“Vida de uma família judia” e outros escritos autobiográficos – STEIN (RFA)

STEIN, E. “Vida de uma família judia” e outros escritos autobiográficos. São Paulo: Paulus, 2017. Resenha de: FILHO, Juvenal Savian. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.29, n.48, p.965-970, set./dez, 2017.

A Editora Paulus acaba de lançar a coleção brasileira Obras de Edith Stein com a publicação do primeiro volume, intitulado “Vida de uma família judia” e outros escritos autobiográficos, traduzido por Maria do Carmo Ventura Vollny e Renato Kirchner.

O texto-base da tradução é o volume 1 da edição crítica alemã das obras completas de Edith Stein (Edith Stein Gesamtausgabe — ESGA), publicado em 2002 pela Editora Herder, de Friburgo na Brisgóvia.

No volume 1, a edição crítica organizou sete textos classificados como “biográficos”: o primeiro é a “Vida de uma família judia”, seguido de outros menores, entre eles uma consagração e uma oração, que são considerados “biográficos” por causa da circunstância em que foram escritos: a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, o fato de a consagração e a oração serem dedicadas ao Sagrado Coração de Jesus mostram o vínculo com o momento histórico vivido por Edith Stein, pois desde o fim do século XIX a devoção ao Sagrado Coração de Jesus esteve especialmente ligada, na Europa, a contextos de guerra.

Os sete textos de Edith Stein editados como biográficos são:

(1) “Vida de uma família judia” (“Aus dem Leben einer jüdischen Familie”);

(2) “Uma contribuição para a Crônica do Carmelo de Colônia” (“Ein Beitrag zur Chronik des Kölner Karmel”);

(3) “Curriculum Vitae” (“Inaugural-Lebenslauf”);

(4) “Peça humorística [para a festa de casamento de Erna Stein e Hans Biberstein]” (“Festgedicht”);

(5) “Texto de Consagração [ao Sagrado Coração de Jesus]” (“Weihetext”);

(6) “Oração [ao Sagrado Coração de Jesus]” (“Gebet”);

(7) “Testamento” (“Testament”).

A respeito do surgimento e da redação dos textos, os leitores encontrarão na abertura de cada um deles informações históricas oferecidas pelos editores alemães. Cabe aqui, porém, uma rápida apresentação do texto “Vida de uma família judia”, sobre o qual há poucos dados nos comentários dos editores alemães.

Edith Stein deu o título “Vida de uma família judia” a um conjunto de dez textos menores, atribuindo um título apenas aos dois primeiros (os outros títulos foram apostos pelos editores, com base em expressões usadas por Edith Stein):

(I) Lembranças de minha mãe (Aus den Erinnerungen meiner Mutter);

(II) História de nossa família: as duas irmãs mais novas (Aus unserer Familiengeschichte: Die beiden Jüngsten);

(III) [Preocupações e tensões na família (Von Sorgen und Zerwürfnissen in der Familie)];

(IV) [O desenvolvimento das duas irmãs mais jovens (Vom Werdegang der beiden Jüngsten)];

(V) [Os anos de estudo em Breslávia (Von den Studienjahren in Breslau)];

(VI) [Diário dos corações de duas jovens (Aus dem Tagebuch zweier Mädchenherzen

(VII) [Anos de estudo em Gotinga (Von den Studienjahren in Göttingen)];

(VIII) [Serviço no Hospital Militar de Weisskirchen na Morávia (Aus dem Lazarettdienst in Mährisch-Weißkirchen)];

(IX) [Encontros exteriores e decisões interiores (Von Begegnungen und inneren Entscheidungen)];

(X) [O exame rigorosum em Friburgo (Vom Rigorosum in Freiburg)].

