais, compadrios e relações conjugais.

O historiador Matheus Batalha Bom investiga há anos a presença negra na região fronteiriça entre o Brasil e o Uruguai e esta é a temática de seu artigo – “Margens de Liberdade: controle e autonomia nas últimas décadas da escravidão em Jaguarão (1870-1888)”. Visando discutir e descrever as porosas diferenciações entre escravidão e liberdade no período final do escravismo brasileiro, Bom se serve de fontes primárias diversas, como inventários post-mortem e processos judiciários, montando um mosaico qualitativo e quantitativo da escravidão sulina e fronteiriça.

Também observando a presença negra escravizada e forra na região sul do Rio Grande do Sul, a historiadora Natália Garcia Pinto se serviu de abundantes fontes documentais para produzir o artigo – “De Euzébio escravo, filho da preta nagô Ângela, a Euzébio Barcellos, liberto: projetos de liberdade na comunidade escrava do Comendador Cipriano Rodrigues Barcellos”. Dialogando com uma atualizada e diversa historiografia que renovou a história social da escravidão nos últimos anos e sob a perspectiva da micro-história, Pinto aborda a “importância dos laços afetivos e familiares nos projetos de liberdade” na sociedade pelotense oitocentista, evidenciando a potencialidade e a possibilidade do investimento da pesquisa em trajetórias individuais e familiares, mesmo no período escravista.

No artigo – “Manipanços, feitiçarias, alcorões: africanos muçulmanos no Brasil meridional (Porto Alegre, século XIX)”, o pesquisador Paulo Roberto Staudt Moreira aborda a pluralidade e complexidade da diáspora transatlântica. Costurando vestígios documentais de origem diversa (jornais, documentos policiais e judiciários) o autor pensa nas experiências diaspóricas de africanos muçulmanos no Rio Grande do Sul, tema ainda incipiente na historiografia nacional e que demanda ainda futuros investimentos em pesquisa.

“Entre a Permissão e a Proibição: batuques, danças e conflitos na capitania de Pernambuco durante o século XVIII”, texto de autoria dos historiadores Josinaldo Sousa de Queiroz e Priscila Gusmão de Andrade aborda a religiosidade negra em Recife, na Capitania de Pernambuco. Acessando registros jurídico-administrativos, custodiados no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa, Portugal) e documentos do Tribunal do Santo Ofício português, os pesquisadores traçam as mentalidades religiosas que se opunham àquelas manifestações religiosas negras, ao mesmo tempo que usam os documentos produzidos por agentes responsáveis pelo controle social como indícios dessas experiências sociais devocionais e lúdicas.

Inseridas no campo do pós-abolição, as historiadoras Lisiane Ribas Cruz e Priscilla Almaleh nos trazem o artigo – “É uma negra feiticeira, mulher ruim: Relações de gênero, raça e masculinidade. Análise de um processo-crime, 1918 (Santa Maria –RS)”. Abordando com criatividade e sensibilidade um documento judiciário produzido por uma série de desavenças cotidianas, as autoras nos conduzem por uma análise que evidencia estarem intimamente vinculadas variáveis sobre gênero, classe e raça, seja nos xingamentos proferidos, nas relações estabelecidas com os órgãos públicos, seja nas reputações sociais comunitárias. Além disso, outro mérito desse texto é a consideração da masculinidade como item importante de análise.

Encerrando este dossiê, temos o texto – “O protagonismo feminino no centro abolicionista e nas festas da abolição em Porto Alegre (RS / Séc. XIX)” – de autoria da pesquisadora Tuane Ludwig Dihl. Usando como observatório nominativo do abolicionismo de Porto Alegre, capital da província do Rio Grande do Sul, o Livro de Atas do Centro Abolicionista local e o Livro de Ouro, a historiadora visibiliza a agência feminina naqueles anos finais do escravismo brasileiro. Documentos redigidos e preservados como uma espécie de memória oficial das meritórias (mesmo que tardias e incompletas) ações emancipacionistas das elites locais, esses registros, mesmo que involuntariamente, permitem-nos entrever a ação feminina nesse processo histórico.

Jonas Moreira Vargas

Paulo Roberto Staudt Moreira

Caiuá Cardoso Al-Alam


VARGAS, Jonas Moreira; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; AL-ALAM, Caiuá Cardoso. [História e Historiografia da escravidão negra no Brasil]. História em Revista. Pelotas, v.24, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

Escritas de si nas Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2018

Um amplo movimento historiográfico, empreendido a partir dos anos oitenta do século XX, incorporou fontes antes consideradas “acessórias” e/ou “informativas”, concedendo-lhes novo status. Se há bem pouco tempo o indivíduo era apreendido como um elemento frágil e incerto de um “todo” que o sobrepujava, com a readaptação das lentes de análise, a historiografia se dispôs a um arrojado projeto: inquirir-se sobre a concepção de verdade histórica, aproximando-se das perspectivas criadoras e inventivas, emergentes do mundo privado, íntimo e particular. Essas últimas três palavras desvelam o encontro com as práticas cotidianas em escala micro. Igualmente, desvelam a invisibilidade e o anonimato impingidos àqueles que não integravam o rol de lideranças e/ou heróis porque não eram identificados como portadores da capacidade de significar sua experiência no tempo. Seguindo essa argumentação, o sentido de cada uma das palavras mencionadas se amplia, instaurando-se a diferença entre elas. O íntimo e o particular integram o ambiente privado. Entretanto, não se reduzem a ele nem exprimem a convergência de práticas nesse espaço. Por um lado, o particular é íntimo, a depender da interlocução que se produz entre os sujeitos na cena histórica; por outro, o particular pode ser mobilizado por mitos e rituais públicos, sem prejuízo ao segredo íntimo, que permanece resguardado no privado. Por esses cruzamentos, as dicotomias e dissensões entre indivíduo e sociedade desaparecem, dando lugar a uma investigação que privilegia a troca de experiências – no micro, reconhece-se o macro; no indivíduo, exprimem-se as práticas socioculturais. Leia Mais

Historiografia dos Espaços / Revista Espacialidades / 2018

Frequentemente, para respondermos qual o cerne da História como disciplina, recorremos à relação da ação humana ao longo das diferentes temporalidades, portanto, centralizamos o Tempo como a dimensão fundamental do conhecimento histórico. Todavia, conforme a História foi avançando, a sua complexidade também o foi, deste modo, à dimensão temporal – que ainda permanece como dimensão central da ciência histórica – foi incorporada outras dimensões fundamentais de serem perscrutadas para a compreensão da disciplina. Escopo da Revista, o Espaço surge, destarte, como uma dessas novas dimensões a serem questionadas para o enriquecimento das produções historiográficas sob os mais diversos prismas e problemáticas.

Partindo do pressuposto teórico de que a produção histórica é circunstancial, logo, suscetível de mudanças, de acordo com as diferentes interpretações da mesma, a dimensão espacial traz consigo novas perspectivas capazes de questionar a história e a memória oficial; traz consigo a capacidade de descristalização do conhecimento histórico consagrado; traz, sobretudo, um novo campo de análises que ainda tem muito a dizer. Como afirmou, certa vez, à Revista Espacialidades, o Prof. Dr. Durval Muniz: “A história, para mim, é uma empresa crítica, no sentido de abrir possibilidades de vermos coisas diferentes. Não é crítica no sentido de oferecer uma alternativa, no sentido de dizer o que é correto, mas crítico no sentido de abrir possibilidades de pensarmos diferente, de sermos diferentes, de caminharmos diferente. A história não é para oferecer receitas, mas para abrir horizontes, abrir possibilidades, fazer a gente enxergar num dado lugar, numa dada estrada, muitas veredas, muitas possibilidades de divergir, sair para o diverso, perceber os devires”. Logo, os estudos que analisam, para além do tempo, a historicidade dos espaços, preenche uma lacuna, possibilitando novos insights e representando a essência da história como ciência questionadora.

Dito isso, o presente dossiê traz artigos que contemplam a dimensão espacial como posto basilar de suas discussões, contribuindo, assim, para a Historiografia dos Espaços. Agradecemos imensamente aos membros do Conselho Consultivo que com muita generosidade, celeridade e, acima de tudo, competência, contribuíram com pareceres sérios e consistentes que garantiram a qualidade do presente dossiê. Agradecemos também aos colaboradores que, através de suas contribuições, garantem a continuidade da discussão crítica sobre diversos conceitos que abordam as espacialidades enquanto objeto histórico.

Abrindo o dossiê temos o artigo “A geografia-histórica da região metropolitana de Belém”, de Luiz Augusto Soares Mendes. O doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense busca fazer uma análise histórica da produção do espaço das cidades que compõem a região metropolitana de Belém. Desse modo, o objetivo é revelar os aspectos econômicos, populacionais, sociais e a incorporação das cidades no processo de metropolização, gerando marcos espaço-temporais comuns a história das cidades alvo desse processo.

Em seguida temos o artigo “Taperoá: a capital literária do sertão-reino de Ariano Suassuna”, da historiadora Jossefrania Vieira Martins, doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O artigo relaciona história, literatura e espaço, além de explorar alguns elementos da obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. A autora faz um paralelo entre a dinâmica espacial presente na vida do autor e suas marcas na produção literária do mesmo. Um dos objetivos do artigo é o de entender como as interações entre esses espaços vividos pelo autor se relacionam com um conceito de sertão a partir da literatura.

O próximo artigo do dossiê intitula-se “A experiência da espacialidade colonial: São Luís, cercanias e sertões (final do século XVII e início do século XVIII)”, escrito por Mariana Ferreira Schilipake. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, a autora busca discutir a espacialidade do território do Maranhão entre o final do século XVII e início do século XVIII. A perspectiva trabalhada pela historiadora, a qual busca compreender a relação de São Luís com as cidades circundantes, ajuda-nos a pensar a complexa dinâmica social da região nestes séculos, para além de contraposições entre espaços urbanos e rurais.

Compondo o volume 14 da revista espacialidades, trazemos a resenha do livro “The secret War: Spies, Ciphers and guerrilhas 1939 – 1945”, do historiador britânico Max Hastings e feita por Raquel Anne Lima de Assis. O livro busca apresentar como ocorreram as batalhas da guerra secreta entre o Eixo e os Aliados durante a segunda guerra mundial.

Na sessão “Entrevista”, temos a honra de apresentar a entrevista concedida pelo professor doutor Dilton Cândido Santos Maynard, professor colaborador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC / UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS (PPGED / UFS) e do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFS (Profhistória UFS).Na entrevista, Dilton Maynard falou sobre seu trabalho com representação, História do Tempo Presente e Ciberespaço.

Para fechar o volume 14 da Revista Espacialidades, trazemos a segunda parte do corpo documental referente à história da escravidão no Ceará. Essas fontes foram catalogadas pelo Programa de Educação Tutorial em História da Universidade Federal do Ceará, tendo como objetivo mapear documentos ligados à compra e venda de escravos no estado, ao longo do século XIX, entre os anos de 1843 a 1879. O Projeto, intitulado Fundo Documental e Guia de Fontes para a História da Escravidão no Ceará, foi realizado pelos bolsistas do Programa e teve início em 2007, com o mapeamento do corpo documental e catalogação destes, no qual resultou em fichas / resumo e sistematização desses documentos, concluída em 2012. O projeto catalogou cerca de 12 livros, que se encontram em sua versão original, no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Nesse sentido, é com imenso prazer que a Revista Espacialidades apresenta aos seus leitores, mais um trecho destas fichas / resumos. Agradecemos novamente ao Programa de Educação Tutorial pela confiança, em especial à Kênia Rios, Viviane Nunes e Tayná Moreira.

O editor-chefe e a Equipe editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma boa leitura!

Editor-chefe: Magno Francisco de Jesus Santos

Equipe editorial:

Arthur Fernandes da Costa Duarte – (mestrando do PPGH / UFRN)

Emanoel Jardel Alves Oliveira – (mestrando do PPGH / UFRN)

Maria Luiza Rocha Barbalho – (mestranda do PPGH / UFRN)

Matheus Breno Pinto da Câmara – (mestrando do PPGH / UFRN)

Ristephany Kelly da Silva Leite – (mestranda do PPGH / UFRN)

Rodrigo de Morais Guerra (mestrando do PPGH / UFRN)

Thaís da Silva Tenório – (mestranda do PPGH / UFRN)

Victor André Costa da Silva (mestrando do PPGH / UFRN)


SANTOS, Magno Francisco de Jesus et al; Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.14, n. 01, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia / Anos 90 / 2017

Organizar o dossiê “Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia” representou um desafio ao demandar a articulação da leitura acadêmica e das experiências e vivências de cada um de nós. Período ainda negligenciado pela historiografia, a década tem sido revisitada no âmbito público a partir de questionamentos sobre continuidades e rupturas, sobre sua atualidade e seus legados, em suas manifestações culturais, estéticas, políticas e religiosas. Pensamos o dossiê como uma possibilidade de encontrar respostas historiográficas ao “retorno” dos / aos 1980, como uma vivência utópica ou nostálgica e, ainda, como encontrar outras leituras sobre aqueles anos, leituras estas realizadas majoritariamente a partir do âmbito político.

Susan Sontag, ao avaliar seu livro Contra a interpretação (1966) mais de trinta anos após o lançamento, produzia um diagnóstico sobre aquela década: “Como tudo isso [os anos 1960] parece maravilhoso em retrospectiva. Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia. Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico.”1

Impressão retrospectiva escrita após o que convencionalmente seria “o tempo de uma geração”, se é possível entender os anos 1960 como momento verdadeiramente utópico, ou, pelo menos, mais utópico que nostálgico, é preciso reconhecer que estas reflexões de Sontag nos anos 1990 são permeadas por certa nostalgia. A partir da ideia de uma oscilação entre nostalgia e utopia é que, enquanto organizadores, nos questionamos: o que nós e nossos colegas teríamos a dizer sobre os anos 1980, anos de experiência vivida e objeto de pesquisa? Teriam sido um tempo perdido?

Uma resposta à pergunta seria o impulso de reviver os anos 1980. Acompanhando a cultura nostálgica própria de nosso tempo, há pouco assistimos ao revival da cultura pop dos anos 1980 no que virou um fenômeno de classe média como as Festas Ploc. E desses fenômenos espontâneos surgiu um movimento da indústria cultural que reviveu bandas e personagens que marcaram aquele tempo. Não por acaso, portanto, Roger e Lobão, ídolos da transgressão para parte da juventude de então, podem ser alçados atualmente à condição de comentaristas políticos imprescindíveis. Na televisão a cabo, há um canal dedicado a novelas “antigas”, muitas delas produções da década de 1980. Ainda no campo da cultura de massa, internacionalmente, o sucesso de uma série como Stranger Things evidencia que os anos 1980 estão por toda parte, assim como a atenção e atualização de outros tempos que caracterizariam nosso presente como um tempo de expectativas decrescentes ou como momento pós-utópico.

Voltando à pergunta sugerida pela afirmação de Susan Sontag, os anos 1980 teriam sido tempos simultaneamente utópicos e nostálgicos na igual medida? Ou ainda se vivia, no Brasil, plenamente a utopia, dadas as esperanças jogadas no processo de redemocratização que não atingia apenas a política, mas o político entendido, a partir de Rossanvallon, como instância de conformação do social que atravessa diversos momentos e lugares das sociedades modernas? Se admitirmos que parte da narrativa historiográfica ainda preserva a história política como ossatura essencial, pode-se dizer que a história produzida sobre os anos 1980 seguiria a hierarquizar as instâncias e personagens da redemocratização: o fim da ditadura como evento principal e os novos movimentos sociais como seus principais agentes, secundados por novas organizações partidárias que lhe conferiam legitimidade num cenário ainda marcado pelo autoritarismo estatal.

É certo, porém, que já há 10 anos, a tímida, mas importante produção sobre o período torna visível a diversidade daquela década, tornando possível identificar naquela circunstância histórica muitas das pautas políticas contemporâneas: a luta das mulheres por seus direitos e outras questões de gênero, debates sobre a sexualidade, enfrentamento de preconceitos de cunho étnico-raciais e pela população LGBT etc. Nesse sentido, é possível reconhecer a marca utópica que funda a história e a historiografia moderna? Se pensarmos a redemocratização reconstruída pela historiografia atualmente, é possível identificar nesse esforço o compromisso essencial da historiografia com o futuro.

Mas a história hoje não participa também da nostalgia? A reconstrução dos anos 1980 pelos historiadores também não obedece ao impulso nostálgico que toma as relações mais gerais com o passado? Se assim for, é necessário distinguir dois tipos de nostalgia. Um, de caráter restaurador, leva a uma reconstrução pouco crítica de passados idealizados para cumprir fins identitários no presente; outro, que se conceitua como nostalgia reflexiva se caracteriza como um impulso melancólico, toma o gosto pelo passado como ponto de partida para pensar ainda futuros possíveis e abertos2. A historiografia teria, então, aqui um ponto de contato positivo com a cultura nostálgica contemporânea.

Algumas perguntas que nos moveram ao propor essa reflexão receberam respostas provisórias ao longo dos artigos que compõem o dossiê; outras permanecem como interrogantes para seguir retornando ao período e buscando alguma inteligibilidade para o presente: quais as possíveis relações entre a crise sociopolítica iniciada em 2013 e as especificidades de nossa transição da ditadura civil-militar para a democracia? O que permanece do legado autoritário, bem como das lutas e conquistas democráticas experimentadas desde o fim dos 1970? Estamos vivendo o fim da “Nova República”? Quais eram as esperanças e fantasmas desse passado-presente (“anos 1980”)? Quais os legados, as esperanças perdidas, os afetos atuais e inatuais daquele tempo? O que passou e o que não passou dos anos 1980? E, finalmente, como a historiografia responde ao movimento de “retorno” aos anos 1980 que atravessa nossa cultura?

Em 1986, a banda Legião Urbana lançava o álbum Dois. Aquela juventude que nascera sob uma ditadura civil-militar e sob o regime de terrorismo de Estado questionava-se sobre seu tempo e afirmava que não havia sido tempo perdido. As diferentes percepções em relação à década daqueles que a viveram e por outros que gostariam de tê-la vivido permitem que a pergunta seja apresentada e recolocada à produção historiográfica: o que há para ser escrito sobre a história dos anos 1980?

O dossiê é aberto com o artigo “Qual a importância de uma época? Anacronismo e história”, em que o autor, André Fabiano Voigt, teoriza, a partir de Kant, Hegel e Marx, quais as relações que o ser humano estabelece com o tempo e quem possui autoridade para determinar que indivíduos têm uma visão ou compreensão melhor da situação que outros. O artigo nos sugere, então, pensar a qualidade dos anos 1980 como uma época.

“Será que nada vai acontecer? Tempo e melancolia na poética da Legião Urbana”, de Henrique Pinheiro Costa Gaio, além de apresentar uma discussão sobre o rock nacional da década de 1980, analisa a emergência de certa sensibilidade sobre o tempo a partir da poética da Legião, que apresenta uma estética melancólica e afetos localizados entre a esperança e a frustração. Pode-se pensar, a partir dessa leitura, até que ponto a tensão entre expectativa e desilusão não foi uma percepção generalizada sobre a época.

Seguindo o dossiê, temos o artigo “O filme documentário Mauvaise Conduite: memória e direitos humanos em Cuba”, de Isabel Ibarra Cabrera e Rickley Leandro Marques, que apresenta reflexões sobre a relação história e cinema e o uso desse artefato cultural como fonte para o estudo do passado, analisando um filme de caráter documental sobre a violação de direitos humanos durante o período.

O artigo de Alvaro de Oliveira Senra, “CNBB, democracia e participação popular na década de 1980”, apresenta as concepções de democracia e participação popular elaboradas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e demonstra que estas ideias guardavam relação com o pensamento social católico e serviram de base para ação de diversos movimentos sociais. Uma importante contribuição para se pensar quais sentidos de democracia foram derrotados pelas perspectivas liberais que se hegemonizaram no debate político.

Um dos temas negligenciados pela historiografia do período, a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituição de 1988 – que completa 30 anos em 2018 –, a despeito da existência e disponibilidade de fontes para a pesquisa, é o tema do artigo de Mayara Paiva Souza e Noé Freire Sandes, intitulado “Entre silêncios e ruídos: a Anistia na Assembleia Constituinte de 1987 / 88”. Os autores analisam os debates sobre a ampliação da anistia durante a Constituinte e os setores que consideravam a discussão perniciosa para a construção da democracia.

Por fim, o dossiê se encerra com a contribuição de Francisco Gouvea de Sousa, “Escritas da história nos anos 1980: um ensaio sobre o horizonte histórico da (re)democratização”, em que o autor, a partir de algumas leituras realizadas em cursos de formação de professores, procura reconstruir o período de transição em diálogo com a história da historiografia e da construção da democracia com a institucionalização da pesquisa histórica no Brasil.

Os artigos reunidos neste dossiê apresentam uma dimensão da miríade de possibilidades de um retorno historiográfico àqueles anos. Desejamos uma boa leitura.

Notas

1. SONTAG, Susan. Against Interpretation and Other Essays. New York: Picador, 2001. p. 311.

2. Sobre essa diferença ver o livro e artigo de Svetlana Boym: BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Basic, 2001 e BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 23, p. 153-165, abr. 2017.

Caroline Silveira Bauer – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Marcelo Santos de Abreu – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]

Mateus Henrique de Faria Pereira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]


BAUER, Caroline Silveira; ABREU, Marcelo Santos de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 46, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia e escrita da História / Fato & Versões / 2016

O presente número da revista Fato &Versões busca apresentar um debate entorno de questões que são relacionadas à história da historiografia e a escrita da história, dando ênfase à historiografia brasileira, mas sem deixar de dialogar com múltiplas temáticas de pesquisas que tem sido uma característica das edições anteriores. A concepção inicial do presente número surgiu a partir de uma das ações desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Historiografia Brasileira que juntamente com o grupo de pesquisa História, Cultura e Sociedade tem contribuído para a consolidação e o fortalecimento da revista no cenário regional e nacional. Tal ação supracitada foi à proposição do simpósio temático: Historiografia e nação: os projetos de Brasil constituídos e constituidores de uma cultura histórica nacional no 9º Seminário Brasileiro de História da Historiografia que ocorreu entre 23 e 25 de maio em Vitoria-ES.

Com este simpósio o grupo objetivava reunir pesquisadores voltados para o tema da constituição do saber histórico, bem como, da sua relação com a cultura histórica nacional no século XIX e primeiras décadas do século XX. No intuito de promover um debate sobre os múltiplos projetos de escrita da história do Brasil, com especial ênfase para as questões teóricas, metodológicas e didáticas que preocuparam os principais nomes da historiografia brasileira deste período. A questão central do Simpósio era refletir sobre o conceito de cultura histórica, pensando-o na sua tripla dimensão: cognitiva, política e estética. Dessa forma, ao refletir sobre os estatutos atribuídos a cultura histórica e ao saber histórico, foi possível reunir um número considerável de pesquisadores preocupados em identificar as continuidades e rupturas no processo de pensar a escrita da história no Brasil.

Dessa forma, o presente número comporta discussões que foram problematizadas nesse encontro, tais como: identidades nacionais, regionais, multiplicidades étnico-raciais, memória, limites e aproximações epistemológicas no processo de constituição das ciências humanas no Brasil, bem como, os múltiplos sentidos atribuídos à pesquisa e a escrita da história. Nesse sentido essa publicação traz a assinatura coletiva de um jovem grupo de pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Historiografia Brasileira, bem como, de outros pesquisadores que contribuíram com o debate proposto pelo grupo na 9ºSBHH, cuja contribuição foi imprescindível para a realização dessa publicação.

Para a consolidação dessa edição, somou-se a ação deste grupo supracitado, a contribuição de outros pesquisadores vinculados a outros programas de graduação e pós- graduação, que foi fundamental para a constituição desse amplo mosaico de reflexões historiográficas que constituem a presente publicação.

Por se tratar de um conjunto variado de objetos e temáticas, não vou tentar oferecer ao leitor uma concepção previa dos textos que se seguem, pois entendo, que tal esforço ainda que seja valido, no sentido de oferecer um víeis interpretativo para os textos, não é possível de ser feito de forma qualificada dentro dos espaços restritos de uma mera apresentação. Minha ênfase será colocada numa rápida apresentação de alguns conceitos trabalhos pelos autores e na valorização da multiplicidade de instituições (UFMS, UFGD, UFU, PUC-RS, UEG, UNIR, UFSC) e de pesquisadores em níveis diferentes de suas carreiras preocupados com aspectos inerentes a historiografia e a escrita da história, o que evidencia a atualidade dessa temática para a pesquisa histórica contemporânea.

A revista Fato &Versões, através de seu corpo editorial, acredita neste dialogo interinstitucional e na pluralidade de ideias e perspectivas do saber histórico, como sendo um caminho viável para a renovação e circulação do saber acadêmico produzido na área de história. Dessa forma, convido todos os leitores, especialistas da área, ou curiosos sobre o assunto, a navegarem em busca da compreensão da relação entre memória e passado no pensamento bersoniano desenvolvido por Rodrigo Tavares Godói (UNIR) cuja preocupação analítica é pensar a possibilidade da constituição de uma hermenêutica da memória, pensando-a por seus princípios estéticos e retóricos. A se deleitarem nas idiossincrasias e singularidades da relação entre história, cinema e arte presente nos textos das pesquisadoras: Carla Miucci Ferraresi de Barros (UFU), Ana Paula Spini (UFU), Fernanda Reis Varella (UFGD) que problematizam as noções de “feminilidade”, “condição feminina”, “regionalismo”, “identidade nacional” e “nacionalismo republicano” nas produções cinematográficas do cinema hollywoodiano, no cinema de Humberto Mauro dos anos de 1920 e nas representações pictóricas de Lídia Baís.

Nos artigos dos pesquisadores Wilson de Sousa Gomes (UEG), Luiz Carlos Bento (UFMS), Eduardo Rouston Junior (PUC-RS), Mauro Vaz de Camargo Junior. (UFSC), Aruanã Antônio dos Passos (UTFPR), Leandro Hecko (UFMS / CPTL) convido os leitores a percorrerem os caminhos sinuosos da constituição da historiografia brasileira, um campo composto por inúmeras disputas de poder, atravessado por paixões políticas e ideológicas que quase sempre são instrumentalizadas como pressupostos para pensar projetos de Brasil, dando visibilidade a certos aspectos dessa sociedade plural e obstruindo outras formas de alteridades que jazem esquecidas nos diversões rincões e quêtos que são habitados por sujeitos históricos sequiosos de fortalecerem suas representações sociais, mitos e tradições, pois tanto a classe dominante quanto os “esquecidos”, buscam por meio de suas narrativas constituírem um lugar na história, e muito embora, esse não seja o objeto predileto da história da historiografia, ela nos fornece uma belíssima possibilidade de alargar a nossa visão histórica de mundo.

Nos textos de Gislaine Martins Leite (UFMS) e Jessica Rocha (UNESP) os leitores encontrarão uma excelente oportunidade para refletir sobre a resignificação de valores e preconceitos associados à questão racial e ao uso de psicoativos, bem como, para conhecerem a historicidade e a construção social desses preconceitos na sociedade brasileira. Com base no que fora anteriormente exposto, encerro essa breve apresentação, agradecendo em nome do Conselho Editorial da revista Fato &Versões, a contribuição de todos os colaboradores deste número.

Luiz Carlos Bento

Conselho Editorial


BENTO, Luiz Carlos. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.8, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Estados Unidos: História e Historiografia / Anos 90 / 2015

“Quem será o americano, este novo homem”?

(Ou quantas Américas cabem na América?)

Uma outra América, um país sem nome!

Os Estados Unidos da América (EUA) constituem um estranho país! Para iniciar, trata-se de um país “sem nome”!

O historiador Leandro Karnal – da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – salientou, numa conferência proferida em nossa universidade, em 2010,1 que todos os países americanos têm nomes: eles podem ser associados a heróis nacionais (Bolívia, Colômbia), a acidentes geográficos (Uruguai, Paraguai), aos nomes que tinham estes territórios antes da conquista (Chile, México), ou a produtos identificados com os lugares (Argentina, Brasil). Os Estados Unidos, ao contrário, originários das Treze Colônias, pertencentes ao Reino Unido, constituíram-se em estados, resguardando suas autonomias, tendo como referência o continente – a América, que lutava pela independência – em oposição a uma opressão que vinha da Europa.

O país “sem nome” adotou como seu um nome que incluía outras terras e povos! É raro escutar de um estadunidense, referindo-se ao seu país, a expressão United States; bem mais comum é o uso da abreviatura U.S.A., pronunciada rapidamente, letra por letra. No entanto, America é, desde a Revolução de Independência, uma referência tão forte que mesmo os americanos de outros países se referem aos estadunidenses como “americanos” ou pelo menos “norte-americanos”2.

Mas o país, se não tinha um nome, construiu seus símbolos identitários e implementou processos políticos e sociais que lhe trariam a condição de superpotência apenas um século e meio depois de sua criação. E desde o início a formação do Estado nacional foi garantida a partir de unidades autônomas – os estados sucedâneos às colônias originais – que delegaram a um poder constituído na forma de uma federação.3 Muito antes disso, porém, já havia sido criada a representação máxima da nação, a bandeira. Primeiramente uma bandeira clandestina que representava as colônias por listras alternadas vermelhas e brancas, adotada por Washington, em 1776, mas ostentando no quadrante superior esquerdo o desenho da bandeira britânica, substituído definitivamente pelo retângulo azul, com as estrelas simbolizando os estados, criada pela lei de quatorze de junho de 1777. Deram-lhe nomes: Stars and Stripes, descritivo; Old Glory, apologético!

Esta marca inconfundível dos Estados Unidos ainda não tinha cem anos quando foi negada pelos rebeldes sulistas que fizeram a secessão dos Estados Confederados da América. Criaram sua própria bandeira, com fundo, listras e estrelas noutro arranjo. E ela é ainda hasteada em estados do Sul, muitas vezes de forma contraditória, ao lado do estandarte da União. Além disso, foi parodiada por Mark Twain, que compôs um estandarte de listras vermelhas e negras, ostentando num retângulo preto caveiras, ao invés das estrelas; para ele, a nação da liberdade convertera-se num entreposto da pirataria mundial.

Outra glória máxima da nação é o hino! Além do hino dos Estados Unidos, de 1814, tornou-se muito popular outra composição, God Bless America (Deus Abençoe a América), de Irving Berlin, que a partir de 1938 tornou-se um “hino não oficial” do país, popularizando-se muito nos tempos de guerra que se seguiram. Parte da letra diz: “From the mountains / To the prairies / To the oceans / White with foam / God bless America / My home sweet home” 4.

Mas, assim como a bandeira, esse hino foi glosado pelo músico e cantor Woody Guthrie; ligado ao cancioneiro folk desde jovem, tornou-se famoso pelas letras de protesto depois da Grande Depressão, quando aderiu ao Partido Comunista. Em 1940, ele escreveu God Blessed America for Me, fazendo um contraponto mordaz ao hino. Mais tarde ele modificaria um pouco a letra, renomeada como This Land is Your Land, da qual reproduzimos um trecho: “When the sun came shining, and I was strolling / And the wheat fields waving and the dust clouds rolling / A voice was chanting, As the fog was lifting, / This land was made for you and me”.5 Sempre com um violão com os dizeres “This machine kills fascists”, os versos de Woody expunham a terra da promissão.

No entanto, afinal, que país era (é) esse? Quais encantos exerceu (exerce) aos que o conheceram (conhecem)? Quais as decepções ou revoltas que provocou (provoca) interna e externamente?

“Quem é o americano, este novo homem”!

John Hector St. John de Crèvecœur – um francês que escolhera viver em New York – na sua Letter III dos anos 1760 fez esta pergunta: “What then is the American, this new man? He is either a European, or the descendant of a European, hence that strange mixture of blood, which you will find in no other country”.6 Este “novo homem” que gerou tais indagações seria mais tarde recuperado pela Literatura como um ser original, muito mais adequado aos embates de uma terra por construir que seus avós do Velho Mundo. Pode-se especular que em Crèvecœur confluíssem uma tradição puritana – associada a uma busca pela Terra Prometida, que mais tarde resultaria na doutrina do Destino Manifesto – e um pragmatismo burguês de políticos e pensadores que literalmente projetaram um país.

Com sua Declaração de Independência de quatro de julho de 1776, estes “novos homens” emergiam da Revolução Americana7 para a construção de uma nação que passava, antes que nada, pela sua identificação como “um povo”. Dizem os membros congressistas dos Treze Estados:

When in the Course of human events, it becomes necessary for one people to dissolve the political bands which have connected them with another, and to assume among the powers of the Earth, the separate and equal station to which the Laws of Nature and the Nature’s God entitle them, a decent respect to the opinions of mankind requires that they should to declare the causes which impel them to the separation.8

Destacamos que, se era alegada uma legitimação divina, aparecia também em maiúsculas as Leis da Natureza! O “americano” político tinha sido gestado pela sua “natureza americana”.

Para esse país tornado independente pelas armas “americanas”, em dezessete de setembro de 1787, seus Founding Fathers 9 assumiram a representação de “Povo dos Estados Unidos” quando escreveram uma Constituição que vige até os dias atuais. Já o seu Preâmbulo, clama por um apelo coletivo:

We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.10

Mais tarde a ratificação deste diploma passou pela elaboração da Bill of Rights – a Declaração de Direitos – formada por dez emendas, também elas em vigor atualmente. É à Primeira Emenda em que se atribuem os fundamentos da democracia “americana”:

Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances”.11

O “novo homem” inaugurava-se em nome da liberdade, da igualdade, dos direitos universais. Mas estes “americanos” não eram tão “iguais”, ou tão “livres”, ou não gozavam todos dos mesmos direitos. Neste projeto de nação em que os políticos dos ilustrados estados do Norte atraíram estrangeiros de todas as partes para suas grandes cidades, ao mesmo tempo em que lhes facilitaram o acesso às generosas terras do Oeste, conformavam-se campos de conflito: burgueses e operários nos centros urbanos, fazendeiros e indígenas, nos novos territórios. Por outro lado, conviviam com os aristocratas dos estados do Sul, com suas grandes plantations de algodão tocadas por escravos africanos, com cinturões de brancos pobres sitiantes.12 Os acertos de tantas disparidades se faziam com a expansão do país às custas do extermínio dos que fossem empecilho: povos indígenas, franceses, espanhóis, mexicanos… A doutrina do Destino Manifesto avançava as fronteiras dos Estados Unidos, mas o melting pot que formaria o “americano” decerto não incluía estes outros povos.

Lutas pelos direitos civis dos afrodescendentes, reconhecimento dos povos indígenas remanescentes, imigração clandestina de latino-americanos e orientais, imperialismo e opressão externos são ainda dilemas da sociedade estadunidense que não foram garantidos pelos diplomas da sua fundação. Ainda não sabemos o que é um americano, ou em que ele difere dos demais americanos. Afinal, que América é esta, dentro da nossa América?

A outra América entre nós!

O Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul há muito tempo destaca como área de estudos a História da América. Em tempos mais pregressos, as disciplinas obrigatórias de História da América incluíam os conteúdos de História dos Estados Unidos, desde os tempos coloniais até os contemporâneos. Assim, era possível uma comparação entre os processos de colonização, as revoluções de independência e formações dos Estados nacionais, a inserção no capitalismo mundial etc. Observava-se, no entanto, que a História dos Estados Unidos merecia um destaque maior, até porque os temas relativos à História Contemporânea chamavam a atenção para uma superpotência cuja história de antanho não vinha sendo trabalhada com a intensidade merecida. Numa reunião de docentes que ministravam História da América na UFRGS, realizada em 1990, a professora Heloísa Jochims Reichel sugeriu a criação de uma disciplina específica de História dos Estados Unidos; os demais professores – Susana Bleil de Souza, Claudia Wasserman, Helen Osório e Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – apoiaram esta proposta, que foi mais tarde referendada pelo Departamento de História.

Desde então, História dos Estados Unidos da América faz parte do currículo de disciplinas eletivas do Curso de História, mas há reparos a fazer. O primeiro deles diz respeito a uma dupla mudança na inserção dos conteúdos ministrados: aos tempos em que eles faziam parte dos programas de História da América, eram obrigatórios para todos os alunos do curso; no formato que vige desde 1990, eles se tornaram opcionais! Além disso, na medida em que História dos Estados Unidos da América é eletiva, os professores que a assumem têm também uma ampla liberdade de escolha em relação aos temas que desenvolvem. (História dos Estados Unidos da América já foi ministrada por Heloisa J. Reichel, Susana B. de Souza e Cesar A. B. Guazzelli, tanto de forma sucessiva como compartilhada.)

Em 2003, Cesar A. B. Guazzelli foi contemplado com Bolsa Produtividade do CNPq para desenvolver o projeto de pesquisa Senhores da guerra em espaços fronteiriços: o norte do México e o Rio da Prata na primeira metade do século XIX (c.1810-c.1850); este estudo comparativo inaugurava as pesquisas sobre História dos Estados Unidos na UFRGS. Neste mesmo ano, Guazzelli também ministrou pela primeira vez a disciplina de História dos Estados Unidos da América, realizando um corte temporal entre a Independência e o final do século XIX. A esse projeto, foram integrados dois acadêmicos do Curso de História que desde o ano anterior estavam associados aos estudos sobre fronteiras: Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas. Fluentes em inglês, cada um deles tratou de um tema específico em relação ao espectro mais amplo da pesquisa: Arthur Avila assumiu a investigação sobre Fronteiras nos ensaios de Frederick Jackson Turner, cuja obra nunca era traduzida em português; Renata Freitas dedicou-se aos temas fronteiriços na obra de James Fenimore Cooper, quase toda ela inédita em português.

