Conexões mediterrâneas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia / Hélade / 2019

O estudo das conexões mediterrânicas e as humanidades

Os estudos sobre as conexões mediterrânicas trazem um histórico de pesquisas desde os anos 80 do século passado, nos quais historiadores, arqueólogos, antropólogos, geógrafos e literatos passaram a observar com mais acuidade e criticidade modelos que enfatizam o caráter estático e limitante de culturas passando a realçar de maneira mais aguda a fluidez e conectividade dos povos, pensando o tempo presente e a Antiguidade. Já na primeira metade do século XX, mais intensamente nas últimas décadas deste século e primeiras décadas do século XXI, críticas foram e são feitas aos modelos de entendimento sobre conectividade, muitas delas pautadas em uma perspectiva eurocentrista e nacionalista. Tais modelos negligenciavam a força e prevalência do local em detrimento ao destaque dado ao ‘global’, observados na perspectiva econômica de centro-periferia, perspectiva esta inserida no conceito de sistema-mundo, com suas bases no conceito de economia-mundo, criado por Braudel (1949) e desenvolvido por Wallerstein (1974, 1980, 1989), Arrighi (1994) e Amin (1974), com bases anticolonialistas.

Destacamos ainda o estudo de Price (2012) onde afirma que existem dois tipos de cultos nas províncias romanas: os cultos étnicos e os cultos eletivos. Estes últimos, responsáveis por uma maior interação e circulação cultural das divindades. De acordo com o autor, os cultos eletivos eram, em sua grande maioria cultos estrangeiros, e necessitavam, assim, da criação de novos grupos de adoradores nos locais onde estes residiam. Dessa forma, os cultos se movimentavam, circulavam assim como as pessoas, assim como as ideias (PRICE, 2012, p. 7-8). Novas reflexões trouxeram à tona novas compreensões sobre as manifestações culturais, políticas e religiosas que giravam em torno de um Mediterrâneo fluido, atemporal, e fortaleceram a necessidade de encontrar categorias analíticas mais precisas. É sabido hoje o quão importante é reconhecer a necessidade em se respeitar as singularidades dos povos – o que podemos chamar de pesquisas sobre localismo – em meio a natureza global das relações políticas e econômicas e suas repercussões cultural, social e religiosa intragrupos.

Outro estudo de fundamental importância foi realizado por Polanyi (1944), porque apresentava ao mundo uma perspectiva antropológica inovadora às reflexões sobre a economia dos povos antigos. Mais adiante, Braudel revolucionou os estudos sobre a economia e cultura mediterrânica ao abranger o mundo natural e a vida material, economia, demografia, política e diplomacia vivida no Mediterrâneo da segunda metade do século XVI. Renfrew e Cherry (1986) desenvolvem na arqueologia o conceito de Peer Polity Interaction para explicar as mudanças na sociedade e na cultura material. De acordo com este modelo, resumidamente, havia três tipos principais de interação: competição, incluindo guerra e emulação competitiva; ‘transmissão simbólica’, em que as sociedades absorveriam sistemas simbólicos de seus vizinhos, como sistemas numéricos, estruturas sociais e crenças religiosas, porque preenchiam um nicho vazio em sua sociedade; e, por fim, a ‘transmissão de inovação’, onde a tecnologia se espalharia pelo comércio, doações e outras formas de troca.

Em vista dos recursos teóricos que estes célebres e basilares autores nos legaram, este dossiê Conexões mediterrânicas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia pretende apresentar ao leitor as questões concernentes às conectividades entre os povos que habitaram os litorais Leste e Oeste do Mediterrâneo. Oito artigos, uma entrevista com Hans Beck, professor da Universidade de Münster, Alemanha, e um posfácio redigido por Tamar Hodos, professora da Universidade Bristol, Inglaterra, compõem este dossiê. Estes buscam refletir sobre esta intricada rede de relações comerciais, políticas e religiosas existentes nas cidades que circundavam o Mediterrâneo e naquelas que adentravam rumo ao interior, com discussões conceituais e estudos de caso com grande qualidade e profundidade.

Assim como os navegantes, os bens materiais e as ideias que singraram este ‘cimento líquido’ – usando o termo cunhado por Gras (1998, p. 7) – os pesquisadores, ao longo dos séculos XX e XXI vem singrando os conceitos que circundam este imenso mar e os povos que por ele passavam e dependiam. Acreditamos que as contribuições de nossos autores façam com que o leitor navegue conosco neste mar de reflexões, e se encante com as proposições e interações recíprocas sugeridas.

Boa leitura!

Referências

AMIN, S. Accumulation on a World Scale: A Critique of the Theory of Underdevelopment. Nova York: Monthly Review Press, 1974.

ARRIGHI, G. The Long Twentieth Century: Money, Power, and the Origins of Our Times. New York: Verso, 1994.

BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin. 1949.

GRAS, M. O Mediterrâneo Arcaico. Lisboa: Ed. Teorema, 1998 (1995).

POLANYI, K. The Great Transformation. Foreword by Robert M. MacIver. New York: Farrar & Rinehart. 1944.

PRICE, S. Religious Mobility in the Roman Empire. The Journal of Roman Studies. Vol. 102, 2012, pp. 1-19

RENFREW, C.; CHERRY, J. F. (Eds.): Peer Polity Interaction and Socio-Political Change. Cambridge University Press, Cambridge, 1986.

WALLERSTEIN, I. The Modern World-System, Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York / London: Academic Press. Vol. 1, Vol. 2 e Vol. 3, 1974, 1980 e 1989.

Juliana Figueira da Hora – Pesquisadora de pós-doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), doutora e Mestre em Arqueologia pela mesma instituição. Professora do Mestrado Interdisciplinar da Universidade Santo Amaro (UNISA) e membro pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA). Para consultar demais publicações da autora: https: / / usp-br.academia.edu / JulianaHora. E-mail: [email protected]

Maria Aparecida de Oliveira Silva – Doutora em História Social (2007) pela Universidade de São Paulo, com estágios na École française de Rome (PDEE / CAPES) e na Universidade Nova de Lisboa (FAPESP). Pós-Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (2010) e em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2012). Pesquisadora do Grupo Heródoto / Unifesp, do Grupo de Pesquisa em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo Antigo (Taphos / USP). Professora Orientadora Ad-hoc do PPGH / UnB e líder do Grupo CNPq LABHAN / UFPI. Para consultar demais publicações da autora: https: / / independent.academia.edu / MariaAparecidadeOliveiraSilva. E-mail: [email protected]

Vagner Carvalheiro Porto – Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. É Co-coordenador do LARP, Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (USP) no qual desenvolve pesquisa docente sobre as províncias romanas da Síria-Palestina e da Península Ibérica. É Coordenador do Grupo de Pesquisas CNPq-ARISE – Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas. Para consultar demais publicações do autor: https: / / usp-br1.academia.edu / VagnerCarvalheiroPorto. E-mail: [email protected]


HORA, Juliana Figueira da; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira; PORTO, Vagner Carvalheiro. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Fenícios / Hélade / 2019

Os fenícios: para além de uma visão eurocêntrica do mediterrâneo antigo

Passados mais de dois séculos do início moderno dos estudos sobre os fenícios, eles ainda possuem uma aura de mistério. Para o senso comum, são vistos como intrépidos navegantes, hábeis comerciantes, os inventores do alfabeto e são mormente associados ao território moderno do Líbano, no Oriente Médio.

Para a academia, ainda se configuram como uma questão historiográfica complexa, sobre quem restam mais dúvidas que certezas, a menor delas não sendo a exaustivamente debatida questão da existência ou não do sacrifício infantil entre fenícios e seus descendentes [2].

Em um texto meu de 2012, Novas abordagens no mundo colonial antigo: um estudo de caso em Arqueologia da Paisagem na Sardenha púnica, mostrei como estudiosos consagrados da área acreditam que o primeiro caminho a ser percorrido é o da criteriosa reconstrução historiográfica dos estudos fenícios. Assim, Corinne Bonnet e Véronique Krings, em 2006, discutiram os caminhos históricos da ciência ocidental moderna mostrando que esta, na verdade, vinha reproduzindo, principalmente a partir do século XIX, concepções estabelecidas em contextos históricos distintos.

