Fenícios / Hélade / 2019

Os fenícios: para além de uma visão eurocêntrica do mediterrâneo antigo

Passados mais de dois séculos do início moderno dos estudos sobre os fenícios, eles ainda possuem uma aura de mistério. Para o senso comum, são vistos como intrépidos navegantes, hábeis comerciantes, os inventores do alfabeto e são mormente associados ao território moderno do Líbano, no Oriente Médio.

Para a academia, ainda se configuram como uma questão historiográfica complexa, sobre quem restam mais dúvidas que certezas, a menor delas não sendo a exaustivamente debatida questão da existência ou não do sacrifício infantil entre fenícios e seus descendentes [2].

Em um texto meu de 2012, Novas abordagens no mundo colonial antigo: um estudo de caso em Arqueologia da Paisagem na Sardenha púnica, mostrei como estudiosos consagrados da área acreditam que o primeiro caminho a ser percorrido é o da criteriosa reconstrução historiográfica dos estudos fenícios. Assim, Corinne Bonnet e Véronique Krings, em 2006, discutiram os caminhos históricos da ciência ocidental moderna mostrando que esta, na verdade, vinha reproduzindo, principalmente a partir do século XIX, concepções estabelecidas em contextos históricos distintos.

Mais recentemente, Josephine Quinn (2018) [3] retomou a questão abrindo o leque para a análise da construção conceitual e imagética dos fenícios desde a própria Antiguidade, a partir de Homero.

Os Estudos Clássicos iniciam sua trajetória no limiar do Renascimento. É preciso dizer que se passarão séculos até estes alcançarem os povos ao Oriente, mas vejamos como essa história começa e se desenrola, e quando, finalmente, os fenícios surgem como tema de estudo da academia moderna.

No século XIV, as cidades são cada vez mais numerosas e povoadas, a nova classe burguesa e nova nobreza ascendente “patrocinam” os estudos humanistas (TRIGGER, 2011 (1989)). Procuram justificar as mudanças sociopolíticas da época e suas pretensões valorizando o passado glorioso que a Itália teria tido na Antiguidade Clássica. Os estudos mostram que muita coisa havia mudado: social e culturalmente. Passou-se a tentar entender o passado sem julgá-lo a partir dos padrões do presente. A apreciação dos antigos modos- -de-vida da Grécia e de Roma, vista por meio da literatura, avançou para os campos da arte e da arquitetura. Nobreza e mercadores italianos rivalizavam uns com os outros em termos de patronos das artes (MOMIGLIANO, 2019 (1990)).

Em 1493 foi aberta à visitação, em Roma, os ambientes da fabulosa Domus Aurea, o “palácio de ouro” de Nero, repleta de afrescos decorativos. Até hoje é considerado um dos complexos mais ricos de pintura antiga. Essas pinturas foram copiadas, no início do séc. XVI, por inúmeros artistas renascentistas: Pinturicchio; Marco Polmezzano; Michelangelo; e Rafael, que criou as modernas “grotescas” (grottesche).

É nesse contexto que se iniciam as primeiras escavações sistemáticas. Muito mais “cavações” a procura de objetos com alto valor artístico e comercial. Na Itália, artistas como Mantegna passaram a desenhar edifícios, relevos, sarcófagos e outros monumentos que ainda eram visíveis sobre a terra. Tais desenhos eram gravados em placas de cobre e, depois, vendidos pela Europa (TRIGGER, 2019 (1989)). Surgem os Gabinetes de Curiosidades. O alto valor monetário atribuído às peças permitia que apenas pessoas com posses, como os nobres, e os estudiosos por eles patrocinados, tivessem acesso a este tipo de investigação e coleção.

Assim, Sir William Hamilton (1730-1803), embaixador britânico em Nápoles, formou uma imensa coleção de cerâmica grega pintada, a qual foi adquirida pelo Museu Britânico. Seu livro Antiquités Etrusques, Grecques et Romaines, publicado em 1766-1767, inspirou o ceramista Josiah Wedgewood a fabricar peças baseadas nos vasos gregos, etruscos e romanos, os quais até hoje podem ser comprados online por preços que facilmente alcançam as dezenas de milhares de dólares!

Afora as cidades do mundo grego e romano que estavam sendo redescobertas no séc. XIX com a Arqueologia, ocorre, igualmente, uma pequena revolução com relação a sociedades conhecidas até então quase exclusivamente pela Bíblia, especialmente a egípcia e a assíria.

Desde o início do antiquariato, pequenas descobertas acidentais, como a que ocorre em 1654, da tumba de um rei franco, ou os estudos sobre os etruscos, patrocinados pela Academia de Crotona, na Itália, deixam entrever um mundo antigo para além dos gregos e dos romanos (cf. TRIGGER, 2011 (1989)).