Os dois bolsistas deram continuidade aos seus trabalhos com investigações próprias derivadas destas atividades. Arthur Lima de Avila realizou o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS como bolsista do CNPq, defendendo em 2006 a dissertação intitulada E da Fronteira veio um Pioneiro: a “frontier thesis” de Frederick Jackson Turner (1861-1932), sob a orientação de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli. Ingressando no Doutorado do mesmo Programa, Arthur Ávila desenvolveu sua Tese Território contestado: a reescrita da história do Oeste norte-americano (c.1985-c.1995), com apoio do CNPq, ainda sob orientação de Cesar Guazzelli. Durante o Doutorado, realizou estágio na John Hopkins University. Em 2011, o trabalho foi contemplado com o Prêmio CAPES de melhor Tese em História de 2010.

As pesquisas sobre Cooper renderam a Renata Dal Sasso Freitas a dissertação de Mestrado Páginas do Novo Mundo: um estudo comparativo entre José de Alencar e James Fenimore Cooper na formação dos Estados nacionais brasileiro e norte-americano no século XIX, realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS; ela recebeu bolsa do CNPq, sendo concluída em 2008, sob orientação de Cesar Guazzelli. Neste mesmo ano, Renata Freitas iniciou seu Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro; em 2012, concluiu a Tese intitulada “Love of country”: os romances históricos de James Fenimore Cooper sobre a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1821-1824), com apoio do CNPq; nesse período estagiou na Yale University, em função de suas pesquisas.

Atualmente, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas coordenam o projeto de pesquisa América: identidades e alteridades: a escrita da História da América Hispânica nos Estados Unidos (c.1900-c.1930) apoiado em Edital Universal do CNPq. Essa pesquisa reúne diversos pesquisadores e bolsistas da UFRGS e de outras universidades, todos com investigações relacionadas e temas de História dos Estados Unidos da América. 13

A outra América em Revista!

Salientamos até agora algumas controvérsias que gera a História dos Estados Unidos, esta “outra América” que dá nome a um país tão diverso das demais nações americanas. Este irmão do Norte, cuja cultura de massas penetrou com uma intensidade talvez maior que sua influência na política ou sua dominação econômica imperialista, recebe atenções mínimas da historiografia nacional. Nesse sentido, nossa intenção de organizar este dossiê para a revista Anos 90 buscou cumprir uma dupla missão: 1) dar continuidade a um campo de conhecimento que vem se afirmando entre nós já há algum tempo; 2) apresentar para os historiadores que a História dos Estados Unidos tem uma grande possibilidade de se desenvolver em nosso meio.

Para este número da revista Anos 90, compusemos este dossiê com seis artigos inéditos, abordando aspectos históricos bem variados dos Estados Unidos da América.

O primeiro artigo tem como título A Quem Pertence o Passado Norte-americano? A controvérsia sobre os National History Standards nos Estados Unidos (1994-1996), de autoria do professor Arthur Ávila (UFRGS). Este texto trata da controvérsia pública sobre os National History Standards, um conjunto de propostas que visavam a auxiliar na reforma do Ensino Básico nos Estados Unidos, entre 1994 e 1996. No texto, enfatizam-se as respostas dos setores conservadores às diretrizes propostas, especialmente sua rejeição àquilo que consideravam um “sequestro da história” pelas hostes “multiculturais”, “politicamente corretas” e “antiocidentais”. Com isso, argumenta-se que tais setores buscavam a construção de um passado estável e sem conflitos justamente como contraponto a um presente que se apresentava cada vez mais instável e conflituoso, assegurando, assim, uma ideia bastante limitada sobre quem eram os personagens da história norte-americana e o que ela deveria significar.

Segue-se Os Estados Unidos entre o nacional e o transnacional: o saber produzido pela circum-navegação científica da U. S. Exploring Expedidion (1838-1842), de autoria da professora Mary Anne Junqueira (USP). Aqui trata-se de analisar alguns aspectos do conhecimento moderno expresso no relato de viagem da primeira circum-navegação científica, U. S. Exploring Expedition, entre 1838-1842. Os conjuntos de saberes constituídos pela expedição estiveram entre a afirmação nacional e os aspectos transnacionais próprios da época. Revela-se o propósito norte-americano no que diz respeito à inserção de quadros do país na rede de conhecimento liderada pelos europeus, discutindo com os seus pares do velho continente, mas também concorrendo com eles.

O trabalho seguinte é de autoria do professor Vitor Izecksohn (UFRJ) e tem como título A experiência miliciana norte-americana: antimilitarismo ou pragmatismo? Nesse artigo, o autor discute a experiência miliciana nas colônias inglesas da América do Norte e nos Estados Unidos durante a primeira república. Enfatizo o papel do antimilitarismo como principal aspecto da experiência militar anglo-americana. Relaciono essa perspectiva à aversão ao despotismo, derivada da tradição política inglesa e ao controle civil sobre os militares. Sublinho as dificuldades encontradas para a criação de um exército profissional e os problemas de coordenação entre o poder central e as autoridades locais e estaduais.

O artigo de Valeria Lourdes Carbone (UBA) tem como título El Movimiento afro-estadounidense contra el Apartheid sudafricano: un reflejo de la lucha de la comunidad negra a nivel doméstico y su impacto sobre la política exterior de los EE.UU. Esse texto tem como proposta analisar como – e em que medida! – o ativismo político afro-estadunidense contra o Apartheid sul-africano, após décadas de militância e organização, passou a influenciar as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a África do Sul. Isto permite ver como o movimento afro-americano foi recebido pelo governo Reagan; além de observar como qual era a real influência que aquele movimento podia ter ao desafiar certos aspectos da política externa do governo, destaca-se também a possibilidade de canalizar demandas próprias e reivindica-las internamente.

O texto Sobrevoando histórias: sobre índios e historiadores no Brasil e nos Estados Unidos foi escrito por Soraia Sales Dornelles e Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). As duas historiadoras abordam aspectos similares entre as produções brasileira e estadunidense sobre os respectivos grupos indígenas. Salientam que em ambos os casos as produções históricas feitas sobre os habitantes nativos tiveram importância objetiva nas políticas públicas relativas a eles. Destacam ainda que muitas influências de natureza complexa agem na formulação de conhecimentos sobre os povos indígenas do Brasil e dos Estados Unidos. O objetivo das autoras é perseguir uma abordagem comparativa entre as construções dos discursos históricos sobre os indígenas nos dois países, buscando, a partir disso, mapear os possíveis intercâmbios científicos sobre o tema.

Martha De Cunto (UBA) escreveu Chase-Riboud: Sally Hemings: Oralidad, escritura y la resignificación del passado, em que analisa o romance histórico de Chase-Reboud dentro de tradição literária negra. O trabalho relaciona o romance com as primeiras narrativas dos escravos, mostrando as continuidades e ruptura. Indaga sobre as representações dos principais personagens: Langdon, a escritura; Sally, a oralidade; e James, a cultura e a comunidade negra. O texto discute a legitimidade, o valor histórico e a veracidade dos discursos escritos, assim como aborda a desestabilização do binário “realidade ficcional” e “realidade” histórica, denunciando a forma como a historiografia dos brancos dominadores apresenta os negros marginalizados.

O último artigo, Entre Cabanas e Diligências: os Fronteiriços na Western Fiction de Bret Harte e Ernest Haycox, é de autoria conjunta de Cesar Guazzelli e Renata Freitas (UFRGS). O texto evidencia como a fronteira americana em seu avanço inexorável para Oeste produziu obras ficcionais muito carregadas de emoção, mesmo passados os tempos épicos dos pioneiros. Mais que isso, elas recriaram os seus dramas fora daquelas paisagens ocupadas pelos grandes rebanhos de gado e seus cowboys, mas justamente nos núcleos civilizatórios que já se haviam instalado no Oeste. A mitologia dos pioneiros mudava para uma realidade menos glamourizada, mas talvez mais verossímil. Assim, o que propomos é uma leitura comparada de dois contos que se reportam ao avanço da fronteira “civilizatória” para o Oeste: The Outcasts of Poker Flat, de Bret Harte, escrita em 1868 (HARTE, 2001) e Stage to Lordsburg, de Ernest Haycox, escrita em 1939.

Essas são algumas visões sobre a História dos Estados Unidos, para que talvez – parafraseando Crèvecœr – compreendamos um pouco melhor quem é aquele “novo homem”, e se este outro “americano” está tão distante assim de nós.

Notas

1. Esta fala aconteceu na abertura do Ciclo de Cinema – Curso de Extensão em Cinema, História e Educação USA não abusa! Os Estados Unidos da América em Tempos de Guerra. No mesmo ano, esta conferência de Karnal foi publicada como texto: Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos (GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010, p. 9-16).

2. Durante as guerras de independência, a expressão “americano” foi usada por todo continente em oposição aos colonizadores. Também não custa lembrar que a América do Norte – vista aqui como um subcontinente! – inclui o Canadá e o México.

3. Esta organização política pode ser acompanhada pelas publicações do jornal The Federalist, mais tarde reunidas em um livro homônimo: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

4. “Das montanhas / Para as pradarias / Para os oceanos / Branco com espuma / Deus abençoe a América / Meu lar doce lar”. Tradução nossa.

5. “Quando o sol apareceu brilhando, e eu estava passeando / E os campos de trigo ondulando e as nuvens de poeira rolando / Conforme a fumaça se levantava uma voz cantava / Esta terra foi feita para você e para mim”. Tradução nossa.

6. “Quem é afinal o americano, esse novo homem? É europeu ou descendente de europeu, e daí aquela estranha mistura de sangue que não é encontrada em nenhum outro país”. Tradução nossa. Uma série de cartas escritas por Crèvecoeur foram reunidas e publicadas em 1782, como Letters from na American Farmer. Ver: VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994, p. 18.

7. O historiador marxista estadunidense Aptheker não duvida em destacar a Revolução Americana como “uma daquelas grandes guerras realmente revolucionárias”. APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 17.

8. “Quando no Curso dos eventos humanos torna-se necessário para um povo dissolver os laços políticos que o tem ligado a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, estatuto igual e separado que lhe asseguram as Leis da Natureza e de Deus, o decente respeito às opiniões da humanidade requer que sejam declaradas as causas que os impeliram à separação”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012.

9. Pais Fundadores são chamados os congressistas que elaboraram a Constituição dos Estados Unidos e as Emendas que formam a Declaração de Direitos do Cidadão.

10. “Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para nós e para os nossos Descendentes as Bênçãos da Liberdade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS, op. cit.

11. “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. Id. Ibid.

12. O contraste entre o Norte capitalista e o Sul escravocrata levariam o país à trágica Guerra da Secessão. Para Barrington Moore, ela teve tanta importância quanto as grandes revoluções capitalistas do século XVIII. MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983. Sobre o tema, ver também: KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983.

13. Os docentes colaboradores são os seguintes: Teresa Cribelli, Ph.D. em História pela Johns Hopkins University, professora de História na University of Alabama; Fabrício Pereira Prado, Ph.D. em História Latino-Americana pela Emory University, professor de História na Roosevelt University, USA; Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na Universitat Pompeu Fabra, de Barcelona, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Joana Bosak de Figueiredo, Mestre em História e Doutora em Literatura Comparada pela UFRGS, com estágio doutoral na Universitat de Barcelona, professora de História da Arte na UFRGS; Susana Bleil de Souza, Doutora em História pela Université de Paris X – Nanterre, de professora de História na UFRGS e professora convidada da Universidad de la República de Montevidéu; Carla Menegat, Doutoranda em História na UFRGS, com estágio doutoral na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL); Rafael Hansen Quinsani, Doutorando em História na UFRGS.

Referências

APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969

FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

KARNAL, Leandro. Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos. In. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010. p. 9-16.

KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983

MOORE Jr., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994.

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Arthur Lima de Ávila – Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; ÁVILA, Arthur Lima de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, jul., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia | Ars Historica || Estudo do Oitocentos | Ars Historica | 2015

A Ars Histórica tem o prazer de lançar sua décima primeira edição, trazendo dois dossiês temáticos: Historiografia e Estudo do Oitocentos. A escrita é a operação máxima do fazer histórico, que circunda todo um processo de análise e construção do objeto. Neste sentido, os dossiês que apresentamos dialogam e se apresentam como boa contribuição à comunidade científica nacional, na medida em que trazem em seu escopo, análises do procedimento de escrita da história no primeiro, e a aplicabilidade dos mesmos para a interpretação de um período no segundo.

O dossiê Historiografia representa a arte de escrever e dedicar-se à História, celebrando Clio em artigos sobre o conceito de identidade e etnicidade para entender a história indígena; o exercício de conservação do poder na modernidade através dos clássicos da Teoria Política e a análise da estrutura estatal portuguesa, além do o discurso de Platão na música de Marco Schacchi em 1649. E por fim, a aplicabilidade do “paradigma indiciário” do historiador Calo Ginzburg na obra referência Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Leia Mais

Historiografia e História Intelectual / Varia História / 2015

)Não por acaso, este Dossiê escolheu como tema Historiografia e História Intelectual. O movimento historiográfico com renovado interesse, já há algumas décadas, tem registrado uma produção em uma escala bastante globalizada, marcada pela reivindicação de um alinhamento com a chamada História Intelectual, cuja definição tem comportado diferentes entendimentos, e cujas fronteiras disciplinares têm comportado deslocamentos sistemáticos e bastante e promissores. Em suas margens, delimitadas por variadas tendências, se tocam, se cruzam, se confrontam questões teórico-conceituais de tradições, linhagem e filiação diversas, as quais nem sempre se ocupam do mesmo objeto. O que por vezes confunde e obscurece as incursões dos interessados, já que nem sempre há clareza suficiente dos itinerários e dos percursos a serem seguidos, em um espaço que não se furta a alimentar debates, e tampouco descarta a possibilidade de sua autonomização no interior da disciplina histórica.

Sua geografia inclui espaços nacionais diversos, a exemplo da Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, França, Argentina, em instituições de renome, como as universidades de Cambridge, Oxford, Johns Hopkins, Cornell, Chicago, Yale, Quilmes , os institutos de Sciences Po, CNRS, em que filósofos, lingüistas, epistemólogos, historiadores, sociólogos do direito, enfim, nomes de grande reputação como Reinhard Koselleck, Quentin Skiner, François Sirinelli, François Foucault, M. Abensour , Charles Zarka, Carlos Altamirano, J. A. Pocock, Richard Rorty, Dominique La Capra foram definindo novas epistemologias e espaços de pesquisa. Entre a história intelectual e a história dos intelectuais, a história dos conceitos e a história da historiografia, a abordagem contextual e a reflexão lingüística, a internalidade e a externalidade dos textos vão pontificando os conceitos de semântica histórica, campo semântico, atos de linguagem, lance, formação discursiva, redes, gerações, corpus textuais entre tantos outros. Os avanços, as mudanças e as convergências entre as várias correntes no movimento de sua instituição foram introduzindo novos desafios e outras práticas: dos grandes textos filosóficos, históricos e políticos a outros corpus documentais, como os escritos dos publicistas, os manifestos políticos e culturais, os jornais e revistas, as correspondências, as biografias e autobiografia, dentre outros. Entra em cena a atenção sobre o papel das trocas culturais, a intertextualidade, a dimensão comparativa no âmbito da história conceitual e as inúmeras relações, já apontadas por estudiosos, “entre conceitos e práticas não lingüísticas: o gesto, a imagem, o cênico”. Neste vaivém das trocas entre teoria e empiria, pensamento e texto, o texto e o contexto, a multiplicidade de sentidos e a mobilidade das significações, a natureza histórica das obras e a instabilidade das mesmas, as performances do texto e as interpretações estabelecidas, as regras metodológicas e os processos de pesquisas se cruzam e extrapolam as fronteiras disciplinares, e se reforça a irredutibilidade de busca da historicidade.

O Dossiê aqui proposto pretendeu, entre outros objetivos, acolher reflexões de natureza historiográfica que pudessem trazer pistas ao leitor sobre o “estado da arte” da historiografia nas suas interfaces com o domínio da chamada História Intelectual. Os autores convocados, Jorge Eduardo Myers, Valdei Lopez de Araújo, Verônica Zarate Toscano e Gabriella Pellegrino Soares, conhecidos pela excelência da sua contribuição histórica e científica, aqui se detiveram em criativas e diversificadas análises que mostram como o manuseio de referenciais teórico metodológicos, afinados com a História Intelectual, pode contribuir para desvendar ricos aspectos no campo dos estudos do pensamento, da cultura e das práticas intelectuais, e dar mostras do seu impacto sobre o labor historiográfico e a escrita da história. Os textos tangenciam, quando não atacam diretamente, questões importantes como aquelas dos limites, bem como dos contatos, aproximações e possíveis tensões no interior da historiografia, entre a História Intelectual e a História das Idéias, uma vez que experimentam, na exploração dos seus objetos ou dos balanços que realizam as implicações da opção por uma ou por outra, em termos das aberturas hermenêuticas e / ou dos possíveis déficits epistemológicos.

A leitura das contribuições aqui apresentadas aporta aos leitores, por um lado, vários elementos especulativos. De outro, motivam e induzem perguntas e respostas, ainda que nem sempre diretas, e que não podem ser negligenciadas, a exemplo de ser ou não procedente a separação da História Intelectual frente a uma Nova História das Idéias. Que balanço pode ser feito da fortuna crítica nesses domínios, bem como nas interfaces da História Intelectual com a história dos conceitos, com a nova história política e com a história cultural? Como pensar as relações da História Intelectual com a memória e a narratividade da história? Como se complementam História Conceitual e História Social? Os textos publicados neste Dossiê fazem perfilar, nas suas diferenças de abordagem, pistas para se pensarem essas questões, ao tempo em que sinalizam para algumas tendências mais recentes, responsáveis por uma configuração outra da abordagem e da análise dos corpos textuais, sejam historiográficos, sejam do pensamento político, sejam documentais.

O Dossiê se respalda em estudos e análises históricas sobre o tema nos domínios de pesquisa dos convidados, daí contar com explorações mais pontuais, comparações e balanços, que propiciam importantes aportes para a historiografia do Brasil e de outros países também da América Latina, a exemplo do México e da Argentina.

Que os leitores da Varia Historia aproveitem e façam uma boa e proveitosa leitura!

Eliana Regina de Freitas Dutra – Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.56, mai. / ago., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2015

O ciclo de ditaduras da América Latina dos anos 1960 a 1990 vem sendo rememorado em “datas convocantes”, como os 50 anos do golpe no Brasil, em 2014, os 40 anos do golpe no Uruguai e no Chile, em 2013, e, no ano que vem, 2016, também na Argentina, suscitando-se reflexões, novas abordagens e balanços historiográficos. O dossiê “Ditaduras na América Latina do século XX: debates e balanços historiográficos” propôs abrir um espaço para discussões acerca dos regimes autoritários e recebeu contribuições de variadas origens – Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Embora a variedade temática esteja longe de cobrir o conjunto da profícua e extensa produção recente sobre os regimes autoritários da América Latina, esse dossiê oferece uma multiplicidade considerável de objetos e perspectivas, como historiografia, história das ideias, gênero, cotidiano, memória, imprensa, literatura, cinema e movimentos sociais, assim como devemos destacar a presença de jovens pesquisadores dentre os autores.

Abrindo o dossiê, o texto de Javiera Libertad Robles, intitulado “’Las Rodriguistas’. La mujer militantes en la prensa del Frente Patriótico Manuel Roríguez (1983-1988)”, discute a presença de mulheres militantes no braço armado do Partido Comunista do Chile. O estudo é feito por meio da revista El Rodriguista, principal veículo de comunicação do grupo, a partir do qual Robles analisa a visibilidade da participação feminina na organização. Leia Mais

Historiografia: práticas de pesquisa / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A proposta temática do dossiê deste número da revista Clio se inscreve no universo crítico das práticas de pesquisa e de escrita da história. O seu objetivo é apresentar as produções do conhecimento, em temporalidades e espacialidades diversas, abertas às análises que articulam a teoria – um diálogo profícuo com diversos textos no campo das humanidades – e a metodologia em seus aspectos peculiares.

Os artigos que compõem este dossiê problematizam uma temática, relacionando-a às questões e propostas metodológicas que se apresentam como resultado de pesquisas. Nesse sentido, as experiências com o “fazer história” possibilitam também explorar modos narrativos diversos. Nessa trilha, dialogam com vários estudos no campo da historiografia, sinalizando o seu lugar social e institucional, trazendo a contribuição fundamental de uma vasta e especializada bibliografia, bem como a pesquisa das fontes documentais. Trata-se de textos que privelegiam a reflexão acerca dos procedimentos metodológicos com os quais operam, delineando aproximações e afastamentos para com as análises historiográficas, atentos àquilo que o historiador mexicano Luís Gerardo Morales Moreno tão bem observa:

La historiografía contemporánea se sitúa en esa trama compleja de relaciones entre las formas del relato histórico y su legitimación mediante instituciones y comunidades que actúan dentro de una sociedad determinada. 1

Nessa perspectiva, os textos aqui relacionados partilham de reflexões que expressam as indagações dos historiadores quanto à produção do discurso ligado à sua prática, situada num campo complexo de relações e legitimações. É assim que convergem ao observarem a construção do tema, a prática da pesquisa e os procedimentos metodológicos que operam ao analisar os documentos e compor a escrita com as citações e as referências bibliográficas.

Há ainda outro aspecto fundamental a assinalar. Os artigos ao focalizarem os assuntos específicos, que cobrem problemas e questões, indagam o presente do historiador e o seu ofício, orientados pelas regras do campo historiográfico. Diante disso, os trabalhos apresentados no dossiê são reveladores de um grande esforço intelectual para a realização de leituras e de procedimentos metodológicos que constituem a matéria da escrita, tecendo pouco a pouco o relato historiográfico na difícil arte de significar o passado no presente.

Compartilhando uma longa experiência de pesquisa e reflexão com o trato de documentação oral, o Prof. Gerardo Necoechea Gracia (Instituto Nacional de Antropología e Historia / México) abre o dossiê com um artigo em que se propõe a apresentar Una propuesta para el análisis y la contextualización de la entrevista de historia oral. Recorrendo a múltiplos exemplos extraídos de suas pesquisas, e tomando como ponto de partida o princípio de que “la historia que recurre a la memoria rinde sus mejores frutos cuando sitúa el recuerdo en el tiempo y el espacio”, o autor esmiúça um bom número de procedimentos e cuidados metodológicos que evitem reduzir o rememorar a um fim em si mesmo. Fundamentalmente, o aporte metodológico que o autor sustenta se lastreia na idéia de que “es necesario primero llegar a una comprensión cabal de la entrevista, antes de despedazarla acorde a temas relevantes para la investigación”. Devendo-se cuidar, para tanto, de “comprender las relaciones lógicas y de sentido que dan integridad al documento, de manera que no violentemos el espíritu con que fue creada la fuente oral”. Tudo isto, diz-no o autor, é precisamente o que possibilita “colocar el recuerdo en su contexto y así realizar la relevancia histórica de la experiencia que narra el entrevistado”, bem como, compreender mais precisa e adequadamente “la intención e interpretación que el entrevistado imprime a su recuerdo”. O texto, assim, oferece-se ao leitor quase que como um pequeno manual no lidar com depoimentos orais.

Em História, memória e sujeito: a narrativa histórica e as reapropriações do sujeito, o Prof. Marcelo de Sousa Neto (Universidade Estadual do Piauí) se propõe a perscrutar as novas abordagens que a historiografia brasileira tem dedicado aos estudos biográficos. A partir da análise do caso de figura de destaque no mundo político e intelectual do Piauí no séc. XIX, Pe. Marcos de Araújo Costa, o autor dirige suas reflexões menos à figura histórica do Pe. Marcos do que às escolhas que possibilitaram a criação de uma determinada memória sobre ele, em detrimento de outras tantas possíveis. Ao chamar a atenção para essa operação, o autor não faz outra coisa que evidenciar algo de suma importância para qualquer empreendimento historiográfico: que toda construção narrativa se faz por meio do recurso ao apagamento e silenciamento de inúmeras outras. Nos termos de Certeau, autor reiteradamente invocado ao longo do texto, trata-se de evidenciar a “topografia de interesses” que organiza as narrativas e fixação de memórias as mais diversas.

O artigo escrito pela Profa. Patricia Pensado Leglise (Instituto de Investigaciones Dr. José Ma. Luis Mora / México), El acontecer histórico en el relato de vida, mais uma vez nos oferece a oportunidade de adentrarmos num universo de reflexões pautado por pesquisas cujo recurso documental privilegiado é o das narrativas orais. Preocupada em situar o campo da história oral como modalidade de história social, a autora desenvolve seu argumento a partir de três problemáticas que, a seu ver, são as mais prementes e recorrentes entre pesquisadores que trabalham com testemunhos orais: o debate em torno das questões de memória e identidade; do tempo; e do papel do sujeito no fazer histórico. Tendo sempre o cuidado de invocar alguns dos autores mais relevantes para esse debate, a Profa. Patricia Pensado, entretanto, enriquece sobremaneira sua exposição mediante o recurso a extratos de relatos orais produzidos em suas pesquisas. Resulta deste esforço um texto marcado pelo propósito de aprofundar uma reflexão de caráter mais geral a partir de experiências efetivas de pesquisa. Em outras palavras, como conclui a autora, “el hecho de recordar, la oportunidad de que se suscite la memoria de su pasado mediante la historia oral le ofrece una nueva ocasión no sólo para la reflexión de lo vivido sino también para su interpretación contando con una visión más amplia y profunda de los tiempos aciagos que a todo los seres humanos experimentamos al vivir”.

Na sequência, o leitor encontrará o artigo da Profa. Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco, que focaliza as estratégias adotadas pela Câmara de Olinda quanto à utilização do legado pecuniário pertencente aos órfãos da capitania de Pernambuco, que se encontrava sob a sua guarda. A autora, historiadora especialista em paleografia, muito contribui neste texto para analisar as relações entre o conhecimento histórico e as práticas de leitura paleográficas, atendo-se a um conjunto de questões teóricas e métodos, que visa a escrita da história.

A seção dossiê se encerra com o artigo Três possibilidades metodológicas de estudo aplicadas à analise de casos em áreas de fronteira no interior do Brasil, de autoria dos Profs. Leonice Aparecida de Fátima Alves, Vitale Joanoni Neto e João Carlos Barrozo (todos da Universidade Federal de Mato Grosso), no qual são explorados variados recursos teóricometodológicos voltados para pesquisas dirigidas ao mundo rural, aos processos de migrações e ocupação do interior do território brasileiro, às políticas de colonização postas em prática pelo Estado brasileiro. Em consonância com os diferentes aportes teórico-metodológicos, são apresentadas as estratégias de pesquisa e acervos documentais correlatos. Assim, temos desde uma “reflexão sobre o papel dos periódicos nas áreas de colonização no Mato Grosso”, que possibilita compreender o uso destas publicações por moradores de áreas de fronteira, e as maneiras “como registram seu cotidiano, como se representam, como dizem de si, de seus desafetos, como se relacionam com o meio, seus estranhamentos e das estratégias para superar as dificuldades encontradas”; passando pelo uso de determinada estratégia metodológica, a construção de portraits, “que permite a compreensão das trajetórias dos indivíduos a partir dos dados coletados em questionários e entrevistas biográficas”; para, por fim, se debruçar “acerca da utilização de fontes legislativas federais e estaduais para compreensão do processo de colonização”. Como resultado, temos um texto que se abre em leque para diferentes formas de tratamento e enfrentamento de questões recorrentes quando se debruça sobre áreas de fronteira agrícola.

Na seção de artigos livres, temos o artigo assinado pelo Prof. Flávio Weinstein Teixeira (Universidade Federal de Pernambuco), Recife: notas em torno da gênese de um campo cultural, que apresenta um painel dos debates intelectuais e culturais no Recife dos anos 1920-50. Recorrendo à noção de campo em Bourdieu, o autor procura evidenciar as linhas de força, as sociabilidades letradas, bem como os espaços de reconhecimento e consagração do fazer artístico / intelectual que, em diálogo do que ocorria em âmbito nacional, resultaram em uma dinâmica própria e específica ao campo cultural do Recife. Para tanto, dá especial atenção à atuação de um grupo teatral local (TEP – Teatro dos Estudantes de Pernambuco) e à sua contribuição para a renovação das práticas artísticas e intelectuais.

Em seguida, temos o artigo do Prof. João Carlos Barrozo (Universidade Federal de Mato Grosso), A colonização em Mato Grosso como “portão de escape” para a crise agrária no Rio Grande do Sul, que que apresenta um expressivo painel dos inúmeros conflitos e movimentos rurais que desde os anos 1950 até a década de 1970 colocaram a disputa pela terra no centro da agenda nacional, além de, simultaneamente, aprofundar esse debate a partir de uma reflexão que, como o próprio título enuncia, procura compreender a colonização no Mato Grosso à luz da aguda crise que engolfava essa outra região de antiga e intensa ocupação rural – o Rio Grande do Sul. Conforme esclarece, as políticas adotadas pelos governos militares para a grave crise agrária e agrícola no Rio Grande do Sul, baseadas em dois pilares (“remembramento dos minifúndios no Rio Grande do Sul, e colonização por empresas ou cooperativas de colonização”), tiveram sucesso muito relativo. Mais importante, porém, que evidenciar os meandros de tais políticas, parece ser a abordagem dada pelo autor à questão, que relaciona as muitas e diversas experiências rurais do país em análise mais englobante e apropriada para compreender as forças e disputas em jogo.

Fechando este número da Clio, o Prof. Antonio Paulo Rezende (Universidade Federal de Pernambuco), em seu artigo Itinerários de um historiador: as portas entreabertas, nos apresenta sua trajetória de formação e de afirmação de um fazer historiográfico. Os itinerários apresentados pelo autor tanto dizem de sua trajetória pessoal, sua formação profissional, quanto, no que expõem as temáticas trabalhadas, os autores com quem dialogou, os enfoques, os privilegiamentos teórico-metodológicos, possibilitam, igualmente, visualizar algumas das veredas percorridas pela historiografia brasileira nos últimos 30 anos. Uma obra que se desdobra em muitas outras. Um fazer que é um permanente refazer, um constante exercício de repensar a prática historiadora. Uma escrita que tensiona e se aventura, que explora algumas das fronteiras do dizer e do pensar histórico. Um artigo, em suma, que à sua maneira percorre uns quantos pontos nodais que tanto tem mobilizado a atenção dos historiadores nas últimas décadas.

Em face do exposto, tendo em vista a proposta desta edição da revista Clio, os textos apresentados desenham um amplo mosaico de temas e problemas que se desdobram em referências teóricas fundamentais para lidarmos com as práticas de pesquisa. Contudo, tecer as histórias depende de uma ampla mobilização metodológica a fim de montar o quebracabeça que a discussão crítica de cada tema envolve, observando os limites do conhecimento histórico. Pois se entende que as teorias e as citações documentais não trazem implícitas as histórias e, portanto, não eximem o historiador de analisar ponto a ponto os diversos sinais e indícios que oferecem. O relato que se apresenta, em cada artigo, no movimento de ocupar o lugar do passado no presente é resultado de múltiplas operações como os capítulos dessa coletânea demonstraram. Sendo assim, agradecemos aos autores a sua generosidade para debater conosco diferentes experiências historiográficas.

Nota

1. “Introducción”. In: Luís Gerardo Morales Moreno (compilador) Historia de La historiografia contemporânea (de 1968 a nuestros dias). Cidade do México: Instituto Mora, 2005, p.12.

Regina Beatriz Guimarães Neto – Universidade Federal de Pernambuco


GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História das Américas: fontes e historiografia / História Unisinos / 2014

Este dossiê foi organizado a fim de estimular reflexões sobre história e historiografia das Américas, campo que, talvez pelas dificuldades que apresenta, não encontra no Brasil o mesmo desenvolvimento verificado em outras áreas de estudo. As dificuldades a que nos referimos podem ser observadas em vários aspectos, mas saltam à vista, sem dúvida, quando se nota a enorme amplitude circunscrita pelo conjunto denominado “Américas”. Do Canadá à Patagônia, da Nova Inglaterra a Santiago, os processos históricos e os estudos historiográficos se multiplicam a cada momento. De fato, são poucos os trabalhos que se propõem a realizar uma história colonial do continente em sua integridade. Mesmo textos clássicos como os de John H. Elliott, Empires of the Atlantic World (2006), e David Brading, Th e First America (1991), por exemplo, optaram por não abordar sistematicamente a América portuguesa.

Ademais, e aqui reside outra dificuldade, sempre há a tentação de se analisar a época moderna nas Américas por meio de perspectivas nacionalistas. Não raro encontramos pesquisas cuja área de interesse é definida por palavras-chave eloquentes, a exemplo de “História colonial do México” ou “História da Argentina colonial”, o que é compreensível. É realmente mais cômodo dizer a um leigo, ou ao colega interessado em sua pesquisa, que você estuda o “Chile colonial” do que explicar que se trata de uma análise dos súditos castelhanos na cidade de Santiago e de suas relações com os nativos da região em meados do século XVII. Porém, eficazes como recurso didático para contextualizar o objeto de estudo, tais expressões não podem obscurecer a reflexão a respeito do tempo e do refinamento necessário aos historiadores para evitar anacronismos e o viés teleológico. No limite, o recorte nacionalista pouco contribui para a elucidação de processos históricos, que podem ser mais bem compreendidos à luz de conexões que não se conformam aos marcos dos estados-nação, mas, ao contrário, colocam em tela espaços mais amplos.

Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, alguns dos trabalhos que compõem este dossiê enfrentaram o desafio de propor reflexões para escalas de análise bastante ampliadas, pensando, inclusive, em termos de uma história atlântica ou de conexões atlânticas para compreensão da história americana. Tal é o caso dos dois artigos que abrem este número de História Unisinos. Abismos de la memoria: escritura y descubrimientos oceánicos. Una aproximación metodológica, artigo de Carlos Alberto González Sánchez, propõe ao leitor uma reflexão metodológica sobre os escritos elaborados durante os descobrimentos. Tais fontes, amplamente conhecidas pelos historiadores, permitem ao autor ir além dos “usos tangenciais” que dela se tem feito e indagar acerca da cultura escrita e de práticas culturais e intelectuais constituídas com a expansão ibérica.

O aporte metodológico do primeiro artigo é complementado pela proposta conceitual do segundo. A tradução para o português de Th ree Concepts of Atlantic History, de David Armitage, traz ao público brasileiro um texto repleto tanto de boas perguntas quanto de respostas instigantes. “Podem os historiadores ter esperanças de serem capazes de dizer qualquer coisa substancial sobre uma história que, em sua forma mais expansiva, conecta quatro continentes ao longo de cinco séculos?”. Para buscar respostas a essa e a outras questões, Armitage propõe três abordagens espacial e temporalmente diferenciadas – História Circum-Atlântica, História Trans-Atlântica e História Cis-Atlântica – que, sem ser excludentes, podem propiciar as condições para a escrita de uma história tridimensional do mundo Atlântico.

Da mesma maneira que pensar a historiografia sobre as Américas implica considerar os problemas de escala, os historiadores também devem ter em conta as diversas “camadas” interpretativas que se construíram ao longo de cinco séculos. Há que se considerar que a escrita da História das Américas assumiu formas diversas, acompanhando mudanças heurísticas e paradigmáticas advindas de debates teóricos, epistemológicos e historiográficos que sacudiram, com impactos ora moderados ora radicais, a própria ciência e suas certezas. Na formação desse maciço de interpretações, tanto a escolha das fontes como a opção por determinado aparato conceitual no momento de atribuir sentidos aos fatos são reveladores dos diferentes lugares ocupados pelos historiadores.

Talvez um exemplo notável seja o aparecimento, nos anos 1950, de uma corrente historiográfica na América Latina que, ao recontar os episódios da conquista e colonização, pretendia dar voz aos vencidos, aos indígenas. As discussões sobre o lugar dos latino-americanos na conjuntura política da época; os debates mais amplos em torno da descolonização no pós-guerra; os refinamentos da história social; as críticas às visões de mundo eurocêntricas: de um modo ou de outro, esse conjunto contribuía para a mudança de visada proposta por historiadores como Miguel León Portilla (2007) e Nathan Wachtel (1977). Pois é justamente com esse projeto historiográfico de dar à luz “o reverso da história” que dialoga o artigo de Eduardo Natalino dos Santos, As conquistas de México-Tenochtitlan e da Nova Espanha. Guerras e alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas.

Partindo dos pressupostos da “história dos vencidos”, apropriadas mais tarde (a partir de finais da década de 1970) pelos intérpretes da mestiçagem e do hibridismo coloniais, Eduardo N. dos Santos retoma o tema clássico da conquista do México valendo-se de outros documentos e de sentidos diferentes. Ao ampliar o rol de fontes e fundamentar sua análise em escritos nahuas, tais como o Lienzo de Tlaxcala, o Lienzo de Cuauhquechollan e o Códice Vaticano A, Santos sustenta que as guerras e alianças ocorridas entre castelhanos e cidades mesoamericanas nos anos da conquista serviram de gatilho para as ações políticas e militares posteriores, que colocaram espanhóis e indígenas lado a lado durante a expansão castelhano-nahua pela Nova Espanha. Ao defender tal argumento, o artigo recoloca o debate sobre a interpretação que considerou “vencidos” a todos os ameríndios, de modo indistinto. E ainda, de maneira igualmente importante, estimula uma reflexão sobre o equívoco de analisarmos os processos históricos iniciados em 1492 com base em uma divisão essencialista entre índios e brancos.

A exemplo dos códices acima referidos, ao longo do período colonial produziram-se registros de várias naturezas sobre as experiências vividas no Novo Mundo: o contato com os indígenas, a montagem dos mecanismos administrativos, as experiências de catequese, as revoltas e rebeliões, o cotidiano, dissensões e acordos, as guerras etc. Os autores desses relatos foram, em muitos casos, religiosos, funcionários da burocracia, indígenas educados em colégios, soldados, e toda sorte de pessoas alfabetizadas em um mundo profundamente iletrado. As crônicas, histórias, descripciones, sumários, relações, memórias etc. constituem um corpus documental privilegiado, tanto por aquilo que elas informam como pelo modo como o fazem.