Mais recentemente, Josephine Quinn (2018) [3] retomou a questão abrindo o leque para a análise da construção conceitual e imagética dos fenícios desde a própria Antiguidade, a partir de Homero.

Os Estudos Clássicos iniciam sua trajetória no limiar do Renascimento. É preciso dizer que se passarão séculos até estes alcançarem os povos ao Oriente, mas vejamos como essa história começa e se desenrola, e quando, finalmente, os fenícios surgem como tema de estudo da academia moderna.

No século XIV, as cidades são cada vez mais numerosas e povoadas, a nova classe burguesa e nova nobreza ascendente “patrocinam” os estudos humanistas (TRIGGER, 2011 (1989)). Procuram justificar as mudanças sociopolíticas da época e suas pretensões valorizando o passado glorioso que a Itália teria tido na Antiguidade Clássica. Os estudos mostram que muita coisa havia mudado: social e culturalmente. Passou-se a tentar entender o passado sem julgá-lo a partir dos padrões do presente. A apreciação dos antigos modos- -de-vida da Grécia e de Roma, vista por meio da literatura, avançou para os campos da arte e da arquitetura. Nobreza e mercadores italianos rivalizavam uns com os outros em termos de patronos das artes (MOMIGLIANO, 2019 (1990)).

Em 1493 foi aberta à visitação, em Roma, os ambientes da fabulosa Domus Aurea, o “palácio de ouro” de Nero, repleta de afrescos decorativos. Até hoje é considerado um dos complexos mais ricos de pintura antiga. Essas pinturas foram copiadas, no início do séc. XVI, por inúmeros artistas renascentistas: Pinturicchio; Marco Polmezzano; Michelangelo; e Rafael, que criou as modernas “grotescas” (grottesche).

É nesse contexto que se iniciam as primeiras escavações sistemáticas. Muito mais “cavações” a procura de objetos com alto valor artístico e comercial. Na Itália, artistas como Mantegna passaram a desenhar edifícios, relevos, sarcófagos e outros monumentos que ainda eram visíveis sobre a terra. Tais desenhos eram gravados em placas de cobre e, depois, vendidos pela Europa (TRIGGER, 2019 (1989)). Surgem os Gabinetes de Curiosidades. O alto valor monetário atribuído às peças permitia que apenas pessoas com posses, como os nobres, e os estudiosos por eles patrocinados, tivessem acesso a este tipo de investigação e coleção.

Assim, Sir William Hamilton (1730-1803), embaixador britânico em Nápoles, formou uma imensa coleção de cerâmica grega pintada, a qual foi adquirida pelo Museu Britânico. Seu livro Antiquités Etrusques, Grecques et Romaines, publicado em 1766-1767, inspirou o ceramista Josiah Wedgewood a fabricar peças baseadas nos vasos gregos, etruscos e romanos, os quais até hoje podem ser comprados online por preços que facilmente alcançam as dezenas de milhares de dólares!

Afora as cidades do mundo grego e romano que estavam sendo redescobertas no séc. XIX com a Arqueologia, ocorre, igualmente, uma pequena revolução com relação a sociedades conhecidas até então quase exclusivamente pela Bíblia, especialmente a egípcia e a assíria.

Desde o início do antiquariato, pequenas descobertas acidentais, como a que ocorre em 1654, da tumba de um rei franco, ou os estudos sobre os etruscos, patrocinados pela Academia de Crotona, na Itália, deixam entrever um mundo antigo para além dos gregos e dos romanos (cf. TRIGGER, 2011 (1989)).

Alguns poucos viajantes se aventuravam, no século XVII, a atravessar o deserto da Síria, em terras otomanas. O viajante italiano Pietro della Valle, em 1626, levou à Europa alguns tijolos com inscrições cuneiformes. Mas será apenas a partir do século XVIII que veremos a ascensão do desenvolvimento de estudos paralelos ao romano e ao grego. Assim é que:

Retomando o desenvolvimento dos estudos fenício-púnicos, temos que, em relação à egiptologia, à assiriologia, e mesmo aos estudos gregos e romanos, que se iniciam com grande força já na virada do século XVIII para o XIX – no campo da exploração arqueológica, a Fenícia surge em 1860 junto com a Mission de Phénicie de E. Renan, o “primeiro grande homem” desta disciplina; uma missão que se enquadra no conjunto da intervenção militar de Napoleão III em favor dos cristãos maronitas ameaçados pelos drusos, em um contexto histórico onde temos as potências ocidentais ativamente atuando dentro do Império Otomano. Renan interpreta as realidades fenícias que ele encontra a partir de categorias emprestadas aos estudos bíblicos, ou, o que é ainda pior, se inspirando nos textos bíblicos que fustigam a “religião cananéia”, seus ídolos grosseiros, seus locais elevados, seus cultos obscenos e sua prostituição sagrada. Este prisma deformante não ficou totalmente relegado ao passado. A marca de um projeto calculado, um modelo de pensamento escolhido, que lança em segundo plano a história dos e os próprios fenícios, aparece mais claramente ao vermos falhar a ascensão dos estudos fenícios, enquanto campo autônomo, ainda no século XVIII, antes, portanto, de Renan, quando em 1758, o abade J. J. Berthélemy decifrou, a partir de uma inscrição bilíngue greco-fenícia de Malta (CIS I 122-122 bis) o alfabeto fenício (KORMIKIARI, 2012, p. 279-80)

A virada do século XVIII para o XIX, marca, assim um conjunto de escolhas acadêmicas que, na verdade, refletem escolhas sociopolíticas de construções identitárias dos nascentes Estados-Nação europeus. As culturas grega, romana e mesmo egípcia (apesar de ‘estrangeira’ à Europa) foram as marcadas como essenciais, uma vez que se constituíram como inspiração, ideológica, conceitual e estética. É notória a paixão e a entrega romântica dos círculos cultos e elitistas do norte europeu em prol da luta pela independência grega frente o Império Otomano, nas primeiras décadas do século XIX. Neste momento tão conturbado, um povo, uma cultura restrita a um pequeno pedaço de terra oriental, sem grandes monumentos ou objetos considerados, então, como da primeira classe artística, como as esculturas de mármore e bronze, ficaram relegados a um papel secundário. São os fenícios: “o próprio Renan não deixa de se queixar da extrema pobreza do que ele encontra no solo fenício e evoca até os oráculos bíblicos contra Tiro para explicar a evanescência de um sítio que escapa à procura” (KORMIKIARI 2012, p. 280).

Na opinião de duas das maiores especialistas da área Corinne Bonnet e Veronique Krings:

A arte e a arquitetura fenícias resistem à apreensão histórica: ecléticas, bastardas, quase inexistentes. A cultura híbrida ou mestiça dos fenícios e púnicos, em oposição à “pureza” do “milagre” grego, é considerada pouco definida, exposta a processos de “porosidade” com as culturas indígenas, ainda mais menosprezadas (KORMIKIARI, 2012, p. 280).

O pós II Guerra Mundial trouxe novos ares à academia. Um dos trabalhos mais citados como seminal para o desenvolvimento de novas correntes teóricas foi o livro Orientalism, de 1978, de Edward Said.