Como Edith Stein explica na Introdução por ela aposta no início do manuscrito, sua narrativa é composta parcialmente de memórias que sua mãe lhe transmitiu (Parte I) e parcialmente de lembranças que ela mesma reconstituiu (Partes II-X). Assim, apesar de seu desejo de ser fiel aos fatos, Edith Stein reconhece que sua narrativa não pode ser tomada como um retrato direto de sua família, mas como um conjunto de sentidos que ela recolhe na escrita e que provêm seja das memórias de sua mãe seja das suas próprias. Não é por acaso que o título por ela dado ao manuscrito inicia-se pelas partículas alemãs Aus dem…, indicando sua intenção de escrever não “a” vida de sua família e “a” sua vida mesma, mas os sentidos que podem ser atualizados pela leitura das memórias “biográficas”.

A esse propósito, convém insistir que os escritos reunidos neste livro e classificados como “biográficos” ou “autobiográficos” transcendem consideravelmente o gênero literário da biografia e da autobiografia. Diferentemente de outros pensadores modernos que escreveram suas autobiografias (como Rousseau, por exemplo, ou Simone de Beauvoir, entre outros), Edith Stein não redige apenas uma série de registros a título de documentação da memória de sua família e da sua própria. Ela identifica nessas memórias uma trama de sentidos determinados por valores (como a amizade, a justiça, a lealdade, o amor, a fé, a honestidade etc.), pretendendo oferecer aos leitores a possibilidade de também ver essa trama e deixar-se influenciar por ela. Dessa perspectiva, a “Vida de uma família judia” e os escritos autobiográficos de Edith Stein aproximam-se mais do estilo antigo que se observa em Agostinho de Hipona, por exemplo, e menos em narrativas centradas no sujeito individual, típicas da Modernidade e da Contemporaneidade. Com efeito, a “autobiografia” de Agostinho (Confissões) é a apresentação do itinerário pelo qual o indivíduo Aurélio Agostinho, bem datado no tempo e situado no espaço, chega a universalizar-se, quer dizer, a encarnar, ao seu modo, o sentido absoluto que ele encontra e que mostra ter agido desde o início não apenas da narrativa, mas de toda a existência do autor. Os leitores têm diante de si um caminho que eles também podem percorrer, a fim de encontrar e encarnar o mesmo sentido absoluto. Assim também, a narrativa da “Vida de uma família judia” e os outros escritos “autobiográficos” de Edith Stein contêm mais do que um simples registro de acontecimentos familiares e pessoais, porque apresentam quadros nos quais se observa a ação do sentido absoluto que Edith Stein havia encontrado no momento em que escrevia e que ela percebia ter agido desde o início de sua vida e da vida de sua família: a Providência Divina ou o ordenamento sagrado que faz a História encaminhar-se sempre para o bem, malgrado a presença multifacetada do sofrimento e da dor. Dessa perspectiva, é interessante notar que, se em Filosofia Edith Stein procede a um acionamento de estilos clássicos — antigos e medievais — para lançar luz sobre temáticas fenomenológicas, também em seus escritos “autobiográficos” ela recupera um tipo clássico de narrativa biográfica em que o universal é o verdadeiro sujeito, e não o particular.

Edith Stein iniciou a redação da “Vida de uma família judia” em 1933, ano em que os nazistas chegaram ao poder. Ela teve de deixar o Instituto Alemão de Pedagogia Científica de Münster, onde lecionava, o que a motivou a servir-se daquela ocasião para seguir o chamado interior que sentia desde 1921, quando foi batizada depois de sua conversão à fé cristã: entrar no Carmelo. A vida na clausura não significava para ela uma ruptura com o mundo, menos ainda um gesto egoísta de sobrevivência em meio ao horror: ela era movida a um só tempo por sua vocação monástica e por uma sólida convicção de que permaneceria profundamente unida à sua família, ao povo judeu, à Europa e enfim a toda a Humanidade. Como ela afirma em uma carta dirigida a Fritz Kaufmann, em 14 de maio de 1934, quem entra no Carmelo não se distancia das pessoas, pois sua existência se converte em benefício para elas, uma vez que o papel das carmelitas é permanecer diante de Deus, orando por todos.