Essa dupla dimensão analítica, isto é, envolvendo conteúdo e forma, é ressaltada em “Ciegos o enganados”: narrativas sobre a conquista espiritual do Norte da Nova Espanha (séculos XVII e XVIII), artigo assinado por Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Luis Guilherme Kalil. Nesse texto, os autores partem de relatos elaborados por missionários franciscanos e jesuítas a fi m de compreender as representações construídas pelos religiosos sobre os ameríndios das regiões ao norte do vice-reino da Nova Espanha. Ao evitar a armadilha de apontar o que é realmente indígena e o que é de fato europeu naquelas fontes, o artigo reflete sobre as estratégias retóricas e modelos narrativos empregados pelos cronistas, sublinhando dois eixos analíticos, já implícitos em seu próprio título, observados em relação a um par antitético: ação demoníaca / providência divina em contraposição a agência humana / livre-arbítrio. Com isso, os autores movem-se entre os relatos deixados pelos missionários e os lugares (sociais, institucionais, temporais) por eles ocupados, em uma dinâmica cuja compreensão pode ampliar o entendimento que temos sobre a chamada conquista espiritual do norte da Nova Espanha e acerca de algumas características dos grupos ameríndios daquela região.

Enquanto os missionários analisados por Luiz Estevam e Luis Guilherme narravam seus sucessos e vicissitudes entre o bem e o mal na América, podiam-se observar algumas mudanças na percepção da “historiografia” europeia sobre o Novo Mundo, no século XVIII, especialmente no que se referia aos relatos coloniais, que foram alvos de fortes críticas. Escrever uma nova História da América tornou-se o eixo central da renovação cultural promovida pelos Bourbon, mas também houve mudanças na visão lançada desde a Europa do Norte, o que gerou respostas americanas. Estamos nos referindo ao que se convencionou denominar “Polêmica do Novo Mundo”. Em linhas gerais, podemos afirmar que se passou a privilegiar, como fontes primárias, os dados produzidos pela burocracia da administração das colônias, as chamadas “fontes públicas” em detrimento do conjunto de escritos elaborados por diferentes agentes.

O artigo de Alexandre Camera Varella, A queda do homem civil: os antigos mexicanos e peruanos na “History of America” de William Robertson, analisa o livro produzido em 1777 pelo historiador escocês, justamente no seio desta “querela de América”. A obra de Robertson teve forte repercussão na época em que foi escrita, tendo sido avidamente procurada pelo público leitor e disputada pelos editores que competiam por seus escritos. Sua produção deu-se em conexão com uma série de escritos que renovavam os estudos sobre a história do Novo Mundo. Desta forma, Varella conduz em seu artigo uma discussão das análises de Robertson acerca do estado de coesão social das populações indígenas do Novo Mundo, bem como de suas apreciações sobre os obstáculos enfrentados por mexicanos e peruanos para alcançarem uma vida civil em plenitude.

Ainda no que se refere a fontes do século XVIII, o dossiê traz o artigo de Márcia Eliane Souza e Mello, que se ocupa da análise de um conjunto documental bastante frequentado pelos historiadores do século XX: os processos inquisitoriais. A autora de Inquisição na Amazônia colonial: reflexões metodológicas discute questões relativas ao tratamento analítico de fontes inquisitoriais, apresentando uma experiência de pesquisa quantitativa sobre a atuação do Tribunal do Santo Ofício no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Márcia Mello reconhece entre alguns trabalhos atuais acerca da Inquisição uma tendência em seguir os parâmetros analíticos da produção clássica sobre o tema, não contemplando, na medida desejada, os contextos e realidades coloniais, isto é, as especificidades locais dos casos analisados. Para a autora, é importante não tratar as fontes inquisitoriais como “conjuntos isolados”, mas sim, na medida do possível, cruzar dados e “criar novas visões a partir do objeto e dos problemas que o historiador formula para sua pesquisa”, postura que potencializaria o “estudo de variados temas que têm como pano de fundo as relações sociais, como a escravidão, as práticas religiosas, os intercâmbios culturais e as redes de poder, etc.”.

O artigo de Guillermo Wilde, Adaptaciones y apropiaciones en una cultura textual de frontera: impresos misionales del Paraguay Jesuítico, por sua vez nos apresenta a análise de um conjunto de impressos nas missões guaranis do Paraguai, os quais ele indica que vêm a ser apenas uma parcela do importante do universo textual missionário que se encontra disperso em bibliotecas e arquivos de diversas partes do mundo. Incitado pelos estudos que têm, nos últimos anos, aprofundado e renovado a “história dos livros”, Wilde retoma algumas interpretações e propõe fecundas linhas de investigação deste corpus. O autor indaga, assim, sobre as características dos impressos missionais, suas circunstâncias de produção, as informações que eles nos oferecem e sobre a operação que os transforma em fontes documentais para o estudo da cultura missional, entre outros aspectos.

Ao propor uma tipologia preliminar que distingue três orientações entre tais impressos, o autor avalia que ela deve ser considerada como “um ponto de partida” para o estudo dos usos sociais dos impressos missionários, o qual se relaciona com os quadros de uma história cultural mais ampla. Neste sentido, é preciso ter em conta a inserção de tais textos junto a outros suportes da memória missional (como as imagens ou a música), e a relação entre os textos (ou a escrita) e a oralidade. Mas, também, a relação entre conjuntos missionais de diferentes áreas (Peru e Paraguai, por exemplo), a qual era facilitada pela circulação de jesuítas. Finalmente, Guillermo Wilde destaca a importância de considerarmos a circulação intercontinental de impressos e a formação de bibliotecas missionais, evidenciando a riqueza do tema para romper com as anacrônicas divisões entre espaços de análise, que indicamos mais acima.

Iniciamos a apresentação deste dossiê apontando a escassez de estudos que procurem desafiar uma historiografia que convencionalmente aceitou, como categoria analítica, a divisão entre os impérios luso e hispânico, ou ainda, as fronteiras nacionais que emergiram dos processos de independência nas Américas do século XIX. Assim como o trabalho de Wilde, também o texto de Tiago Gil, Elites locais e changadores no mercado atlântico de couros (Rio Grande e Soriano, 1780-1810), desvela uma importante contribuição para pensarmos em outras possibilidades analíticas. Neste último caso, trata-se de um estudo que propõe a análise do desenvolvimento e manutenção de redes que envolviam o comércio de couros, tabaco, aguardente e escravos alinhavando pontos entre Buenos Aires, Rio de Janeiro, Lisboa e Madri. Mais ainda, afinado com as orientações recentes da história social, o artigo discute as estratégias sociais de criação dessas redes envolvendo toda uma gama de sujeitos, entre os quais estavam negociantes e as elites locais, mas também peões, escravos, marinheiros, e os chamados changadores, sobre os quais o autor se interessa particularmente.

A revista traz ainda uma entrevista com a historiadora Patrícia Seed, bastante conhecida do público brasileiro por sua obra Cerimônias de posse na conquista europeia do Novo Mundo (Seed, 2000) produzida em 1995 e publicada no Brasil em 2000. Especialista em história da cartografia e da navegação, Seed dedicou-se, em boa parte da sua carreira, ao estudo do início da era moderna e da colonização europeia do Novo Mundo, especialmente em relação às culturas ibéricas. Ao longo da entrevista, Seed discorreu, entre outras coisas, sobre seus temas de investigação e sobre as opções teórico-metodológicas que orientam suas pesquisas. Avaliou, também, a repercussão alcançada por sua obra mais conhecida às vésperas do vigésimo ano de sua publicação.

O dossiê História das Américas: fontes e historiografia oportuniza, pois, aos interessados um conjunto de trabalhos que aceitaram o desafio de produzir uma reflexão sobre as diversas maneiras de se escrever história nas Américas, os intercâmbios eruditos e os tipos de crítica documental (além do próprio estatuto do que é considerado documento). Mas, também, sobre a publicação, circulação e as formas de leitura do texto historiográfico, desde os tempos coloniais até a produção mais recente sobre o continente. Juntamente com os editores e autores do presente número da revista História Unisinos, a quem agradecemos pelas valiosas contribuições, esperamos (e desejamos) que este dossiê possa ser um aporte ao campo dos que se dedicam à história americana, e que ele estimule outras publicações de mesma natureza.

Referências

BRADING, D.A. 1991. The first America. The Spanish Monarchy, Creoles Patriots and the Liberal State, 1492-1867. Cambridge, Cambridge University Press, 761 p.

ELLIOT, J. 2006. Empires of the Atlantic World. Britain and Spain in America, 1492-1830. New Haven, Yale University Press, 560 p.

LEÓN PORTILLA, M. 2007 [1959]. Visión de los vencidos. Relatos indígenas de la conquista. México, UNAM, 312 p.

SEED, P. 2000. Cerimônias de posse na conquista europeia do Novo Mundo (1492-1640). São Paulo, Unesp, 279 p.

WACHTEL, N. 1977 [1971]. La vision des vaincus. Les indiens du Pérou devant la Conquête espagnole (1530-1570). Paris, Gallimard, 395 p.

Anderson Roberti dos Reis – Universidade Federal de Mato Grosso

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos


REIS, Anderson Roberti dos; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.18, n.2., maio / agosto, 2014. Acessar publicação original [DR]

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A ditadura brasileira: história e historiografia / História Unisinos / 2014

O golpe de 1964 inaugurou novo período na História do Brasil, ao dar origem a regime autoritário que deixou marcas profundas em nossa sociedade. A ditadura significou uma ruptura com o período anterior, porém, em alguns aspectos ela representou também uma continuidade em relação a certas tradições arraigadas. Os militares e seus aliados civis implantaram um regime político marcado por outros paradoxos, para além da combinação entre rupturas e continuidades. A ditadura construiu um Estado ao mesmo tempo conservador e modernizador, em que ações de repressão aguda – como tortura, mortes e desaparecimentos – se combinaram com estratégias de acomodação envolvendo segmentos das elites sociais e intelectuais. Simultaneamente à construção de notável máquina repressiva e de instrumentos legais visando a garantir o poder autoritário, que trouxeram agruras para parte da sociedade e alimentaram o desejo de resistir, a ditadura deslanchou grande projeto de modernização econômica e tecnológica, que contribuiu para atrair o apoio de outros segmentos sociais.

O estudo desse processo recente, cuja complexidade implica inúmeros desafios para os pesquisadores, coloca em jogo as relações entre História e Memória, e seus distintos regimes de verdade e de aproximação / afastamento em relação ao passado. Além dos desafios impostos pela presença forte da memória, neste terreno os historiadores encontram-se diante da produção proveniente de outros campos do conhecimento, em especial as Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Economia), e o jornalismo, para não falar da participação cada vez maior dos profissionais do direito. Não obstante o caráter saudável desses múltiplos olhares e perspectivas, que só podem contribuir para um conhecimento mais amplo e profundo do tema, deve-se destacar – e estimular – a atuação dos historiadores no campo escorregadio e perigoso dessa história recente. Os profissionais da História têm importante contribuição a oferecer na construção de representações sobre o passado autoritário recente: lançando mão do devido aparato teórico e metodológico, e armados ao mesmo tempo de distanciamento crítico e responsabilidade cívica, os historiadores são agentes importantes na busca da verdade possível. Por isso, devem assumir lugar de destaque nos debates em que têm pontuado jornalistas, cientistas sociais, profissionais de direito e políticos.

Apesar das reticências dos que ainda consideram que à História cabe estudar apenas as sociedades mais recuadas no tempo, é cada vez maior o número de jovens pesquisadores interessados no passado recente. Entre os fatores que estimulam a realização de novas investigações vale a pena destacar o interesse público atual pelo tema, em que chamam a atenção as atividades de entidades criadas para investigar a violação dos direitos humanos durante a ditadura e estabelecer a verdade sobre tais processos. Por outro lado, há um dado característico do Brasil que favorece o incremento no número de pesquisadores dedicados à ditadura: o grande volume de acervos documentais relativos ao período, em que pese o fato de alguns arquivos ainda estarem indisponíveis, sobretudo os de agências militares. Esses volumosos acervos vão irrigar numerosas pesquisas por largo período de tempo, o que nos faz lembrar que os historiadores continuarão por muitos anos ainda a estudar tais questões, mesmo depois que tenha passado a atual urgência política pela investigação dos crimes praticados pela ditadura e seus agentes.

Partindo de tais pressupostos, quais sejam, a valorização da produção historiográfica e a preocupação de estimular mais investigações sobre o tema, especialmente despertando o interesse dos jovens, organizamos este dossiê “A ditadura brasileira: história e historiografia”. O propósito era reunir contribuições de historiadores e cientistas sociais situados na “linha de frente” da produção acadêmica sobre a ditadura, e fomos bem sucedidos. Conseguimos atrair o interesse de um seleto grupo de pesquisadores, com trabalhos originais sobre aspectos importantes da história da ditadura. Os textos reunidos no dossiê oferecem diferentes abordagens sobre o tema e disponibilizam para os leitores um painel amplo, e atual, sobre os caminhos que a historiografia dedicada ao regime militar vêm trilhando.

O artigo A breve primavera antes do longo inverno: uma cartografia história da cultura brasileira antes do golpe de Estado de 1964, de Marcos Napolitano, que abre o dossiê, explora criticamente a cena cultural dos anos 1950 e 1960 situando as principais questões postas pela análise e estudo da produção cultural e artística do período, com especial atenção para a década de cinquenta, ainda pouco estudada. Sob inspiração teórica de Raymond Willams, o autor faz uma reflexão sobre as diferentes formações culturais brasileiras que atuavam naquele contexto, bem como seu potencial de interação, sem perder de vista suas contradições e ambiguidades. Expõe os limites analíticos das categorias consagradas pela história política para pensar os projetos e a renovação estética da época, o que implica repensar a articulação entre cultura e política sob novas bases. Cabe destacar que, ao retomar a discussão sobre os grandes projetos culturais abordando tendências e os problemas envolvendo o processo de entrecruzamento das diferentes tradições na cena cultural brasileira do período, o autor vai indicando, de modo inspirador e generoso, aspectos que necessitam de pesquisa e de aprofundamento analítico e reflexivo.

O artigo de Mariana Joffi ly e Maud Chirio intitulado A repressão condecorada: a atribuição da Medalha do Pacificador a agentes do aparato de segurança (1964 – 1985) revela como agentes envolvidos e responsáveis pelo funcionamento do aparato repressivo dos governos militares foram distinguidos pelo Exército Brasileiro. As autoras abordam analítica e reflexivamente os critérios e significados envolvidos na atribuição dessa comenda, afinal, a Medalha do Pacificador foi distribuída condecorando diversos indivíduos que participaram diretamente da violência política que caracterizou a ditadura militar brasileira. Uma pesquisa minuciosa, com amplo cruzamento de informações, fornece as bases para as conclusões das autoras, permitindo, inclusive, estabelecer a expressão numérica e a relevância dessa condecoração entre os agentes diretos da repressão, bem como o perfil dos militares envolvidos.

Janaina de Almeida Teles no artigo Os segredos e os mitos sobre a guerrilha do Araguaia (1972 – 1974) nos situa em um novo universo para pensar o impacto da atuação dos guerrilheiros, seja em meio às populações rurais do sudeste do Pará, seja no confronto com os soldados que integravam as forças de combate. As representações simbólicas que foram mobilizadas para explicar e dar sentido à presença e permanência dos guerrilheiros na região são o foco de atenção da autora. A partir de entrevistas com guerrilheiros e camponeses da região do Araguaia, ela conseguiu recompor os mitos envolvendo os guerrilheiros, dando destaque a dois deles neste artigo, os quais foram cuidadosamente examinados e cotejados em sua articulação com os mitos amazônicos. O universo simbólico delineado pelas entrevistas e explorado à luz da mitologia amazônica permite que tenhamos a percepção dos sentimentos que mesclavam as relações entre a população local e os guerrilheiros. Em contraponto, Teles discute as representações inauguradas pelos programas e novelas produzidos no âmbito das redes de TV, explorando a compreensão que a chave midiática construiu e divulgou a respeito dos guerrilheiros.

O artigo Intelectuais, literatura e imprensa no pós-golpe, de autoria de Rodrigo Czajka, traz uma reflexão sobre os espaços editoriais existentes no quadro da ditadura e que estavam envolvidos no campo da resistência e do engajamento político. Discute a difusão do vocabulário e do ideário de esquerda no contexto de constituição de um mercado consumidor de cultura, em um momento significativo de reflexão e gestação de debates sobre a realidade nacional. Aborda aspectos e questões presentes na formação desse debate público sobre os rumos da vida nacional, bem como sobre o papel e a inserção da intelectualidade e sua produção cultural no novo contexto repressivo. Destaca especialmente as discussões veiculadas nas páginas da Revista Civilização Brasileira, tematizando e explorando, entre outras questões, o embate entre Paulo Francis e Ferreira Gullar e o seu significado para a compreensão dos conflitos intelectuais existentes entre as formações culturais de esquerda.

Os oficiais brasileiros da reserva e a defesa da memória institucional do “31 de março de 1964” é o título do artigo apresentado por Fernando da Silva Rodrigues e Claudio Beserra de Vasconcelos como contribuição para este dossiê. Os autores problematizam importante questão ao tratar da construção e preservação da memória oficial a respeito do golpe militar e da instalação da ditadura, enfocando especialmente os agentes e as iniciativas que, mesmo no contexto da redemocratização, ainda se esforçam para a (re)construção desta memória, tanto dos acontecimentos que consideram implicados no golpe de 1964, como de todo o período ditatorial, até 1985. Detalhada análise dos informativos do Centro de Comunicação Social do Exército é apresentada e subsidia a análise da batalha das memórias implementada desde 1964. Os autores abordam o papel dos Clubes Militares na manutenção dessa memória institucional, bem como a sua difusão e recepção nos modernos meios de comunicação. Enfocam ainda a atualidade e abrangência desse debate político, cujo alcance e relevância pode ser dimensionado pela institucionalização e funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

Por fim, o artigo Intelectuais conservadores, sociabilidade e práticas da imortalidade: a Academia Brasileira de Letras durante da ditadura militar (1964 – 1979) de Diogo Cunha discute o papel da Academia Brasileira de Letras a partir da análise de três práticas características do funcionamento desta instituição, que são as cerimônias de posse, as visitas que os “imortais” recebiam e as homenagens que permitiram abordar a maneira como uma memória oficial era construída no interior da instituição. Especial destaque foi dado às candidaturas e disputas envolvendo algumas eleições, bem como ao ritual de posse dos novos membros, sendo duas cerimônias de posse selecionadas para análise detalhada, pois reveladoras dos vínculos e aproximações com os governos militares. Os interesses e a forma de atuação dos presidentes da Academia Brasileira de Letras também são examinados e mereceram a atenção do autor. As visitas destacadas permitem compreender a dinâmica das relações e a sociabilidade no cotidiano da ABL, que permanecia um lugar de consagração intelectual e sociabilidade política entre as elites conservadoras.

Marluza Marques Harres

Rodrigo Patto Sá Motta


HARRES, Marluza Marques; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.18, n.3., setembro / dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica / Faces da História / 2014

História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica na historiografia

Em seu segundo número, a revista Faces da História apresenta o dossiê História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica.

As interfaces entre história e filosofia sempre se deram de forma mista: por vezes com importantes e produtivas interações; em outros momentos, todavia, uma surdez mútua ou mesmo rejeições caracterizaram esse difícil convívio.

Na historiografia contemporânea, dois importantes filósofos contribuem para a emergência de novas formas de diálogo entre os profissionais de ambas as disciplinas: Michel Foucault e Paul Ricoeur. A genealogia foucaultiana e a hermenêutica ricoeuriana constituem hoje importantes referenciais aos historiadores que se dedicam a uma reflexão crítica dos fundamentos históricos, epistemológicos, políticos e éticos que envolvem a produção e a recepção de um texto historiográfico.

Os trabalhos desenvolvidos por Michel Foucault buscaram, na esteira da genealogia nietzscheana, descrever as relações históricas entre saber e poder. Sua relação com os historiadores inicia-se desde a publicação de seu primeiro livro, História da Loucura na idade clássica, que, um ano após sua publicação, em 1962, recebeu uma resenha junto ao periódico então intitulado Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, assinada por Robert Mandrou e Fernand Braudel. Esta relação se intensificou, principalmente, após a década de 1970, com a chamada terceira geração dos Annales. Se, por um lado, historiadores como Jacques Le Goff e Paul Veyne procuraram exaltar os textos de Foucault como um novo modo de pensar e escrever a história, por outro, historiadores como François Dosse e Carlo Ginzburg, por exemplo, não pouparam críticas às suas arqueologias e genealogias, sublinhando que elas possuíam caráter profuso e estetizante.

Ainda que a filosofia foucaultiana não tenha estabelecido bases teórico-metodológicas a serem seguidas, é inegável a presença desse pensamento permeando as discussões recentes tanto em torno do estatuto do saber historiográfico quanto contribuindo com problemas à prática de produção do conhecimento histórico; um uso como caixa de ferramentas, tal como o próprio Foucault propunha a leitura de seus trabalhos.

Quanto a Paul Ricoeur, após a publicação de Tempo e Narrativa (1983- 1985) e, principalmente, após A memória, a história, o esquecimento (2000), sua filosofia tornou-se mais conhecida entre os historiadores, ainda que a apropriação desta pela história seja bastante variável. Autores como Roger Chartier, François Hartog e Antoine Prost referem-se à filosofia ricoeuriana para debater questões ligadas às conexões e divergências entre memória e história, ao papel da narração em história, e para defender o discurso histórico enquanto produção que almeja a verdade, em oposição aos referentes ficcionais. Contudo, essa apropriação se dá ainda de forma parcial, cheia de reticências. Já outros historiadores como François Dosse, Patrick Garcia e Christian Delacroix concedem um espaço bem maior para a filosofia ricoeuriana: o pluralismo interpretativo, o círculo mimético e a hermenêutica histórica tornam-se referenciais em nível fundamental para a produção do conhecimento histórico com estes autores. As apropriações, críticas e dissociações entre a filosofia de Ricoeur e os historiadores são múltiplas e desiguais.

Genealogia e hermenêutica, portanto, tornam-se duas efêmeras rubricas. Elas cumprem o esforço de construir uma direção, ainda que provisória, a um conjunto de relações diversificadas entre a filosofia e a história. Relações estas que não se fiam somente nas figuras de Foucault e Ricouer.

Poderíamos, diacronicamente, nos remeter também aos diálogos e críticas de Friedrich Nietzsche a Friedrich Schleiermacher, aos debates suscitados por Wilhelm Dilthey, à crítica documental da escola metódica, à sociologia de Max Weber, às leituras desiguais da obra de Martin Heidegger por Hans-Georg Gadamer e pelos próprios Michel Foucault e Paul Ricoeur, a filosofia de Gilles Deleuze; enfim, as ressonâncias entre genealogia, hermenêutica, História e Filosofia são inúmeras e fundamentais para a historiografia contemporânea.

Os quatro artigos reunidos neste dossiê, assim, demonstram o quão múltiplas são as temáticas e as abordagens possíveis.

De início, temos a contribuição de Fabrício Pinto Monteiro que, a partir das memórias de alguns autores / militantes do chamado anarquismo pós-estruturalista, procura pensar as interfaces entre propostas políticas e formas de escrita da história. Para isso, perpassa pelas narrativas de diversos autores – cuja orientação política se alinha a essa renovação da política ácrata emergente na segunda metade do século XX -, e destaca a importância que os pensamentos de Max Stirner, Friedrich Nietzsche e Michel Foucault tiveram na constituição dos trabalhos desses intelectuais.

As relações entre a intelectualidade e a sociedade são o principal eixo da reflexão desenvolvida por Diogo Quirim. O autor propõe discutir o papel do intelectual a partir de uma perspectiva que não o aparte de sua imersão na sociedade e no tempo. O texto perfaz um duplo movimento: em primeiro lugar, o autor se debruça sobre o mito da caverna, de Platão, e sugere, como alternativa a esta imagem, a noção de kairós – oportunidade, ocasião ou circunstância particular -, de Isócrates, que propõe uma filosofia que não precisaria afastar- se da multidão para ter sua legitimidade; em seguida, esse debate é atualizado em função das diferentes formas pelas quais Carlo Ginzburg e Dominick LaCapra compreendem a historiografia.

Lucas Almeida Pereira, em seu texto O ser e a história: Uma análise da ontologia histórica em A memória, a história, o esquecimento de Paul Ricoeur, trata de um tema essencial para a historiografia contemporânea: a ontologia histórica de Ricoeur. Os debates epistemológicos dos historiadores há muito contornam as questões ontológicas, seja em função do distanciamento que se estabeleceu entre história e filosofia ao longo do século passado, seja para evitar os conflitos relacionados às teorias da história. O autor aborda com bastante clareza os temas da memória, narrativa, ontologia e representância na filosofia de Ricoeur e apresenta as possibilidades abertas por esses debates aos historiadores de ofício.

O artigo intitulado O Conceito Dialético de Interpretação na Filosofia Hermenêutica de Paul Ricoeur, de Filipe Caldas O. Passos, organiza-se em torno da filosofia de Ricoeur e da forma como ela abre espaço para vários níveis de análise, diferenciando-se por isso tanto da tradição hermenêutica quanto da tradição crítica. Demonstra tal objetivo a partir de certo elo que Ricoeur estabelece entre epistemologia e ontologia, tendo como foco o conceito de interpretação e os níveis dialéticos relativos a essa operação.

Além desses quatro artigos, João Rodolfo Munhoz Ohara nos apresenta sua tradução ao texto Tudo está estremecido: por que a filosofia da história floresce em tempos de crise?, de Hermann Paul – professor de Teoria da História da Universidade de Leiden, Holanda.

Por fim, o dossiê encerra-se com a entrevista do professor Dr. José Carlos Reis. Professor da Universidade Federal de Minas Gerias e com uma vasta contribuição bibliográfica às áreas de Teoria e Filosofia da História e História da Historiografia, Reis aborda o tema com o conhecimento de quem se dedica já há um bom à área. As questões abordadas são tratadas de forma franca e com a clareza que uma entrevista deve comportar. Sem dúvida uma contribuição impar para os estudantes e pesquisadores da área de Teoria e Filosofia da História.

Boa leitura!

Assis, 20 de dezembro de 2014

Hélio Rebello Cardoso Júnior

Rodrigo Bianchini Cracco

Tiago Viotto da Silva

Editores


CARDOSO JÚNIOR, Hélio Rebello; CRACCO, Rodrigo Bianchini; SILVA, Tiago Viotto da. Apresentação. Faces da História, Assis, v.1, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História, ensaio e literatura nas Américas no século XX | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2014

A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC traz o dossiê “História, ensaio e literatura nas Américas no século XX”, com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história, o ensaio e a literatura. O objetivo do dossiê é apresentar um espaço plural de debate, com enfoques e perspectivas diferenciadas acerca do tema, e colocar em destaque propostas metodológicas e reflexões críticas que se traduzem em paisagens e cenários instigantes para as Ciências Humanas.

O conjunto de artigos que compõem o dossiê aborda temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários e do ensaio em suas relações com a história; as conexões texto-contexto; a interação entre discurso e prática; os vínculos com a cultura e a política; as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais nas Américas. O resultado é a constituição de um dossiê formado por doze artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes poéticas, ensaísticas, literárias e políticas produzidas no século XX por intelectuais, em sua maioria, latino-americanos. A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC recebe ainda, com grande satisfação, uma conferência, um artigo livre e três resenhas. Leia Mais

Intelectuais, Literatura e Historiografia / Vozes Pretérito & Devir / 2014

No quadro acima do pintor francês Henri Matisse, denominado “Mulher Lendo”, vê-se uma mulher sentada de costas para o olhar curioso do seu observador. À sua frente, vestígios de um tempo esquecido, mas iluminado pela luz que parte de uma tímida luminária, permitindo ver a existência de um pequeno lugar excedido por um móvel que guarda sob sua superfície alguns objetos (quadros, vasos, objetos decorativos).

O pequeno móvel encontra-se ligeiramente aberto, dando mostras da existência de alguns papeis, provavelmente o lugar onde a mulher abriga o livro que lê de maneira silenciosa e indiferente à presença do seu observador.

A cena retratada pela imaginação e pelos pinceis de Matisse faz parte do acervo sensível do imaginário sobre leitores e leituras, desde o tempo que a Literatura se avizinha ao gosto humano de criar outras dimensões ficcionais; de abrir novas expectativas temporais e desenhar outras virtualidades ligadas ao espaço, aos sonhos, às necessidades e expectativas.

A leitora de Matisse representa o nosso desejo inconsciente de escapar do tempo comum, do tempo calendário e tornar-se andarilho no tempo da leitura. O tempo da leitura é o tempo do agora que presentifica o texto. Ele dissolve o passado, dando a esse novo formato, possibilidade e historicidade, pois o tempo se renova a partir do olhar de cada leitor(a) e de cada flâneur.

Não olhamos as coisas e as pessoas da mesma forma, mas sob nossa perspectiva. Nosso olhar é de perspectiva, referencial e moldado pela nossa experiência de leitores. É a nossa experiência que atualiza sujeitos, objetos, problemas, que nos chegam desfocados do passado. É o presente que amplia as formas do passado. Não somos presidiários do passado. Aquilo que nos chega amorfo, empoeirado, desgastado pelo tempo é atualizado pela leitura, pelo tempo sempre inebriante do presente. Somente o presente atualiza o passado. No presente de cada passado existe uma leitora de Matisse atualizando o tempo, os sentidos e as passagens.

Em nosso Dossiê, Intelectuais, Historiografia e Literatura, existem várias passagens atualizadas pela artimanha dos nossos leitores privilegiados: os autores e autoras. Há passagens com relação ao Arquivo de si: as implicações entre testemunho, escrita literária e escrita de si, escrito por Ana Cristina Meneses de Sousa; Sociabilidade intelectual na imprensa natalense na Primeira República (1889-1930), de Maiara Juliana Gonçalves da Silva; O que há de impessoal em arquivos pessoais: considerações a partir de uma experiência de pesquisa na França de Rafael Faraco Benthien; Poema erguido na rua: usos e sensibilidades de uma Teresina em dois tempos (57 / 77) de Renata Flávia de Oliveira Sousa;A cronologia das bestas e o cumprimento das profecias: o conhecimento histórico nas obras pentamonarquistas de William Aspinwall (1653-1657), de Verônica Calsoni Lima; Roberto Piva, periferia-rebelde e estética da existência: subjetividades urbanas desviantes e manifestos literários no Brasil (1958-1967), de Reginaldo Sousa Chaves; Sobre a cultura política de esquerda na França e suas reconfigurações na revista Socialisme ou Barbarie (1946-1968) de Guilherme Bianchi Moreira; Homens de cultura na Baixa Idade Média ocidental: aspectos da formação erudita de Eliane Santana Veríssimo; Carlos Eduardo Zlatic; Oswald de Andrade e a experiências de modernidade em São Paulo: identidade, sociabilidade e política, de Marcio Luiz Carreri; Luiz Costa Lima: afinidades e linha de força de uma obra de Raphael Guilherme de Carvalho; Representações da Nação: a apresentação de Alceu Amoroso Lima no álbum fotográfico Brésil de Rafael Luis dos Santos Dall’olio. Além dos textos de Ronaldo Zatta, em tributo a Helenice R. da Silva e André Feixo que discute a série de documentos históricos editados sobre a direção de José Honório Rodrigues quando este esteve à frente da biblioteca nacional.

Os artigos favorecem pensar outras virtualidades sobre a relação história e literatura, como: A cidade e a música popular: Teresina e os espaços de prática musical nos anos 1980, de Hermano Carvalho Medeiros; Euclides da Cunha, Rodolfo Teófilo e o debate sobre a migração cearense para a Amazônia, de Bruno de Brito Damasceno; Instituto do Museu Jaguaribano: discurso e cidade, de Alex da Silva Farias.

Além dos artigos, a nossa 3º edição conta ainda com uma homenagem à professora Helenice Rodrigues da Silva, ex-conselheira da revista, falecida ano passado, grande estudiosa da história intelectual, e uma resenha sobre Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de IbnKhaldun, publicado em 2012 por, Elaine Cristina Senko, analisada pelas pesquisadores Ana Luiza Mendes, Bel Drabik.

Todos esses escritos desalojam a leitura, abrem novas virtualidades e passagens no tempo. As configurações elaboradas por nossos autores e autoras provocam por parte de nós, seus leitores, novas refigurações, ou seja, a transformação das nossas experiências vividas sob o efeito da narração.

A partir da remodelação de nossas experiências de leitor reconstruímos historicamente o passado baseados nos rastros deixados pela ausência desse. É a partir da ficcionalidade de nossa leitura que transformamos a nossa experiência temporal.

Nesse sentido fica o convite para os nossos leitores virtuais e atemporais refigurarem seu mundo de forma diferente, a partir da apreciação de nossos escritos; pois a leitura é uma atividade de recepção e de reapropriação transformadora dos nossos sentidos e percepções.

Somos todos como um quadro de Matisse, pintados pelo tempo, refigurados pelos novos sentidos que damos ao mundo. Assim como a leitora de Matisse, também subtraímos do tempo suas inquietações, pois ele passa, mas cabe a nós preenchê-lo de sentidos, remodelarmos seus rastros e permitirmos que o passado seja uma tela sempre pronta para novas refigurações e atualizações.

Boa leitura!!!

Ana Cristina Meneses de Sousa


SOUSA, Ana Cristina Meneses de. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia: práticas de pesquisa / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A proposta temática do dossiê deste número da revista Clio se inscreve no universo crítico das práticas de pesquisa e de escrita da história. O seu objetivo é apresentar as produções do conhecimento, em temporalidades e espacialidades diversas, abertas às análises que articulam a teoria – um diálogo profícuo com diversos textos no campo das humanidades – e a metodologia em seus aspectos peculiares.

Os artigos que compõem este dossiê problematizam uma temática, relacionando-a às questões e propostas metodológicas que se apresentam como resultado de pesquisas. Nesse sentido, as experiências com o “fazer história” possibilitam também explorar modos narrativos diversos. Nessa trilha, dialogam com vários estudos no campo da historiografia, sinalizando o seu lugar social e institucional, trazendo a contribuição fundamental de uma vasta e especializada bibliografia, bem como a pesquisa das fontes documentais. Trata-se de textos que privelegiam a reflexão acerca dos procedimentos metodológicos com os quais operam, delineando aproximações e afastamentos para com as análises historiográficas, atentos àquilo que o historiador mexicano Luís Gerardo Morales Moreno tão bem observa:

La historiografía contemporánea se sitúa en esa trama compleja de relaciones entre las formas del relato histórico y su legitimación mediante instituciones y comunidades que actúan dentro de una sociedad determinada. [1]

Nessa perspectiva, os textos aqui relacionados partilham de reflexões que expressam as indagações dos historiadores quanto à produção do discurso ligado à sua prática, situada num campo complexo de relações e legitimações. É assim que convergem ao observarem a construção do tema, a prática da pesquisa e os procedimentos metodológicos que operam ao analisar os documentos e compor a escrita com as citações e as referências bibliográficas.

Há ainda outro aspecto fundamental a assinalar. Os artigos ao focalizarem os assuntos específicos, que cobrem problemas e questões, indagam o presente do historiador e o seu ofício, orientados pelas regras do campo historiográfico. Diante disso, os trabalhos apresentados no dossiê são reveladores de um grande esforço intelectual para a realização de leituras e de procedimentos metodológicos que constituem a matéria da escrita, tecendo pouco a pouco o relato historiográfico na difícil arte de significar o passado no presente.

Compartilhando uma longa experiência de pesquisa e reflexão com o trato de documentação oral, o Prof. Gerardo Necoechea Gracia (Instituto Nacional de Antropología e Historia / México) abre o dossiê com um artigo em que se propõe a apresentar Una propuesta para el análisis y la contextualización de la entrevista de historia oral. Recorrendo a múltiplos exemplos extraídos de suas pesquisas, e tomando como ponto de partida o princípio de que “la historia que recurre a la memoria rinde sus mejores frutos cuando sitúa el recuerdo en el tiempo y el espacio”, o autor esmiúça um bom número de procedimentos e cuidados metodológicos que evitem reduzir o rememorar a um fim em si mesmo. Fundamentalmente, o aporte metodológico que o autor sustenta se lastreia na idéia de que “es necesario primero llegar a una comprensión cabal de la entrevista, antes de despedazarla acorde a temas relevantes para la investigación”. Devendo-se cuidar, para tanto, de “comprender las relaciones lógicas y de sentido que dan integridad al documento, de manera que no violentemos el espíritu con que fue creada la fuente oral”. Tudo isto, diz-no o autor, é precisamente o que possibilita “colocar el recuerdo en su contexto y así realizar la relevancia histórica de la experiencia que narra el entrevistado”, bem como, compreender mais precisa e adequadamente “la intención e interpretación que el entrevistado imprime a su recuerdo”. O texto, assim, oferece-se ao leitor quase que como um pequeno manual no lidar com depoimentos orais.

Em História, memória e sujeito: a narrativa histórica e as reapropriações do sujeito, o Prof. Marcelo de Sousa Neto (Universidade Estadual do Piauí) se propõe a perscrutar as novas abordagens que a historiografia brasileira tem dedicado aos estudos biográficos. A partir da análise do caso de figura de destaque no mundo político e intelectual do Piauí no séc. XIX, Pe. Marcos de Araújo Costa, o autor dirige suas reflexões menos à figura histórica do Pe. Marcos do que às escolhas que possibilitaram a criação de uma determinada memória sobre ele, em detrimento de outras tantas possíveis. Ao chamar a atenção para essa operação, o autor não faz outra coisa que evidenciar algo de suma importância para qualquer empreendimento historiográfico: que toda construção narrativa se faz por meio do recurso ao apagamento e silenciamento de inúmeras outras. Nos termos de Certeau, autor reiteradamente invocado ao longo do texto, trata-se de evidenciar a “topografia de interesses” que organiza as narrativas e fixação de memórias as mais diversas.