O grande tema que se desenvolveu, então, e que até hoje tem sido reformulado e modulado na Academia, gira em torno da crítica aos discursos produzidos na Academia a partir da contextualização histórica destes [4]. A análise desses discursos alimentou, no campo da Arqueologia do Mediterrâneo Antigo, a percepção da não existência de culturas superiores e inferiores, da não existência de culturas ‘puras’, intocadas:

…..a semente plantada por Said germinou na redefinição de conceitos como colonização e colonialismo. Alguns pesquisadores, como Peter Van Dommelen …… aponta que apesar dos fenômenos coloniais receberem muita atenção na Arqueologia Clássica e Mediterrânica, a própria noção de colonialismo quase não tem sido questionada. ……

Ao mesmo tempo, este fato não livraria pesquisadores, principalmente os ocidentais, formados na cultura européia dos séculos XIX e XX, de um ‘contágio’ das noções implícitas ao movimento colonialista moderno, em seus tratamentos do fenômeno na Antiguidade…. De maneira análoga, a visão dualista de dois blocos homogêneos e estanques, o dos colonizadores e o dos colonizados, foram revistas, e hoje tenta-se trabalhar com categorias individuais e plurais, dentro das diversas dimensões sociais (classe, gênero, idade), políticas, econômicas e religiosas existentes nas duas ou mais sociedades que entraram em contato durante tais processos coloniais. Assim, as diversas identidades criadas e recriadas em contextos específicos passaram a fazer parte deste novo discurso acadêmico (VAN DOMMELEN e KNAPP, 2010, p. 4-7) (KORMIKIARI, 2012, p.281).

No entanto, gostaríamos de ressaltar aqui que no campo da Arqueologia, podemos citar vários arqueólogos italianos, como Luigi Bernabó Brea, e Rosa Maria Albanese Procelli, que deu importante continuidade à escola estabelecida por Brea, e, nos estudos fenício-púnicos, Sabatino Moscati, Sandro Filippo Bondì, entre outros, que vinham trabalhando estas importantes questões já desde os anos de 1950. Lembramos ainda que, no começo da década de 1960, o Instituto da Magna Grécia, que vem sistematicamente publicando seus encontros na importante coleção Atti de Taranto, na Itália, teve como tema de seu primeiro congresso Greci e italici in Magna Grecia (1962), lançando um olhar renovado sobre a questão do contato entre povos na Antiguidade.

Aqui no Brasil, entre bons exemplos de abordagens inovadoras, saliento o trabalho do Labeca (Laboratório de estudos sobre a cidade antiga), sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, do qual faço parte e no qual vimos, há quase 15 anos, trabalhando nessa linha, preocupados em entender o mundo antigo a partir do todo. Nosso projeto de pesquisa atual versa justamente sobre a questão do contato entre povos distintos, gregos, indígenas e fenícios [5].

Entender o contato implica o trabalho com questões essenciais, como relações de poder, de resistência, de cooperação, de afastamento [6]. A Arqueologia do mundo mediterrânico vem enfrentando esses desafios, procurando se situar no e responder aos questionamentos modernos de seu nascimento e desenvolvimentos iniciais. Em particular, a Arqueologia fenício-púnica, que investiga os grupos orientais e as consequências históricas de seu espalhamento pelo Mediterrâneo, com a fundação de dezenas de cidades e estabelecimentos, é uma das áreas que mais tem crescido.

O presente dossiê traz ao público brasileiro um conjunto significativo de textos, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que apontam para novos caminhos de pesquisa, trazem resultados de grandes projetos, recuperam documentos textuais pouco investigados. Esperamos que sua leitura seja prazerosa e que instigue novos investigadores!

Notas

2. Para uma análise detalhada e atualizada da questão, ver (KORMIKIARI, 2017).

3. Vide resenha neste volume.

4. Edward Said, na verdade, trabalha com o discurso construído sobre o outro, o oriental, nos meios de comunicação ocidentais de massa.

5. Ver, por exemplo, Florenzano (2017).

6. Um estudo ainda extremamente atual e instigante é o trabalho de Serge Gruzinski e Agnés Rouveret, ‘Ellos son como niños’, de 1976.

Referências

BONNET, C. & KRINGS, V. Les pheniciens, Carthage et nous: histoire et representations. In: VITA, J. P. e ZAMORA, J. A. (eds.) Cuadernos de Arqueología Mediterránea, vol. 13, 2006, p. 37-47.

CRAWLEY QUINN, J. In Search of the Phoenicians. Princeton University Press, 2018.

FLORENZANO, M. B. B. Cidades Gregas na Calábria Antiga: A configuração dos territórios de Lócris e Régio (sécs. VII-V a.C.). In: Atas do II Congresso Histórico Internacional As Cidades na História: Sociedade. Minho, Portugal, 2017, p. 263-280 (versão on line).

GRUZINSKI, S. e ROUVERET, A. ‘Ellos son como niños’, histoire et acculturation dans le Mexique colonial et l’Italie méridionale avant la romanisation. Mélanges de l’École Française de Rome (MEFRA), n. 88, vol. 1, 1976, p. 160-219.

KORMIKIARI, M. C. N. Novas abordagens no mundo colonial antigo: um estudo de caso em Arqueologia da Paisagem na Sardenha púnica. In: ZIERER, A. e VIEIRA, A. L. B. (orgs.), História Antiga e Medieval. Viagens e viajantes: cultura, imaginário e espacialidade. São Luís: Editora UEMA, 2012, p. 279-292.

_________. O papel de Cartago no debate acerca do sacrifício humano fenício-púnico. Romanitas, Revista de Estudos Grecolatinos, n. 10, 2017, p.100-122.

SAID, E. Orientalism. Nova Iorque: Pantheon, 1978.

VAN DOMMELEN, P. e KNAPP, A. B. (eds.) Material Connections in the Ancient Mediterranean: Mobility, Materiality and Identity. Abingdon e Nova Iorque: Routledge, 2010.

Maria Cristina Nicolau Kormikiari – Docente em Arqueologia Clássica no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, pesquisadora e co-coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca-MAE / USP). No seu pós doc realizou estágio no Centre Camille Julian, da Université de Provence, em Aix-en-Provence, França. Para consultar demais publicações da autora: https: / / usp-br.academia.edu / CristinaKormikiari. E-mail: [email protected]


KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade e formação de identidades no mundo de Homero / Hélade / 2019

Há uma identidade étnica em Homero?

“Quem foram os gregos?” é uma pergunta irrespondível. Ainda na Antiguidade não foram poucos os que tentaram respondê-la, e a indagação continuou sendo feita nos séculos seguintes sem que uma conclusão pudesse dar fim a um tema tão longamente examinado. Entre mudanças e permanências, os séculos de história interditam qualquer traço unitário capaz de caracterizar o “ser grego”. Mais do que isso, se considerarmos apenas o mundo das póleis e se confiarmos nos cálculos apresentados por Mogens Herman Hansen [2], existiram pelo menos 1.500 cidades-Estado. De norte a sul, no continente e nas dezenas de ilhas, da Ásia Menor à Península Itálica, a variedade de contatos e particularidades regionais é outro elemento complicador para dar ao problema uma solução que não abra espaço para diversos questionamentos.

A partir do século V a.C., os gregos poderiam persistir com dificuldades para responder quem eram, mas a certeza de quem não eram parecia bem mais clara. A imagem do bárbaro se consolida com o advento da resistência aos persas e é especialmente difundida a partir da pena dos atenienses. Não se trata, certamente, de uma simples percepção das diferenças culturais, mesmo porque a cultura, abordada para além da superfície, desvela não apenas a assunção de que não somos iguais a outras pessoas e grupos, mas que essa diferença produz, é produzida e reproduzida por uma série de implicações que vão muito além da percepção de quem não somos.

A emergência das representações sociais dos bárbaros é francamente tomada como paradigma para pensar as noções de eu e outro a partir do ponto de vista dos gregos. Não sem razão, a consolidação da barbárie se dá no momento em que Atenas não apenas goza de influência política e econômica sem precedentes, abalada apenas com o início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.). Entretanto, ainda que o século V a.C. tenha se tornado referencial para os estudos sobre a etnicidade, ele não representa o único momento em que o outro se tornou objeto de reflexão para a definição do ser grego. A documentação anterior ao Período Clássico é absolutamente rica em referências que ajudam a pensar esse problema, e a Ilíada e a Odisseia representam certamente um dos maiores (ou o maior, arrisco dizer) acervo de questões que podem ser exploradas para refletir sobre a história das alteridades nesse “mundo grego”.