Ao ser aceita no Carmelo de Colônia, Edith Stein residiu durante um mês na hospedaria do mosteiro, fora da clausura. Em seguida, foi à casa de sua família, em Breslávia, para despedir-se antes de retornar definitivamente para o Carmelo. Foi a ocasião da visita à sua família que lhe permitiu recolher as memórias de sua mãe e iniciar a redação da primeira parte da “Vida de uma família judia”. O motivo imediato de sua escrita, para além de um simples registro — como já foi dito —, foi o desejo de retratar a vida de uma família judia semelhante à imensa maioria das famílias alemãs, desmentindo, assim, a caricatura que os nazistas impunham aos judeus. Mais do que um desejo, tratava-se de um dever para Edith Stein, contribuindo para o fim do ódio racial entre os jovens, como ela diz na Introdução: “É para essa juventude e exatamente para ela que devemos dar testemunho, nós que crescemos no judaísmo”.

Em agosto de 1933, Edith Stein começa a reunir os elementos que lhe permitirão compor a sua narrativa. Em 14 de outubro do mesmo ano, ela passa a viver na clausura do Carmelo de Colônia e obtém autorização dos superiores para continuar a redação, mas em abril de 1935 teve de interrompê-la a pedido dos mesmos superiores, que insistiam para que ela retomasse o trabalho intitulado Potência e ato (escrito em poucos meses para o concurso de uma cátedra na Universidade de Friburgo, em 1931-1932), que acabou sendo transformado na obra maior Ser finito e eterno. Quando Edith Stein faz essa primeira interrupção, em 1935, o manuscrito da “Vida de uma família judia” contava com mais de mil páginas. No dia 7 de janeiro de 1939, já no Carmelo de Echt, na Holanda, Edith Stein retoma a redação, não produzindo, porém, mais do que quatorze folhas. No dia 27 de abril de 1939, Edith Stein interrompe definitivamente a redação. Em 1940, quando a Holanda foi invadida pelos nazistas, Edith Stein enterrou seu manuscrito na clausura do mosteiro. Uma das irmãs o desenterrou e escondeu em um lugar mais seguro, de modo que o manuscrito permaneceu no Carmelo de Echt até 1945. Após a guerra, ele foi entregue ao Arquivo Carmelita de Bruxelas e hoje se encontra no Arquivo Edith Stein de Colônia, contando com 1086 páginas escritas à mão, mais 51 datilografadas. Por fim, acontecimentos de diferentes naturezas (principalmente ligados à Segunda Guerra Mundial) fizeram que o manuscrito ficasse incompleto: foram perdidas 32 páginas do capítulo III.

Por fim, vale chamar a atenção para o fato de que a redação de Edith Stein não segue necessariamente uma linearidade cronológica, de modo que cada parte da “Vida de uma família judia” tem sua unidade própria. Por exemplo, no capítulo III, embora sua narrativa se concentre em 1902, Edith Stein deixa-se levar por lembranças familiares que saltam para 1920. Depois, ela retorna a 1905 no capítulo seguinte.

Idas e vindas temporais marcam, então, a narrativa steiniana do início ao fim, reproduzindo o movimento mesmo com que as unidades de sentido formam uma unidade maior no fluxo constante que compõe a trama da consciência individual. A redação de Edith Stein é, por isso, no sentido mais nobre do termo, uma redação humilde, posta consciente e deliberadamente ao serviço do Lógos ou Sentido que ela encontra em sua odisseia pessoal. Ler esses textos é, em definitivo, muito mais do que pôr-se em contato com uma narrativa “biográfica”; é entrar em um território onde ressoam as palavras do Êxodo: Retira tuas sandálias, pois o lugar onde pisas é uma terra santa! (Ex 3,6).

Juvenal Savian Filho – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E-mail: [email protected]

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