O artigo escrito pela Profa. Patricia Pensado Leglise (Instituto de Investigaciones Dr. José Ma. Luis Mora / México), El acontecer histórico en el relato de vida, mais uma vez nos oferece a oportunidade de adentrarmos num universo de reflexões pautado por pesquisas cujo recurso documental privilegiado é o das narrativas orais. Preocupada em situar o campo da história oral como modalidade de história social, a autora desenvolve seu argumento a partir de três problemáticas que, a seu ver, são as mais prementes e recorrentes entre pesquisadores que trabalham com testemunhos orais: o debate em torno das questões de memória e identidade; do tempo; e do papel do sujeito no fazer histórico. Tendo sempre o cuidado de invocar alguns dos autores mais relevantes para esse debate, a Profa. Patricia Pensado, entretanto, enriquece sobremaneira sua exposição mediante o recurso a extratos de relatos orais produzidos em suas pesquisas. Resulta deste esforço um texto marcado pelo propósito de aprofundar uma reflexão de caráter mais geral a partir de experiências efetivas de pesquisa. Em outras palavras, como conclui a autora, “el hecho de recordar, la oportunidad de que se suscite la memoria de su pasado mediante la historia oral le ofrece una nueva ocasión no sólo para la reflexión de lo vivido sino también para su interpretación contando con una visión más amplia y profunda de los tiempos aciagos que a todo los seres humanos experimentamos al vivir”.

Na sequência, o leitor encontrará o artigo da Profa. Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco, que focaliza as estratégias adotadas pela Câmara de Olinda quanto à utilização do legado pecuniário pertencente aos órfãos da capitania de Pernambuco, que se encontrava sob a sua guarda. A autora, historiadora especialista em paleografia, muito contribui neste texto para analisar as relações entre o conhecimento histórico e as práticas de leitura paleográficas, atendo-se a um conjunto de questões teóricas e métodos, que visa a escrita da história.

A seção dossiê se encerra com o artigo Três possibilidades metodológicas de estudo aplicadas à analise de casos em áreas de fronteira no interior do Brasil, de autoria dos Profs. Leonice Aparecida de Fátima Alves, Vitale Joanoni Neto e João Carlos Barrozo (todos da Universidade Federal de Mato Grosso), no qual são explorados variados recursos teóricometodológicos voltados para pesquisas dirigidas ao mundo rural, aos processos de migrações e ocupação do interior do território brasileiro, às políticas de colonização postas em prática pelo Estado brasileiro. Em consonância com os diferentes aportes teórico-metodológicos, são apresentadas as estratégias de pesquisa e acervos documentais correlatos. Assim, temos desde uma “reflexão sobre o papel dos periódicos nas áreas de colonização no Mato Grosso”, que possibilita compreender o uso destas publicações por moradores de áreas de fronteira, e as maneiras “como registram seu cotidiano, como se representam, como dizem de si, de seus desafetos, como se relacionam com o meio, seus estranhamentos e das estratégias para superar as dificuldades encontradas”; passando pelo uso de determinada estratégia metodológica, a construção de portraits, “que permite a compreensão das trajetórias dos indivíduos a partir dos dados coletados em questionários e entrevistas biográficas”; para, por fim, se debruçar “acerca da utilização de fontes legislativas federais e estaduais para compreensão do processo de colonização”. Como resultado, temos um texto que se abre em leque para diferentes formas de tratamento e enfrentamento de questões recorrentes quando se debruça sobre áreas de fronteira agrícola.

Na seção de artigos livres, temos o artigo assinado pelo Prof. Flávio Weinstein Teixeira (Universidade Federal de Pernambuco), Recife: notas em torno da gênese de um campo cultural, que apresenta um painel dos debates intelectuais e culturais no Recife dos anos 1920-50. Recorrendo à noção de campo em Bourdieu, o autor procura evidenciar as linhas de força, as sociabilidades letradas, bem como os espaços de reconhecimento e consagração do fazer artístico / intelectual que, em diálogo do que ocorria em âmbito nacional, resultaram em uma dinâmica própria e específica ao campo cultural do Recife. Para tanto, dá especial atenção à atuação de um grupo teatral local (TEP – Teatro dos Estudantes de Pernambuco) e à sua contribuição para a renovação das práticas artísticas e intelectuais.

Em seguida, temos o artigo do Prof. João Carlos Barrozo (Universidade Federal de Mato Grosso), A colonização em Mato Grosso como “portão de escape” para a crise agrária no Rio Grande do Sul, que que apresenta um expressivo painel dos inúmeros conflitos e movimentos rurais que desde os anos 1950 até a década de 1970 colocaram a disputa pela terra no centro da agenda nacional, além de, simultaneamente, aprofundar esse debate a partir de uma reflexão que, como o próprio título enuncia, procura compreender a colonização no Mato Grosso à luz da aguda crise que engolfava essa outra região de antiga e intensa ocupação rural – o Rio Grande do Sul. Conforme esclarece, as políticas adotadas pelos governos militares para a grave crise agrária e agrícola no Rio Grande do Sul, baseadas em dois pilares (“remembramento dos minifúndios no Rio Grande do Sul, e colonização por empresas ou cooperativas de colonização”), tiveram sucesso muito relativo. Mais importante, porém, que evidenciar os meandros de tais políticas, parece ser a abordagem dada pelo autor à questão, que relaciona as muitas e diversas experiências rurais do país em análise mais englobante e apropriada para compreender as forças e disputas em jogo.

Fechando este número da Clio, o Prof. Antonio Paulo Rezende (Universidade Federal de Pernambuco), em seu artigo Itinerários de um historiador: as portas entreabertas, nos apresenta sua trajetória de formação e de afirmação de um fazer historiográfico. Os itinerários apresentados pelo autor tanto dizem de sua trajetória pessoal, sua formação profissional, quanto, no que expõem as temáticas trabalhadas, os autores com quem dialogou, os enfoques, os privilegiamentos teórico-metodológicos, possibilitam, igualmente, visualizar algumas das veredas percorridas pela historiografia brasileira nos últimos 30 anos. Uma obra que se desdobra em muitas outras. Um fazer que é um permanente refazer, um constante exercício de repensar a prática historiadora. Uma escrita que tensiona e se aventura, que explora algumas das fronteiras do dizer e do pensar histórico. Um artigo, em suma, que à sua maneira percorre uns quantos pontos nodais que tanto tem mobilizado a atenção dos historiadores nas últimas décadas.

Em face do exposto, tendo em vista a proposta desta edição da revista Clio, os textos apresentados desenham um amplo mosaico de temas e problemas que se desdobram em referências teóricas fundamentais para lidarmos com as práticas de pesquisa. Contudo, tecer as histórias depende de uma ampla mobilização metodológica a fim de montar o quebracabeça que a discussão crítica de cada tema envolve, observando os limites do conhecimento histórico. Pois se entende que as teorias e as citações documentais não trazem implícitas as histórias e, portanto, não eximem o historiador de analisar ponto a ponto os diversos sinais e indícios que oferecem. O relato que se apresenta, em cada artigo, no movimento de ocupar o lugar do passado no presente é resultado de múltiplas operações como os capítulos dessa coletânea demonstraram. Sendo assim, agradecemos aos autores a sua generosidade para debater conosco diferentes experiências historiográficas.

Nota

1. “Introducción”. In: Luís Gerardo Morales Moreno (compilador) Historia de La historiografia contemporânea (de 1968 a nuestros dias). Cidade do México: Instituto Mora, 2005, p.12.

Regina Beatriz Guimarães Neto – Universidade Federal de Pernambuco


NETO, Regina Beatriz Guimarães. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo / História e Cultura / 2013

A revista História e Cultura, atenta às pesquisas e ao debate acadêmico desenvolvido na História e em áreas afins, traz neste número especial um dossiê voltado ao estudo da Antiguidade e do Medievo.

As pesquisas acerca da Antiguidade e do Medievo vêm ganhando destaque crescente entre a pluralidade de temáticas de estudos no Brasil e no exterior. Dessa forma, essas investigações congregaram problemáticas, metodologias, discussões historiográficas e estudos de caso ímpares que demonstram as especificidades dessas áreas de pesquisa. Respeitando essas características, o dossiê se apresenta como um espaço de reflexão dos temas que abordam o recorte cronológico das denominadas Antiguidade e Medievalidade.

O tema “Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo” determina o fio condutor da abordagem dos trabalhos de pesquisa contemplados neste dossiê. Além de artigos que abordam a temática elencada para este número, contamos com a contribuição de entrevistas e resenha de livro, analisadas pela comissão de pareceristas conforme sua relevância historiográfica e sua pertinência acadêmica.

Nossos objetivos não são somente possibilitar, mais uma vez, o debate intelectual acerca do tema, mas também fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no campo da antiguidade e medievalidade no Brasil e no exterior. Dessa forma, organizamos este dossiê em três partes: Entrevistas, Artigos e Resenha.

As duas Entrevistas que abrem o dossiê abordam, cada uma, os dois campos de pesquisa atendidos. A primeira foi direcionada ao Dr. Adolfo D. Roitman, diretor e curador do Santuário do Livro, uma ala do Museu Nacional de Israel, em Jerusalém. O entrevistador, o doutorando Fernando Mattiolli Vieira, nos traz notícias do trabalho desenvolvido pelo Dr. Roitman, bem como do local onde estão armazenados alguns dos manuscritos do mar Morto encontrados nas cavernas da região de Qumran. Outros dois entrevistadores, Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho e o doutorando Germano M. F. Esteves, por meio da entrevista com a Profª Drª Eleonora Del’Elicine, nos informam sobre os estudos acerca do Medievo na Argentina. Especialista sobre a Hispânia Visigoda, a Drª Del’Elicine nos mantém informados sobre as pesquisas medievais na Argentina e na Universidad de Buenos Aires, onde leciona.

Os trinta e um textos que compõem o dossiê estão organizados cronologicamente abordando uma pluralidade de discussões historiográficas sobre as denominadas, a saber: Antiguidade Clássica, Antiguidade Tardia e / ou Primeira Idade-Média, Alta Idade Média, Central e Baixa Idade Média, além da passagem do Medievo para o que entendemos historiograficamente como Idade Moderna.

Passível de percepção, os textos aqui selecionados e apresentados compreendem a perspectiva de diferentes olhares sobre as chamadas histórias Antiga e Medieval, na medida em que concentram intelectuais de diversas tendências acadêmicas em uma mesma obra, incluindo professores e alunos de pós-graduação de universidades brasileiras e estrangeiras. Nossa intenção foi exatamente essa: a de apresentar diferentes olhares, rótulos, percepções e entendimentos de História, mais especificamente no campo da Antiguidade e do Medievo.

De acordo com nossa proposta, informamos de uma forma breve os trabalhos que compreendem o presente dossiê: oito Professores Doutores locados em universidades públicas do país; quatorze doutorandos em História, dos quais onze pertencem a instituições nacionais e dois a programas de pós-graduação do exterior; dois mestres e sete mestrandos em História. Além de apresentar artigos de autores da instituição, ou seja, do Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Campus de Franca; o terceiro número (especial) do segundo volume da revista História e Cultura apresenta, igualmente, pesquisas de dezoito instituições de ensino superior, a saber: Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB); Programa Cultures en Contacte a la Mediterrània do Departament de Ciències de l’Antiguitat i de l’Edat Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB); Programa de Pós-Graduação em História Medieval da School of History – University of Leeds, Reino Unido; Universidade de São Paulo (USP); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual Paulista (UNESP – Assis); Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Federal do Alagoas (UFAL); Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM – UBERABA); Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri / Diamantina-MG (UFVJM) e Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ao final, apresentamos a resenha do livro de Andrew Lintott confeccionada pelo doutorando Thiago Eustáquio Araújo Mota.

Agradecemos em nome de todos os membros do Conselho Editorial o constante apoio do Conselho do Programa de Pós-graduação em História no qual está locada a História e Cultura.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Margarida Maria de Carvalho – Professora Doutora

Helena Amália Papa

Germano M. Favaro Esteves

Organizadores do dossiê


CARVALHO, Margarida Maria de; PAPA, Helena Amália; ESTEVES, Germano M. Favaro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.3 (Especial), 2013. Acessar publicação original [DR]

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A história em questão: diálogos com a obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães / História da Historiografia / 2013

O tempo entre o sopro e o apagar da vela

Paulo Leminski (1976, p. 23).

Which is to say, I guess, that in the end I come back to Aristotle’s insight

that history without poetry is inert, just as poetry without history is vapid

Hayden White (2010, p. XI).

Aquele “probleminha” que Aristóteles causou a alguns historiadores durante muito tempo em decorrência do que escreveu no capítulo IX de a Poética – a ideia de que a poesia era superior à história por tratar do geral enquanto a história tratava apenas do singular – não afetava muito nosso Manoel. Até onde sabemos nunca perdeu o sono por causa disso. Ao contrário, seus escritos e aulas revelavam um professor e pesquisador aberto às formas eruditas de existência, nas quais os gêneros ficcionais e a história conviviam, como se não tivessem sido afetadas pelo anátema aristotélico, muito menos pelo estatuto cientifico da história adquirido no século XIX.

Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães (1952-2010) foi um exemplo de incentivo à diferença, respeito à pluralidade temática e à tolerância teórica. De muitos foi professor, e de muitos se tornou amigo. Daqueles com os quais podíamos contar. Desde o empréstimo de um livro difícil de se conseguir na biblioteca até o conselho solidário e maduro. Manoel foi um parceiro intelectual de primeira hora. Acima de tudo um acadêmico rigoroso, que acreditava na pesquisa e em certa capacidade regenerativa do conhecimento histórico. Expliquemos: Manoel acreditava que a história poderia ser útil para alguma coisa: para a crítica constante de sua própria evidência; e para a vida! Leia Mais

1964: releituras historiográficas / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2013

A revista Clio – N. 31.2 (2013) elegeu como temática para seu dossiê 1964: releituras historiográficas. Após quase três décadas do fim do regime instalado com o golpe de 31 de março de 1964, liderado pelos militares, a produção historiográfica brasileira sobre esse período tem se ampliado de forma considerável. A divulgação de muitos documentos, produção de reportagens, publicação de obras historiográficas, de livros autobiográficos e de entrevistas, além de dissertações e teses possibilitou estabelecer uma ampla ressignificação desse passado recente da história do Brasil.[1]

Talvez o diferencial que se observa nessa última década seja que com a criação da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça em 2002, após décadas de pressão da sociedade civil, esse debate passou a também circular pelas diversas instâncias do poder do Estado.[2] Dessa maneira, observa-se de forma crescente todo um movimento para se repensar e reavaliar a responsabilidade do Estado em relação às torturas, aos assassinatos, aos desaparecidos, inicialmente com novos julgamentos e indenizações, mas sem perder de vista o debate que se reabre sobre esses crimes. A criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e também a criação de semelhante comissão em diversos estados do Brasil, como é o caso de Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, entre outros, apontam que, em razão de pressões internas e externas (pressão da OEA), o Brasil está, de maneira oficial, voltando-se sobre esse passado e trazendo a público novos documentos e, por extensão, recolocando o debate acerca dos crimes e torturas praticados por agentes do Estado naquele período de 1964 a 1985. [3]

As Comissões da Verdade, criadas nos níveis federal e estadual, têm uma missão importante que é trazer à luz uma documentação que, sem dúvida, ajudará a ampliar o conhecimento acerca desse período. No entanto, diferente do senso comum, hoje, nenhuma área do conhecimento que tem nos documentos sua referência epistemológica opera como se os mesmos falassem por si.[4] Se eles são fundamentais, prestando-se como ponto de partida para análises, estudos e pesquisas, sabemos como é complexa a operação historiográfica que irá articular em outra ordem de significado, bem como em outra temporalidade, novas questões e novos problemas relacionados ao período do regime militar e civil que se estabeleceu de 1964 a 1985. Dessa forma, no sentido de contribuir para este debate nacional é que a revista Clio dedica esse dossiê de releituras historiográficas.

O artigo do Prof. Dr. Airton dos Reis Pereira, Colonização e conflitos na Transamazônica em tempos da ditadura civil-militar brasileira, analisa o processo de implantação do Programa Integrado de Colonização de Marabá que incluía os municípios de Itupiranga e São João do Araguaia às margens da rodovia Transamazônica. Vale destacar como esse programa adquire um significado especial no município de São João do Araguaia, na medida em que se torna uma base dos militares para reprimir os guerrilheiros do PC do B. No entanto, a partir de 1974 muitas famílias de colonos de diversas regiões do Brasil, que haviam sido atraídas para a região pela propaganda do governo, não encontrando o que havia sido negociado com o INCRA, passam a ocupar diversas propriedades improdutivas. Surge então um novo polo de conflito na região.

O professor Ruben Isidoro Kotler, apresenta o instigante artigo, La alianza obrero estudiantil como respuesta a la dictadura de 1966 em la periferia argentina. El caso Tucumán. Analisa como após o golpe militar em 1966 na Argentina operários e estudantes constroem estratégias de resistência ao programa econômico conservador que se instala. Por meio de relatos de memórias desses segmentos constrói uma importante análise do movimento de rebeldia contra ditadura do general Juan Carlos Ongania, sobretudo em 1969 e em 1970 e 1972, já na ditadura do general Alejandro Agustín Lanuesse.

O artigo de Adriana Cristina Lopes Setemy, O Itamaraty e a institucionalização das políticas de repressão ao comunismo: revisão e novos apontamentos historiográficos, vem romper com uma memória histórica de que o Itamaraty se constituía numa instância do poder do Estado no Brasil distante das disputas políticas partidárias, sobretudo aquelas relacionadas ao comunismo e aos comunistas. Pesquisando sobre as atividades do Itamaraty relacionadas às suas embaixadas na Argentina e no Uruguai entre 1935 e 1966, a autora oferece uma importante análise da vigilância exercida por esses órgãos sobre brasileiros exilados. E também como enviavam informações sobre estrangeiros considerados suspeitos que viajavam ao Brasil.

O artigo de Gisele Oliveira de Lima, Política e evangelização em quadrinhos, poderse-ia considerar como estudo de caso. Ela se debruça sobre a prática evangélica do padre italiano Paulo Tonucci, que foi reconhecidamente um religioso que abraçou as causas populares, tendo importante papel na formação de diversos líderes políticos. Nesse artigo, propriamente, a autora estuda a prática pedagógica do Padre Tonucci, ao produzir desenhos em quadrinhos para debater, refletir e mobilizar as pessoas de diversos bairros populares da Bahia. Também é destacada a análise da relação entre a prática sacerdotal e militante que é possível ler nesses quadrinhos.

O artigo de Julia Glaciela da Silva Oliveira, Dos encontros à união: a formação da União de Mulheres de São Paulo, contempla o estudo e a análise histórica das lutas em defesa dos direitos humanos em que ativistas participantes dessa associação relatam suas experiências. Percorrendo as trilhas desses relatos, a autora remete sua análise para as questões da militância política feminina nas décadas de 1960 e 1970 e como a partir dessas práticas foi sendo gestada a criação de uma associação feminista autônoma.

Na seção de Artigos Livres, destaca-se o texto do Prof. Artur Freitas, A invenção do Solar do Barão: a gravura brasileira em Curitiba, em que realiza uma genealogia articulando dimensões políticas e estéticas que entre 1970 e 1980 concorrem para criação do Centro Cultural do Barão, em Curitiba, Paraná. Este Centro, pelas múltiplas atividades desenvolvidas, se consolidou como um dos principais polos nacionais de institucionalização da gravura no Brasil.

A Professora e historiadora Tanya Maria Pires Brandão, que há décadas estuda a formação da sociedade no Nordeste, sobretudo no século XVIII, desenvolve nesse seu artigo, Rapto de mulheres: estratégia na formação de núcleos familiares na capitania do Piauí, século XVIII, a análise de uma prática que durante longos períodos a sociedade tentou esquecer, apagar. Tendo como fonte documental os autos processuais de queixa-crimes, a historiadora revela como essa se constituía numa prática recorrente numa sociedade amplamente masculina.

O artigo de Karla Leandro Rascke, Vivências celebrativas na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em Desterro / SC, século XIX, contempla uma pesquisa acerca da estrutura e funcionamento da Irmandade do Rosário e São Benedito, bem como as atribuições da Mesa Administrativa, no que tange às decisões no plano temporal e espiritual. Há também uma preocupação em analisar as performances, celebrações e sons produzidos nesse território de vivências africanas.

Para finalizar esta apresentação, parabenizo os autores pelos artigos enviados para publicação neste número da revista Clio, que poder-se-ia considerar como um reduzido mas representativo retrato da historiografia de excelente nível que se tem produzido nas mais diversas regiões e Universidades do Brasil.

Boa leitura!

Notas

1. O historiador Carlos Fico, em seu livro Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar (Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2004), apresenta um detalhado levantamento de livros, dissertações e teses produzidas até 2004 relacionados ao tema do regime militar e civil que se instalou em 1964. Também realiza uma compilação de importantes documentos produzidos entre 1961 e 1970. Em 2004, no campus da Universidade Federal de São Carlos, foi organizado o Simpósio Internacional “Quarenta anos do golpe de 1964: novos diálogos, novas perspectivas”. Posteriormente, 14 palestrantes desse simpósio, tiveram seus textos publicados no livro O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas, organizado por João Roberto Martins Filho (São Carlos: EdUFSCar, 2006). Também destaco o livro O golpe a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (Bauru, SP: EdUSC, 2004).

2. Por meio de medida provisória, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça passou a integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro, no ano de 2002, com a aprovação de Lei n. 10.559, que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

3. No período em que redigia esse texto, o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado por organizações de direitos humanos como o mais notório torturador dos tempos do regime militar, teve negado seu pedido à justiça para reformulação da sentença em que foi reconhecido como torturador. Essa é a primeira vez que uma decisão envolvendo a tortura no regime militar é referendada por um colegiado de segunda instância. “Foi uma conquista inédita na Justiça brasileira”, comemorou o advogado Fábio Konder Comparato, representante da família Teles, autora da ação, ao deixar o Tribunal, na Praça da Sé, centro de São Paulo. http: / / www.estadao.com.br / noticias / nacional,justica-de-sao-paulo-reconhece-ustra-comotorturador,916432,0.htm.

4. Michel Certeau, em seu texto A operação historiográfica, que marca sua resposta à polêmica obra de Paul Veyne, Como se escreve a história, no tópico em que analisa o lugar social da produção histórica, afirma: “Há quarenta anos, uma primeira crítica do “cientificismo” desvendou na história “objetiva” a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma ‘dissolução do objeto’ (R. Aron) tirou da história o privilégio do qual se vangloriava, quando pretendia reconstituir a ‘verdade’ daquilo que havia acontecido. A história ‘objetiva’, aliás, perpetuava com essa ideia de uma ‘verdade’ um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de ‘fatos’ históricos… Os bons tempos desse positivismo estão definitivamente acabados.” In: CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rev. Tec. Arno Vogel. São Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 67.

Antonio Torres Montenegro

Regina Beatriz Guimarães Neto


MONTENEGRO, Antonio Torres; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.31, n.2, jul / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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1964: releituras historiográficas / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2013

A revista Clio – N. 31.2 (2013) elegeu como temática para seu dossiê 1964: releituras historiográficas. Após quase três décadas do fim do regime instalado com o golpe de 31 de março de 1964, liderado pelos militares, a produção historiográfica brasileira sobre esse período tem se ampliado de forma considerável. A divulgação de muitos documentos, produção de reportagens, publicação de obras historiográficas, de livros autobiográficos e de entrevistas, além de dissertações e teses possibilitou estabelecer uma ampla ressignificação desse passado recente da história do Brasil.[1]

Talvez o diferencial que se observa nessa última década seja que com a criação da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça em 2002, após décadas de pressão da sociedade civil, esse debate passou a também circular pelas diversas instâncias do poder do Estado.[2] Dessa maneira, observa-se de forma crescente todo um movimento para se repensar e reavaliar a responsabilidade do Estado em relação às torturas, aos assassinatos, aos desaparecidos, inicialmente com novos julgamentos e indenizações, mas sem perder de vista o debate que se reabre sobre esses crimes. A criação da Comissão Nacional da Verdade em 2012 e também a criação de semelhante comissão em diversos estados do Brasil, como é o caso de Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, entre outros, apontam que, em razão de pressões internas e externas (pressão da OEA), o Brasil está, de maneira oficial, voltando-se sobre esse passado e trazendo a público novos documentos e, por extensão, recolocando o debate acerca dos crimes e torturas praticados por agentes do Estado naquele período de 1964 a 1985. [3]

As Comissões da Verdade, criadas nos níveis federal e estadual, têm uma missão importante que é trazer à luz uma documentação que, sem dúvida, ajudará a ampliar o conhecimento acerca desse período. No entanto, diferente do senso comum, hoje, nenhuma área do conhecimento que tem nos documentos sua referência epistemológica opera como se os mesmos falassem por si.[4] Se eles são fundamentais, prestando-se como ponto de partida para análises, estudos e pesquisas, sabemos como é complexa a operação historiográfica que irá articular em outra ordem de significado, bem como em outra temporalidade, novas questões e novos problemas relacionados ao período do regime militar e civil que se estabeleceu de 1964 a 1985. Dessa forma, no sentido de contribuir para este debate nacional é que a revista Clio dedica esse dossiê de releituras historiográficas.

O artigo do Prof. Dr. Airton dos Reis Pereira, Colonização e conflitos na Transamazônica em tempos da ditadura civil-militar brasileira, analisa o processo de implantação do Programa Integrado de Colonização de Marabá que incluía os municípios de Itupiranga e São João do Araguaia às margens da rodovia Transamazônica. Vale destacar como esse programa adquire um significado especial no município de São João do Araguaia, na medida em que se torna uma base dos militares para reprimir os guerrilheiros do PC do B. No entanto, a partir de 1974 muitas famílias de colonos de diversas regiões do Brasil, que haviam sido atraídas para a região pela propaganda do governo, não encontrando o que havia sido negociado com o INCRA, passam a ocupar diversas propriedades improdutivas. Surge então um novo polo de conflito na região.

O professor Ruben Isidoro Kotler, apresenta o instigante artigo, La alianza obrero estudiantil como respuesta a la dictadura de 1966 em la periferia argentina. El caso Tucumán. Analisa como após o golpe militar em 1966 na Argentina operários e estudantes constroem estratégias de resistência ao programa econômico conservador que se instala. Por meio de relatos de memórias desses segmentos constrói uma importante análise do movimento de rebeldia contra ditadura do general Juan Carlos Ongania, sobretudo em 1969 e em 1970 e 1972, já na ditadura do general Alejandro Agustín Lanuesse.

O artigo de Adriana Cristina Lopes Setemy, O Itamaraty e a institucionalização das políticas de repressão ao comunismo: revisão e novos apontamentos historiográficos, vem romper com uma memória histórica de que o Itamaraty se constituía numa instância do poder do Estado no Brasil distante das disputas políticas partidárias, sobretudo aquelas relacionadas ao comunismo e aos comunistas. Pesquisando sobre as atividades do Itamaraty relacionadas às suas embaixadas na Argentina e no Uruguai entre 1935 e 1966, a autora oferece uma importante análise da vigilância exercida por esses órgãos sobre brasileiros exilados. E também como enviavam informações sobre estrangeiros considerados suspeitos que viajavam ao Brasil.

O artigo de Gisele Oliveira de Lima, Política e evangelização em quadrinhos, poderse-ia considerar como estudo de caso. Ela se debruça sobre a prática evangélica do padre italiano Paulo Tonucci, que foi reconhecidamente um religioso que abraçou as causas populares, tendo importante papel na formação de diversos líderes políticos. Nesse artigo, propriamente, a autora estuda a prática pedagógica do Padre Tonucci, ao produzir desenhos em quadrinhos para debater, refletir e mobilizar as pessoas de diversos bairros populares da Bahia. Também é destacada a análise da relação entre a prática sacerdotal e militante que é possível ler nesses quadrinhos.

O artigo de Julia Glaciela da Silva Oliveira, Dos encontros à união: a formação da União de Mulheres de São Paulo, contempla o estudo e a análise histórica das lutas em defesa dos direitos humanos em que ativistas participantes dessa associação relatam suas experiências. Percorrendo as trilhas desses relatos, a autora remete sua análise para as questões da militância política feminina nas décadas de 1960 e 1970 e como a partir dessas práticas foi sendo gestada a criação de uma associação feminista autônoma.

Na seção de Artigos Livres, destaca-se o texto do Prof. Artur Freitas, A invenção do Solar do Barão: a gravura brasileira em Curitiba, em que realiza uma genealogia articulando dimensões políticas e estéticas que entre 1970 e 1980 concorrem para criação do Centro Cultural do Barão, em Curitiba, Paraná. Este Centro, pelas múltiplas atividades desenvolvidas, se consolidou como um dos principais polos nacionais de institucionalização da gravura no Brasil.

A Professora e historiadora Tanya Maria Pires Brandão, que há décadas estuda a formação da sociedade no Nordeste, sobretudo no século XVIII, desenvolve nesse seu artigo, Rapto de mulheres: estratégia na formação de núcleos familiares na capitania do Piauí, século XVIII, a análise de uma prática que durante longos períodos a sociedade tentou esquecer, apagar. Tendo como fonte documental os autos processuais de queixa-crimes, a historiadora revela como essa se constituía numa prática recorrente numa sociedade amplamente masculina.

O artigo de Karla Leandro Rascke, Vivências celebrativas na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos em Desterro / SC, século XIX, contempla uma pesquisa acerca da estrutura e funcionamento da Irmandade do Rosário e São Benedito, bem como as atribuições da Mesa Administrativa, no que tange às decisões no plano temporal e espiritual. Há também uma preocupação em analisar as performances, celebrações e sons produzidos nesse território de vivências africanas.

Para finalizar esta apresentação, parabenizo os autores pelos artigos enviados para publicação neste número da revista Clio, que poder-se-ia considerar como um reduzido mas representativo retrato da historiografia de excelente nível que se tem produzido nas mais diversas regiões e Universidades do Brasil.

Boa leitura!

Notas

1. O historiador Carlos Fico, em seu livro Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar (Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2004), apresenta um detalhado levantamento de livros, dissertações e teses produzidas até 2004 relacionados ao tema do regime militar e civil que se instalou em 1964. Também realiza uma compilação de importantes documentos produzidos entre 1961 e 1970. Em 2004, no campus da Universidade Federal de São Carlos, foi organizado o Simpósio Internacional “Quarenta anos do golpe de 1964: novos diálogos, novas perspectivas”. Posteriormente, 14 palestrantes desse simpósio, tiveram seus textos publicados no livro O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas, organizado por João Roberto Martins Filho (São Carlos: EdUFSCar, 2006). Também destaco o livro O golpe a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (Bauru, SP: EdUSC, 2004).

2. Por meio de medida provisória, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça passou a integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro, no ano de 2002, com a aprovação de Lei n. 10.559, que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

3. No período em que redigia esse texto, o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado por organizações de direitos humanos como o mais notório torturador dos tempos do regime militar, teve negado seu pedido à justiça para reformulação da sentença em que foi reconhecido como torturador. Essa é a primeira vez que uma decisão envolvendo a tortura no regime militar é referendada por um colegiado de segunda instância. “Foi uma conquista inédita na Justiça brasileira”, comemorou o advogado Fábio Konder Comparato, representante da família Teles, autora da ação, ao deixar o Tribunal, na Praça da Sé, centro de São Paulo. http: / / www.estadao.com.br / noticias / nacional,justica-de-sao-paulo-reconhece-ustra-comotorturador,916432,0.htm.

4. Michel Certeau, em seu texto A operação historiográfica, que marca sua resposta à polêmica obra de Paul Veyne, Como se escreve a história, no tópico em que analisa o lugar social da produção histórica, afirma: “Há quarenta anos, uma primeira crítica do “cientificismo” desvendou na história “objetiva” a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma ‘dissolução do objeto’ (R. Aron) tirou da história o privilégio do qual se vangloriava, quando pretendia reconstituir a ‘verdade’ daquilo que havia acontecido. A história ‘objetiva’, aliás, perpetuava com essa ideia de uma ‘verdade’ um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de ‘fatos’ históricos… Os bons tempos desse positivismo estão definitivamente acabados.” In: CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rev. Tec. Arno Vogel. São Paulo: Forense Universitária, 2000, p. 67.

Antonio Torres Montenegro

Regina Beatriz Guimarães Neto


MONTENEGRO, Antonio Torres; NETO, Regina Beatriz Guimarães. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.31, n.2, jul / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia, Comparação e Interdisciplinaridade / Tempos históricos / 2013

O dossiê Historiografia, comparação e interdisciplinaridade foi proposto como um desafio a pensar para além dos cômodos escaninhos onde nos situamos. Todos sabemos das implicações epistemológicas de uma formação acadêmica que opera no registro das disciplinas, dos objetos autocentrados e com pouco ou nenhum diálogo consistente com a produção historiográfica, esteja ela inserida em nosso próprio campo disciplinar, ou, de maneira mais evidente ainda, com as “disciplinas alheias”.

Embora possamos reconhecer a necessidade da produção de um conhecimento científico que esteja aberto ao diálogo com outras perspectivas (disciplinares, teóricas, metodológicas e historiográficas), o esforço por conhecer ‘o outro’, ainda que apenas isto, não tem resultado em um avanço significativo na produção do conhecimento histórico.

Cada uma das dimensões mencionadas aqui propõe um complexo e sofisticado escrutínio das condições de possibilidade de efetivá-las. Não é tarefa para iniciantes levar a cabo, com qualidade, este debate. Entretanto, é necessário estar disposto a enfrentá-lo, porquanto só assim conseguiremos ultrapassar os estreitos limites que constrangem a historiografia.

A comunidade dos historiadores brasileiros encontrou ocasião privilegiada para discutir, em alguma medida, os termos propostos neste dossiê durante a realização do XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH, sediado na Unisinos, no Rio Grande do Sul, no ano de 2007. “História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos”, naquela oportunidade, foi o tema do encontro.

Entre as tantas contribuições importantes feitas naquele Congresso, destaco a conferência da professora Sílvia Regina Ferraz Petersen, da UFRGS, na qual, com a lucidez que caracteriza suas reflexões epistemológicas, chama a atenção para os cuidados metodológicos que devem acompanhar qualquer tentativa de estabelecer um trânsito mais fluido entre as disciplinas. Diz ela, neste sentido:

Cada disciplina em geral utiliza um sistema teórico-conceitual próprio, relacionado a uma ou mais lógicas que lhes são particulares. A transferência de conceitos de uma disciplina para outra ou a mescla desses conceitos sem perceber suas distintas matrizes e os debates a eles relacionados são obstáculos a qualquer integração e podem produzir composições híbridas sem qualquer valor analítico (PETERSEN, 2008: 43)

De certa forma, temos aqui, nesta apreciação, um dos motivos pelos quais a História não tem levado a efeito, com proficiência, os trânsitos que a historiografia, a comparação e a interdisciplinaridade propõem como algo intrínseco a seus próprios termos. É preciso querer aprender com os outros a fim de instruir e manter o próprio de cada área do conhecimento. Ou, no limite, para, eventualmente, rompê-lo em benefício de um terceiro elemento. Na avaliação de Petersen, com a qual concordamos, temos demonstrado pouca habilidade de realizar uma ou outra tarefa, e, por esta razão, ficamos apenas no campo das intenções retóricas e inconseqüentes.

Entendemos que, de uma maneira geral, um dos limites fundamentais do conhecimento histórico se revela pela falta de clareza metodológica a instruir a investigação dos historiadores. Quando o método é precário, o caminho se torna errático, e os resultados dependem, em boa medida, do imponderável. Enquanto não suplantarmos esta deficiência, que se revela, em medidas distintas, tanto na produção de pesquisadores iniciantes, quanto na produção dos historiadores estabelecidos, não conseguiremos ir muito adiante no caminho da consolidação de um campo de saber que almeja ganhar visibilidade por aquilo que lhe é particular, mas que precisa, paralelamente, abrir-se ao distinto que também pode constituir a legitimidade de nosso ofício.

Um esforço no sentido de enfrentar o debate circunscrito pelo tema do dossiê é o que visualizamos nos seis artigos que o compõe. São textos escritos por pesquisadores e professores, majoritariamente formados no campo da disciplina histórica, que expressam e expõe à leitura dos interessados, uma diversidade de interpretações. O dossiê coloca lado a lado historiadores oriundos e / ou vinculados a universidades brasileiras e estrangeiras, de diferentes gerações. Isto lhe confere uma riqueza peculiar, pois ao mesmo tempo que oferece pontos de vista de autores de formação e atuação consolidada no campo, agrega a contribuição de pesquisadores em início de carreira, que individualmente ou em conjunto com pesquisadores mais experientes, expõe resultados de suas pesquisas

No artigo que abre este dossiê, “Transgredir fronteras: reflexiones sobre lo nacional, disciplinar y paradigmático a partir del análisis histórico del neoliberalismo”, Hernán Ramírez discute o potencial e os desafios postos por abordagens que propõe-se a superar o enquadramento “nacional, disciplinar e paradigmático” na análise historiográfica, tomando como exemplo os estudos sobre o chamado “neoliberalismo” em países da América Latina. Para o autor, um objeto como este requer, necessariamente, um estudo que contemple estas três dimensões, porém a sua complexidade, a amplitude de questionamentos que se colocam para o tema, fazem com que proponha seu estudo a partir do transnacional, transdisciplinar e transparadigmático, instâncias que se revelam mais fecundas para a compreensão de um objeto que transcende todas as fronteiras.