Os artigos que compõem esse dossiê exploram o tema da etnicidade e / ou da formação das identidades a partir da Ilíada e da Odisseia. As escolhas particulares dão ao leitor um indicativo da amplitude do problema e da riqueza de um debate pautado por várias convergências e outras tantas divergências. Portanto, os trabalhos que compõem esse número da Hélade são marcados pela interdisciplinaridade, pela pluralidade de ideias, pela variedade de abordagens e pela diversidade teórico-metodológica. No entanto, nada disso interditou a incrível coesão construída em torno do objetivo geral que motivou a organização do volume.

Na abertura do dossiê, busco analisar os intensos debates que opõem estudiosos em torno da relação entre Homero e o ideário Pan-helênico. O artigo intitulado História e Etnicidade: Homero à vizinhança do Pan-helenismo, após uma breve exposição do conceito de etnicidade e sua particular utilização no âmbito da História da Grécia Antiga, discute algumas divergências bastante frequentes quando se busca refletir sobre o lugar que a Ilíada e a Odisseia ocuparam no marco da formação das identidades helênicas. Observo que, por um lado, os épicos podem ser entendidos como uma narrativa capaz de expressar uma noção de helenicidade, dialogando com as transformações que caracterizaram a formação do mundo Pan-helênico; por outro lado, diversos analistas, muitas vezes em evidente discordância, tendem a situá-los no limite que distingue as sociedades pré-helênicas daquelas que vieram a se formar no decurso do Período Arcaico.

No segundo artigo, intitulado Los comienzos de la identidad colectiva helênica, Emílio Crespo dedica sua atenção à Ilíada com vistas a reconhecer em seus versos, particularmente na célebre oposição entre aqueus e troianos, os primeiros indícios de uma identidade coletiva helênica. O autor parte do pressuposto de que as identidades coletivas exigem longo período de construção, e que a experiência do Período Clássico pode ser investigada como um processo de criação que remonta aos poemas homéricos. Assim, através da análise dos nomes coletivos, antropônimos, epítetos, topônimos e outros indicativos, Crespo defende que o início da construção identitária helênica é perceptível na segunda metade do século VIII a.C., época provável da composição da Ilíada, ainda que em bases culturais diferentes daquelas em que repousou o helenismo do século IV a.C..

O terceiro artigo, Em tempo de guerra e de confronto a noção do ‘outro’ na Ilíada, também se dedica a essa temática. Maria de Fátima Silva reconhece na Ilíada a referência mais antiga da oposição entre europeus e asiáticos que perdurou no Período Clássico. Para a autora, a noção de ‘outro’ na Ilíada já está assente em um conjunto de critérios que viriam a ser retomados com outro fôlego, na época clássica, para a definição de quadro equivalente. A análise das características dessas alteridades é feita através das representações da cidade de Príamo, seu povo e seus aliados. A autora demonstra que Ílion não apenas possui características geográficas, topográficas e urbanísticas peculiares, mas que estas peculiaridades são decisivas para a compreensão do comportamento dos troianos. Desta forma, os requintes orientais, as joias do palácio e o luxo da vida cotidiana são características marcadamente presentes no mundo asiático e associadas aos troianos, ainda que seja necessário analisá-las cautelosamente porque muitas delas também se fazem presente na vida dos gregos.

Obviamente, e ainda com base na Ilíada, é preciso reconhecer que o universo de referências de que Homero se utiliza para a construção de seus personagens é bastante amplo. Ainda que a maioria deles – talvez todos – faça parte de um menos grupo social, é certo que as particularidades das caracterizações permitem aprofundar as análises e reconhecer formas bastante peculiares de tratamento das diferenças étnicas. No quarto capítulo, O discurso étnico acerca dos troianos na Ilíada: um estudo de caso de Páris-Alexandre, Renata Cardoso de Sousa explora precisamente as representações do príncipe troiano que desencadeou o conflito em Tróia após raptar Helena. Através de epítetos, qualificativos a ele atribuídos, discursos enunciados, comportamento em batalha e demais símbolos diacríticos utilizados na formulação narrativa de seu ethos heroico, a autora procura identificá-lo como uma das sínteses que distinguem aqueus e troianos.

O tema do discurso etnográfico é abordado no quinto artigo, assinado por Graciela C. Zecchin de Fasano. Em Egipto, Fenicia, Creta: tres espacios-clave para el discurso etnográfico en Odisea, a autora entende que o vocábulo ethnos, a despeito da amplitude de grupos que tendia a abarcar, estabelece a necessidade de se compreender certa similaridade e convivência temporais. Partido desse pressuposto, observa-se que a Odisseia oferece uma representação particular dos territórios pelos quais seu protagonista transita, convertendo-os em um excelente instrumento de estudo e interpretação como espaços de um relato etnográfico, cuja tipologia discursiva sugere problemáticas ficcionais absolutamente originais. Nesse sentido, o tema dos olhares sobre o estrangeiro é pensado a partir de três espaços-chave, quais sejam, Egito, Fenícia e Creta. A variação das caracterizações sugere uma diversidade ímpar de olhares, envoltos pela atmosfera do exotismo, dos perigos, dos maus hábitos e mesmo de juízos de valor absolutamente estratégicos para pensar a dinâmica das alteridades e da formação das identidades.

Em seguida, Christian Werner igualmente se aproxima da questão das etnografias a partir do exame dos discursos de Menelau e de Homero no canto IV da Odisseia, que mencionam a viagem do herói ao norte da África, e da forma como Homero, de um lado, introduz a narrativa dos feácios (VI) e, de outro, Odisseu, o episódio dos lotófagos e o dos ciclopes (IX). Em Discurso etnográfico e as vozes narrativas na Odisseia, o autor explora nesse poema épico a tradição dos nostoi (“mitos de retorno”) e analisa alguns elementos e funções possíveis do discurso etnográfico, que, colocado de lado na Ilíada, embora não componha a matéria central da Odisseia, tornou-se uma de suas marcas distintivas no processo histórico da recepção do poema.

O sétimo trabalho, intitulado Os Residentes da Via Negativa: os cíclopes de Homero e os Tupinambás, se dedica a um exercício comparativo que relaciona as etnografias antigas e modernas a partir de um traço de semelhança que Ioannis Petropoulos reconhece como marca distintiva de tais discursos: o fato de se desenvolverem a partir da negação e da antítese. Nesse sentido, a monstruosidade dos Cíclopes é entendida como o símbolo de um mundo pré- -civilizado que se mostra reticente em relação aos pressupostos básicos da vida em sociedade, como o comércio, a agricultura, as instituições cívicas e práticas religiosas compartilhadas. Essas formações discursivas a respeito do “outro” pré-civilizado também são discerníveis nas etnografias do século XVI acerca dos nativos do “Novo Mundo”, particularmente os indígenas considerados “canibais” que ocupavam as regiões costeiras do Brasil da época. Petropoulos não apenas reconhece características comuns em discursos distintos, mas busca estabelecer relações e contrastes entre eles.

O episódio de Polifemo representa, no âmbito das epopeias homéricas, o epítome do estranhamento em relação aos costumes cultivados pelas aristocracias que os poetas cantavam. No artigo Viagens e etnicidade em Homero: Odisseu e o Cíclope, de Fábio de Souza Lessa, analisa esse discurso que irrompeu os limites do recitato aédico e foi inúmeras vezes recuperado ao longo da História para discorrer sobre os costumes insólitos dos estrangeiros. O estudo do relato de Odisseu no Canto IX da Odisseia, isto é, da descrição de seu contato com o Cíclope Polifemo, converte-se no fio condutor para a reflexão acerca das construções gregas sobre os nós e os outros. O autor observa que o Ciclope se constituirá em alteridade máxima frente aos helenos. Através do gigante de um único olho na fronte, os helenos revelavam, por oposição, os traços fundamentais de sua cultura.