Alguns poucos viajantes se aventuravam, no século XVII, a atravessar o deserto da Síria, em terras otomanas. O viajante italiano Pietro della Valle, em 1626, levou à Europa alguns tijolos com inscrições cuneiformes. Mas será apenas a partir do século XVIII que veremos a ascensão do desenvolvimento de estudos paralelos ao romano e ao grego. Assim é que:

Retomando o desenvolvimento dos estudos fenício-púnicos, temos que, em relação à egiptologia, à assiriologia, e mesmo aos estudos gregos e romanos, que se iniciam com grande força já na virada do século XVIII para o XIX – no campo da exploração arqueológica, a Fenícia surge em 1860 junto com a Mission de Phénicie de E. Renan, o “primeiro grande homem” desta disciplina; uma missão que se enquadra no conjunto da intervenção militar de Napoleão III em favor dos cristãos maronitas ameaçados pelos drusos, em um contexto histórico onde temos as potências ocidentais ativamente atuando dentro do Império Otomano. Renan interpreta as realidades fenícias que ele encontra a partir de categorias emprestadas aos estudos bíblicos, ou, o que é ainda pior, se inspirando nos textos bíblicos que fustigam a “religião cananéia”, seus ídolos grosseiros, seus locais elevados, seus cultos obscenos e sua prostituição sagrada. Este prisma deformante não ficou totalmente relegado ao passado. A marca de um projeto calculado, um modelo de pensamento escolhido, que lança em segundo plano a história dos e os próprios fenícios, aparece mais claramente ao vermos falhar a ascensão dos estudos fenícios, enquanto campo autônomo, ainda no século XVIII, antes, portanto, de Renan, quando em 1758, o abade J. J. Berthélemy decifrou, a partir de uma inscrição bilíngue greco-fenícia de Malta (CIS I 122-122 bis) o alfabeto fenício (KORMIKIARI, 2012, p. 279-80)

A virada do século XVIII para o XIX, marca, assim um conjunto de escolhas acadêmicas que, na verdade, refletem escolhas sociopolíticas de construções identitárias dos nascentes Estados-Nação europeus. As culturas grega, romana e mesmo egípcia (apesar de ‘estrangeira’ à Europa) foram as marcadas como essenciais, uma vez que se constituíram como inspiração, ideológica, conceitual e estética. É notória a paixão e a entrega romântica dos círculos cultos e elitistas do norte europeu em prol da luta pela independência grega frente o Império Otomano, nas primeiras décadas do século XIX. Neste momento tão conturbado, um povo, uma cultura restrita a um pequeno pedaço de terra oriental, sem grandes monumentos ou objetos considerados, então, como da primeira classe artística, como as esculturas de mármore e bronze, ficaram relegados a um papel secundário. São os fenícios: “o próprio Renan não deixa de se queixar da extrema pobreza do que ele encontra no solo fenício e evoca até os oráculos bíblicos contra Tiro para explicar a evanescência de um sítio que escapa à procura” (KORMIKIARI 2012, p. 280).

Na opinião de duas das maiores especialistas da área Corinne Bonnet e Veronique Krings:

A arte e a arquitetura fenícias resistem à apreensão histórica: ecléticas, bastardas, quase inexistentes. A cultura híbrida ou mestiça dos fenícios e púnicos, em oposição à “pureza” do “milagre” grego, é considerada pouco definida, exposta a processos de “porosidade” com as culturas indígenas, ainda mais menosprezadas (KORMIKIARI, 2012, p. 280).

O pós II Guerra Mundial trouxe novos ares à academia. Um dos trabalhos mais citados como seminal para o desenvolvimento de novas correntes teóricas foi o livro Orientalism, de 1978, de Edward Said.

O grande tema que se desenvolveu, então, e que até hoje tem sido reformulado e modulado na Academia, gira em torno da crítica aos discursos produzidos na Academia a partir da contextualização histórica destes [4]. A análise desses discursos alimentou, no campo da Arqueologia do Mediterrâneo Antigo, a percepção da não existência de culturas superiores e inferiores, da não existência de culturas ‘puras’, intocadas:

…..a semente plantada por Said germinou na redefinição de conceitos como colonização e colonialismo. Alguns pesquisadores, como Peter Van Dommelen …… aponta que apesar dos fenômenos coloniais receberem muita atenção na Arqueologia Clássica e Mediterrânica, a própria noção de colonialismo quase não tem sido questionada. ……

Ao mesmo tempo, este fato não livraria pesquisadores, principalmente os ocidentais, formados na cultura européia dos séculos XIX e XX, de um ‘contágio’ das noções implícitas ao movimento colonialista moderno, em seus tratamentos do fenômeno na Antiguidade…. De maneira análoga, a visão dualista de dois blocos homogêneos e estanques, o dos colonizadores e o dos colonizados, foram revistas, e hoje tenta-se trabalhar com categorias individuais e plurais, dentro das diversas dimensões sociais (classe, gênero, idade), políticas, econômicas e religiosas existentes nas duas ou mais sociedades que entraram em contato durante tais processos coloniais. Assim, as diversas identidades criadas e recriadas em contextos específicos passaram a fazer parte deste novo discurso acadêmico (VAN DOMMELEN e KNAPP, 2010, p. 4-7) (KORMIKIARI, 2012, p.281).