Em “Historia de las ciencias, historia a secas: dos disciplinas”, segundo artigo do dossiê, Álvaro Léon Casas Orrego apresenta elementos para o debate sobre a constituição das disciplinas chamadas do saber, das ideias ou das ciências – tomadas como sinônimos – e sua distinção da velha história tradicional de sentido historizante. Reivindicando para as primeiras o importante papel de perguntar sobre as transformações em distintos campos do saber e seus entrelaçamentos, o autor repassa as contribuições da Escola dos Annales, da Escola de Frankfurt e de Michel Foucault para o debate, apresentando também as contribuições de autores colombianos.

“As Revoluções Comuneras de Castela (1520-1522) e do Paraguai (1721-1735): uma análise sobre suas apropriações e abordagens historiográficas”, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Luis Alexandre Cerveira, é o terceiro artigo a compor o dossiê. Partindo de abordagens que a historiografia espanhola e latinoamericana produziu sobre os levantes revolucionários nominados de revoluções comuneras, os autores reconstituem historicamente os eventos ocorridos em Castela (1520-1522) e no Paraguai (1721-1735). Fazem assim um exercício de comparação, discutindo apropriações e ressignificações historiográficas construídas sobre os levantes, em diferentes momentos da história dos dois países, indicando como a historiografia contribuiu para a mitificação, manipulação e instrumentalização política dos mesmos.

André Fabiano Voigt em seu artigo, “Gaston Bachelard e Jacques Rancière: uma visão comparativa dos problemas entre história, arte e imagem”, o quarto do dossiê, realiza uma comparação entre as ideias de Gaston Bachelard e de Jacques Rancière acerca das complexas relações entre história, arte e imagem. O autor parte da análise do pensamento de Bachelard, apontando questões suscitadas por este – como, por exemplo, a da temporalidade da imagem literário-poética – e buscando compreendê-las para além da obra daquele filósofo. Para tanto, Voigt debruça-se sobre a obra de Rancière, apontando para o conceito de “regime estético da arte”, extraído desta, como um elemento inovador no debate sobre as relações entre história, arte e imagem.

No quinto artigo deste dossiê, intitulado “Evocação Pernambucana: O Rubro Veio, de Evaldo Cabral de Mello”, George Silva do Nascimento, constrói inicialmente um breve relato da trajetória pessoal e profissional e sua implicação na produção historiográfica do importante e reconhecido intelectual referido no título. Sua intenção é, a partir de então, compreender através de uma das obras de Cabral de Mello, o livro Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana, os principais pressupostos teóricos utilizados pelo autor para problematizar o tema fundamental de sua obra: a desconstrução da identidade pernambucana.

Bruna Silva e Beatriz Anselmo Olinto, escrevem o sexto artigo deste dossiê, “Revista História: questões e debates: uma escrita de lugares (1980-1989)”. Neste, as autoras problematizam os artigos publicados pela revista na temporalidade indicada, período em que esteve vinculada a Associação Paranaense de História – APAH. A questão central gira em torno das percepções de “região” esboçadas nos artigos do periódico, num momento histórico no qual, segundo as autoras, havia a percepção da necessidade de publicar pesquisas e suscitar discussões entre os historiadores. O artigo apresenta e discute também as ações da APAH no sentido de estabelecer o seu reconhecimento, portanto, um local de onde se fala.

Referência

PETERSEN, Sílvia R. F. História e multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos. In: HEINZ, Flávio; HARRES, Marluza (Org.). A história e seus territórios. São Leopoldo: Oikos, 2008, p. 25-48.

Cláudio Pereira Elmir – Doutor em História; Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Yonissa Marmitt Wadi – Doutora em História; Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Pesquisadora do CNPq.


ELMIR, Cláudio Pereira; WADI, Yonissa Marmitt. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.17, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de história e historiografia / Territórios & Fronteiras / 2013

Viajamos não só para eludir problemas constringentes da vida pessoal, nacional ou universal, mas para tentar uma identificação com o mundo, uma nova leitura de ambientes diversos. [1]

É com grande satisfação que apresentamos aos leitores de Territórios & Fronteiras o dossiê intitulado Ensino de História e Historiografia, que congrega o esforço de tematizar a relevância da história como disciplina escolar, focalizando suas potencialidades (e dificuldades) para a formação da consciência histórica das crianças e jovens, no diálogo com a historiografia e com os diversos agentes situados no cenário político, econômico, sociocultural, educacional.

Em sociedades complexas, plurais, diversas e divergentes, como estas em que vivemos na contemporaneidade, é sempre pertinente perguntarmo-nos sobre o sentido de ensinar e aprender história. Dito de outra forma, necessário é identificar em que aspectos fundamentais residem as potencialidades formativas da história ensinada em contextos escolares. Para cumprir esse propósito, partimos do pressuposto de que os conteúdos escolares se constituem nos processos de decodificação da cultura disponível na sociedade. Essa cultura selecionada (e privilegiada) está distribuída em torno de uma dúzia de disciplinas escolares que, grosso modo, resultam do consenso possível (sempre tenso e conflituoso) sobre o que as sociedades de cada época consideram conhecimento para todos [2].

Ainda, no processo de constituição dos conteúdos escolares ocorre a descontextualização do conhecimento em relação ao locus original da produção sociocultural e da área / ciência de referência, e a recontextualização em cenários escolares. Nesse percurso de descontextualização / recontextualização atuam inúmeros agentes [3], que vão desde aqueles mais externos à escola, como as políticas educacionais públicas, a sociedade civil, a cultura dominante, o mercado editorial, como aqueles elementos / atores que incidem diretamente dentro da escola, a exemplo de assessores pedagógicos, famílias, professores, alunos, materiais didáticos, dentre outros.

Com base em tais pressupostos, precisamos saber justificar por quais razões o conhecimento histórico foi privilegiado no seleto rol de conhecimento para todos e por que a história se encontra no elenco dessas cerca de doze disciplinas escolares da educação básica. Para cumprir esse propósito, trazemos aqui alguns argumentos sumários em torno das potencialidades formativas da história escolar na atualidade [4].

Ao debruçar-se sobre as experiências das diferentes sociedades em outros tempos e espaços, a história escolar dá a conhecer as chaves de funcionamento social do passado, constituindo-se assim uma espécie de laboratório para realizar exercícios de análise dos problemas enfrentados pelos sujeitos e grupos que nos antecederam. Nessa apropriação das chaves de funcionamento do passado, os jovens se capacitam, em maior ou menor medida, para compreender a complexidade dos fenômenos atuais, para dar inteligibilidade ao tempo presente e para melhor se situar na complexidade da vida contemporânea.

Existem noções e conceitos, verdadeiras categorias de análise do mundo social, que não são tratados com centralidade por nenhuma outra disciplina escolar além da História, como, por exemplo: pensamento histórico, consciência histórica, evidência, empatia, causalidade, multicausalidade, tempo, acontecimento, contexto, processo, dentre outros. Tais noções e conceitos são essenciais para a formação dos jovens, como chaves de leitura da experiência histórica que permitem aprender que todos os fenômenos pertencem à temporalidade, que há linhas de continuidade e semelhanças, mas também há rupturas, diferenças, mudanças.

A formação para a cidadania constitui uma das finalidades primordiais dos sistemas educativos contemporâneos. A história escolar traz contribuição fundamental neste intento, na medida em que coloca os jovens em contato com outras culturas, fazendo-os dialogar com as diversas maneiras com que os homens de outras épocas e lugares responderam aos desafios do seu próprio tempo, desenvolvendo sensibilidade social e estética, além de critérios para o pensamento crítico.

Nos limites dessa apresentação, não nos é permitido seguir tematizando as finalidades e potencialidades da história nos contextos escolares, ainda que esse breve anúncio não tenha conseguido dar conta do ambicioso propósito. De tal modo, para finalizar, concedemos a palavra aos autores que trazem suas contribuições a este dossiê.

O artigo Historiografia didática e prescrições estatais sobre conteúdos históricos em nível nacional (1938-2012), de Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas, inaugura o dossiê. Com a indagação “o que tem a ver o Estado com a elaboração dos conteúdos dos livros didáticos de História?”, os autores perscrutam os dispositivos normatizadores da produção, avaliação, circulação e usos do livro didático ao longo de grande parte do período republicano. Adotando acurada análise documental, Margarida e Itamar disponibilizam aos leitores elementos para compreender a eficácia do “sujeito Estado no trabalho da escrita didática da História”, no recorte temporal estabelecido, mas não deixam de apontar os espaços de manobra que podem ser aproveitados pelos autores, quando produzem textos didáticos para uso na história escolar.

Na sequência, Alexsandro Donato de Carvalho e Luís Alberto Marques Alves oferecem aos leitores o artigo intitulado A cidadania e a política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso, no qual procuram demonstrar como o conceito de cidadania se instituiu na história brasileira, em suas articulações com as políticas educacionais recentes e com a história acadêmica e escolar. Concluem os autores que os documentos orientadores da educação brasileira no período estudado contemplaram a cidadania como meta a ser alcançada em diversas propostas curriculares e disciplinas, o que não significa que a mesma tenha realmente sido efetivada nas práticas escolares cotidianas.

Mairon Escorsi Valério e Renilson Rosa Ribeiro, com o artigo Para que serve a história ensinada? A guerra de narrativas, a celebração das identidades e a morte da política, convidam os leitores a refletirem sobre as implicações subjacentes aos atuais processos de deslocamento de um viés de ensino de história atrelado ao culto do Estado-nação, para uma perspectiva que exalta as memórias biográficas das pequenas comunidades. Num tom provocativo, os autores questionam se tal deslocamento não significaria a reprodução “da mesma lógica de fazer da história um discurso produtor de identidades essencialistas”, que negam a alteridade e terminam por fomentar a “desconstrução contínua e ininterrupta da esfera pública, o que representa por fim a morte da política”.

A narrativa histórica nos livros didáticos, entre a unidade e a dispersão, de autoria de Helenice Rocha, focaliza a discursividade que consubstancia os textos dos livros didáticos de história como um dos principais fatores de complexidade deste suporte cultural. Tomando como campo de análise o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e uma coleção aprovada em seu âmbito, a autora investiga os meios e recursos mobilizados pelos produtores de livros didáticos para fazer dialogar o texto principal e os textos complementares, concluindo que suas estratégias estão predominantemente relacionadas à manutenção da unidade da narrativa histórica.

Seguindo, Flávia Eloisa Caimi e Fabiano Barcellos Teixeira apresentam o artigo O passado é imprevisível! Controvérsias historiográficas acerca da Guerra do Paraguai no livro didático de História (1910-2010), que resulta de uma pesquisa diacrônica e longitudinal, onde se cotejaram as principais interpretações historiográficas sobre a Guerra do Paraguai, com as abordagens presentes nos livros didáticos ao longo de onze décadas. Partindo do propósito de identificar mudanças, permanências, tensões e diálogos que se estabelecem nas relações entre a produção historiográfica e a produção didática, os autores apontam uma aproximação bastante sensível entre esses dois universos, colocando sob suspeita a ideia comum de que existe um abismo temporal entre eles.

No artigo de Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho sob o instigante título “Jogando verde e colhendo maduro”. Historiografia e saber histórico escolar no ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, os leitores encontram uma discussão sobre o lugar da historiografia na conformação do saber histórico em projetos escolares orientados pela instituição da Lei 10.639 / 2003. Os autores indicam como principais desafios aos professores de História, o tratamento historiográfico do tema para promover uma consciência que resulte da crítica à memória, bem como a reflexão sobre um tipo de saber histórico escolar que ultrapasse visões eurocêntricas, sem promover outros mitos, cujos desdobramentos possam ser igualmente danosos.

Por fim, Ernesta Zamboni e Sandra Regina Ferreira de Oliveira trazem o artigo Resposta para uma aluna: são muitas as possibilidades para a escola pública. As autoras adentram as especificidades do espaço da escola por meio de um projeto de pesquisa em que buscam conhecer / problematizar o que os atores que lá estão entendem por histórias de sucesso escolar. Tomando para análise um rico material empírico, Ernesta e Sandra “discorrem sobre minúcias do cotidiano escolar que interessam a professores e pesquisadores de todas as áreas de conhecimento” defendendo que, a despeito da complexidade dos problemas que emergem dos espaços escolares, existem “muitas possibilidades para se fazer da escola um lugar melhor”.

O conjunto dos artigos do presente dossiê congrega pesquisadores da área de diferentes instituições de ensino das cinco regiões do Brasil e de Portugal. A diversidade das abordagens e temáticas apresentadas aqui traduz o universo amplo e rico de estudos em desenvolvimento nos territórios do Ensino de História no país, sempre expandindo e ressignificando suas fronteiras, construindo novas formas de pensar, ensinar e pesquisar o nosso fazer na interface entre a História e a Educação.

No lugar da fronteira, onde nos encontramos, podemos vivenciar, trocar e compartilhar saberes e práticas, mas também historiar os caminhos percorridos pela historiografia do Ensino de História, evidenciando escolhas de temas, teorias, metodologias e fontes de um campo de pesquisa em permanente diálogo com ensino e vice-versa.

Para a construção do presente dossiê se constituiu uma rede de interlocutores de diferente moradas com afinidades intelectuais e afetivas – que desfrutam, conforme propõe Jacques Derrida [5], de uma hospitalidade sem propriedade.

Notas

1. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 1071.

2. Categoria apresentada por Javier Marrero Acosta, no artigo “O currículo interpretado: o que as escolas, os professores e as professoras ensinam?” In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 188-208.

3. Ibidem. p. 190.

4. Essa breve sistematização está amparada especialmente nos estudos de Joaquín Prats, a partir das seguintes referências: PRATS, Joaquin. Ensinar história no contexto das ciências sociais: princípios básicos. Educar. Curitiba, n. esp., 2006, p. 191-218; PRATS, Joaquín (coord.). Geografía e Historia: investigación, innovación y buenas prácticas. Barcelona: Editorial Graò, 2011; PRATS, Joaquín e SANTACANA, Juan. Por qué y para qué enseñar Historia? In: GUTIÉRREZ, Leopoldo F. R.; GARCÍA, Noemí G. Enseñanza y aprendizaje de la Historia en la Educación Básica. Cuauhtémoc, México, D.F: Secretaría de Educación Pública, 2011.

5. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

Flávia Eloisa Caimi – Universidade de Passo Fundo – UPF. E-mail: [email protected]

Renilson Rosa Ribeiro – Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected]


CAIMI, Flávia Eloisa; RIBEIRO, Renilson Rosa. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, número especial, v.6, n.3, dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia / História Unisinos / 2012

11 de setembro de 1973, fim do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. A via chilena para o socialismo encontrava com a sua derrota.

11 de setembro de 1973, início da ditadura liderada por Augusto Pinochet que duraria 17 anos e deixaria o saldo de quase quatro mil mortos e desaparecidos.

11 de setembro de 1973, data símbolo dos golpes que marcaram o Cone Sul da América Latina nos anos 1960 e 1970.

Mais do que uma data chilena, o 11 de setembro acabou se transformando em uma data latino-americana que reflete o cenário de ditaduras e violência política da segunda metade do século XX na região. Amplamente documentado, o ataque ao La Moneda pode ser visto em imagens, assim como podemos ouvir o último discurso de Salvador Allende e a gravação feita de forma clandestina dos postos de comando à sede do poder Executivo (Verdugo, 1998). As imagens correram o mundo e hoje, disponíveis na internet, seguem a impressionar, a emocionar.

Visto como um país onde “não se passa nada” em função da sua estabilidade política, especialmente se comparado aos países vizinhos, o Chile possuía certo grau de amadurecimento político que levou o ainda candidato Salvador Allende a afirmar na I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizada em Cuba entre os dias 31 de julho e 10 de agosto de 1967, que no seu país a luta armada não seria necessária, pois a via institucional era possível e vitoriosa.

De fato, a eleição da coligação partidária Unidade Popular1 em 1970 demonstrou que a avaliação de Allende não estava completamente equivocada. Contudo, ao longo dos mil dias de governo, a Unidade Popular enfrentou uma crescente oposição nacional (de setores da classe média, representados fortemente por movimentos como o gremialismo, de parte das Forças Armadas e da Igreja Católica) e internacional (com destaque para o Brasil e Estados Unidos). Ao mesmo tempo, setores de apoio ao programa de governo começaram a pressionar pelo avanço e rapidez das mudanças.

As primeiras análises sobre o golpe foram feitas não apenas por pesquisadores, mas também por protagonistas do período. Dentre elas podemos destacar os trabalhos de Valenzuela, Garretón, Moulian e Corvalán.2 Com visões de amplo espectro, sem analisar muitas vezes as disputas internas, esses autores privilegiaram as explicações essencialmente políticas num país supostamente dividido entre favoráveis e opositores ao programa da Unidade Popular, não discutindo as disputas internas e / ou o comportamento pendular de grande parte da sociedade, que ora apoiava o governo e ora partia para o enfrentamento.

Outra explicação para a queda da Unidade Popular foi a forte atuação dos Estados Unidos no golpe de 11 de setembro e o apoio à ditadura recém instalada. Essa visão ficou bastante clara não apenas nos trabalhos acadêmicos ou jornalísticos, com destaque para o livro de Patrícia Verdugo (2003), e em filmes como Missing, de Costa-Gravas. O filme, de 1982, conta a história do assassinato do estadunidense Charles Horman e a procura de explicações para o seu desaparecimento, realizada por seu pai em viagem ao Chile.

Muitas das informações sobre os Estados Unidos fazem parte do Relatório Church, ou “Ações encobertas no Chile 1963-1973”, trabalho redigido pela comissão instalada no Senado dos EUA no ano de 1975 para apurar as ações clandestinas do país. A CIA, principal representante do governo nessas ações, reunia dados, repassava informações, estabelecia conexões com a polícia local, etc. A agência norte-americana investiu ao longo de 10 anos cerca de U$ 14 milhões. O dinheiro foi usado de distintas maneiras, ou seja, desde o investimento em campanhas políticas dos adversários de Allende, passando por propagandas, investimento nos meios de comunicação até pesquisas de opinião, culminando com o financiamento de tentativas de golpe anteriores ao próprio 11 de Setembro.

O golpe no Chile acabou por contribuir para a divulgação das ditaduras do Cone Sul aos olhos do mundo. Convém lembrar que em 1973 já estavam sob governos autoritários, marcados por graves violações dos direitos humanos, Brasil, Paraguai e Uruguai, sendo que nesse último a ditadura havia começado em junho de 1973. No entanto, a busca por asilo em embaixadas (Rollemberg, 1999) e a chegada de uma grande quantidade de exilados em países da Europa, fora as próprias imagens do golpe e a notícia do suicídio de um presidente legitimamente eleito, chocaram o mundo. Com os olhos sobre o país, a ONU também foi pressionada para apurar as graves denúncias de atentados aos direitos humanos (Quadrat, 2008, p. 361-395).

Se a queda da Unidade Popular não apresenta consenso na historiografia, a ditadura também serviu de debates. Para Huneeus, o governo ditatorial chileno possuía três identidades (Huneeus, 2000). A primeira é a identidade econômica neoliberal através do fortalecimento dos Chicago Boys e a intensa campanha de privatização das empresas públicas. A segunda é a identidade coercitiva, pela qual Augusto Pinochet, apesar de contar com o apoio de uma parcela significativa da sociedade, usou da violência para calar a oposição. Por fim, a terceira identidade tem a ver com a própria figura do general. Imbuído de um discurso messiânico de que veio salvar a nação dos males do comunismo.

Embora estejamos falando de debates acadêmicos e jornalísticos, devemos observar que, a exemplo de outros países, como a Argentina, o conhecimento histórico demorou a se ocupar da trajetória recente do país, que durante alguns anos ficou sob os cuidados da antropologia, sociologia, ciência política, linguística etc.

Contudo, em 1999, foi publicado o Manifiesto de historiadores (Grez e Salazar, 1999). Trata-se da resposta de reconhecidos historiadores à Carta a los chilenos, redigida pelo ex-ditador enquanto se encontrava detido em Londres. O documento suscitou um intenso debate no Chile, inclusive com a participação do historiador oficial da ditadura, Gonzalo Vial Correa. Foi a primeira vez que profissionais do ofício da História se integraram de maneira intensa aos debates sobre o passado recente do país.

O dossiê que organizamos para este número da História Unisinos conta com oito contribuições, advindas de diferentes lugares institucionais, e que trazem distintas perspectivas de abordagem da temática proposta pela editoria da revista.

O conjunto dos textos que compreendem este volume não está marcado, auspiciosamente, pela unidade de perspectiva, seja ela teórica, metodológica ou historiográfica. Os autores que submeteram seus manuscritos à revista, notadamente os que foram acolhidos pela presente publicação, repercutem, na variedade de posições aqui representada, a diversidade que a historiografia dedicada aos temas da ditadura na América Latina expressa.

Neste sentido, chama a atenção, por exemplo, a presença da temática do anticomunismo nos dois primeiros artigos que abrem o dossiê. O primeiro deles, de Ernesto Bohoslavsky, destaca os vários âmbitos aos quais pode ser associado o anticomunismo, ao mesmo tempo em que refuta o uso do rótulo “direita” sem a pluralização do substantivo. Para o autor, “[…] el anticomunismo debe ser entendido como una fuerza política central del siglo XX en Chile”. E afirma ainda: “Pero junto con reconocer su peso en la política de Chile entre 1919 y 1989, también hay que hacer notar su grande heterogeneidad y su notable dinamismo a lo largo del tiempo”. Já o texto de Ricardo Souza Mendes, em uma perspectiva temporal de mais curta duração, procura reconhecer no livro de Augusto Pinochet Ensayo sobre un estúdio preliminar de una geopolítica en el año de 1965 a presença de considerações políticas formuladas pelo militar e que, ao mesmo tempo, dizem da compreensão que o general tinha da própria sociedade chilena na década de 1960.

Na sequência, o texto de Claudio Llanos expõe algumas das concepções e ações políticas de grupos populares durante o governo de Salvador Allende. Abarcando o período entre 1970 e 1972, o autor chama a atenção para processos de radicalização dos referidos setores que mostraram uma dinâmica independente da estratégia de organização levada a efeito pelo governo da Unidade Popular.

Já o artigo de Ivan Lima Gomes centra sua análise na dimensão cultural do governo da Unidade Popular, por meio da análise da curta atuação da Editora Quimantú e, especificamente, da revista Cabrochico nos anos de 1971 e 1972. Na construção do “novo homem” que o projeto socialista chileno demandava, a luta no campo do imaginário social se fazia perceber, também, na produção de histórias em quadrinhos conformadas ao novo contexto ideológico que se fazia hegemônico, não obstante as diferentes forças que integravam o “caldeirão político” vinculado ao governo.

O texto de Camilo Negri, por sua vez, analisa as dificuldades de implementação da “via chilena ao socialismo”, por meio do exame do impacto de três propostas econômicas: nacionalização do cobre, reforma agrária e socialização de propriedades privadas. Para este intento, o autor se vale de entrevistas realizadas com sete ex-ministros do governo de Salvador Allende, recentemente feitas, bem como do Programa de Governo da Unidade Popular.

Centrando-se nos acontecimentos que antecederam o golpe militar de setembro de 1973, Carlos Federico Dominguez Avila estabelece um diálogo com a historiografia que tem se dedicado à questão, fazendo uso, ao mesmo tempo, de documentação do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, sediado em Brasília. A partir da leitura das referidas fontes, é possível ter acesso à recepção da crise político-social chilena por meio da avaliação produzida pela embaixada brasileira em Santiago, a qual era, na ocasião (Governo de Emílio Médici), comandada por Antônio Câmara Canto.

Para concluir o dossiê, integram o presente volume dois artigos cuja fonte principal de pesquisa são relatos de memória de personagens estrangeiros que viveram em algum momento de suas trajetórias no Chile. O texto de Claudia Wasserman reconstitui o percurso de quatro intelectuais – um alemão e três brasileiros – que estiveram no Chile e que “tiveram experiência acadêmica, de pesquisa e militância política no país governado pela Unidade Popular”. A autora faz uso de relatos autobiográficos (entre os quais, memoriais acadêmicos), currículos e produção intelectual de André Gunder Frank, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, a fim de recompor a experiência chilena dos referidos intelectuais na conjuntura anterior à ascensão de Allende ao poder e durante o seu governo. Para Wasserman, “Os memoriais e a produção intelectual sobre o Chile permitem entrever quais eram as preocupações dos brasileiros no exílio chileno entre 1970 e 1973 e como eles combinaram a sua militância política e o labor acadêmico, quais eram as suas atividades e até mesmo seus temores diante daquela realidade em transição. Mas os memoriais, escritos na década de 1990, depois do retorno ao Brasil, também permitem compreender a situação brasileira do período no qual esses textos foram redigidos.

Finaliza a seção o texto de Carla Simone Rodeghero, o qual traz a extensa entrevista feita pela autora com o músico brasileiro Raul Ellwanger. Neste depoimento, refaz-se a trajetória do referido compositor e cantor, desde Porto Alegre até o exílio no Chile e na Argentina, entre os anos de 1970 e 1977. A produção artística de Ellwanger, na análise de Rodeghero, acaba por repercutir sua vivência pessoal de expatriado. O texto finaliza com o relato tocante da viagem de retorno do músico ao Chile no ano de 2011. Nesta situação, a memória desdobrada no depoimento à autora alimentou-se de novo vigor. Nas palavras da autora: “Voltar fisicamente, rever as ruas e praças por onde caminhou, as casas nas quais morou, as tumbas onde estão enterrados os companheiros que caíram, o Estádio Nacional onde tantos ficaram presos e onde muitos morreram, a Universidade do Chile, os amigos ou familiares daqueles que foram solidários nos momentos mais difíceis, tudo isso pode ser oportunidade para repensar o significado daquela experiência para aquele que volta, para as esquerdas, para o Chile, para o Brasil, para a América Latina”.

No ano de 2003, ocasião em que se comemorava os 30 anos do golpe de estado militar que colocou Augusto Pinochet Ugarte no poder, foram várias as formas pelas quais lembrou-se o desditoso evento que traumatizou a nação chilena.3 Na avaliação feita por Manuel Antonio Garretón, naquela circunstância, “No hay entonces propiamente uma memoria colectiva consensual en torno a lo que somos como país y, por lo tanto, no podemos vernos como parte de uma misma comunidad ético-histórica, de algo a lo que pertenecemos que no sea la pura habitación geográfica” (Garretón, 2003, p. 223). Se existe ou não a necessidade de que se constitua uma “memória coletiva consensual” no país em relação ao longo período ditatorial é uma questão a ser discutida. Certamente, a morte de Pinochet em 2006 trouxe a este debate novos ingredientes, já que o passamento do líder militar “coloco una vez más el pasado de la dictadura en el centro del debate social” (Ruderer, 2010, p. 174).

Em 2013, a efeméride dos 40 anos do Pronunciamiento do 11 de setembro de 1973 renova os motivos para se pensar sobre o passado recente chileno, sobre projetos e ações fracassados ou vitoriosos, desde o ponto de vista de seus personagens e da memória que os mesmos foram capazes de constituir e que ainda estão elaborando. A atualização desta memória no campo midiático, no campo político e no campo historiográfico é motivo suficiente para dirigirmos nosso olhar a este tempo atualizado pela história.

O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia quer concorrer – no cômputo de seus textos e nos limites desta modesta contribuição – a que se revigore os estudos sobre as experiências democrático-populares e ditatoriais da história recente da América Latina, o seu debate histórico e historiográfico, as suas memórias, desde os mais diversos pontos de vista, a partir das mais variadas fontes de pesquisa. Isto é um começo. Desejamos a todos uma boa leitura.

Notas

1. A Unidade Popular era formada pelos seguintes partidos e grupos: Comunista (PC), Socialista (PS), Radicais (PR), Social-Democratas (PSD), Ação Popular Independente (API) e parte da esquerda católica com o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU).

2. Dentre os trabalhos desses autores destacamos: Valenzuela (1978); Corvalán (2001); Garretón e Moulian (1978, 1983); Corvalán (2006).

3. Ver, a este respeito, o rol de publicações e outros eventos que marcaram o trigésimo aniversário do golpe no texto de Lecco (2004, p. 341-356).

Referências

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VERDUGO, P. 2003. Como os Estados Unidos derrubaram Salvador Allende. Rio de Janeiro, Revan, 146 p.

Samantha Viz Quadrat

Cláudio Pereira Elmir

Organizadores do Dossiê


QUADRAT, Samantha Viz; ELMIR, Cláudio Pereira. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.1., janeiro / abril, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Educação histórica, teoria da historia e historiografia / Antíteses / 2012

Desafios teóricos e epistemológicos na pesquisa em educação histórica

No Brasil, as pesquisas sobre ensino e aprendizagem da História adquiriram grande impulso nas últimas décadas, o que pode ser observado pela expansão das linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação e pelo aumento da produção e da publicação nessa área. Esse boom pode ser também observado em outros países e tem provocado o aparecimento de domínios específicos na área do ensino de História, como o chamado campo da Educação Histórica que se desenvolveu em países como Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Portugal e também no Brasil.

Entre outras temáticas, as investigações e reflexões que têm ocorrido no âmbito do domínio teórico da Educação Histórica circunscrevem-se nas questões relacionadas aos estudos que têm como objeto e objetivo da didática da História, as problemáticas relacionadas à aprendizagem histórica. Essa mudança de foco se justifica, na medida em que a aprendizagem histórica passou a ter como parâmetros as categorias e processos de produção do conhecimento situados na própria ciência da História. São essas categorias e processos que orientam a construção do pensamento histórico, justificando a autoexplicação da História como disciplina escolar e a sua identificação como uma matéria específica e com uma metodologia própria.

A perspectiva da definição e constituição do ensino e aprendizagem histórica situados na própria História que vem sendo desenvolvida principalmente pelo historiador e filósofo Jörn Rüsen e sua relação com o ensino de história tem hoje, como referência, várias investigações, como as realizadas pelo historiador inglês Peter Lee e pelo historiador alemão Bodo Von Borries. Pode-se afirmar que esses trabalhos se integram ao conjunto de investigações e reflexões pertinentes ao campo de estudos da Educação Histórica. Nessa área, os investigadores procuram focar a sua atenção nos princípios, fontes, tipologias e estratégias de aprendizagem histórica, seja no recorte específico das análises das ideias de alunos e professores, seja investigando o significado da aprendizagem histórica nos artefatos da cultura escolar e da cultura da escola.

O momento definidor da mudança do embasamento das investigações sobre ensino e aprendizagem da história, da psicologia para a própria história, pode ser considerado o ano de 1998. Nesse ano foi realizada a Conferência de Pittsburg, na Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. O tema do encontro era “Ensinar, Conhecer e Aprender História”, e contou com a participação de vários investigadores do ensino de História, como Denis Shemilt, Peter Lee e Rosalyn Ashby. Como indicativos tirados nessa conferência, foram apontadas orientações para novos investimentos em pesquisas, como a questão dos currículos de História pautados nas grandes narrativas universais e a necessidade da inclusão de temáticas nacionais e locais nas propostas curriculares; estudos sobre a visão do passado para alunos e professores e seu significado para a orientação temporal; análise e interpretação das práticas nas aulas de História; análise e interpretação do trabalho dos professores e da sua formação.

As investigações realizadas na esteira desses indicativos implicam em um enquadramento teórico baseado na própria natureza do conhecimento histórico, ancorado na epistemologia da História e em metodologias de investigação como as da sociologia, etnografia e antropologia, de índole qualitativa, as quais permitem investigar quer ideias substantivas, como democracia ou revolução, quer ideias sobre a natureza da História como explicação, narrativa, evidência, significância, consciência histórica. Os conceitos ou ideias substantivas e de segunda ordem foram sistematizados e desenvolvidos em investigações realizadas na esteira das reflexões do filósofo e historiador alemão Jörn Rüsen, como os conceitos históricos. Se os conceitos substantivos ou conceitos históricos permitem entender os processos de compreensão substantiva dos alunos e professores sobre o conteúdo da História, os conceitos de segunda ordem e as categorias históricas possibilitam a compreensão dos processos de aprendizado realizados por eles. Ainda na perspectiva dessas investigações, podem ser destacadas algumas pesquisas sobre progressão conceitual exemplificados pelos estudos sobre empatia e explicação (Lee, 2006;2008); evidência (Ashby, 2006); usos da história e sua ligação com a vida prática (Lee, 2011), bem como sobre as possibilidades de oscilação e estabilidade nas ideias dos jovens ao usarem a variação de perspectivas em História (Chapman, 2011). Outros estudos colocam ênfase na abordagem a partir de ideias por grupos culturais, como os de Barton e Levstik (2004) e Epstein (2009). Trabalhos nessas mesmas abordagens também têm sido realizados em Portugal, conforme Barca (2000; 2001;2005;2011), e, como outros referenciais, são base importante para as investigações realizadas no Brasil, como as que vêm sendo feitas no âmbito do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica, da UFPR e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Londrina.

Os trabalhos que vêm sendo realizados pelos investigadores ligados ao Lapeduh constituem um conjunto diversificado de produtos, os quais podem ser incluídos em, pelo menos, três situações de investigação. A primeira delas diz respeito às sistematizações relativas às experiências que vêm sendo realizadas por professores e alunos de licenciaturas de História, a partir de práticas de ensino e investigação em aulas de História. Essas sistematizações constituem um acervo privilegiado de reflexões acerca da realidade do ensino de História no Brasil, concretizados em relatórios de práticas de estágios, arquivados no Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica, da UFPR.

Outro conjunto de produtos deriva de situações particulares de investigações que envolvem, principalmente, séries sistematizadas de reflexões e especulações acerca de determinados objetos relacionados ao ensino de História, como a análise das ideias históricas de alunos e professores, bem como de suas relações com as ideias históricas em currículos e manuais didáticos. Desse conjunto fazem parte vários trabalhos realizados, alguns publicados e outros em fase de publicação, produzidos por professores de História do ensino fundamental e médio, do Paraná, que constituem o Grupo de Educação Histórica da UFPR.

Nesta mesma direção, emerge uma terceira situação, na qual podem ser contextualizados os trabalhos produzidos a partir de esforços intencionais de investigação, que supõem uma adequação teórica e metodológica, uma delimitação de campos e objetos de pesquisa, bem como uma finalidade em termos de sua significância social na área educacional. Exemplos dessa produção podem ser encontrados nas dissertações e teses produzidas pelo grupo de pesquisa Escola, ensino e Educação Histórica, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

Indica-se, aqui, a pertinência de investigações “em escolas”, as quais têm como objeto o “ensino de” e, portanto, pautam-se no repertório da ciência de referência e seu ensino específico, mas também encetam um diálogo mais próximo com perspectivas teórico-metodológicas empíricas da pesquisa educacional, como aquelas de cunho antropológico e sociológico. Tais investigações podem contribuir, na opinião de Cuesta Fernandez (1997;1998), para ajudar a compreender a construção do “código disciplinar” da História, apreendido a partir de pesquisas e reflexões acerca de como os “textos visíveis” como currículos e manuais, bem como os “textos invisíveis”, tais como as ideias e as práticas culturais de jovens e crianças se concretizam em experiências escolares, tendo como referência o estado atual da ciência e sua relação com os modos de educar de cada sociedade e suas múltiplas determinações.

Os resultados dessas investigações indicam a opção pelo campo da Educação Histórica, mas com o foco preciso nas situações de escolarização, por exemplo, em estudos na sala de aula, tornando-a o centro de referência para estudos como os de currículo e eficiência do ensino e da aprendizagem e também procurando os processos que têm lugar na sala de aula. Algumas referências das investigações já realizadas ou em andamento, baseiam-se nos fundamentos da sociologia crítica inglesa, cujas manifestações podem ser observadas, por exemplo, nos trabalhos de Raymond Williams, Basil Bernstei e Stuart Hall relativos aos estudos culturais3. Outras referências para o estudo dos processos de escolarização e das relações dos sujeitos com o conhecimento em situações de escolarização estão pautadas nas propostas da pedagogia de Paulo Freire e no campo da sociologia da experiência, particularmente os trabalhos de François Dubet e Bernard Charlot. Esses trabalhos tratam de investigações que englobam temáticas como relações de gênero e ensino, questões de identidades e ensino, exclusão / inclusão e ensino, bem como a especificidade das relações dos sujeitos com o conhecimento escolar, na dimensão da cultura e da sua relação com os processos de escolarização.

De modo geral, os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos propõem um diálogo com as metodologias de investigação qualitativa, na área educacional. Nessa direção, orientam-se, principalmente, em dois pressupostos. O primeiro deles parte da referência à investigação de natureza qualitativa, enquadrando-se na perspectiva de Eisner (1998), da “indagação qualitativa”. Para esse autor, a “indagação qualitativa” procura entender o que os professores e os alunos fazem e os grupos em que trabalham, bem como trabalham. Assim, segundo Eisner, para se alcançar esses objetivos, é necessário prestar atenção às escolas e às aulas, observa-las e utilizar o que vemos como fonte de interpretação e valoração (1998; 28). O segundo pressuposto baseiase na perspectiva da “construção social da escola” (Rockwell, 2011) e, por isto, a escola passa a ser considerada o lugar de onde partem as perguntas iniciais das atividades e investigações, como: o que acontece em aulas de História? Como ocorrem as mudanças? Como se processa ali o ensino? Que tipos de relações os sujeitos estabelecem com o conhecimento histórico? Quais são ou como professores e alunos elaboram a sua compreensão sobre as ideias históricas? Que significados o conhecimento histórico tem para os sujeitos envolvidos no processo ensino / aprendizagem? Como jovens e crianças reagem aos processos de produção do conhecimento histórico? Qual o resultado do conhecimento histórico na formação da consciência histórica de jovens e crianças?

Na Universidade Estadual de Londrina a investigação no campo da Educação Histórica acontece a partir de dois referenciais: do grupo de pesquisa História e Ensino de História certificado no conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), grupo que agrega professores pesquisadores e alunos de iniciação científica e mestrado cujas atividades de pesquisa têm como foco o Ensino de História e, mais particularmente, a Educação Histórica e do Mestrado em Educação mais especificamente a linha de pesquisa Perspectivas Filosóficas, Históricas e Políticas da educação no núcleo de investigação: – História, Cultura, Escola e Ensino.