Decerto que a distinção entre o eu e o outro é um dos fundamentos para a construção das identidades e para a consolidação das fronteiras étnicas, mas ainda que a alteridade represente, tanto por analogia quanto por contraste, um topos privilegiado de observação, é inegável que os poemas homéricos desvelam para os pesquisadores um incrível esforço de reflexão sobre o si mesmo, quiçá apresentando uma profunda dimensão instrutiva, pedagógica, assente na vigilância atenta das condutas esperadas dos membros do grupo. É precisamente essa preocupação que orienta as reflexões que María Cecilia Colombani nos apresenta no artigo Telémaco y la experiencia humana: tomar la palabra en el nombre del padre. Una lectura política del inicio de Odisea. De um ponto de vista antropológico, a autora analisa as transformações subjetivas por que passa o jovem filho de Odisseu e o processo de amadurecimento que experimenta ao longo do épico, em particular em função da ação pedagógica e orientadora de Atena. Desta forma, a formação da identidade de Telêmaco é duplamente assinalada no transcurso de suas relações com os homens e na fronteira que distingue os mortais dos deuses imortais.

O décimo artigo, intitulado O contexto funerário homérico: Aquiles e suas ações más (Kakà Érga), de Bruna Moraes da Silva, também se dedica ao problema da vigilância acerca dos próprios atos e sua relação com a formação das identidades. Nesse caso, porém, o valor paidêutico é pensado a partir dos códigos de conduta de Aquiles, partindo do pressuposto de que Homero não punha em evidência apenas as ações consideradas dignas de um aristoí, mas também exemplos a não serem seguidos, isto é, as transgressões realizadas até mesmo por personagens tidos como grandes heróis. À vista disso, a autora propõe analisar a maneira pela qual os aedos expuseram em suas obras, especialmente na Ilíada, as normas a serem seguidas pelos vivos diante dos mortos, dando destaque à análise das transgressões notáveis a partir da ruptura com as regras estabelecidas em um mesmo meio social.

É preciso agradecer os autores que puderam participar desse projeto e investiram os resultados de sua pesquisa para compor este volume. Acredito que a qualidade inequívoca dos trabalhos fará com que o dossiê seja recebido com entusiasmo por todos aqueles que estudam as controvérsias inúmeras legadas pelo aedo cego de Quios, por quem se interessa pelo tema da etnicidade e da formação das identidades e, num sentido mais amplo, por todos que reconhecem nos gregos antigos um espaço privilegiado para a reflexão de nossa história e vida em sociedade.

Notas

2. HANSEN, M. Polis – an introduction to the ancient greek city-state. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Poder e religião no Egito Antigo / Hélade / 2018

Poder e religião no Egito

É muito raro encontrar uma pesquisa acerca da sociedade egípcia que não envolva de alguma forma o fenômeno religioso e sua interligação com o poder. Isso se deve ao fato de que a concepção de mundo para os antigos egípcios mesclava todas as esferas que atualmente insistimos em analisar separadamente: religião, poder, cultura, sociedade, economia, etc. A estrutura do poder faraônico estava solidamente baseada em preceitos cosmogônicos e cosmológicos, de forma que todos os habitantes do Egito compunham a parte de um todo ordenado pela concepção de Maat, princípio que regia o equilíbrio cósmico do mundo (BAINES, 2002, p. 200).

O faraó era o responsável pela manutenção de Maat através das práticas diárias de culto aos deuses, preservação de templos, conservação do ciclo natural do Rio Nilo. O surgimento de situações de caos significava que Maat não tinha sido devidamente respeitada. No entanto, não só o faraó tinha um papel importante no afastamento do caos, mas sim todos os egípcios que, por meio de seus respectivos papeis na vida social, auxiliavam no funcionamento próspero do Egito, desde um camponês que realizava a colheita de alimentos até um sacerdote iniciado nos mistérios dos deuses que executava rituais templários.

Existe uma complexidade inerente ao esforço de lidar analiticamente com uma sociedade tão distante espaço-temporalmente da nossa. No entanto, ao fazê-lo, verificamos não apenas que as estruturas de poder e as formas de agência se modificaram ao longo de mais de cinco mil anos, mas também permitiram uma continuidade que por vezes nos faz olhar para o Egito Antigo não com total estranhamento, mas com certa identificação. Assmann, historiador e egiptólogo alemão, afirma: “O Egito é o lugar clássico da experiência do tempo” (ASSMANN, 2005, p. 21). Tal afirmação caracteriza uma tendência nacional e internacional das pesquisas sobre o Egito Antigo e é a partir dessa premissa que as diversas pesquisas presentes neste dossiê foram desenvolvidas.

O primeiro artigo que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Dr. José das Candeias Sales, da Universidade Autônoma de Lisboa, e tem como objetivo traçar paralelos entre as narrativas cosmogônicas egípcias, mais especificamente as de Hermópolis e Mênfis, e o relato bíblico do Gênesis. O autor inova ao procurar diálogos intertextuais entre as narrativas egípcias e a hebraica, uma vez que grande parte dos pesquisadores tende a analisar o Gênesis à luz dos textos mesopotâmicos.

A segunda contribuição, de autoria do Prof. Dr. Mariano Bonanno, da Universidade de Buenos Aires, analisa o Sarcófago de Amenirdis (XXVI Dinastia) sob a luz dos conceitos de agência e mirada. Bonanno operacionaliza as diversas facetas do sarcófago, desde sua materialidade até sua iconografia, para demonstrar como um agente da não-elite mobilizou um objeto que, de forma limitada, conferiu-o certo status na sociedade egípcia. Segundo o autor, o sarcófago era um objeto de poder, tendo em vista o seu significado religioso e sociocultural.

O Prof. Dr. Pablo Martín Rosell, da Universidade de La Plata, analisa as fórmulas abidianas presentes nas estelas votivas do Reino Médio com o intuito de compreender o seu significado para o mundo social e religioso, e, ainda, demonstrar sua relação com os festivais em honra ao deus Osíris – o Mistério de Osíris. Rosell afirma que a análise da construção de capelas e estelas votivas em Abidos por parte das elites egípcias que peregrinavam anualmente para participar do festival auxiliam no entendimento da hierarquia social egípcia e nas formas de diferenciações sociais que tais elites procuravam elucidar através destas materialidade.

O artigo de Profa. Ms. Keidy Matias, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, adota o conceito de Espaço Absoluto do filósofo francês Henri Lefebvre para entender a relação entre os humanos e a natureza como uma forma de produção social do espaço. A autora objetiva compreender de que forma a expressão herodoteana “O Egito é uma dádiva do Nilo” encontra eco na prática social do espaço e da natureza no Egito Antigo.

A sexta contribuição que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Ms. Thiago Ribeiro, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e tem como objeto de estudo o conceito de magia no Egito Antigo e a sua relação com a religião egípcia. O autor delineia que é comum que os estudiosos da área entendam magia e religião como fenômenos distintos. No entanto, através da análise da documentação escolhida, Ribeiro demonstra que para os egípcios, religião e magia eram indissociáveis, constituindo em duas faces da mesma moeda.

Por fim, o artigo do Prof. Dr. Juan José Castillos, do Instituto Uruguaio de Egiptologia, versa sobre as primeiras formações institucionais da estrutura de poder faraônica através da análise da transição de uma situação de ausência de poder institucionalizado para o surgimento de chefes hereditário que posteriormente tornar-se-iam os faraós de um Egito unificado. Castillos afirma que a religião em construção no período pré-dinástico foi crucial para a justificação e validação desta nova ‘realidade social, política e econômica’.

Convidamos todos(as) a lerem o nosso dossiê Poder e Religião no Egito Antigo, composto por importantes pesquisas nacionais e internacionais que caracterizam o gradual crescimento dos estudos egiptólogos no Brasil, assim como a sua sintonia com o cenário internacional, especialmente na América Latina.

Boa leitura.

Referências

ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de um sentido. Madrid: Abada Editores, 2005.