No entanto, gostaríamos de ressaltar aqui que no campo da Arqueologia, podemos citar vários arqueólogos italianos, como Luigi Bernabó Brea, e Rosa Maria Albanese Procelli, que deu importante continuidade à escola estabelecida por Brea, e, nos estudos fenício-púnicos, Sabatino Moscati, Sandro Filippo Bondì, entre outros, que vinham trabalhando estas importantes questões já desde os anos de 1950. Lembramos ainda que, no começo da década de 1960, o Instituto da Magna Grécia, que vem sistematicamente publicando seus encontros na importante coleção Atti de Taranto, na Itália, teve como tema de seu primeiro congresso Greci e italici in Magna Grecia (1962), lançando um olhar renovado sobre a questão do contato entre povos na Antiguidade.

Aqui no Brasil, entre bons exemplos de abordagens inovadoras, saliento o trabalho do Labeca (Laboratório de estudos sobre a cidade antiga), sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, do qual faço parte e no qual vimos, há quase 15 anos, trabalhando nessa linha, preocupados em entender o mundo antigo a partir do todo. Nosso projeto de pesquisa atual versa justamente sobre a questão do contato entre povos distintos, gregos, indígenas e fenícios [5].

Entender o contato implica o trabalho com questões essenciais, como relações de poder, de resistência, de cooperação, de afastamento [6]. A Arqueologia do mundo mediterrânico vem enfrentando esses desafios, procurando se situar no e responder aos questionamentos modernos de seu nascimento e desenvolvimentos iniciais. Em particular, a Arqueologia fenício-púnica, que investiga os grupos orientais e as consequências históricas de seu espalhamento pelo Mediterrâneo, com a fundação de dezenas de cidades e estabelecimentos, é uma das áreas que mais tem crescido.

O presente dossiê traz ao público brasileiro um conjunto significativo de textos, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que apontam para novos caminhos de pesquisa, trazem resultados de grandes projetos, recuperam documentos textuais pouco investigados. Esperamos que sua leitura seja prazerosa e que instigue novos investigadores!

Notas

2. Para uma análise detalhada e atualizada da questão, ver (KORMIKIARI, 2017).

3. Vide resenha neste volume.

4. Edward Said, na verdade, trabalha com o discurso construído sobre o outro, o oriental, nos meios de comunicação ocidentais de massa.

5. Ver, por exemplo, Florenzano (2017).

6. Um estudo ainda extremamente atual e instigante é o trabalho de Serge Gruzinski e Agnés Rouveret, ‘Ellos son como niños’, de 1976.

Referências

BONNET, C. & KRINGS, V. Les pheniciens, Carthage et nous: histoire et representations. In: VITA, J. P. e ZAMORA, J. A. (eds.) Cuadernos de Arqueología Mediterránea, vol. 13, 2006, p. 37-47.

CRAWLEY QUINN, J. In Search of the Phoenicians. Princeton University Press, 2018.

FLORENZANO, M. B. B. Cidades Gregas na Calábria Antiga: A configuração dos territórios de Lócris e Régio (sécs. VII-V a.C.). In: Atas do II Congresso Histórico Internacional As Cidades na História: Sociedade. Minho, Portugal, 2017, p. 263-280 (versão on line).

GRUZINSKI, S. e ROUVERET, A. ‘Ellos son como niños’, histoire et acculturation dans le Mexique colonial et l’Italie méridionale avant la romanisation. Mélanges de l’École Française de Rome (MEFRA), n. 88, vol. 1, 1976, p. 160-219.

KORMIKIARI, M. C. N. Novas abordagens no mundo colonial antigo: um estudo de caso em Arqueologia da Paisagem na Sardenha púnica. In: ZIERER, A. e VIEIRA, A. L. B. (orgs.), História Antiga e Medieval. Viagens e viajantes: cultura, imaginário e espacialidade. São Luís: Editora UEMA, 2012, p. 279-292.

_________. O papel de Cartago no debate acerca do sacrifício humano fenício-púnico. Romanitas, Revista de Estudos Grecolatinos, n. 10, 2017, p.100-122.

SAID, E. Orientalism. Nova Iorque: Pantheon, 1978.

VAN DOMMELEN, P. e KNAPP, A. B. (eds.) Material Connections in the Ancient Mediterranean: Mobility, Materiality and Identity. Abingdon e Nova Iorque: Routledge, 2010.

Maria Cristina Nicolau Kormikiari – Docente em Arqueologia Clássica no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, pesquisadora e co-coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca-MAE / USP). No seu pós doc realizou estágio no Centre Camille Julian, da Université de Provence, em Aix-en-Provence, França. Para consultar demais publicações da autora: https: / / usp-br.academia.edu / CristinaKormikiari. E-mail: [email protected]


KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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