Os projetos de Pesquisa e as dissertações desenvolvidas assim como o Grupo da Universidade Federal do Paraná se concentram em situações de escolarização com pesquisas qualitativas com perspectiva teórica e metodológica de investigação no campo denominado Educação Histórica, que por sua vez tem como uma de suas preocupações de pesquisa buscar elementos para a compreensão da consciência histórica, em especial de crianças e jovens, tendo em conta que o campo principal de analise é a educação formal e informal. Desta maneira, as pesquisas que se desenvolvem se debruçam com o objetivo de indagar como os conceitos históricos são compreendidos pelos indivíduos em tempos e espaços determinados, em diferentes sociedades.

A perspectiva da Educação Histórica compreende que a História é uma ciência considerando a existência de uma só explicação ou narrativa sobre o passado, mas que possui diversas perspectivas, entendendo que há uma objetividade na produção do conhecimento histórico. Desta forma, a história precisa ser conhecida e interpretada, tendo como base as evidências do passado e o desenvolvimento da ciência e de suas técnicas. Neste sentido, a Educação Histórica atribui uma utilidade e um sentido social ao conhecimento histórico, como por exemplo, a formação da consciência histórica.

Diversos conceitos têm sido alvo na pesquisa da Educação Histórica, como o conceito de significância, mudança, evidência, consciência histórica e narrativa histórica, nas pesquisas desenvolvidas na Universidade Estadual de Londrina nossos objetivos se concentram em investigar processos de aprendizagem em Educação Histórica procurando responder como acontece o processo de produção de narrativas históricas pelos alunos, a partir das aulas de história e do uso de livros didáticos, tendo como suporte o significado do ensino de História na formação do pensamento histórico. Como objetivos específicos dessas investigações podem ser citados: Analisar a produção de narrativas históricas pelos alunos, procurando entender a sua compreensão histórica, tendo como referencia a função da explicação histórica na produção de narrativas históricas.

Caracterizar os tipos de narrativas históricas presentes nos livros didáticos de História distribuídos pelo Ministério da Educação.

Investigar a formação da consciência histórica materializada nas narrativas produzidas pelos alunos do ensino fundamental segundo segmento.

Aprofundar estudos na metodologia da educação histórica especificamente na formulação de categorias de analise dos instrumentos de pesquisa em educação histórica.

Nesse sentido alguns trabalhos desenvolvidos na Universidade Estadual de Londrina merecem destaque. A pesquisa realizada por Tiago Costa Sanches (2010) intitulada Saberes históricos de professores nas séries iniciais: algumas perspectivas de ensino em sala de aula se detiveram em investigar o conjunto de fundamentos teóricos e metodológicos específicos da disciplina de História apropriado pelo professor das séries iniciais no processo de ensino aprendizagem da disciplina. Para tanto o pesquisador observou aulas, entrevistou professores realizou estudos exploratórios em uma escola da prefeitura do município de Londrina.

A dissertação de mestrado desenvolvida por Lidiane Lourençato (2012) intitulada A Consciência histórica dos Jovens-Alunos do Ensino Médio: Uma Investigação com a Metodologia da Educação Histórica investigou como os jovensalunos identificam a evidência histórica e o sentido de fonte para a produção do conhecimento histórico, assim como discutiu o conceito de temporalidade, tanto na história como em sua vida prática. A pesquisa de campo foi realizada em duas escolas localizadas no município de Londrina – Paraná – Brasil. A pesquisa utilizou como metodologia observações das aulas de História e análise de questionários investigando como estes jovens-alunos trabalham com os conceitos históricos, como temporalidade, fonte histórica e como lidam com o caráter de evidência histórica. Também foram observadas quais as relações que estes sujeitos estabelecem entre a história ensinada e a vida prática.

Ainda merece destaque as pesquisas realizadas pelos professores do Grupo de Pesquisa História e Ensino, com projetos de pesquisa que seguem a perspectiva da investigação em Educação Histórica de aproximar-se do pensamento de alunos e professores para compreender as ideias históricas, as relações dos sujeitos com o conhecimento histórico, tendo como referencial a epistemologia da História e relacionar esse conhecimento com a possibilidade de organização didática do ensino, com a aprendizagem nas aulas de História e em outros espaços sociais em que o conhecimento histórico é apreendido. Foram desenvolvidos até o presente momento três projetos: Educação Histórica: Iniciando crianças na arte do conhecimento histórico (2005- 2008), Educação Histórica: um estudo sobre a aprendizagem da história no processo de transição para a quinta série (6º ano) do ensino fundamental. (2009-2011) e atualmente o projeto: Projeto de Pesquisa: Educação histórica: um estudo sobre a forma de constituição do pensamento histórico em aulas de História do Brasil no ensino fundamental (2012 – 2014).

Nos projetos desenvolvidos o grupo de pesquisa está tentando compreender as noções que os alunos constroem sobre a história a partir da progressão da aprendizagem na escola formal. O interesse como afirma Barca (2011) é entender como se forma as ideias históricas dos alunos, em primeiro lugar porque só se pode mudar aquilo que se conhece e em segundo lugar para promover um conteúdo histórico estruturante que não valorize apenas a reprodução pouco refletida de conhecimento de temáticas curriculares, mas também a formação da consciência Histórica. As ideias são coletadas através da construção de narrativas pelos alunos, entendendo a narrativa no sentido atribuído por Isabel Barca (2011) “como expressão de ideias sob qualquer formato – que se comunica a compreensão histórica e os sentidos que lhes são atribuídos” e Rüsen (2001) que afirma ser a narrativa histórica a face material da consciência histórica mesmo que seja um relato descritivo-explicativo do passado.

Assim os artigos apresentados neste dossiê representam junto com os trabalhos desenvolvidos nestas duas instituições referencias das pesquisas que estão sendo realizadas no Brasil com a temática da educação Histórica tendo como perspectiva questões relacionadas à teoria e a historiografia. Também são apresentados dois artigos de pesquisadores convidados do pesquisador Jorn Rüsen da Universidade e o artigo do pesquisador Peter Seixas da University of British Columbia  (Canadá). Esperamos que a leitura deste número da revista Antíteses possa contribuir para o aprofundamento das discussões desta área de investigação no Brasil.

Notas

3. Uma discussão sobre esta temática pode ser encontrada em CEVASCO, Maria Elisa. Cultura: um tópico britânico do marxismo ocidental. In. LOUREIRO, I.M. / MUSSE, R. (org.). Capítulos do Marxismo Ocidental. São Paulo: UNESP, 1998, pp.145-171

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Marlene Cainelli – Docente da Universidade Estadual de Londrina, curso de História e do Mestrado em História Social.

Maria Auxiliadora Schmidt –   Docente da Universidade Federal do Paraná, curso de Educação e do Mestrado em Educação.

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Historiografia em Perspectiva: Histórias, Projetos e Saberes / Revista de Teoria da História / 2012

Enquanto veículo de um pensamento histórico academicamente reconhecido – como discurso da disciplina da história – a historiografia é obrigada a lidar, sempre que se quer digna de crédito, com a postulação do seu próprio campo, justificando-se quanto a fundamentos, interesses e procedimentos, e fazendo-o conforme o seu ofício: fazendo história.

Em outras palavras: pari passo à incursão propriamente filosófica, e à análise oriunda de outros campos do saber – as contribuições da sociologia, da psicologia, da antropologia, da ciência política e da linguística, para nos atermos tão somente às humanidades – o empreendimento teórico, para os historiadores, inclui a perspectiva temporal: o levantamento de dados, a construção de um acervo, ou memória historiográfica, a genealogia e – talvez o exercício mais evidente – a história intelectual, dos saberes e das ideias. Leia Mais

História e Historiografia / Territórios & Fronteiras / 2012

O conjunto de textos que compõem o presente dossiê tem como espoco analítico abordar o campo de estudo da “historiografia” a partir de temáticas, temporalidades, prismas teóricos diversos. Há abordagens, por exemplo, que variam desde o estudo do trato dado a noção de história por Hannah Arendt até as configurações da historiografia regional de Mato Grosso. Como o leitor poderá observar, a riqueza das discussões reside justamente na tentativa de aproximação desta diversidade de olhares e de concepções sobre Teoria, Historiografia e História.

Dentro deste cenário, a proposta de Ricardo Gião Bortolotti, eminente filósofo de formação densa nos quadros da UNESP e PUS-SP e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP–Assis), em seu estudo “Vagueza e indeterminação na noção de História de Arendt” centra-se na análise de alguns escritos de Hannah Arendt a respeito da narrativa histórica à luz das leituras das teorias da cognição e do signo de Charles S. Pierce, numa lógica de aproximação entre o “modo de conceber o pensamento e a linguagem” em ambos como frutos da experiência e da indeterminação, o que lhes conferiria status de narrativa livre para além das “regras transcendentais”.

Em seguida, somos brindados com uma perspicaz discussão sobre o papel dos intelectuais no mundo social, feita com clareza ímpar pelo historiador Rodrigo Davi Almeida, professor do Departamento de História da UFMT, autor de um doutoramento e de um livro (Sartre no Brasil: expectativas e repercussões, UNESP, 2009) a respeito de ninguém menos que Jean-Paul Sartre, certamente um dos intelectuais mais expressivos e combativos do século XX. A discussão feita por Rodrigo Davi Almeida sobre esta temática contribui para os estudos historiográficos na medida em que delimita, com clareza, as posições de três importantes teóricos a respeito deste campo, a saber: o historiador Jean-François Sirinelli; o filósofo Jean-Paul Sartre e o cientista político Norberto Bobbio. As noções de engajamento e fazer político são centrais neste estudo.

Milton Carlos Costa, historiador com formação sólida entre a escola europeia (Leuven-Bélgica) e a brasileira (USP), com um diálogo inicialmente forte com o marxismo e posterior aproximação com a historiografia da Escola dos Annales, é professor Livre-Docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Assis, e nos apresenta aqui um estudo intitulado “Duby: uma perspectiva histórica sobre as mulheres medievais”. Neste texto o autor aborda, de forma detalhada, uma das temáticas mais instigantes do medievo no século XII, o casamento e o papel social das mulheres. Desenvolve tal temática por meio de interpretação e análise minuciosa do livro Heloísa e Isolda e outras damas do século XII, obra de um dos mais importantes historiadores do período, Georges Duby, medievalista que expressa uma forma de historiografia francesa proveniente da Escola dos Annales e que, nesta obra, demonstra com sutileza “como as mulheres medievais foram submetidas às mentalidades e práticas de controle de uma sociedade profundamente misógina”.

O quarto texto deste dossiê é de Cândido Moreira Rodrigues, historiador vinculado ao Departamento e ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, autor de A Ordem: uma revista de intelectuais católicos-1934-1945 (Autêntica, 2005) e Intelectuais & Comunismo no Brasi: 1920-1950 (EdUFMT, 2011). Formado na escola historiográfica paulista e com forte diálogo com a historiografia francesa, política e cultural, o autor apresenta aqui o texto “Notas sobre a ‘fortuna crítica’ do intelectual Alceu Amoroso Lima”, onde mapeia e descreve os alguns dos principais trabalhos (teses, dissertações e livros) a respeito do crítico literário, político e religioso Alceu Amoroso Lima produzidos recentemente. O texto serve como uma das muitas referências para os pesquisadores e estudiosos da trajetória deste importante intelectual das letras e da pólítica brasileira, embora não se pretenda e nem apresente uma recensão completa e absoluta dos trabalhos sobre este intelectual.

O estudo que encerra esta seção é fruto do trabalho coletivo dos historiadores Vitale Joanoni Neto, Maria Adenir Peraro, Otávio Canavarros e Fernando Tadeu de Miranda Borges: todos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT e com importante produção sobre a história do Brasil, com ênfase na sua interface com as especificidades do regional, neste caso a historiografia de Mato Grosso. Os autores são formados nas tradições intelectuais das escolas, paulista (USP, UNESP) e paranaense (UFPR), com trabalhos que transitam nos campos da história econômica, história social e história cultural. O texto apresentado é fundamental para a compreensão de parte da formação do campo dos estudos historiográfico sobre o Mato Grosso, neste caso com destaque para a produção dos historiadores vinculados às instituições universitárias de Mato Grosso: Universidade Federal de Mato Grosso e Universidade do Estado de Mato Grosso. Destaca-se a análise a respeito do processo de construção de parte do campo historiográfico mato-grossense, expresso tanto por meio da formação dos quadros profissionais, entre as décadas de 1980 e 2000, quanto pela consolidação das Instituições de Ensino e Pesquisa no Estado. Sendo assim, este dossiê é encerrado com este texto classicamente exemplar, onde o leitor poderá visualizar a formação do “campo” historiográfico mato-grossense por meio do olhar de alguns dos seus expoentes e igualmente depreender as mudanças no seu interior a partir das aproximações e distanciamentos, teórico-epistemológicos, entre os agentes e gerações.

Cândido Moreira Rodrigues – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


RODRIGUES, Cândido Moreira. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.5, n.1, jan / jul, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Ciências, Saúde e Historiografia | Temporalidades | 2011

Dando prosseguimento à ideia de dossiê temático, apresentada na edição passada, a Temporalidades traz, nesse número, um dossiê com foco na História da Ciência. Com efeito, é importante destacar que se apresentam aqui trabalhos de qualidade não apenas de jovens historiadores, mas de jovens historiadores da ciência, isto é, de uma área relativamente recente entre nós. Este fato é de especial importância porque serão jovens historiadores os responsáveis pela pavimentação definitiva, no Brasil, dessa importante área de pesquisa.

Completando os artigos com o enfoque na História da Ciência, o periódico traz ainda uma entrevista com o veterano Historiador da Ciência, professor Carlos Alvarez Maia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

A cada número, a Temporalidades consolida mais e mais o seu caminho mostrando a que veio jovens historiadores ávidos de realizarem suas pesquisas, bem como mostrar o resultado alcançados por elas. A grande qualidade desses textos mostra a importância de veículos para a apresentação de trabalhos discentes.

Na qualidade de editor, reconheço aqui que esse número não seria possível sem todo o trabalho e esforço, em sua montagem, dos membros editoriais da Temporalidades.

Por fim, possa o leitor ter, mais que as informações e reflexões trazidas por esses textos, o prazer da leitura.

Mauro Lúcio Leitão Condé


CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.3, n.2, ago./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia / Contraponto / 2011

Num tempo em que o mérito acadêmico e a produção intelectual são medidos essencialmente pela quantidade de textos que somos capazes de publicar, a iniciativa, surgida do Centro Acadêmico de História da UFPI, em criar a Contraponto é regida pela preocupação com a qualidade dos artigos que pretende divulgar. Assim sendo, essa publicação do corpo discente do Curso de História, em parceria com o PET de História da Universidade Federal do Piauí, pretende se constituir como um espaço de interlocução plural na historiografia brasileira.

Essa ambição, presente já nessa edição inaugural, não parece desmesurada. Afinal, além de quatro colaborações oriundas do Programa de Pós-graduação em História do Brasil (PPGHB) da UFPI, universidade em que a Contraponto está sediada, publicamos também dois artigos de mestrandos do vizinho Ceará, um do Rio Grande do Sul e uma resenha proveniente do Paraná. Por isso, não nos resta dúvida do alcance que a revista certamente terá.

É do extremo sul do país que vêm o artigo que abre nosso dossiê inaugural de HISTORIOGRAFIA. Alexandra Coda aponta de forma pertinente e instigante o lugar dos historiadores na história do Direito, antes frequentada majoritariamente por juristas. O que propõe é o necessário diálogo entre esses dois campos, à luz das contribuições teóricas de Certeau, Bourdieu e Hespanha. A leitura desse texto não deixa dúvida sobre a pertinência da abordagem dos historiadores nessa história contemporânea do Direito.

E como é cada vez mais necessário revisitar a Ditadura Militar, Sérgio Mendes nos conduz àquele período através de um panorama da imprensa alternativa que marcou os anos de chumbo. Ancorado no texto fundador de Bernardo Kucinski, o historiador analisa as significativas contribuições de Maria Paula Nascimento Araújo e Alzira Alves de Abreu para situar o leitor no debate historiográfico sobre o tema.

Já a historiadora Nercinda Brito nos convida a olhar Teresina de modo bastante singular e envolvente. Tendo como objeto central de pesquisa a morte, nos ensina que a mesma também precisa ser devidamente historicizada e desnaturalizada. Não se morre hoje como se morria há um século na capital do Piauí. Para investigar as representações e práticas em torno da morte, no início do século XX, em Teresina, a partir dos discursos literários, religiosos e médicos da época, a autora analisa como a historiografia tem abordado esse tema.

Fechando o dossiê, João Paulo Costa retoma o clássico Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, relacionando-o com a produção de autores conhecidos como “indianistas” no século XIX. A intenção deste estudo é dimensionar o efetivo papel que, na perspectiva de Capistrano, tiveram os povos indígenas na formação da sociedade brasileira. Num tempo marcado pelo embate entre os historiadores vinculados ao IHGB – e tudo que este representa – e os defensores do “indianismo”, em torno da definição de um projeto de identidade nacional, a pergunta que dá título ao artigo soa como um convite à leitura: para que serve o índio na história do Brasil?

Passemos à Seção Livre da revista, mas continuemos nos clássicos. Ainda que seja um clássico meio esquecido, negligenciado nas disciplinas regulares dos cursos de História pelo Brasil afora, mas indubitavelmente um clássico. Josenias Silva compartilha sua particular experiência de leitura e descoberta da obra América Latina (1905), de Manoel Bomfim, procurando aquilatar o seu legado para a historiografia brasileira e para quem pretende pensar e refletir sobre o nosso país. A certa altura, o autor do artigo se pergunta: Por qual razão não conheci Bomfim antes? E você, caro leitor, já o conhece?

Pedro Pereira da Silva Guimarães foi deputado geral pela província do Ceará entre os anos de 1850 e 1854. Atuou também como redator e criador de alguns jornais, a exemplo de O Popular, além de ter sido um escritor de verve irônica e polemista. Mas o que Eylo Rodrigues analisa em seu artigo é a contribuição dos projetos desse parlamentar para a chamada Lei do Ventre Livre, sancionada em 28 de setembro de 1871. Temos assim uma boa medida do quanto esses projetos influenciaram os estudos de juristas dos anos 1860, refletindo-se na elaboração da referida lei.

Por fim, Renata Monteiro examina como a ciência adentrou o sertão do Ceará no final do século XIX. A grande seca de 1877-79 ensejou a vinda de diversos engenheiros para essa região, com o intuito de planejar e executar obras públicas que atenuassem ou resolvessem definitivamente esse problema secular. Temos então uma análise da atuação desses homens da ciência na construção do açude Cedro, localizado em Quixadá.

Raphael Carvalho brinda-nos ainda com uma resenha d’O desafio biográfico, de François Dosse. Como o gênero continua em evidência no mercado editorial, sobretudo na pena dos jornalistas, refletir sobre esse desafio que se impõe aos historiadores é algo da maior relevância. O trabalho em questão “sobre o gênero biográfico é, também, uma verdadeira exposição e problematização dos aspectos mais recentes e complexos em que se confrontam as ciências humanas e a teoria da história”. Tais palavras transcritas da resenha, por si só, justificam a leitura do livro que é objeto da primeira resenha publicada em Contraponto.

E que venha o segundo número!

Denílson Botelho


BOTELHO, Denílson. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 1, n. 1, jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Racismo: história e historiografia / História Social / 2010

Introdução: a história social e o racismo

O tema que preside o dossiê desta nova edição da Revista História Social pode parecer corriqueiro para muitos, mas não é. Durante muito tempo, o racismo foi um objeto das ciências sociais e, sob a rubrica das “relações raciais” ou da “questão negra”, diversos estudos sobre o assunto foram realizados pela antropologia e pela sociologia. Os historiadores ficaram relativamente de fora do debate, salvo por algumas incursões na área da história intelectual e das ideias. Talvez o fato possa ser explicado pela intensa politização do tema, geralmente relacionado à necessidade de se responder questões candentes sobre as características da sociedade brasileira ou de relacionar a natureza das relações sociais no Brasil ao desenvolvimento do país. Enquanto os historiadores preocupavam-se mais com o processo de formação dessa sociedade, os estudiosos de outras áreas lidavam com temas candentes e aparentemente mais próximos dos dilemas sociais.

De um modo ou de outro, no entanto, sociólogos e antropólogos recorreram à história para lastrear suas interpretações. Gilberto Freyre, por exemplo, criticou as análises racistas que dominavam a cena política nas décadas iniciais do século XX, mostrando que a “predisposição do português para a miscigenação” e para a “colonização híbrida e escravocrata nos trópicos” havia levado o Brasil a relações raciais menos tensas e a valorizar o mestiço, figura-chave na formação da identidade nacional. Tais ideias, inovadoras nos anos 1930, logo se desdobraram na famosa tese da democracia racial brasileira e fizeram fortuna, lastreando-se sempre numa visão positiva do processo colonizador nessa parte da América. Seus críticos, especialmente aqueles que escreveram na década de 1960, como Florestan Fernandes, deslocaram a avaliação do fenômeno da colonização para as relações de poder inerentes à escravidão: invertendo as conclusões de Freyre, atribuíram à dominação e à exploração escravistas as condicionantes que haviam alijado os negros do mercado de trabalho, impedindo-os de se integrarem à sociedade de classes.

A última posição prevaleceu, e o racismo acabou sendo frequentemente explicado como um “legado da escravidão”: uma herança do passado colonial que sobreviveu por quase todo o século XIX, deixando marcas profundas na sociedade brasileira, como um pecado de origem. Essa visão da história contém pelo menos dois elementos distantes da perspectiva dos artigos que compõem o dossiê “Racismo: história e historiografia”. De um lado, toma a escravidão como um fato único, constituído de características específicas, sem que na sua constituição estejam presentes lutas, tensões e conflitos, sem que haja mudanças em suas características ao longo do tempo. De outro, o próprio racismo perde historicidade: ao se tornar um fato decorrente da escravidão, ganha certa naturalidade, constituindo-se como uma prática a ser denunciada, mas que está sempre remetida a outro tempo – uma incômoda permanência do passado.

Diferentemente, os artigos deste dossiê analisam questões específicas, em busca da compreensão dos embates entre os diversos sujeitos históricos e do modo como eles entendiam as circunstâncias nas quais estavam vivendo. A abordagem, característica da história social, faz com que, para compreensão da história do racismo, seja necessário repensar as relações entre escravidão e liberdade. Três textos ocupam-se desse tema, com contribuições importantes.

Ao abordar a experiência dos libertos ao longo do século XIX, Sidney Chalhoub mostra a dificuldade que senhores de escravos, políticos e autoridades policiais tinham em lidar com a liberdade daqueles que conseguiam a alforria. Se o Brasil possuía maiores taxas de alforria que outras nações escravistas, isso não significou uma distensão nas relações sociais; ao contrário. Na conjuntura da abolição do tráfico atlântico de escravos, o contingente de libertos vivia sob a ameaça da revogação da alforria, da reescravização e da escravização ilegal – práticas que se associavam a diversas restrições dos direitos de cidadania para esses homens e mulheres que haviam conseguido escapar da escravidão. Tais tensões cresceram ainda mais no momento da Abolição e logo depois dela. Walter Fraga e Wlamyra Albuquerque examinam esse período, mostrando como até mesmo as festas em torno da libertação dos escravos estavam repletas de preocupações e disputas a respeito dos destinos dos ex-escravos e como, nesse ambiente de mudanças e incertezas, a ideia de “raça” foi ganhando cada vez mais espaço.

Assim, mais que a escravidão ou a exploração escravista, era a liberdade, durante a vigência da escravidão e depois da abolição, que provocava tensões: as conquistas dos ex-escravos e suas reivindicações colocavam em causa as políticas tradicionais do domínio senhorial. Como se vê, há aqui uma nova maneira de se abordar a história da escravidão. Ao mesmo tempo, e por decorrência, o racismo deixa de ser um conjunto de ideias ou um “fato”, que pode ser linearmente explicado, para enraizar-se no terreno das relações conflituosas entre sujeitos historicamente situados, mudando ao longo do tempo. Deixa, portanto, de ser algo que ocorre depois da escravidão, ou está mecanicamente associado ao processo da abolição, para ser um processo inerente às tensões entre escravidão e liberdade.

O dossiê é composto ainda por três outros artigos, que exploram dimensões das abordagens mais recentes da história do racismo e seus desdobramentos. Petrônio Domingues ataca outro aspecto da “naturalização” do racismo – o que pressupõe que os negros são um grupo homogêneo, naturalmente irmanado, sem dissensos internos. Ao examinar as associações afro-paulistas de Rio Claro que lutavam contra o preconceito e a discriminação num contexto em que as políticas públicas fundavam-se no racismo científico, o texto nos mostra como o enfrentamento do racismo nem sempre se fez de um mesmo modo, com os mesmos objetivos. O texto de Jerry Dávila aborda um tema diametralmente diverso, ao analisar a inflexão do pensamento de Gilberto Freyre, quando foi chamado a se pronunciar sobre o apartheid sul-africano na década de 1950. A análise de um relatório produzido por Freyre e do modo como foi lido e avaliado naquele contexto internacional permite mostrar nuances na formulação das teses que se recusam a reconhecer a existência do racismo no Brasil. Por fim, mas não em último lugar, Robert Slenes atualiza o tema, ao mostrar o quanto a incorporação dos estudos africanistas é capaz de proporcionar uma alteração nos paradigmas tradicionais dos estudos na área das ciências humanas e sociais.

Esses três textos tratam de facetas diversas dos movimentos sociais ligados ao racismo. O exame mais cuidadoso das modalidades de luta contra a discriminação em contextos específicos é tão importante quanto a análise cuidadosa do modo como se desenvolveram as ideias que defendem a existência de uma harmonia racial no Brasil: é só por meio de estudos circunstanciados que conseguiremos entender como pensamentos, valores e projetos ganharam corpo e mobilizaram pessoas ao longo do tempo. É essa disposição de esmiuçar o tema em seus diferentes matizes, à procura dos pilares capazes de fundar diferentes propostas para a conformação das relações sociais no Brasil, que renova o estudo do tema e pode levar, também, a redimensionar o modo como compreendemos o quadro de disciplinas que compõe a área das ciências humanas.

A leitura de todos esses textos mostra o quanto é preciso desnaturalizar o racismo e as noções que muitas vezes têm servido para sua análise. A abordagem da história social, ao levar em conta os interesses em confronto e procurar examinar os sujeitos em seus contextos específicos, indica um novo caminho para o entendimento do tema, e propõe uma nova maneira de conceber a relação entre as várias áreas das ciências humanas. Como se pode ver, um tema instigante, tratado de forma bem pouco corriqueira. Aqui, a história não é um baú no qual se escondem explicações simplistas para as mazelas da sociedade brasileira, mas a matéria mesma que a constitui: por isso, o estudo de um tema como o do racismo é sempre uma atitude política – no passado, e no presente.

Silvia Hunold Lara – Professora Titular, Departamento de História, UNICAMP.


LARA, Silvia Hunold. Introdução. História Social. Campinas, n.19, 2010. Acessar publicação original [DR]

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A historiografia em época de crise: 1750-1850 / História da Historiografia / 2010

A história da historiografia pós Giro Linguistico: para além da metáfora dos lugares

Independentemente das avaliações que possamos fazer das polêmicas produzidas pelo Giro Linguistico, a historiografia que hoje praticamos foi profundamente afetada por ele. Uma melhor compreensão dos aspectos não representacionais da linguagem revelou ao historiador uma nova extensão da realidade. A forma como lemos os textos transformouse, não estamos mais limitados aos seus conteúdos imediatos, aprendemos a perguntar por estruturas e fenômenos da linguagem, pela dimensão performativa dos discursos. Não apenas decifrar o sentido, mas descrever seus significados contextuais. A noção de contexto deixou de coincidir com o enquadramento dos objetos no estado-da-arte da história social; ele foi desnaturalizado, tornando-se um problema / objeto da pesquisa. No lugar do famigerado “contexto histórico”, aprendemos a desconstruir as imagens historiográficas e apontar novos problemas. Os diferentes campos da historiografia são afetados de modo distinto, mas na medida em que esse outro continente vai revelando sua extensão, os resultados dessas pesquisas afetam nossa compreensão da história.

A escrita da história deve ser estudada pelo uso de múltiplas ferramentas teórico-metodológicas. Durante muito tempo a metáfora do lugar pareceu dar conta dessas diferentes dimensões da escrita, mesmo que ela implicasse pontos cegos relevantes, como o da garantia epistemológica do lugar do qual se poderia analisar criticamente. A metáfora dos lugares parece ainda devedora da determinação externa da linguagem, sem permitir ver a própria linguagem como um lugar. Talvez pudéssemos substituí-la pela pergunta pelas situações ou modos de produção da historiografia, incluindo a linguagem em sua dimensão performativa. Não parece ser acidental que as principais fontes de inspiração para as novas agendas de pesquisa caminhem na direção de metáforas temporalizadas ou multidimensionais, tais como cronótopos, regimes, experiências, contextos, horizontes e expectativas. Leia Mais

Mundos do Trabalho: história e historiografia / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2010

Apresentar mais uma Edição da Revista Eletrônica História em Reflexão (REHR) é motivo de imensa satisfação. Fruto de um esforço coletivo dos editores discentes do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados, dos membros do Conselho Editorial e do Consultivo, a cada lançamento a REHR tem dado passos relevantes na tarefa de se consolidar como meio de interlocução acadêmica na área de História em Mato Grosso do Sul, e no cenário brasileiro. Para tanto, evidentemente, vale destacar a confiança dos diversos autores de todo o país que contribuem com seus trabalhos e acreditam na seriedade e qualidade da Revista.

Em sua VII Edição, a REHR traz o dossiê: Mundos do Trabalho: história e historiografia. Esta temática permitiu abranger diversos trabalhos com problemáticas referentes aos “mundos do trabalho”, em suas mais diferentes relações. Questões como trabalho e trabalhadores, participação política, formas de organização, resistência e cultura de classes são algumas das perspectivas que abordam os artigos que compõem o dossiê. As abordagens evidenciam também as ações de trabalhadores diante das condições de trabalho desfavoráveis, as resistências e os modos constitutivos de seus universos culturais inseridos na dinâmica do trabalho, tanto no campo quanto na cidade. Sem mais delongas, apresentamos os trabalhos!

Iniciando o Dossiê, em O Mundo do trabalho lembrado e revivido por ex-moradores da “cidade flutuante” de Manaus, Leno Barata Souza preocupou-se em discutir aspectos do mundo do trabalho em Manaus, entre 1920 e 1967, através de narrativas orais. Este período foi marcado pela formação, sobre as vias aquáticas da cidade, de uma expressão cultural marcada por modos de vida próprios que foram pontos de partida para determinadas disputas sociais. Tais disputas tornaram as margens fluviais lugar de memórias para os entrevistados de Souza, especialmente o que diz respeito às sociabilidades do mundo do trabalho. A Zona Franca, inaugurada em 1967, fez desaparecer muitas destas relações sociais, porém, ainda permanecem na memória dos entrevistados, que a utilizam para reconstruir o passado e discutir sobre presente e futuro da cidade de Manaus.

O trabalho de Eric Gustavo Cardin, Os Trabalhadores das vias Públicas de Ciudad Del Este: considerações preliminares sobre os mesiteros e suas associações problematiza aspectos das relações de trabalho estabelecidas pelos trabalhadores das vias públicas da Ciudad Del Este nos últimos trintas anos. Através de pesquisas documentais disponibilizadas pela Associação dos Trabalhadores das Vias Públicas de Ciudad Del Este, levantamentos estatísticos e entrevistas exploratórias de trabalhadores do microcentro, foi possível compreender a história dos trabalhadores e os conflitos existentes na configuração e utilização do espaço público em questão, de modo a surgir, gradativamente, diferentes ocupações e suas respectivas associações e sindicatos. Nesta perspectiva, procurou construir reflexões sobre os vínculos existentes entre as organizações sociais e a municipalidade, além de observar determinadas mudanças no funcionamento e objetivos das associações de trabalhadores, e esboçar algumas considerações sobre o perfil dos mesmos.

Saulo Álvaro de Mello, em Recrutamento Compulsório e Trabalho em Mato Grosso: disciplina, violência, castigos e reações, discute a participação de marinheiros submetidos à violência sistêmica nas embarcações da Flotilha de Mato Grosso (1825 e 1879), evidenciando assim o anacronismo e a violência verificados nas Companhias de Aprendizes Marinheiros e Imperiais Marinheiros em Mato Grosso, tal como acontecia na Marinha Imperial. Foram utilizadas como fontes documentais correspondências, relatórios provinciais e ministeriais como suporte para as discussões, que enfocaram o homem livre pobre, enjeitados, órfãos e vadios, como principais vítimas.

“E ninguém parece sentiu saudade”: narrativas e memórias da diferença, trabalhadores horteleiro no Extremo-Oeste do Paraná é ó título do artigo de Gilson Backes, que propõe investigar as dinâmicas sociopopulacionais desencadeadas nas décadas de 1960 e 1970, no extremo oeste do estado do Paraná, de modo identificar as diferentes maneiras que trabalhadores migrantes circunscreviam suas dinâmicas de trabalho no período em questão.

Raimundo Lima dos Santos discute em Manoel Conceição Santos: de camponês a líder político a história de um camponês maranhense que se tornou um dos maiores articuladores da luta camponesa em resistência ao regime militar do país. Manoel Conceição Santos foi organizador do sindicato de trabalhadores rurais no vale do PindaréMirim, no Maranhão e, posteriormente, participou da organização de entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU). Por estas ações, Manoel Conceição Santos foi perseguido, preso e torturado na ditadura militar, até ser exilado em Genebra, onde, juntamente com outros exilados políticos, organizou a luta contra governos repressivos do período. Após seu retorno ao país, depois de três anos de exílio, manteve sua luta por uma sociedade mais justa, através do trabalho de associações e cooperativas, visando o aperfeiçoamento dessas organizações e o bem-estar dos trabalhadores.

Selva Trágica: imposições e resistências é o artigo de Fábio Luiz de Arruda Herring. A proposta é analisar os pontos históricos da obra de Hernani Donato: Selva Trágica: a gesta no sulestematogrossense. As discussões estão inseridas no cone sul do atual estado de Mato Grosso do Sul, no período correspondente ao início do século XX e problematizam as imposições feitas à cultura dos trabalhadores da Companhia Matte Larangeira e as formas de resistência criadas por eles para manter os elementos constitutivos de sua cultura.

Divino Marcos de Sena, em Camapuã no Período do Ocaso das Monções: população, trabalho, lavoura, exploração e resistências explica como as monções contribuíram para garantir a expansão do território da colônia portuguesa na América, através de saídas da capitania de São Paulo, que tinham por objetivo dar suporte aos núcleos populacionais que se formavam no decorrer do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Assim, as monções proporcionaram o florescimento de vários povoados e, entre eles, Camapuã, que se tornou uma importante localidade para dar apoio aos viajantes. A proposta do autor é apresentar algumas características de Camapuã no período final da rota das monções, enfocando o quanto sua existência foi fundamental no período monçoeiro.

O trabalho de Nilo Dias de Oliveira, A Vigilância do DOPS-SP: vigia-se tudo e todos, analisa a prática da vigilância do Serviço Secreto do DOPS-SP durante a década de 1950, que durante o período, recaiu sobre os mais variados personagens da esfera civil e militar do país. Foram evidenciadas como, no período, qualquer tentativa de participação ou engajamento político partidário ou mesmo movimentos reivindicatórios que demonstrasse ser de posição contrária ao estabelecido pelas esferas governamentais tornava-se alvo de suspeita imediatamente.

Encerrando o Dossiê, Jorge Eremites de Oliveira, em Sobre a Necessidade do Trabalho Antropológico para o Licenciamento Ambiental: avaliação dos impactos socioambientais gerados a partir da pavimentação asfáltica da Rodovia MS-384 sobre a comunidade Kaiowa de Ñande Ru Marangatu, apresenta uma avaliação dos impactos socioambientais sofridos pela comunidade Kaiowa de Ñande Ru Marangatu durante e após a construção da rodovia estadual MS-384, no distrito de Campestre, município de Antônio João. O estudo enfoca os muitos aspectos negativos diretos na comunidade, que se estruturaram em dois momentos: o primeiro durante a pavimentação asfáltica e o segundo após sua inauguração, e vão desde a discriminação racial, doenças decorrentes da inalação de poeira e do estresse causado durante a obra até atropelamentos com vítimas fatais.

Na sessão de Artigos Livres, iniciamos com o artigo de Edianne dos Santos Nobre: Porta dos Céus: Juazeiro como lugar de salvação a partir de narrativas femininas (Ceará, 1889-1896). O artigo se propõe analisar as narrativas das beatas envolvidas nos episódios de fé em Juazeiro, de modo a compreender, a partir de tais narrativas, as imagens que fundaram o local como um espaço sagrado e de salvação nas imagens presentes em um conjunto de narrativas femininas no final do século XX.

Literatura e Política na Revolução Mexicana: a visão crítica de Mariano Azuela é o artigo de Warley Alves Gomes que discute como a Revolução Mexicana, marco na história daquele país, teve seus desdobramentos por todo o século XX, principalmente no que concerne o intenso caráter popular e a participação das classes populares, até então à margem da vida política mexicana. A Revolução Mexicana é vista neste artigo a partir da visão crítica de Mariano Azuela, um renomado escritor mexicano, que evidencia como as artes e literatura exerceram um importante papel na reflexão sobre o conflito.

Margarida do Amaral Silva, em Codificação das Diferenças: a invenção do homem latino propõe discutir as desconstruções dos discursos produzidos sobre aqueles dos quais suas vozes sempre foi nula ou irracionalizada pelas teorias vigentes sobre grupos subalternos, no que diz respeito à raça, gênero ou posição social. A subalternidade racial é adotada como perspectiva por discutir e ampliar a visão da idéia de subalternidade das colônias modernas, da racionalização do sujeito e do conhecimento.