BAINES, John. Sociedade, Moralidade e Práticas Religiosas. In: SHAFER, Byron E. (org.). As Religiões no Egito Antigo. São Paulo: Editora Nova Alexandria Ltda, 2002.

Beatriz Moreira da Costa – Doutoranda em História pelo PPGH-UFF. Pesquisadora vinculada ao NEREIDA-UFF, LHIA-UFRJ e Coordenadora do Grupo de Estudos GEKmet. E-mail: beatrizmoreira190@ hotmail.com


COSTA, Beatriz Moreira da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,4, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Gênero do Mundo Antigo: contribuições para um debate / Hélade / 2018

Desnaturalização da diferença e combate à intolerânica

Os estudos de gênero têm início na década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos como resultado do impacto dos movimentos libertários que questionavam os valores dominantes e lutavam pelo respeito às minorias. Contudo, embora utilizado por outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, a emergência do gênero como conceito pertinentemente empregado nas pesquisas em História se dará apenas a partir dos anos 1980. Até então, faltava ao gênero a credibilidade necessária entre os historiadores. Tal descrédito era justificado pela acusação feita ao conceito de que o mesmo não seria operacional. Será a historiadora e feminista norte-americana Joan Scott que fará, a nosso ver, a devida e decisiva defesa do gênero diante de seus pares. Em artigo publicado em 1986, Gender: a useful category of historical analysis, Scott defendia a operacionalidade do gênero, definindo-o como modo primeiro de significar as relações de poder, rejeição ao determinismo biológico, defesa do caráter essencialmente social das distinções constituídas sobre o sexo e da dimensão relacional entre homens e mulheres.

A partir desta definição tecida por Joan Scott, ainda hoje amplamente empregada, o uso do gênero pela História ganha impulso. Inicialmente “associado e utilizado principalmente pelas historiadoras das mulheres” (CUCHET, 2007, p. 18), atualmente o conceito é adotado seja pela ‘História das Mulheres’, pela ‘História de Gênero’ ou pelo Men’s Studies. Empregado em todas as temporalidades da pesquisa histórica e muito utilizado por esta e outras disciplinas, o conceito de gênero conquistou o seu lugar e a legitimidade na academia. Não só na academia, mas também nas mídias sociais e nos programas implantados por instituições e governos. No entanto, apesar disso e das conquistas obtidas pelo movimento feminista, as desigualdades de gênero ainda persistem. Tais desigualdades podem ser observadas na violência a qual as mulheres estão submetidas justamente pela condição de serem mulheres. A vulnerabilidade em que se encontram pode ser verificada no levantamento recente feito pela Thomson Reuters Foundation. Os cerca de 550 especialistas em temas femininos que colaboraram com a pesquisa apontaram os 10 paísesmembros da Organização das Nações Unidas (ONU) mais perigosos para as mulheres.[2] Dentre eles, para a surpresa de muitos, figura na décima posição os Estados Unidos: tradicional defensor das liberdades democráticas e dos direitos humanos. Quanto ao Brasil, ainda que esteja ausente desta lista, o país – segundo reportagem da Revista Exame3 – tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo.

Para desnaturalizar a violência contra a mulher, as demais discriminações a que estão submetidas, bem como a violência e segregação motivada pela identidade de gênero manifesta pelos indivíduos, é necessário que os debates em torno do conceito estejam presentes no ambiente escolar e acadêmico. Só através da educação, ou seja, da conscientização acerca das desigualdades existentes na sociedade – dentre elas, as de gênero – e da compreensão do modo pelo qual são constituídas, será possível formar cidadãos mais empáticos e respeitosos às diferenças. Entretanto, a inclusão das discussões sobre o gênero na sala de aula tem suscitado reações conservadoras de parte da sociedade brasileira que, ao interpretar de modo equivocado o intuito destes debates, acabam por considerá-los promulgadores de uma pretensa ‘ideologia de gênero’. Para este segmento da sociedade, as reflexões em torno do conceito nas escolas, nas universidades e nas mídias teriam o objetivo de influenciar, sobretudo, crianças e jovens. E, ao influenciá-los, os levar a adotar um gênero diferente daquele a eles atribuído no nascimento em decorrência do sexo biológico. Tal inferência explica as manifestações ocorridas em 2017 contra a presença da filósofa Judith Butler no Brasil. No entanto, tal interpretação é equivocada.

O que o debate em torno do conceito propõe é a desnaturalização da diferença e o combate à intolerância. Por meio do entendimento de que as diferenças sociais entre homens e mulheres não são inatas, mas fruto da interpretação que uma determinada sociedade faz do masculino e do feminino, o gênero permite desconstruir a visão tradicional de que a mulher é ‘naturalmente’ propensa aos serviços domésticos, à submissão ao homem e à manifestação de determinadas habilidades. Do mesmo modo, o gênero permite desmistificar a percepção do homem como não dado às emoções, voltado para as atividades externas à casa e portador de um comportamento caracterizado invariavelmente pela virilidade. Além disso, o gênero e mais especificamente a teoria da performatividade de gênero de Judith Butler (2015) – que em nenhum momento professa a inexistência da diferença entre os sexos – chama a atenção para o fato de que há pessoas que não conseguem se adequar às expectativas que a sociedade atribui ao gênero que lhes confere. Tal impossibilidade de adequação e a segregação dela decorrente geram sofrimento e, não raro, violências físicas que podem se tornar letais. A compreensão da existência de pessoas que estão impossibilitadas de se adequar as expectativas de gênero da sociedade visa, portanto, suscitar o respeito e minar a intolerância e violência desferida contra esses indivíduos. O gênero é, assim, um importante conceito que visa permitir uma existência com mais respeito à diferença e, por conseguinte, que estimula a vivência das liberdades democráticas.

Os artigos que compõem esse dossiê partem da perspectiva de gênero ao abordar o papel desempenhado pelas mulheres nas sociedades antigas, a forma como as tratam os livros didáticos que contemplam a História Antiga, a construção dos papéis de gênero na documentação, assim como os desvios aos ideais de comportamento feminino e masculino vigentes na Antiguidade. Tais textos, consequentemente, nos permitem observar semelhanças e diferenças no modo como construímos e definimos os papeis de feminino / masculino e a forma como as sociedades da Antiguidade o fizeram. As diferenças que este exercício de comparação ressalta permitem exemplificar e compreender a definição do gênero como o modo como uma determinada sociedade interpreta as diferenças baseadas no sexo. Esta definição nos leva a compreender que os comportamentos tidos como tipicamente femininos ou masculinos não são os mesmos em todos os lugares e em todas as temporalidades, contribuindo assim para a reafirmação do compromisso que a teoria de gênero professa: desnaturalizar a diferença e combater a intolerância.

Notas

2. Segundo reportagem do Estadão, dentre os quesitos de periculosidade que foram considerados pela pesquisa se encontram a vulnerabilidade à violência sexual e não sexual, assim como na área da saúde e da economia. Disponível em https: / / internacional.estadao.com.br / noticias / geral pesquisa-revela-os-10-paises-mais-perigosos-para-as-mulheres,70002370639 . Acesso em 26 / 08 / 2018 às 14h00.

3. Disponível em https: / / exame.abril.com.br / brasil / taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-a-quintamaior-do-mundo /  . Acesso em 28 / 08 / 2018 às 16h00.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

SCOTT, Joan. ‘Gênero: uma categoria útil para análise histórica’. S.O.S. Recife: 1991.

SEBILLOTTE CUCHET, Violaine. ‘Les antiquistes et le genre’. In: SEBILLOTTE CUCHET, Violaine; ERNOULT, Nathalie (orgs.). Problèmes du genre en Grèce Ancienne. Paris: Publications de la Sorbonne, 2007.