Hermes Gilber Uberti, no artigo: Assumindo Outros Papéis: o caso da viúva Francisca Pereira Pinto, teve por objetivo analisar situações ligadas à trajetória da mulher no processo de povoamento e colonização da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, a partir da análise das migrações que Francisca Pereira Pinto realizou ao longo do século XIX naquela região. Alguns papéis foram assumidos por ela, ao longo das andanças, entre os quais o de viúva que a levou, entre outras coisas, a assumir a gerência dos negócios, condição que a fez recorrer a diferentes instâncias do poder para fazer valer seus direitos. Além do patrimônio, estavam em jogo interesses outros, como seu reconhecimento social, sua respeitabilidade e o nome da família que pertencia.

Janderson Clayton Farias Machado, com o artigo: O Despertar do Recife no Brasil Holandês propõe abordar como se estruturou o desenvolvimento experimentado por Recife após a invasão holandesa em Pernambuco, enfocando as transformações que a tornaram um grande centro político, econômico e cultural na América Portuguesa, considerando a importância que a administração de Maurício de Nassau teve e o modo como ficou marcada na história de Pernambuco.

Estados Unidos: o contexto dos anos 1970 e as crises do petróleo é o artigo de Havana Alicia de Moraes Pimentel Marinho, que discute o panorama das várias crises dos anos 1970 dentro da perspectiva dos Estados Unidos. No período em questão, dominava a sensação de forte declínio da economia após os frutíferos “anos dourados” do pós-guerra, deste modo, as conseqüências políticas e econômicas dos acontecimentos e as decisões da política externa serão avaliadas no período proposto.

Finalizando a Edição, apresentamos duas resenhas: O desafio biográfico (2009), de Dosse François, resenhada por Fernanda Lorandi Lorenzetti, e George Zeidan Araújo apresentou a resenha da obra Política, cultura e classe na Revolução Francesa (2007), de Lynn Hunt.

Desejamos prazerosas e profícuas leituras!

Camila Cremonese Adamo

Fabiano Coelho

Daniele Reiter Chedid

Cássio Knapp

Fernanda Chaves de Andrade

(Editores) Dourados – MS, Inverno de 2010.


CREMONESE, Camila Adamo; COELHO, Fabiano; CHEDID, Daniele Reiter; KNAPP, Cássio; ANDRADE, Fernanda Chaves de. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 4 n.7, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia e Saber Médico em Goiás / Revista do IHGGO / 2010

O I Simpósio de Históriografia e Saber Médico em Goiás, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás com o apoio da Associação Médica de goiás, UFG e UCG realizou-se na sede do IHGG, nos dias 5 a 7 de agosto de 2009. A programação incluiu palestras e conferências, algumas das quais são publicadas a seguir.

 


I Simpósio de Históriografia e Saber Médico em Goiás. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Goiânia, n.22, p.41, 2010. Acessar publicação original [IF].

História Medieval: Fontes e Historiografia / Varia História / 2010

O interesse pelos estudos medievais tem crescido nas últimas décadas no Brasil. O prestígio que a historiografia medieval adquiriu, principalmente com as contribuições vinculadas à escola dos Annales e a chamada Nova História, proporcionou a ampliação do espaço dado à História Medieval no âmbito das nossas Universidades. A consolidação desse interesse tem permitido a tradução para a nossa língua de diversas obras importantes sobre o assunto e o aparecimento de uma crescente produção nacional no setor. A extensão deste interesse também se materializou na criação de grupos de estudos dedicados à pesquisa e à divulgação de temas medievais, como o Laboratório de Estudos Medievais – LEME – que agrupa professores e alunos de História da USP, UNICAMP, UNIFESP, UFMG e UFG. Criado em 2005, o LEME tem o objetivo principal de congregar professores, pesquisadores e estudantes para o desenvolvimento de estudos e de atividades na área de História Medieval, bem como estabelecer a interlocução com centros de estudos estrangeiros. Este dossiê é uma realização do LEME e manifesta a intenção de buscar novos espaços de discussão e estabelecer interlocução com colegas nacionais e estrangeiros. Assim, publicam no dossiê os medievalistas Néri de Barros Almeida (LEME / UNICAMP); Marcelo Cândido da Silva (LEME / USP); Dulce Amarante O. dos Santos (UFG), Sylvie Joye (Université de Reims) e Patrick Gilli (Université de Montpellier III).

O dossiê propõe uma reflexão sobre as relações dos medievalistas com suas fontes à luz da crise dos paradigmas e da interdisciplinaridade. Refletir sobre essas relações é fundamental já que o estudo do passado se realiza de forma mediada através dos vestígios da atividade humana. A crise que afetou as humanidades durante as últimas décadas, em grande parte devido ao declínio das ideologias, levou os historiadores a questionarem os vestígios do passado. Os debates historiográficos, sob a influência das tendências modernas e pósmodernas, colocaram em foco o uso das fontes históricas e o ofício do historiador. O próprio termo “fonte” foi colocado em questão, já que poderia sugerir que os vestígios eram meros reflexos do passado e que bastava sua análise para reencontrar esse passado, reconstruir a história. Enfatizou-se a necessidade de se reconhecer a dinâmica da produção, transmissão e interpretação dos documentos históricos. Destacou-se, no ofício do historiador, a crítica das fontes e isso significava, entre outras coisas, verificar se o documento realmente pertencia à determinada época e que não havia sido falsificado, se quem disponibilizava o documento era confiável e, também, a finalidade e a intenção do documento, atentando para o momento e o lugar em que foi elaborado. Assim, a crítica das fontes muitas vezes se limitava às questões de datação, de autoridade, de revisão, de autenticidade, de transmissão e de comparação por períodos ou regiões. O medievalista continua realizando essa crítica, mas hoje o que está em foco nos estudos medievais são as novas perspectivas sobre fontes já conhecidas, sejam textos escritos ou elementos da cultura material.

A releitura e reconsideração das fontes, somado ao aprofundamento de uma perspectiva interdisciplinar, tem proporcionado uma profunda renovação do conhecimento das sociedades medievais. Da observação dessa renovação operada a partir de releituras das fontes e de discussões historiográficas, surgiu o tema do dossiê: História medieval: fontes e historiografia, e nele se enquadram os cinco artigos aqui reunidos. Dulce Amarante dos Santos discute as Velhas e novas relações entre os medievalistas e suas fontes, enfocando, entre outros assuntos, os desafios e as dificuldades enfrentadas, em particular, por aqueles interessados em temáticas interdisciplinares relacionadas à história social da medicina da Idade Média. Marcelo Cândido da Silva, em “Público” e “privado” nos textos jurídicos francos, discute a dicotomia “público” e “privado” e demonstra que a mesma é inviável para a compreensão do mundo franco da Alta Idade Média. Desvela as conexões estabelecidas entre a Idade Média e o mundo moderno, apresentando, em oposição às teses das origens medievais do Estado moderno e do Brasil, como uma releitura das fontes pode sustentar a idéia da originalidade da Alta Idade Média. Néri de Barros Almeida, em A Idade Média entre “poder público” e “centralização política”: itinerários de uma construção historiográfica, coloca em questão o paradigma da violência, discutindo a validade teórica das análises da Idade Média que tomam por base a associação entre descentralização política e desgoverno, privatização, ausência de poder público. A autora recorre às fontes para apresentar o ponto de vista dos historiadores medievais a respeito da violência que registram e para afirmar a possibilidade de reconhecimento nas sociedades medievais de instâncias públicas de poder reconhecido e atuante dentro de critérios particulares de ação. Sylvie Joye, em Prática social e armadilhas das fontes: as fontes historiográficas e normativas sobre o casamento por rapto na Alta Idade Média, demonstra como uma releitura das fontes normativas e narrativas pode revelar os equívocos interpretativos da historiografia sobre o casamento por rapto. Revela que a releitura e a crítica das fontes podem sustentar novas interpretações sobre as práticas nas sociedades da Alta Idade Média, cuja história é profundamente marcada por paradigmas estabelecidos no século XIX e início do XX. Patrick Gilli, em As fontes do espaço político: técnicas eleitorais e práticas deliberativas nas cidades italianas (séculos XII-XIV), apresenta o mundo das comunas italianas dos séculos XII a XIV como um laboratório privilegiado de observação, nas práticas ordinárias da Idade Média, dos vestígios de um espaço de mediação política. Examina as fontes estatutárias para investigar as modalidades de representação, as técnicas eleitorais e deliberativas, e, entre outras abordagens, discutir a possível singularidade do caso italiano.

Adriana Vidotte – Laboratório de Estudos Medievais – LEME. Professora da Faculdade de História / UFG. Organizadora. E-mail: [email protected]


VIDOTTE, Adriana. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.26, n.43, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História, Historiadores, Historiografia / Projeto História / 2010

I

O leitor poderá observar no presente dossiê como os autores, ao refletir sobre os fundamentos historiográficos que nortearam a análise de seus temas específicos, os situaram no interior das novas e também antigas preocupações inerentes ao historiador: a recuperação do real a partir das abstrações razoáveis possíveis, dados os vestígios históricos disponíveis e o instrumental analítico selecionado.

Desde o debate na antiguidade grega sobre os problemas dos métodos para o resgate da história, concepção que recupera a necessidade da questão de caminhar a partir da identificação dos pontos considerados frágeis na argumentação do historiador – e “não na mera desqualificação da obra como um todo” –, até os debates atuais postos no campo da gnosiologia sobre a verdade e a história, ficam objetivados no presente dossiê.

A perspectiva da validação historiográfica a partir do argumento, ou como meros embates discursivos, nos quais as opiniões se equivalem, e que, por vezes, remete o historiador ao campo da literatura, é contraposta à da cientificidade deste campo do conhecimento, capaz de objetivar a dinâmica histórica em suas contradições internas, a posição relativa de cada uma das diversas forças sociais em permanentes e distintos embates em dadas particularidades históricas. A identificação dessas tendências arrima a mobilidade de ação do ser social, porquanto a abdicação desta o torna mero expectador.

O espectro gnosiológico que hoje assume a primazia no campo da historiografia parece conferir validade à crítica de Políbio a Timeu sobre o “direito de criticar com o objetivo de conferir valor aos próprios argumentos por meio da correção ou redimensionamento dos argumentos alheios”. Tal “guinada hermenêutica” confere ao termo historiografia sentidos muito distintos, conforme aponta um dos autores presentes neste dossiê.

“Ora aparece nomeando um certo ajuntamento de obras históricas, sinônimo então de bibliografia especializada, ora surge identificando linha de pesquisa voltada para os estudos de história da história, ou seja, exame consistente das obras enquanto manifestação cultural ancorada em contextos históricos específicos (…). Entretanto, as extrapolações para os contextos mais gerais quando muito terminam por marcar a temporalidade das obras, mas não sua historicidade”.[1]

Será que poderíamos agregar a esta reflexão a de outro autor que considera ser a produção historiográfica um “museu do saber” que “aspira uma unidade estética, cuja finalidade é dispor uma aparência e um reconhecimento dos objetos com os quais as várias especialidades se envolvem”? Ou seja, sequer se resgata o preceito de Walter Benjamin, recuperado aqui por outro autor, de que, “o narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”? Ou ainda, cumpre a historiografia a função de controle sobre o saber, parafraseando os termos de Foucault, conforme assertivas de outros aqui presentes? Deixamos a pergunta ao leitor, esperando que este dossiê incentive as reflexões.

A ampla diversidade de abordagens, métodos, instrumentos, documentos a compor hoje o campo historiográfico a que nos remete o conjunto dos textos, poderia ser também interpretado como a expressão de uma crise dos sujeitos historiadores? É notória, diz o autor, a situação de “crise” que a disciplina história enfrenta.

“(…) Desde os anos da década de 1970, com a emergência do pós-estruturalismo, a corporação de historiadores enfrenta desafios compreensivos inesperados oriundos dos estudos da linguagem e da semiologia, reconhecidos como linguistic turn ou semiotic challenge. Além da fragmentação disciplinar há a ameaça de um relativismo fantasmático pairando no horizonte das pesquisas”.[2]

Ou, contrapondo-se a tal ideia, revela-se uma profícua retomada da historiografia que, imbuída de novos recursos e mais livre para buscar os fundamentos de suas interpretações, não apenas amplia a base conceitual, parte em busca de novas evidências históricas e também revisita com maior frequência historiografias, ou consagradas, ou esquecidas, ou pouco reconhecidas no momento mesmo de sua produção.

Exemplo desta retomada são os balanços, como, por exemplo, o que analisa a produção historiográfica sobre a Revolução Russa. Ao retomar desde os autores clássicos até as principais obras mais recentes, “incluindo as que tentativamente parecem marcar novos paradigmas de investigação no período pós-soviético”,[3 ]as visualiza no interior dos diferentes contextos históricos em que cada produção historiográfica ocorreu e, assim identifica as dificuldades para a objetividade analítica nas reflexões sobre tal tema.

A mesma questão sobre a objetividade está posta no texto que analisa a produção historiográfica sobre o missionário jesuíta José de Anchieta, cujas biografias, segundo o historiador, desde os séculos XIX e XX tiveram o “objetivo de evidenciá-lo (…) como precursor da nacionalidade brasileira, guardião da moral e exemplo de santidade (…) e de destacar condutas consideradas fundamentais para a sociedade brasileira em diferentes momentos da história política brasileira”,[4] cumpre a finalidade de defender sua beatificação, que, para se consolidar demanda ainda que se evidenciem os milagres requeridos para sua canonização.

Um viés historiográfico apontado também no balanço sobre outro tema, ainda que totalmente diverso, se evidencia na historiografia sobre o movimento Punk dos anos 70 com a perspectiva de “um acontecimento social que abalou a sociedade e a cultura num panorama de mudanças estruturais profundas em curso na América do Norte e na Inglaterra”,[5] mas cuja perspectiva analítica tende a reduzi-lo a um movimento de jovens de classe média. Já outro analista demonstra como um debate sobre os indígenas no Brasil revela “uma reflexão política e uma operação historiográfica sobre identidade nacional e o futuro da formação social brasileira”, [6] durante a segunda metade do século XIX. A análise dos embates entre o etnólogo alemão Curt Nimuendaju e o intelectual paraense Jorge Hurley expressa como tais autores intervieram na conformação de políticas sobre as questões indígenas e como foram capazes de definir um campo historiográfico sobre a questão.

Se, por um lado, o reconhecimento da diversidade hoje posta na reflexão dos historiadores leva alguns a enfatizarem que se trata de uma crise e outros a perceberam aí uma profusão de novas possibilidades para o historiador, por outro lado, um terceiro grupo se detém sobre os conceitos produzidos pela historiografia.

Uma pergunta, não obstante, se impõe: produz a historiografia conceitos cuja pertinência está na capacidade de expressar o real concreto e cuja validade se põe a partir de novas evidências empíricas abstraídas pelo historiador quando este se permite ampliar seu espectro analítico?

Ratifica esta questão, verbi gratia, os artigos que debatem o tema das fronteiras. Um dos analistas desvela como tais conceitos necessitam ser revisados à luz da geopolítica. Pois a transnacionalização do capital obriga os historiadores a reconhecer que as noções de territorialidade / fronteiras, antes restritas ao Estado-nação, hoje se expressam na inter-relação entre as mais diferentes culturas e sociabilidades. Ou, conforme outro, a conceituação é sempre relativa em face de novas evidências antes não destacadas, como ocorre, segundo o exemplo, quando se contrapõem as informações sobre fronteiras provinciais no Brasil, grafadas em mapas cartográficos, aos dados advindos de outras documentações. Adentrando ainda à discussão sobre estratégias, métodos e instrumentos analíticos, este mesmo ressalta que, como qualquer outro elemento iconográfico, a analítica cartográfica revela uma historicidade particular, “construída em função de elementos culturais próprios e pertinentes ao momento de sua criação”.[7]

O que remete às discussões sobre os aspectos metodológicos que envolvem outro tipo de material iconográfico, muitas vezes tomado, assim como ocorre com a cartografia, como simples material auxiliar a corroborar ou não informações advindas de outras fontes documentais, a fotografia. Desde a clássica discussão sobre a correspondência ou não entre a concretude social e a representação que dela fica gravada na imagem, ou sobre os limites postos pelo foco da imagem, até o seu reconhecimento como expressão de uma dada forma de interação com o mundo naquele momento, observa-se a preocupação dos analistas com a validade de suas fontes documentais e os métodos mais apropriados para seu tratamento. Revelam estas, conforme se coloca o autor, a essência dos modos de interagir, mas não a essência das coisas com as quais se interagiu?

Observa-se assim que tais historiadores situam no interior da discussão o impacto que trouxe para os analistas, a ampliação do corpus documental validado também enquanto expressão das vivências cotidianas nos mais diversos tempos, incluindo-se aí o primado do reconhecimento das informações verbalizadas para os historiadores ou dos relatos de vidas privadas grafados em correspondências particulares. Pois também para a história oral se requisita um campo analítico próprio, metodologias de pesquisa e de análise particulares, principalmente quando, segundo o autor, se tem por objetivo “preparar documentos gravados e transcritos para serem utilizados pelos pesquisadores do futuro”.[8] Centrando a análise, sempre no campo gnosiológico, encontramos em outro analista um exemplo que explicita os questionamentos sobre a relação entre a história e a história do ponto de vista dos resultados da abordagem. Conforme suas reflexões, com o intuito de desvendar os discursos de poder utilizados no confronto conhecido como a revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo, observa este que a historiografia “concentrou seus esforços em diretrizes opostas, recaindo, ora no sentido de elucidar a luta de classes, ora na valorização do caráter espontâneo do levante”, mas que, mesmo assim, acabam por reproduzir “a plataforma aburguesada que se arvorava como revolucionária, embora não primasse por mudanças significativas no país”.[9]

É interessante observar que, das reflexões sobre o campo conceitual, se pode abstrair certa ênfase na percepção do que configura a identidade de um país, de uma nação. Coloca-se assim outro aspecto do embate. Enquanto uns ressaltam, conforme apontado acima, o desaparecimento do Estadonação, para outros, a ênfase atual está no reconhecimento das identidades políticas, nacionais, culturais. Neste sentido, o texto mais representativo nos parece ser o que retoma a obra do historiador francês Fernand Braudel: L’Identité de la France (1986). Representativo também do conjunto dos aspectos fundam este dossiê: o debate historiográfico, as correntes ou tendências em curso ao longo do século XX, a validação de múltiplas e distintas fontes, a pertinência ou não das abstrações formuladas a partir dos dados empíricos, a interdisciplinaridade, enfim, o corpus que resulta da relação entre historia, historiadores e historiografia.

Situando, assim como a maior parte dos historiadores deste número de revista o fazem, o discurso historiográfico de Braudel nas circunstâncias que o condicionam, o autor demonstra como esta obra expressa a necessidade posta naquele momento para os franceses, de reafirmar uma identidade nacional que respondesse a dois imperativos: as contradições de uma conjuntura internacional marcada pela Guerra Fria que conjugava uma pregação pela paz com uma política militarista contra países que questionavam o capitalismo e para a manutenção do mapa artificialmente desenhado após a segunda guerra. Por outro lado, punha-se o imperativo de redesenhar a memória sobre o colonialismo exercido pela França nas regiões afro-asiáticas em um momento em que esta nova ordem mundial em construção reeditava os valores civilizatórios de uma Europa mediterrânea. Ou seja, reafirmando o conceito de longa duração, “Braudel constrói um discurso político ao redor da identidade francesa visando relativizar as contradições da história nacional (…). Na França da virada dos anos 80, o debate girava em torno do ensino de História, da dissolução da memória nacional e da perda dos grandes referenciais, fazendo com que os historiadores se voltassem aos temas nacionais. Ou seja, o livro encaixou-se como uma luva!”.[10]

O mesmo teor reflexivo encontra-se em outro artigo que retoma como a construção do discurso sobre a modernidade no período do Estado Novo no Brasil, com o claro intuito de configurar “identidades individuais e coletivas” foi apropriado também por “práticas disciplinares – ciência, tecnologia, epistemologias – que, em um movimento simbiôntico, procederam a uma troca com ambientes institucionalizados e institucionalizantes edificando aquilo que será conhecido como moderno”,[11] o que faz a partir da recuperação da trajetória intelectual do historiador Alfredo Ellis Júnior, entre 1938 e 1956.

Temos, por fim, mais dois artigos travando debate acerca da contribuição historiográfica de Capistrano de Abreu. Num primeiro, é discutido o movimento de ruptura na própria obra do historiador cearense, o que enseja a sua recolocação como divisor de águas de toda uma geração historiográfica brasileira – desde a primígena ideia de uma revolução burguesa à brasileira, até sua posição como protopositivista; num segundo momento é identificado, pela autora do artigo, o papel de Capistrano de Abreu em José Honório Rodrigues.

II

Há que pontuar algumas questões que se apresentam nesse espectro de confluências e divergências no campo historiográfico. Ao se contrapor às formulações de Ferdinand Lassale, o autor do Manifesto Comunista de 1848 se vale dos estudos magistrais do filósofo Giambattista Vico (1668-1744). O filósofo napolitano escreveu a obra ímpar A Nova Ciência, publicada pela primeira vez em 1725. Reescreveu-a pela terceira vez no ano de sua morte, em 1744, nos legando categorias da história que fez Jules Michelet, Herder e o próprio Marx, tomá-lo como referência teórica. Uma delas explicitada por Marx em O Capital que – ao refletir sobre os instrumentos de produção e da tecnologia – se pergunta: “Será que não merece igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social específica?”. Recorde-se que Marx não abandonava por um só instante a determinação histórica dos seres sociais e das coisas existentes. Nessa direção, o filósofo alemão formula outra questão: “E não seria mais fácil reconstituí-la já que, como diz Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e não a outra?”.[12]

Ao destacar que o homem só pode conhecer aquilo que faz, Vico acrescentava que sendo Deus o criador da natureza só ele poderia conhecê-la a fundo. Verum et factum convertuntur. Por essa razão, nós conhecemos o efetuado praticamente, o homem é um ser autoproducente. Alguns autores reconheceram certas afinidades entre Marx e Vico, como Adrienne Fulco que faz convergir, entre outras, o impulso à objetividade, ao reconhecimento das determinidades concretas que se encontram no mundo in flux. Ambos, acrescenta Fulco, também “compartem a crença de que a consciência é a característica distintiva do homem; o centro essencial de sua humanidade. Para ambos, a consciência, em sua forma mais geral, é a capacidade de todo homem de conhecer-se a si mesmo e ao mundo que o rodeia. A consciência, com efeito, não é somente uma atividade própria da mente, mas também uma atividade de caráter social determinada”.[13]

Pense-se, nesse último passo, nas contribuições do filósofo húngaro György Lukács, autor de Prolegômenos para uma ontologia do ser social, [14] no que tange ao papel da consciência nos lineamentos histórico-materialistas inscritos na obra de Marx. “A ontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico. (…) Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte movente e movida de um complexo concreto. Isto conduz, portanto, a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da própria matéria: ‘formas do ser, determinações da existência’”.[15]

Vico escrevera que “Somente os homens fizeram esse mundo (…). Mas tal mundo surgiu, sem dúvida, de um espírito quase sempre diverso, às vezes inteiramente contrário e sempre superior às finalidades particulares que os homens haviam proposto”.[16] Marx dispõe essa síntese histórica para seus correligionários em sua correspondência, e, de forma mais apropriada a sua visão do mundo histórico, na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte, quando analisa as determinantes histórico-sociais do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 desferido por Luís Bonaparte em analogia com o golpe do tio, principia-a com essa refutação de qualquer finalismo a reger o processo histórico: “Em algumas passagens de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem a sua própria história, contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”.[17]

A interpretação de Agnes Heller pode lançar luz à improcedência dos autores que insistem na imputação de determinismos à concepção marxista da história e do caráter teleológico inscrito no processo histórico. “A teoria segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas em condições previamente dadas, contém as teses fundamentais da concepção marxista da história: por um lado, a tese da imanência, e, por outro, a da objetividade. À primeira vista, o princípio da imanência implica no fato da teleologia, ao passo que o princípio da objetividade implica naquele da causalidade; os homens aspiram a certos fins, mas estes estão determinados pelas circunstâncias, as quais, de resto, modificam tais esforços e aspirações, produzindo desse modo resultados que divergem dos fins inicialmente colocados, etc.”.[18]

Essa posição dialética, cuja premissa se assenta no fato de que as ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade, foi ressaltada por uma das principais historiadoras brasileiras, Emília Viotti da Costa, em seu estudo sobre a rebelião de escravos em Demerara, em 1823. Numa parte mais desenvolvida, atada à concepção materialista, salienta: “A história é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância, o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam a si mesmas”.[19]

Tal imputação de finalismo no processo histórico também foi refutada por István Mészáros, porquanto “A abertura radical da história – a história humana – criada historicamente é, então, inescapável, no sentido de que não há meio de se predeterminar, teórica ou praticamente, as formas e modalidades da automediação humana, porque as condições teleológicas complexas dessa automediação, através da atividade produtiva, só podem ser satisfeitas – uma vez que estão sendo constantemente criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente fechados e encerrados em si próprios resultam ou em alguma redução arbitrária da complexidade das ações humanas à simplicidade grosseira de determinações mecânicas ou na superposição idealista de um tipo ou outro de transcendentalismo a priori à imanência do desenvolvimento humano”.[20]

Contra outra visão de história bastante disseminada, o mundo se passaria no tropo, um dos mais renomados intérpretes da micro-história, o historiador Carlo Ginzburg vem estabelecendo um consequente embate contra os cépticos que professam o relativismo do conhecimento histórico. Além disso, o historiador italiano se insurge contra os riscos do negacionismo, corrente reacionária que tenta negar a existência do Shoah (Holocausto), da fustigação, massacre e genocídio de milhões de indivíduos de origem semita pelo terrorismo oficial do estado nazista.

Ao ser questionado por Perry Anderson sobre o uso da palavra “prova” ao invés de “testemunho”, Ginzburg mostra para a primeira sua ineliminável presença na pesquisa histórica. Dessa maneira, alinha que “Provare (provar) significa, por um lado, ‘validar’ e, por outro, ‘experimentar’, como observou Montaigne falando de seus próprios ensaios. A linguagem da prova é a de quem submete os materiais da pesquisa a uma aferição permanente: ‘provando e confirmando’, como rezava a famosa divisa da Academia (científica florentina) del Cimento. (…) Caminhamos às apalpadelas, como o luthier que bate delicadamente, com os nós dos dedos, na madeira do violino: uma imagem que Marc Bloch contrapôs à perfeição mecânica do torno, para sublinhar o inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador.”[21]

As teses cépticas têm o condão de reduzir toda historiografia a uma dimensão narrativa ou retórica, desprezando, com isso, o trabalho concreto e específico do historiador. O relativismo céptico, em uma de suas versões, contrapõe a retórica à ideia de prova. Carlo Ginzburg escarafuncha a raiz desta concepção descobrindo o núcleo dela, segundo à qual essa concepção se estrutura: a filosofia de Nietzsche. Em verdade, suas reflexões sobre a linguagem. Segundo Ginzburg, em Acerca da verdade e da mentira, pode-se constatar que “a existência de diversas línguas é citada como prova do abismo que separa palavras e coisas: a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade”.[22] Dessa forma, no estudo relacional de culturas torna-se impossível a compreensão de sua historicidade e concretude social. Em seu duelo com as concepções agostinianas de verdade, Nietzsche acaba por produzir um pensamento com sinal contrário ao cristianismo. A tomada de posição sobre a superioridade de certos povos ou mesmo da língua em relação a outra cultura aponta para um traço definidor da ideologia da historiografia relativista. “O limite do relativismo – seja na versão branda seja na versão feroz – é o de escamotear a distinção entre juízo de fato e juízo de valor, suprimindo conforme o caso um ou outro dos dois termos. O limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral”.[23]

Há que questionar, portanto, essa visão redutora do campo de possíveis das atividades práticas humanas à retórica ou a meras figuras de linguagem, que resultam nas imputações arbitrárias e exteriores aos objetos em sua integridade histórica. Se a raiz é nietzscheana, os alvos do historiador italiano são os cépticos relativistas, entre os quais, Roland Barthes e Hayden White. Figuras díspares, mas que esposam alguns pressupostos comuns: “a historiografia, assim como a retórica, se propõe unicamente a convencer; o seu fim é a eficácia, não a verdade; de forma não diversa de um romance, uma obra historiográfica constrói um mundo textual autônomo que não tem nenhuma relação demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere e textos historiográficos e textos de ficção são auto-referenciais tendo em vista que estão unidos por uma dimensão retórica”.[24]

Dessa maneira, em posição contrária, a tese de Carlo Ginzburg, ancorada na tradição aristotélica, demonstra que as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fundamental. Por essa razão, o conhecimento histórico é possível. Porquanto, “ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘escovar a história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas”.[25]

Há que escovar a história a contrapelo! O que significa posicionar-se da perspectiva dos vencidos. Extrair das tensões, conflitos e contradições sociais, as alternativas que não vingaram, que se arruinaram, os projetos sociais que ameaçaram as bases materiais antagônicas do metabolismo social. No plano historiográfico, insurgir-se contra a versão oficial, a dos polos dos vencedores.

Decorridos setenta anos, após ter vivenciado os horrores de um campo de concentração (Camp des Travailleurs Volontaires em Nevers), sem ter o visto que lhe permitiria sair da França, acuado e premido pelas constrições e armas das forças franquistas, Walter Benjamin se suicida a 22 de setembro de 1940, em Port Bou, na Catalunha. Sua desaparição, no entanto, não fez soçobrar seus esforços na crítica dialética do mundo da barbárie. Seus escritos mantêm vivos os embates contra os “Estados de Exceção”! Decepcionado com o Pacto de não agressão entre Stálin e Hitler, de 23 de agosto de 1939, escapando da prisão se dedica a elaboração das Teses “Sobre o conceito de história”. Segundo Benjamin, “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história”, nessa direção, anota em suas Passagens: “A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem: Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar”.[26] Contra a dominância das formas do positivismo e dos acentos positivos do progresso do sistema social, o que põe um ponto final na história no que diz respeito à ordem social, Benjamin premido pelo terrorismo imposto pelo fascismo desde as fímbrias do cotidiano às expressões políticas, pontua na oitava das Teses que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável”.[27]

Vivemos uma temporalidade terrível com o futuro constantemente ameaçado, em que as energias humano-societárias materializadas nas riquezas se esvanecem, o desgoverno do sistema do capital em seu desmonte transforma multidões sem nenhum amparo, as individualidades se fragmentam e se apequenam numa vida dilacerada. Todavia, como recorda nossa historiadora: “Todo tempo é tempo de mudança – mas alguns são mais do que outros. Todo tempo é tempo de conflito – mas há momentos históricos em que as tensões e os conflitos isolados que caracterizam a experiência cotidiana subitamente se aglutinam num fenômeno amplo e abrangente, que ameaça a ‘ordem social’. Nesses momentos as queixas individuais havia muito existentes se transformam numa crítica global ao sistema de poder. Desafiam-se as pressuposições das elites acerca do mundo”.[28]

A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das transições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana, a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mundializada –, é o de olhar para trás e reconstruir o utopismo em lutar por uma nova sociabilidade livre das bases materiais antagônicas. Todavia, há que salientar as sucessivas greves e rebeliões que eclodiram em várias partes desse cotidiano minado pelas contradições do capital mundializado. Operários, estudantes, mulheres, camponeses se juntaram em manifestações contra o desemprego, a miséria, a privatização da educação, na Grécia, Turquia, Itália, Portugal, e tantas outras formações sociais, como a greve geral de 29 de setembro na Espanha, etc. Na Bolívia, os trabalhadores sustaram por meio de paralisações a elevação dos combustíveis… Em Túnis, capital da Tunísia, um jovem engenheiro desempregado, como tantos outros, surrado por tentar vender frutas numa praça, acabou por se imolar… Com este ato extremo, detonou um represamento incontido de um processo social que alija as maiorias do próprio trabalho assalariado, um amplo movimento social que pôs fim à sangrenta ditadura de Zine al Abidine Ben Ali, que estava instalado no poder há mais de duas décadas.

Está claro que o “futuro ausente” que se apresenta como molde atual, dado pelas circunstâncias históricas, pela conservação de estruturas autocráticas, pelos voos desmesurados dos impérios financeiros, pela crise estrutural do capital que a tudo absorve em sua universalização, que produz a enormidade da população de reserva na escala de milhões de desempregados, mas que ao invés de nos fazer recuar deve nos lançar ao encontro de uma permanente busca de alternativas, regrado por um “otimismo ponderado”, que vislumbra um traçado radical necessário à luta contra essa impotência e apodrecimento sob a própria pele. Porque, como assegurava um crítico dessa particular forma de metabolismo social, “donde o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente”.[29]

Notas

1. Cf. Políbio Contra Timeu, ou o Direito de Criticar de Breno Battistin Sebastiani, nesta edição, p. 210.

2 Cf. o artigo de Carlos Alvarez Maia, p. 354.

3 Cf., neste volume, o artigo de Angelo Segrillo, p. 65.

4 Cf. o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, p. 157.

5 Cf. Ivone Gallo, nesta edição, p. 298.

6 Cf. Aldrin Figueiredo, neta edição, p. 317.

7 Cf. Airton José Cavenaghi, nesta edição, p. 385.

8 Cf. Maurílio Rompatto, p. 345 desta edição.

9 Cf. João Paulo Rodrigues, p. 152.

10 Cf. Guilherme Ribeiro, p. 108.

11 Cf. Diogo da Silva Ruiz, p. 219.

12 MARX, Karl. O capital – crítica da economia política, vol. 1, tomo 2. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Köthe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 8.

13 FULCO, Adrienne. Vico y Marx: consciencia humana y estructura de la realidad. In: TAGLIACOZZO, G. Vico y Marx: afinidades y contrastes. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 123.

14 LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento . São Paulo: Boitempo, 2010. Nesta obra estão expostas as principais categorias ontológicas da filosofia de Marx.

15 LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 228.

16 VICO apud COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 13. Ver VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Tradução de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro, Record, 1999, p.487.

17 MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25. Grifos nossos.

18 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 8.ª edição. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 11.

19 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.

20 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Tradução de Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 129. Grifos nossos.

21 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 13-14.

22 GINZBURG, Carlos. Relações de força. In: Op. cit., p. 28.

23 Idem, p. 38.

24 Idem, p. 48.

25 Idem, p. 43.

26 BENJAMIN apud SELIGMAN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 62-63.

27 BENJAMIN apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de JeanneMarie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo, Boitempo, 2005 p. 83.

28 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue, op. cit., p. 23.

29 CHASIN, J. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista. In Ensaios Ad Hominem 1 – Tomo IV – Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001, p. 72-73.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 41, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia / História – Questões & Debates / 2009

Eu me lembro quando, ao findar o ano de 1979, nosso colega Carlos Roberto Antunes dos Santos tomou a iniciativa de convidar historiadores, professores e estudantes de História a fim de propor a criação da Associação Paranaense de História. Na ocasião, ficou decidido que, entre outros objetivos, a ONG faria esforços no sentido de criar uma revista. No ano seguinte, reunimos uma comissão editorial com uma marca interdisciplinar1 e convidamos o arquiteto e historiador Key Imaguire Júnior para editar a Revista. Em nome deles escrevi o texto da apresentação do seu primeiro número, datado de novembro de 1980. Como registro documental e historiográfico, penso que vale a pena registrar aqui o seu conteúdo:

A ASSOCIAÇÃO PARANAENSE DE HISTÓRIA – APAH – nasceu com amplos e ambiciosos objetivos, entre os quais a publicação de uma Revista para divulgar e discutir as suas propostas expressas no Artigo 2º de seus Estatutos, bem como outros temas concernentes à História. Depois de quase um ano de realização, atingimos este passo decisivo na consecução de seus fins e a continuidade da revista será, a nosso ver, um teste para o próprio desenvolvimento da Associação. Seu título aflorou, simplesmente, em decorrência destes objetivos – História: questões e debates. Questões e debates relacionados à problemática da produção e da transmissão do Conhecimento em História e suas relações com as vizinhas ciências humanas. Daí o caráter desta Comissão Editorial: sua heterogeneidade do ponto de vista da formação científica de seus membros, sua heterogeneidade no que se relaciona à idéia de submeter ao debate artigos não só produzidos pelos profissionais da História, mas também trabalhos realizados por outros cientistas do social que possibilitem fazer progredir, esclarecer ou avivar o relacionamento da História com as disciplinas irmãs. A História é, e sempre foi, um instrumento de Educação e, neste sentido, ela deve ter a sua função crítica. Como diz André Burguière, a história que incomoda é aquela que faz compreender, é aquela que produz o inteligível, não aquela que comemora, pois a memória nada é se não permite um trabalho crítico. Desta forma, o professor de Ensino Médio não é um mero transmissor de conhecimentos, a não ser que ele se conforme em substituir problemas e indagações pela repetição do lugar-comum, pela transmissão irrefletida de conceitos mal elaborados, de cunho muitas vezes dogmático. Por estas e outras razões, e pela contribuição no plano científico que possam trazer, estamos propondo nestas questões e debates a inclusão de trabalhos produzidos por nossos colegas professores do Ensino de Segundo Grau, de alguma forma vinculados à História. Portanto, nosso objetivo é o de multiplicar e diversificar, em níveis diversos e complementares, as abordagens sobre a História, sobre o seu ensino e, finalmente, sobre o valor que a sociedade lhe atribui, convidando os interessados no assunto a discutir conosco, por meio da revista. Evidencia-se assim um outro objetivo, muito caro à APAH: estimular o diálogo entre a Universidade e a comunidade. Na trama em que se pretende tecer as questões e debates desta revista, propomos ainda inserir um outro elemento entre os articulistas convidados: os estudantes de História, na Universidade. Este tríplice diálogo – incluindo nele, enfatize-se, especialistas nas diversas ciências sociais interessados nos nossos problemas comuns – permitiria, de um lado, resolver algumas das contradições próprias de nossa estrutura de ensino e pesquisa, melhorar o ensino em todos os seus graus, melhor vivenciar os problemas comuns às ciências humanas, além de desenvolver novas propostas. De outro lado, seria possível, desta maneira, atingir mais plenamente os objetivos propostos pela APAH, como dispõem os seus estatutos.