Talita Nunes Silva Gonçalves – Doutora em História Social pelo PPGH-UFF e pesquisadora vinculada ao NEREIDA-UFF. E-mail: [email protected]


GONÇALVES, Talita Nunes Silva. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,4, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade e as políticas das identidades nas sociedades Antigas / Hélade / 2017

Etnicidade: cultura e política

De alguma maneira, a Antiguidade ressoa com bastante frequência quando o debate sobre o problema das etnicidades se enuncia. Não tanto pelo viés fonético, por mais que seja impossível dissociar, no plano da etimologia, a forma moderna do conceito do étimo grego que está na base de sua formulação. O vocábulo ἒθνος, a bem da verdade, possui um escopo semântico assaz versátil: pode ser entendido como “raça”, “povo”, “nação” (BAILLY, 1963), como “pessoas que vivem juntas”, “companhia”, “corpo de homens” (LIDDELL & SCOTT, 1996) e como “grupo mais ou menos permanente de indivíduos” e, em alguns casos, “povos estrangeiros”, “bárbaros” (CHANTRAINE, 1977). Em todas as definições, ἒθνος parece se referir a grupamentos humanos (apesar de se referir, também, a animais) com características particulares, capazes de exibir algum tipo de distinção quando comparados a outros. É uma versatilidade inquestionavelmente oportuna e constantemente evocada.

No entanto, para além do plano gramatical, ressoa a memória que se constrói acerca de eventos que, pela lente do mundo contemporâneo, parecem assumir um caráter fundante de diferenças étnicas observáveis tanto em escala regional quanto global. Refiro-me, nesse caso, à lógica sob a qual se opera a bem conhecida dissensão entre Oriente e Ocidente nos termos que Edward Said propõe no clássico Orientalismo (1978): discurso estratégico, politicamente estruturado no marco de um projeto imperialista. Na pista proposta por Kostas Vlassopoulos (2013, p. 1-2), vale recordar a controversa remissão à Batalha de Maratona, ocorrida no verão de 490 a.C., como o evento que teria fundado o longo histórico de embates entre Ocidente e Oriente e que, dentre outras coisas, segundo a leitura rápida de alguns, culminou com o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em Nova Iorque em setembro de 2001. Observe-se, por exemplo, a difícil afirmação de Anthony Pagden, também mencionada por Vlassopoulos:

Maratona marcou o fim da primeira Guerra Greco-Pérsica. Fez descer a cortina do primeiro ato do grande drama trágico de Heródoto acerca do conflito entre Europa e Ásia, entre Gregos e Bárbaros. A partir de então, Maratona passou a ser aceita como um turning point na História da Grécia e, posteriormente, de toda Europa. Foi um momento de resiliência de uma forma política incomum – a democracia – e a confiança dos gregos em sua particular noção de liberdade foi posta à prova e emergiu triunfante (PAGDEN, p. 25).

Não é difícil reconhecer nessa narrativa a célebre e cada vez mais questionada lógica de herança que parece atribuir à Antiguidade – e à Antiguidade Clássica, em particular – toda sorte de legados históricos que amparam um movimento de naturalização de disposições sociais que, por sua vez, seguem insolúveis por força do desejo preclaro de não os solucionar. Resiste, por força de uma disposição frequentemente criticada pelas análises pós-coloniais (e, mais recentemente, pelo “giro decolonial”), a lógica de produzir estereótipos que fundam a imagem de um “bárbaro” tiranizado, escravo de suas paixões, excessivo e indisponível para o diálogo, mais especificamente para o diálogo democrático. Afinal, no mundo contemporâneo, não estamos mais diante dos persas liderados por Xerxes, mas de uma política que toma a História antes como a algema com que se ata as próprias mãos do que como um espaço de problematização para refletir sobre nossos conflitos e colocá-los em perspectiva.

É precisamente pela resistência a um tipo de lógica civilizacional2, marcadamente de caráter Iluminista, que parecia utilizar a cultura como símbolo diacrítico evocado para hierarquizar modos de vida, que o tema da etnicidade – um conceito que o pensamento social abraçou de modo entusiástico principalmente a partir da década de 1970 – propõe entender a cultura não como um fim em si, mas como um elemento politicamente reivindicado. Afinal, “a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto” (CARDOSO, 2005, p. 186). O que está na base, portanto, das recentes análises do fenômeno da etnicidade, são os usos políticos da cultura, e não apenas o caráter fronteiriço que ampara processos de diferenciação social livres de toda sorte de conflito. Há, nesse ponto, um esforço cada vez mais insistente de resistência, no plano teórico e empírico, aos princípios que outrora ligavam perigosamente o conceito à ideia de raça e, portanto, a um viés essencialista, bem como ao primado do subjetivismo por longo tempo explorado a partir da sociologia weberiana. É por esse traçado que se torna menos usual tratar as identidades (em particular, as identidades étnicas) como algo que responde por si, como um objeto ligado aos sujeitos e alheio à influência das estruturas sociais. Pensar etnicidade implica, por princípio, uma reflexão sobre a política das identidades. Afinal, como bem observou Todorov (2010, p. 64), “o bárbaro não é, de modo algum, aquele que acredita na existência da barbárie, mas quem está convencido de que uma população ou um indivíduo não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que ele recusaria resolutamente aplicar a si mesmo”. É precisamente por isso que, ainda segundo o autor, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (TODOROV, 2010, p. 15). Trata-se – insisto – de um fato político culturalmente justificado.

Não sem razão, a proposta do dossiê Etnicidade e as políticas das identidades nas Sociedades Antigas teve uma excelente acolhida. A variedade de povos antigos analisados pelos autores que submeteram suas propostas é um poderoso indicativo para pensarmos a amplitude do problema, as inúmeras possibilidades de abordagem, a diversidade de documentos passíveis de estudo, bem como os métodos que permitem a construção de críticas de inegável qualidade acadêmica. Também indica o caráter contemporâneo da questão, posto que este é o estopim para que nossos interesses e projetos políticos convirjam para o estudo das sociedades históricas.

Notas

2. Como sinalizou Todorov em sua crítica (2012, p. 36), “Barbárie e civilização assemelham-se não tanto a duas forças que lutam pela supremacia, mas a dois polos de um eixo ou a duas categorias morais que nos permitem avaliar os atos humanos particulares”

Referências

Dicionários

BAILLY, A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librarie Hachette, 1950.

CHANTREAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grècque. Paris: Librarie C. Klincksieck, 1963.

LIDDELL and SCOTT’S. An intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.

Bibliografia

CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

PAGDEN, A. Worlds at War. The 2,500-year struggle between East and West. New York: Random House, 2008.

TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

VLASSOPOULOS, K. Greeks and Barbarians. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e formas de resistências na Antiguidade / Hélade / 2017

Golpes de estado: a perspectiva da história e a história em perspectiva

No famoso lógos epitáphios de Péricles, entusiasticamente codificado por Tucídides, há um amálgama de elogio aos mortos e celebração da democracia. Na verdade, uma relação de intensa solidariedade ampara essa dupla disposição: nos discursos que fez a respeito de si, a pólis dos atenienses justificava reconhecer o valor dos mortos por ser democrática, e só era democrática por ter cidadãos tão valorosos como aqueles que primeiro tombaram na Guerra do Peloponeso. Em certo sentido, vigorava a certeza de que a cidade deveria ser objeto do cuidado coletivo. Foi para expressar esse cuidado que, no inverno de 431 a.C., Péricles foi convidado a falar e avançou em direção a uma plataforma alta, assim construída para que a multidão pudesse ouvi-lo. Dentre outras coisas, afirmou:

Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos, mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais” (TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, II, 37).

Afora a miríade de possíveis distinções entre a democracia ateniense e as democracias modernas, há algo de fundamental – posto que fundante – que precisa ser observado com rigor: se o que caracteriza os governos democráticos é o caráter coletivo das decisões, o respeito à soberania das decisões coletivas deve ser assegurado de modo intransigente. Fora isso, qualquer ruptura, quando conduzida por um pequeno grupo à revelia da maioria, denuncia uma forma de traição ao princípio vigente. A esse movimento de ruptura, instaurado de forma violenta ou não, por grupos que já detém parte do poder e que dele se utilizam para ampliá-lo, dá-se comumente o nome de Golpe.