A revista começou de forma muito artesanal e para cada número tínhamos que buscar recursos, seja “passando o chapéu”, seja conseguindo alguns em troca de propaganda, até que o CNPq começou a nos financiar, pelo menos parcialmente. Exigências de qualidade acadêmica gradativamente nos levaram a deixar de lado certas pretensões idealistas, sintetizadas na apresentação acima, até que, a partir do número 28 (referente a janeiro / julho de 1998), o Programa de Pós-Graduação em História assumiu o co- patrocínio da Revista. Desde então, a História: Questões & Debates foi incluída no rol das publicações da Editora da UFPR, constando também do Programa de Apoio à Publicação de Periódicos, vinculado à Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.

Chegamos agora ao seu número 50 e, como às vezes sói acontecer, números redondos coincidem. De fato, alguém já disse que 2009 é um ano “mágico”, tanto há a comemorar: os 180 anos da República, os 20 da queda do Muro de Berlim, e por aí afora. Embora a comemoração efetiva tivesse se realizado no ano que passou, aproveitamos para marcar neste fascículo, de alguma forma, os 70 anos do Curso de História (no início unido à Geografia), instituído na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras2. Porém, em especial, os 50 anos do Departamento de História da UFPR. Destaco, da Ata anexa3, o seguinte relato:

Havendo a Professôra Cecília Maria Westphalen, em princípios de maio de 1959, regressado da Europa, onde, durante um ano, realizara estudos especializados e observações sôbre a vida universitária, principalmente na Alemanha e na França, propôs ela uma reunião dos Professôres de tôdas as disciplinas históricas da Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná, com o objetivo de constituir um Seminário de História, nos moldes dos seminários encontrados nas universidades alemãs, afim de dinamizar e organizar os trabalhos docentes e discentes do curso de História desta Faculdade, bem como desenvolver um programa de pesquisas históricas dentro das atuais perspectivas metodológicas de História. Reunidos os Professôres convocados a 14 de maio de 1959 aprovaram êles o regulamento que a 18 de junho do mesmo ano, foi encaminhado à apreciação dos órgãos diretores da Faculdade […]

O Conselho Técnico-Administrativo da Faculdade, porém, uma vez que na estrutura da Universidade não estava prevista a instituição de Seminário, propôs em janeiro de 1960 a adaptação do Regulamento encaminhado no sentido da criação de um Departamento de História, congregando professores de História e instituído com linhas voltadas ao ensino, pesquisa e teoria da História (além de outros temas de eventual interesse dos membros do Departamento). Assim, ainda no mesmo ano, foi organizado um seminário visando à revisão da historiografia paranaense, com a primeira sessão marcada para o dia 23 de setembro de 1959,

objetivando a análise da obra dos historiadores do Paraná, com a crítica das suas fontes, métodos e técnicas de trabalho e com a finalidade de realizar o levantamento da situação real da Historiografia Regional do Paraná, e dos problemas que nela restam por serem equacionados e resolvidos.

De forma que a Historiografia também sinalizou o tema escolhido pelo Comitê Editorial da Revista História: Questões & Debates para este número. Com esse objetivo, conseguimos a colaboração de vários colegas historiadores que nos submeteram um significativo e variado leque de artigos e, entre eles, o texto do nosso homenageado, Stuart Schwartz: por proposta do Departamento de História, doutor honoris causa pela Universidade Federal do Paraná.

O dossiê que estamos propondo aos nossos leitores constitui-se de sete artigos. O primeiro deles, pela ordem e assinado por Virgínia Camilotti e Márcia Regina C. Naxara, não só articula História e Literatura, mas principalmente debruça-se nas questões historiográficas relacionadas às fontes literárias para a nossa disciplina. Em seguida, Elizabeth Cancelli nos propõe o exame dos novos paradigmas que revestem a historiografia dos anos de 1960 e 1970, em especial no que concerne à história política. O terceiro artigo, de Marisa Varanda Teixeira Carpintéro e Josianne Francia Cerasoli, nos leva, agora, ao tema das cidades, recortando o tema da historiografia construída principalmente a partir das relações entre a história e a arquitetura. O trabalho de número 4, de Ricardo Cicerchia, pretende responder duas questões, relacionadas à historicidade da “família” e às distinções entre a família europeia e as do resto do mundo. Izabel Marson, em seguida, analisa o longo itinerário historiográfico dos significados atribuídos ao Brasil monárquico nos séculos XIX e XX. Stuart Schwartz, no penúltimo artigo e no que diz respeito à história da América portuguesa, passa em revista um período historiográfico menor, diferenciado pela proeminência da História Cultural nos últimos vinte anos. Finalmente Ronaldo Vainfas, aproveitando texto de conferência realizada por ocasião dos 25 anos da Associação Paranaense de História (novembro de 2005), problematiza da mesma forma o tema da História Cultural na historiografia brasileira recente, com ênfase nas suas relações com a história das mentalidades e a micro-história.

Este número da Revista também contém artigo de Carlos Alberto Medeiros Lima, apresentando um estudo sobre o impacto do Romantismo espanhol, sobretudo pensado por eclesiásticos, na escravidão (e no tráfico de escravos) e nas relações entre a Igreja e o Estado. O rol se completa pela resenha de Marion Magalhães a respeito de um livro de Claudine Haroche.

Dada a tríplice comemoração que a edição deste número enseja, acreditei que haveria interesse em publicar a extensa ata que registra a fundação do Departamento de História, bem como o rol dos docentes que nele labutaram e labutam neste período de anos.

Notas

1 Ana Maria Bonin, Cláudio Fajardo, Judite Maria Barbosa Trindade, Rabah Banakouche, Roseli Maria Rocha dos Santos, Sergio O. Nadalin.

2 Instituída formalmente em 26 de fevereiro de 1938, seu Regimento autorizava o funcionamento dos Cursos de Filosofia, Ciências Químicas, Ciências Sociais e Políticas, e Geografia e História (cuja aula inaugural foi proferida em 3 de maio do mesmo ano).

3 Ata da Reunião do Departamento de História da Faculdade de Filosofia (Ciências e Letras) da Universidade do Paraná, realizada em 2 de dezembro de 1964, registrando sua constituição em princípios de maio de 1959.

Sergio Odilon Nadalin

Junho de 2009


NADALIN, Sergio Odilon. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.50, n.1, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão, emancipação, história e historiografia: América Latina e experiências comparadas / História Unisinos / 2006

Este dossiê está organizado em duas sessões. Na primeira: Brasil, história atlântica e diáspora aparecem artigos enfocando a historiografia da escravidão, comércio de escravos, políticas de domínio, legislação e campesinato negro. Abre com uma abordagem panorâmica de Regina Xavier sobre a história dos africanos e afro-descendentes no Rio Grande do Sul. A autora investiga cenários e contextos da produção historiográfica rio-grandense, as perspectivas dos autores, campos de investigações, temáticas, espaços editoriais e fontes. Destaca o papel da revista do Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro e suas vinculações intelectuais na formulação de uma história da escravidão negra local, fortemente impregnada de uma dada perspectiva de nação e, portanto de região e suas especificidades no século XIX.

Trata-se de uma reflexão fundamental para ser conectada com a historiografia mais recente sobre o tema no Rio Grande do Sul. Não só dos importantes trabalhos de Bakos, Flores, Freitas, Maestri, Pesavento e Picollo1 entre outros já nos anos 1980, mas especialmente a tradição de Dante Laytano2 nos anos 1950 e 1960. Talvez possam ser recuperadas as interlocuções dos primeiros campos de estudos no Sul, articulando interesses pela diáspora e religiosidade africana, incluindo Herskovitss e outros que analisavam o chamado “passado africano” nas Américas3. A temática das vivências africanas e a construção da diáspora urbana mais do que um tema emergente se encontra solidificado em várias abordagens para o Rio Grande do Sul4.

O excelente artigo de Gabriel Santos Berute aprofunda isso ao perscrutar os registros de pagamentos do imposto da meia-sisa da Vila do Rio Grande no período de 1812-1822. Desvela tanto sobre impostos, valores de compra e venda, negociantes, com cenários e personagens do comércio negreiro intra-atlântico, como as procedências e perfis socioeconômicos de africanos e crioulos negociados para o Rio Grande nas primeiras décadas do século XIX. Qual o período de maior negociação de escravos? Como se articulava com a economia charqueadora e outras dimensões da sociedade riograndense? Quem eram os compradores de escravos? Quais características mercantis do tráfico intra-atlântico para o Rio Grande do Sul? Berute assinala a dimensão da população de escravos crioulos (embora mantida a predominância de cativos do sexo masculino) comercializados, indo em direção a um importante campo de estudos sobre a “crioulização” endógena da população escrava sulina, também articulada com taxas consideráveis de africanos ocidentais. As margens de uma história atlântica – menos de uma escravidão genérica – que consideram as variações translocais e conectadas de portos, personagens, dimensões e diásporas inventadas são aproximadas5. Parodiando Alberto Costa e Silva, assim como o Rio de Janeiro, o Rio Grande também era atlântico, posto que conectado entre centros, periferias, impérios e nações.

A historiadora Adriana Pereira Campos oferece uma interessante reflexão sobre os nexos do cativeiro e políticas de domínio no mundo escravista pós-colonial. Partindo da documentação da polícia provincial do Espírito Santo avalia o que denomina “ambigüidades” das relações entre o poder público e as políticas de domínio privado. Assim flagra uma face da montagem e o equilíbrio da construção da ordem da nação numa sociedade escravista e em permanente tensão na segunda metade do século XIX. Por fim, Flávio Gomes analisa as interfaces entre narrativas oitocentistas da repressão antimocambos com aquelas das memórias de comunidades negras, avaliando dimensões e expectativas na formação de micro-sociedades camponesas na escravidão e no pós-emancipação no Baixo Tocantins, região amazônica.

A segunda parte deste dossiê intitula-se Escravidão e Dimensões Comparadas: América Latina, sociedades escravistas e sociedades com escravos. Aparecem trabalhos enfocando história das idéias, história intelectual e reflexão historiográfica sobre a escravidão e abolição na Argentina, Colômbia, Venezuela e Uruguai. Ela é aberta com a instigante reflexão de Eduardo Restrepo sobre as representações e as narrativas discursivas sobre a Abolição na Colômbia na primeira metade do século XIX, em que destacam-se convergências, polarizações, argumentos e justificativas multivocais da sociedade em questão. Imagens de barbárie, incompatibilidade econômica, progresso, civilização e cidadania eram desenhadas em termos dialógicos. Com abordagem historiográfica, articulando história das idéias e história intelectual apresentam-se interessantes análises sobre escravidão e identidade na Venezuela, Uruguai e Argentina. Ramos Guedes oferece uma breve reflexão sobre a trajetória intelectual do importante historiador venezuelano Brito Figueroa. Lamentavelmente pouco conhecido na literatura sobre escravidão no Brasil, Figueroa destaca-se como importante historiador marxista da escravidão nas Américas, produzindo pesquisas fundamentais sobre a história econômica da escravidão venezuelana e as perspectivas de pensar os seus sujeitos, especialmente os africanos e seus descendentes. Recupera assim o legado desse intelectual para a literatura temática na Venezuela.

Os dois últimos artigos tratam da escravidão africana no Cone Sul, oferecendo assim ricas possibilidades futuras de comparação entre sociedades escravistas e sociedades com escravos em várias regiões do Uruguai, Argentina, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Borucki chama atenção para as conexões entre as identidades nacionais e as imagens da história da escravidão uruguaia. Tema ainda com pouco investimento no Brasil, surge uma original abordagem sobre as relações entre movimentos sociais e a produção historiográfica no Uruguai, nos últimos 70 anos. Examina as possibilidades de diálogos invisíveis entre vários setores sociais, intelectuais e acadêmicos, assim como temas de investigação histórica e expectativas de cidadania e reconhecimento histórico através deles. Em direção semelhante apresenta-se o artigo de Gladys Perri, fechando este número especial. As historiografias nacionais da América Latina escolheram – entre mitos, memórias, silêncios e ênfases – percursos e atalhos para avaliar o papel da escravidão e da abolição em cada sociedade, no período colonial e pós-colonial. Estava em jogo a nação, suas identidades e horizontes, assim como memória social e história. A referida autora resgata os sentidos e contextos da produção de mitos de “negação” e “ausência” de escravidão, africanos e seus descendentes na Argentina e o papel da literatura histórica.

Paulo Staudt Moreira

Flávio Gomes


MOREIRA, Paulo Staudt; GOMES, Flávio. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3., setembro / dezembro, 2006. Acessar publicação original [DR]

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História – Perspectivas / História (Unesp) / 2005

Os percursos da discussão historiográfica na contemporaneidade, em suas diversas temáticas e perspectivas analíticas, motivaram a reunião dos artigos aqui apresentados aos leitores no dossiê História-Perspectivas.

Marcel van der Linden abre o dossiê com uma discussão historiográfica sobre o conceito de classe trabalhadora e sua adequação aos mundos do trabalho. A questão que desenvolve em suas reflexões é a da pertinência da elaboração de um novo conceito, que leve em conta uma crítica da teoria de Karl Marx e os aportes dos debates contemporâneos sobre o tema.

Direcionados para as formas de escrita da História, os artigos seguintes abordam diferentes linguagens. O texto de Ana Maria Mauad elabora um questionamento metodológico sobre o fotojornalismo e seu tratamento como fonte histórica. O trabalho de Rosangela Patriota volta-se para as relações teóricas e metodológicas entre história e teatro, abordando historiograficamente o tema do Teatro de Arena de São Paulo.

Os estudos de História Antiga estão contemplados nos trabalhos de Fábio Duarte Joly e André Leme Lopes. O primeiro artigo tem por objetivo analisar a Vida de Nero, de Suetônio, procurando nela identificar elementos que permitam associar esta obra à tradição historiográfica senatorial romana. O segundo texto analisa Como se deve escrever a história, de Luciano de Samósata, como o único tratado da Antigüidade sobre historiografia que chegou até nós, escrito no contexto da produção “histórica” gerada pelas guerras párticas de Lucio Vero (século II d.C.).

Os escritos de Varnhagen e Capistrano de Abreu inspiraram os artigos de Temístocles Cezar e Rebeca Gontijo, que analisam tanto obras históricas quanto correspondências desses autores procurando novas leituras da compreensão que alcançaram do ofício do historiador.

Abordando a história das idéias políticas luso-brasileiras no século XVIII, Eduardo Romero de Oliveira centra sua atenção sobre a dimensão político-administrativa da monarquia do período pombalino, vista em perspectiva historiográfica.

Temas diversos compõem a seção artigos, que Joshua Alma Enslen abre com o estudo sobre a correspondência e outros escritos de Manuel de Oliveira Lima a partir da perspectiva da sua contribuição para a construção da identidade nacional brasileira.

Denise A. Soares de Moura apresenta um estudo sobre ao abastecimento da cidade de São Paulo nos séculos XVIII e XIX que se apóia também nas rivalidades entre políticos, negociantes e autoridades régias.

Pedro Geraldo Tosi, Rogério Naques Faleiros e Rodrigo da Silva Teodoro abordam a cafeicultura na região de Franca (São Paulo), discutindo relações de trabalho, formas de financiamento, produção e acumulação no complexo cafeeiro.

Com este número encerram-se os trabalhos do atual conselho da revista História, que deixa registrados os agradecimentos a todos os autores e pareceristas que colaboraram no decorrer desta jornada.

Comissão Editorial


Comissão Editorial. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.24, n.2, 2005. Acessar publicação original [DR]

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Caminhos da História / História em Revista / 2003

História em Revista, em seu 9º número, se dedica a incursionar pelos caminhos da história, tanto revisitando fontes e temas, quanto detendo-se na análise e teorização do conhecimento histórico e historiográfico atual.

Cada novo momento propõe novos desafios, mas também traz perigos à ciência histórica e não são poucos aqueles que prevêem seu fim como ciência e sua substituição por formas variadas do fazer literário. Entretanto, a enorme vitalidade da disciplina, sua incrível flexibilidade quanto a temas e sua abertura a novos enfoques, deixam claro que ela é, das ciências humanas, a que possui maior vitalidade e possibilidade de, aceitando as novas contribuições, continuar em seu papel básico, que é conhecer e interpretar o passado humano.

Os artigos incluídos nesse número, não tem uma resposta comum a essa questão, e muitos sequer se preocupam explicitamente com ela, mas trazem, individualmente, propostas diferenciadas de como lidar com os novos modos de fazer história.

Com relação à teoria e historiografia, temos o artigo de Silvia Petersen sobre a historiografia brasileira contemporânea, que, embora seja um trabalho feito para ser apresentado a um público estrangeiro, não perde nenhuma das qualidades necessárias a uma boa análise das influências, temas e tendências em voga atualmente no Brasil. Quanto ao artigo de Fernando Nicolazzi procura esmiuçar o pensamento de Paul Ricoeur com relação ao discurso historiográfico.

Quanto à forma de trabalho com as fontes, um instigante exemplo de utilização da poesia como fonte para a análise histórica é apresentado pelo estudo de Carlos Rangel, que versa sobre dois poetas de Rivera, no Uruguai, fronteira com o Brasil. Através de sua pesquisa, que incluiu a manipulação de outras fontes tradicionais, como documentos escritos e dados estatísticos, Rangel conseguiu explorar de forma inovadora a representação identitária dessa comunidade fronteiriça através dos versos de Olintho Simões e Agustín Bisio, bem como suas relações com o universo cultural e social brasileiro, que transparece nos próprios versos estudados.

Maria Cecília Pilla contextualiza o surgimento e evolução da noção de civilidade na sociedade européia, utilizando-se dos manuais de boas maneiras, que procuravam orientar as relações entre iguais nas classes superiores. Seu trabalho consegue nos apresentar uma interessante visão do desenvolvimento da noção de civilidade e boas maneiras na sociedade ocidental européia e na brasileira.

Mas, mesmo fontes já consagradas, como são as correspondências epistolares, ainda se constituem em campos abertos para a atuação histórica, como o comprova o artigo de Paulo Ricardo Pezat, baseado na correspondência trocada entre um membro da Igreja Positivista do Brasil, médico e militar, durante a Revolução Federalista, com lideranças positivistas do Rio de Janeiro, na qual se mesclam as visões do médico sobre a barbárie da guerra, as convicções do positivista sobre a difusão de sua doutrina e as simpatias do militar republicano para com os castilhistas durante a revolta. Embora bem explorada pelo autor, o próprio artigo deixa entrever vários outros usos dessa correspondência, especialmente em relação ao cotidiano e as relações familiares estremecidas pela guerra.

Ana Teresa Gonçalves traz, baseada em grande erudição, uma reflexão sobre a forma como os Severo, em Roma, utilizaram-se de várias estratégias, entre elas a representação de imagens, na formação de apoios entre alguns segmentos sociais, lidando com a evolução dessa representação ao longo das etapas da vida de Septimio Severo.

Por último, temos o artigo de uma recém egressa do curso de história da UFPel, Beatriz Zechlinski, sobre as relações entre literatura e história, tema de sua monografia de conclusão de curso. Até aqui, a revista sempre procurou oportunizar a publicação dos resultados dos trabalhos finais dos alunos, como forma de valorização do seu trabalho. Este artigo foi escolhido, entre outros três, por uma comissão de professores do curso.

[Caminhos da História]. História em Revista. Pelotas, v.9, 2003. Acessar publicação original [DR]

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Teoria da história e historiografia / Varia História / 2002

Este número da Varia Historia foi organizado pela linha de pesquisa da pós-graduação em história da UFMG, “Ciência e Cultura na História”. A proposta desta linha de pesquisa é fazer teoria e história da ciência, e, para fazê-lo de forma própria e densa, ela procura estar atenta às questões e discussões de teoria da história, metodologia da história e historiografia. A “história da história”, que reúne estes três aspectos, o teórico, o metodológico e o historiográfico, é o instrumento primordial de todo historiador. É a “história da história” que reconstrói e problematiza a experiência já consolidada e perscruta o horizonte das possíveis investigações. De seus estudos dependem a profundidade e a força inovadora das pesquisas históricas do presente. Este número apresenta um dossiê nesta área da “história da história”, nos campos da teoria da história e da historiografia, que oferece três interessantes artigos sobre as possibilidades atuais e os limites da ciência histórica.

O artigo “Historiografia Contemporânea – Um Ensaio de Tipologia Comparativa”, de Estevão de Rezende Martins (UNB), sustenta que a historiografia constitui fator decisivo para a cultura histórica. Seu sentido é o de oferecer o “meio ambiente” no qual o agente racional humano elabora identidade temporal própria, no contexto social em que opera sua práxis autodeterminante. Combinando o sentido do tempo e do passado nas formas tradicional, exemplar, crítica e genética da historiografia, de acordo com o pensamento de Jorn Rüsen, o autor esboça um ensaio de tipologia da historiografia.

O artigo “Em Busca de um Conceito de Historiografia – Elementos para uma Discussão”, de Jurandir Malerba, atualmente, professor visitante no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, parte de algumas definições verificáveis na recente crítica brasileira, buscando contribuir para a construção de um conceito operacional de historiografia; com base na antiga caracterização da história-realidade-passada e história-conhecimento-presente, procura sugerir as potencialidades da historiografia como objeto do conhecimento das sociedades humanas.

O artigo “A Especificidade Lógica da História “, de José Carlos Reis (UFMG), discute os impasses e aporias do conhecimento histórico e considera os caminhos do “modelo nomológico” e do “modelo compreensivo” para a possível superação daqueles dilemas epistemológicos.

Fazem parte ainda do presente volume quatro artigos. Em “A construção do Brasil: projetos de integração da América portuguesa”, Cláudia Maria das Graças Chaves analisa o melhoramento dos caminhos e estradas e a abertura de canais navegáveis em Minas Gerais, no contexto das reformas ilustradas empreendidas após a vinda da família real para o Brasil. A partir do estudo do processo judicial em que a ex-senhora do escravo mina, Francisco, buscava revogar judicialmente a alforria por ela concedida anteriormente, Marcus J. de Carvalho, em “De cativo a famosos artilheiro da Confederação do Equador: o caso do africano Francisco, 1824- 1828″, analisa as vicissitudes da escravidão doméstica e as estratégias empregadas pelos escravos no Recife para construírem suas próprias noções sobre a liberdade. Por fim, no artigo ” Identidade e Arquitetura na América Latina: o transnacional e o transcultural como estratégias do Barroco e do século XXI”, Carlos Antônio Leite Brandão estuda a conquista do território brasileiro pelos portugueses e de que maneira a arquitetura barroca foi elemento constituinte para a construção da sociedade latino-americana, evidenciando o caráter artificial desta mesma identidade. Em contraponto discute o caráter da arquitetura barroca moderna e pós-moderna – o transnacional e o transcultural- que a capacita a enfrentar os desafios da globalização no século XXI.

O artigo que encerra este número da Varia Historia é “Complementaridade e Reconciliação”, de Yoav Ben-Dov, membro do Instituto Cohn de História e Filosofia da Ciência e das Idéias, da Universidade de Tei-Aviv / Israel, autor do livro Convite à Física, publicado no Brasil pela Jorge Zahar Editor. O autor esboça, em linhas gerais, a idéia de complementaridade que foi proposta por Niels Bohr, primeiramente, como uma resposta para os problemas conceituais da mecânica quântica, mas depois estendido por ele a outros domínios, tanto dentro como fora da ciência. Nessas aplicações, a idéia de complementaridade permite a aceitação de diferentes conjuntos de crenças e princípios que contradizem um ao outro, mas que possui valor intrinsecamente em seu conjunto. Em particular, essa abordagem pode ajudar a solucionar o conflito entre a perspectiva científica e as aspirações humanas.

O presente número contou com o apoio financeiro da Fundep e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a quem agradecemos.

José Carlos Reis – Organizador


REIS, José Carlos. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.27, jul., 2002. Acessar publicação original [DR]

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Historiografia | Anais do Museu Histórico Nacional | 2002

Organizador

Manoel Luís Salgado Guimarães – Historiador. Professor Adjunto departamento de História UFRJ.

Referências desta apresentação

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.34, p.67-70, 2002. Acesso apenas no link original [DR]

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Historiografia / Estudos Históricos / 1996

Fiel como sempre aos compromissos que nortearam sua fundação. Estudos Históricos retorna às questões historiográficas. Fidelidade às origens e também preocupação de seus editores. O caráter ainda modesto dos estudos historiográficos em relação ao conjunto da produção brasileira no campo da História justifica por si só a organização deste número. Tal como ocorre ainda em outras latitudes, inclusive na França, a investigação crítica e reflexiva acerca da produção e da natureza do discurso histórico não é uma característica das mais difundidas entre os historiadores.

Os trabalhos que agora publicamos foram divididos em cinco blocos, de acordo com as características formais e temáticas de cada um deles. Lamentamos ter sido impossível incluir, como desejávamos, um bloco que contemplasse as chamadas historiografias regionais, reconhecidamente um segmento dos mais expressivos da produção historiográfica brasileira recente.

No entanto, para efeito desta “Apresentação”, pensamos ser mais eficaz reunir o material aqui publicado em quatro tópicos; as visões historiográficas mais gerais; as abordagens mais teórico-metodológicas; as avaliações e perspectivas sobre as relações entre história e política; os textos de cunho mais bibliográfico.

No primeiro tópico situamos o trabalho de Carlos Fico e Ronald Polito, e o nosso próprio texto. Neste tentamos elaborar uma síntese das Caraterísticas e transformações do que entendemos como “duas identidades” – da História e do historiador. Projetadas sobre a evolução do ensino e pesquisa da disciplina a partir dos anos 50, estas identidades revelam a persistência de dualismos que ainda sobrevivem, quer referidos às tendências historiográficas internacionais, quer às nacionais.

A importância da contribuição apresentada por Fico e Polito extrapola em muito o próprio texto. Estes dois historiadores, responsáveis pela criação e desenvolvimento do “Centro Nacional de Referência Historiográfica” (UFOPMG), já publicaram um levantamento quase exaustivo da produção historiográfica brasileira dos anos 80 – A História do Brasil (1980-1989), 2 vols. – e sua presença aqui, através desta “Avaliação preliminar”, relativa às teses e dissertações defendidas em 1995, constitui uma pequena amostra do levantamento que estão realizando para a década de 90.

Incluímos no segundo tópico, de um lado, os artigos de Verena Alberti e Henry Rousso, os quais abordam duas funções teórico-metodológicas mais genéricas, e, do outro, os textos de Regina Moreira, Maria Celina D’Araujo e Maria Luiza Ritzel Remédios, os quais têm um mesmo objeto de análise – o Diário de Vargas.

A hermenêutica ocupa hoje em dia uma posição-chave nas discussões historiográficas e mobiliza seus defensores e adversários em torno de intensos debates. É sabido que a ênfase crescente no caráter interpretativo do conhecimento histórico vem sendo ora justificada, ora denunciada por diferentes historiadores. Justifica-se assim o propósito de Verena ao oferecer ao leitor, especialmente ao não iniciado, uma explicação sobre a hermenêutica, “entendida como uma certa maneira de pensar”, e sua trajetória intelectual. Tampouco se exime a autora de apontar alguns dos riscos e possibilidades que a hermenêutica pode apresentar para o trabalho historiador.

O arquivo, lugar natural das fontes documentais escritas, parece destinado ao esquecimento em face das implicações lógicas de certas concepções filosóficas, lingüísticas e literárias mais recentes. É pensando em tais implicações que Rousso enuncia a presença de uma contradição e analisa a realidade de um problema, os quais remetem, em conjunto, à questão do “lugar” do arquivo na “construção do conhecimento histórico”. Contradição, no caso, é a da oposição entre as denúncias “pós-modernas” sobre a possibilidade de uma “restituição objetiva do passado” e a demanda social (e política) por uma “história verdadeira e transparente”. Com efeito, não mais se está diante daquelas brochuras que, em 1815, acreditavam poder “provar” que Napoleão “jamais havia existido”. Hoje, dispomos de denúncias muito sérias, como as enunciadas, entre outros, por Pierre Vidal-Naquet em Os assassinos da memória e Jean Chesneaux em Devemos fazer tábua rasa do passado? Assim, em meio à maré dos “revisionismos” e à presença dos eternos “falsificadores da História”, não estará no arquivo a única saída?

Problema, por outro lado, segundo o mesmo autor, é a tendência atual a opor dois tipos de fontes – a escrita, que representa a parte mais significativa dos acervos arquivísticos, e a oral Conservada ou não em arquivos) – e privilegiar o primeiro em termos de maior “autenticidade” ou fidelidade do ponto de vista da narração dos acontecimentos passados, em detrimento do segundo.

Os artigos aqui agrupados no “Dossiê Diário de Vargas” possibilitam ao leitor ter acesso a alguns dos inúmeros problemas formais e interpretativos que podem suscitar a edição e a leitura de um diário, sobretudo quando se trata de tomá-lo como “documento histórico”. Trata-se a bem dizer de três olhares distintos endereçados a um mesmo objeto. Regina Moreira preocupa-se com a explicitação de problemas, surgidos durante o processo de preparação do texto do Diário para publicação, e com a questão mais geral dos prós e contras que marcam a utilização dos diários em geral como “fonte histórica”.

Maria Celina D’Araujo aborda três aspectos: o do papel que se pode atribuir a todo diário – o de fazer parte da construção do self (caso, o de Vargas); a caracterização do Diário em tela como sendo mais exemplar do tipo de diário que os especialistas convencionaram chamar de ”diários modernos”; as sensíveis e significativas diferenças existentes, Diário de Vargas, entre volume e a natureza das informações e reflexões respeitantes à “esfera pública” e “esfera privada” da vida do autor, respectivamente.

Maria Luiza Ritzel, nem historiadora, nem socióloga mas, sim, especialista em literatura, sublinha o lugar da subjetividade de Vargas e situa o Diário entre os chamados “relatos confessionais”, de gênero autobiográfico.

Nosso terceiro tópico compreende os trabalhos de Angela de Castro Gomes, Márcia D’Alessio, Maria de Lourdes Janotti, Vavy Borges e Maria Helena Capelato. A dimensão “política” de uma parte da produção historiográfica é a preocupação comum que une todos estes textos. No entanto, salvo o artigo de Angela Gomes, os demais trabalhos derivam da história política para a presença da “esfera do político” quando se trata de examinar a produção histórica.

O propósito explícito de Angela Gomes é analisar historicamente as “relações complexas e muitas vezes ambíguas” entre História e Ciência Política enquanto saberes disciplinares distintos, ou academicamente separados. No seu texto, muito denso e sistemático, a autora contempla tanto a política, como objeto / dimensão da produção historiográfica, quanto a história, como objeto / dimensão dos “estudos políticos”. A par de oportunos insights sobre a renovação da História Política, a autora revela seu pessimismo quanto às possibilidades de diálogo entre historiadores e cientistas políticos, pois, no seu modo de entender, suas “linguagens” teórico-metodológicas são muito diferentes.

O trabalho de D’Alessio e Janotti representa O resultado de um esforço notável das duas autoras no sentido de detectar e recensear, através de fichas-resumos, a presença da política, ou da história política, na produção historiográfica dos programas de pós-graduação. Da busca da “política” passaram as autoras à “esfera do político” e revelaram assim a presença “do político” numa grande quantidade de teses e dissertações não classificáveis, em princípio, como de “história política “.

Vavy Borges e Maria Helena Capelato tomam como ponto de partida o comentário do trabalho das duas autoras acima mas logo introduzem reflexões bastante enriquecedoras. Vavy Borges interessa-se pelo problema das relações entre história política e ideologia e o examina de modo original ao sublinhar o papel do “imaginário político” brasileiro na própria elaboração das muitas “interpretações” do Brasil e da “história nacional” desde os anos 20 / 30. Maria Helena Capelato preferiu analisar a noção de “resistências” a fim de compreender as razões e características da verdadeira febre historiográfica que, a partir dos anos 70, levou a tantas pesquisas, boas e más, sobre “as resistências” na História do Brasil, não deixando de apontar os perigos e equívocos teóricos presentes nessa tendência.

Apesar das muitas diferenças que os distinguem, forçamos a junção, no quarto tópico, dos textos elaborados por Marcelo Jasmin, Marco Antonio Pamplona e José Augusto Drummond. O artigo de Marcelo Jasmin, ao enfocar o tema da “historiografia e liberdade” a partir do famoso texto de Alexis de Tocqueville, propõe, na verdade, uma leitura compreensiva na qual preponderam as “intenções” do autor francês e sua inserção num certo “lugar” histórico, ou seja, um certo pragmatismo e um evidente presentismo. Concordemos ou não com Marcelo Jasmin, seu trabalho é inteligente e ousado, especialmente quando conclui, com Tocqueville, acerca do trabalho historiador em geral.

O trabalho de Pamplona, bem estruturado e bibliograficamente rico, sintetiza e discute os clássicos da historiografia do “protesto popular” em ambientes urbanos, com destaque para Rudé, Hobsbawm, Tilly e Cohn. A discussão dos conceitos, as tentativas de elaborar tipologias, as questões que permanecem em aberto e os possíveis caminhos de investigação constituem os pontos altos deste texto. Mais que simples revisão bibliográfica, o texto de Drummond constitui um verdadeiro ensaio a propósito do livro de Warren Dean. O entusiasmo de Drummond pelo autor e sua Obra não o impedem de discordar aqui e ali e apontar alguns lapsos ou ausências cujo caráter “acidental” não hesita em pôr em dúvida. Enfim, um diálogo inteligente do leitor / admirador com o autor que admira mas de cuja “inocência” desconfia.

Agora, boa sorte! Prossiga o leitor, por sua própria conta, este diálogo que tentamos apenas sugerir.

Francisco José Calazans Falcon – Editor convidado.


FALCON, Francisco José Calazans. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.17, jan. / jun. 1996. Acessar publicação original [DR]

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Memória, história, historiografia: ensino de história / Revista Brasileira de História / 1992-1993

[Memória, história, historiografia: ensino de história]. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25-26, set 1992 / ago., 1993. Acessar dossiê [DR]

 

Caminhos da Historiografia / Estudos Históricos / 1988

Por uma Revista de História

Enquanto as ciências sociais têm pretendido desnudar a previsão e a regularidade nos fatos sociais, a história vem recentemente refletindo sobre a indeterminação e O acaso na vida humana. A história quer nos falar da ação humana na construção de fatos, instituições e sociedades: do reino da liberdade. As ciências sociais têm usualmente pesquisado as determinações e os limites de ação, ou seja, o reino da necessidade. Sabemos que a liberdade e a necessidade se fazem presentes na vida do ser humano. O espaço da liberdade não é tão grande quanto possa supor uma história que não busque causalidades, – mas, ao mesmo tempo, a ação humana não é completamente limitada. As utopias tiveram, têm e terão lugar no universo do homem.

Apostamos em uma visão integrada desses dois saberes que lidam com o universo humano. A visão da história como uma espécie de laboratório das ciências sociais ou a proposta de análises que distinguem, não sem hierarquizar, uma dimensão sincrônica e diacrônica mantêm a separação formal entre os campos da história e das ciências sociais. Queremos agrupar compreensão histórica e explicação. Entendemos que história é an6lise e enquanto tal não restabelece as coisas “tais quais elas se passaram”. O encadeamento de eventos só ganha importância na medida em que temos conceitos nos informando sobre sua relevância. Isto é tão importante quanto nos lembrarmos da historicidade das teorias.

A historiografia no Brasil tem s6lida tradição de análise em dupla direção. Ou se afirma que nada muda neste país, ou se afirma cada momento como novo. Vivemos como se o novo não existisse ou como se o novo brotasse do zero. Mas em ambos os casos vivemos um profundo preconceito contra as origens, já que “o passado nos condena.” Nem a idolatria do passado, nem a negação total das origens nos ajudam a entender o presente e a construir um futuro. A amnésia é um castigo e um recurso de poder, pois esquecer significa ser obrigado a criar do nada. É também uma falsidade, pois, proibido de entrar pela porta da frente, o passado faz sua entrada pelos fundos. Recordação e esquecimento são igualmente importantes para a sociedade continuar a existir. A memória, composta do que se retém e do que se abandona, funda a identidade pessoal e coletiva, e é através dela que se pode comparar e avaliar as experiências particulares e sociais.

Dentro desta perspectiva, queremos ser um veículo onde se apresentem, se analisem e se debatam diferentes maneiras de compreender o Brasil. Entendemos que o momento presente nos coloca diante de perguntas cujas respostas podem e devem ser buscadas também em momentos passados. Uma história dos eventos, das culturas, das políticas nos ajuda a entender o Brasil em perspectiva.

Nossa proposta é a de reunir em uma revista todos os profissionais interessados em participar da análise do Brasil sob uma perspectiva histórica. Não queremos fazer uma revista de historiadores, ou de sociólogos, ou de cientistas políticos. Queremos sim que ela seja um órgão de divulgação de uma perspectiva multidisciplinar voltada para a história do Brasil. Queremos enfim ser o instrumento da divulgação de um saber que considera irrelevante o traçado de certas fronteiras acadêmicas e entende o conhecimento da história de um país não como um objetivo exclusivamente erudito e sim como uma preocupação fundamental para a vivência cotidiana de seus cidadãos.

Os editores.

Os editores. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.1, n.1, jan. / jun. 1988. Acessar publicação original [DR]

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