A ideia de golpe passou a ser amplamente discutida no Brasil, dentro das muralhas das universidades e fora delas, a partir dos primeiros movimentos que conduziram à deposição de Dilma Rousseff. A presidenta, reeleita em 2014 pelo Partido dos Trabalhadores, foi afastada de seu cargo em 12 de maio de 2016 devido à instauração de um processo de impeachment. Seu mandato foi definitivamente cassado em 31 de agosto de 2016. A justificativa jurídicopolítica para o processo foram as chamadas “pedaladas fiscais”. Diversas dúvidas, contudo, sobrepairam o processo por improbidade administrativa, inclusive em função de uma perícia realizada pelo Senado Federal e entregue à comissão do impeachment em 27 de junho de 2016, posto que o documento isentava a então presidenta afastada de participação nas “pedaladas fiscais”.

Mas não apenas as dúvidas acerca das questões fiscais entram na equação. A despeito das possíveis divergências técnicas que estariam na base do processo, as flagrantes questões políticas envolvidas no impeachment reforçaram em muitos a convicção de que vivemos um golpe de Estado. As tensões estavam há tempos colocadas, mas o estopim do fato político foi claramente motivado pela forma com que o partido de Dilma Rousseff se posicionou a respeito da investigação, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, em um processo por quebra de decoro parlamentar movido contra Eduardo Cunha (PMDB), então presidente da Câmara. Essa história foi corroborada pelo atual presidente em exercício, Michel Temer, em entrevista à TV Bandeirantes em maio deste ano: segundo ele, “se o PT tivesse votado nele naquela comissão de ética, é muito provável que a senhora presidente continuasse”.

Mas se o processo foi alavancado por Eduardo Cunha, a participação ativa do então vice-presidente e de seu partido reforça a hipótese de golpe. Em dezembro de 2015, torna-se pública uma missiva que Michel Temer teria enviado à presidenta Dilma Rousseff fazendo críticas à forma com que era supostamente deslocado das decisões do governo, autoproclamando-se “vice decorativo”. Adiante, também veio a público, na tarde de 11 de abril de 2016, um áudio em que o presidente ensaiava um discurso de posse. Temer alegou que, assim como a carta, se tratava de uma questão privada que se tornou conhecida a despeito de sua vontade; outrossim, e apesar da veracidade ou não dessa afirmação, o conteúdo é bastante sugestivo e indica o desejo do então vice-presidente de ver-se como chefe do Executivo. Esse princípio de publicidade acidental não se aplica, contudo, ao projeto Uma Ponte para o Futuro [2], lançado pelo partido do então vice-presidente da República em 29 de outubro de 2015. Após fazer um diagnóstico da crise econômica e uma série de críticas à condução de um governo do qual faziam parte de modo formal e efetivo, o programa do PMDB convida a nação [sic] para participar desse projeto formulado no interior do partido e que não contava com o aval das urnas:

Faremos esse programa em nome da paz, da harmonia e da esperança, que ainda resta entre nós. Obedecendo as instituições do Estado democrático, seguindo estritamente as leis e resguardando a ordem, sem a qual o progresso é impossível. O país precisa de todos os brasileiros. Nossa promessa é reconstituir um estado moderno, próspero, democrático e justo. Convidamos a nação a integrar-se a esse sonho de unidade (UMA PONTE PARA O FUTURO, 2015, p. 19)

Poderíamos também recordar a sessão deliberativa da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, onde os parlamentares presentes se dirigiam ao microfone para declarar o voto favorável ou contrário ao impeachment. Presidida pelo próprio Eduardo Cunha, que já era réu em um processo que veio a culminar com sua prisão, as declarações de voto raramente colocavam em questão o mérito do processo.

A todas essas questões, poderiam ser adidas outras tantas que, desde então, vem tornando a ideia de golpe francamente presente em nosso cotidiano político, além de despertar o interesse intelectual de muitos que investigam esse e outros processos de ruptura, de tentativa de ruptura e de formas de resistência a ações que parecem contradizer, em prol dos interesses de poucos, o poder decisório da maioria. Os debates sobre a deposição de Dilma Rousseff continuarão por longos anos e serão objeto de acurada investigação por parte da historiografia. Em alguma medida, a historiografia não apenas tornará esses fatos objeto de rigorosa análise, mas também buscará entender esse momento sui generis da História do Brasil, seus efeitos já visíveis e tudo aquilo que ainda iremos experimentar ao longo dos anos. Vivemos uma inconteste crise política que revela o quanto a democracia é frágil e exige nossa atenta observação.

É precisamente por isso que a Hélade publica nessa edição o dossiê Golpes e formas de resistência na Antiguidade. Os artigos dialogam com o tema e mostram o quanto a experiência dos povos antigos é um locus importante não apenas para a reflexão a respeito de nossos conflitos contemporâneos, mas também como espaço em que podemos contrapor experiências e identificar questões que nos escapam na ausência de medidas de comparação. A quantidade significativa de artigos submetidos, encaminhados e aprovados pelos pareceristas ad hoc sinalizam o quanto os historiadores da Antiguidade estão sensíveis ao problema e mobilizados para torná-lo, no marco de nosso livre exercício de reflexão, uma questão a ser analisada por força das demandas do presente da vida social.

Notas

2. Disponível em http: / / pmdb.org.br / wp-content / uploads / 2015 / 10 / RELEASE-TEMER_A4- 28.10.15-Online.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2017.

Alexandre Santos de Morae– Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Homoerotismo na Antiguidade / Hélade / 2016

O Grupo Gay da Bahia3 é uma conhecida entidade que, dentre outras coisas, elabora estatísticas acerca da violência motivada por homofobia e violações dos direitos humanos dos LGBTs no Brasil. Os números que divulgam são alarmantes. Em 2015, 318 homossexuais foram assassinados no país, taxa que indica uma queda desprezível quando comparada ao ano anterior, posto que em 2014 foram anotadas 326 mortes. Imagina-se, com algum grau de certeza, que esses números são tímidos diante da realidade. Em primeiro lugar, porque os cálculos dependem das notícias vinculadas pela imprensa, que não torna notícia a totalidade dos homicídios; em segundo lugar, pela dificuldade de reconhecer com precisão a influência da homofobia na irrupção de determinado assassinato. Ao fim e ao cabo, se os dados são alarmantes, temos razões para crer que a situação é bem mais hostil.

Avanços graduais foram conquistados nas últimas décadas. Há quase 27 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirava a homossexualidade do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A resolução nº 001 / 99 de 22 de março de 1999, publicada pelo Conselho Federal de Psicologia4, seguindo as diretrizes que se consolidavam definitivamente no cenário internacional, considerou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e determinou que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em linhas gerais, graças aos esforços de muitos agentes envolvidos no debate, a livre vivência da sexualidade se tornou um importante topos de luta política em torno das garantias fundamentais dos indivíduos e seu desrespeito passou a ser considerado uma afronta aos direitos humanos.

Obviamente, as camadas mais conservadoras persistem oferecendo resistência a esses avanços. A força impositiva de um discurso tradicional, a heteronormatividade compulsória que caracteriza a educação e a socialização dos sujeitos, a ignorância ou mesmo o caráter duvidoso fazem com que muitos indivíduos – alguns deles com ampla visibilidade nos círculos midiáticos – persistam disseminando discursos de ódio e relativizando tais formas de violência. Partindo da presunção apocalíptica de que o respeito às liberdades individuais pode caracterizar uma ameaça às relações heterossexuais, esses grupos naturalizam o conceito de família, lançam a suposição sem lastro científico de um estado de inalterabilidade das relações afetivas e buscam associar a um discurso naturalizante as relações entre homens e mulheres, ignorando todas as inúmeras possibilidades existentes e que, não raro, eles próprios procuram reprimir. Ainda que discorrendo sobre a divisão binária dos sexos, Pierre Bourdieu percebeu em La domination masculine (1998) um dispositivo que vemos ser utilizado com substrato para a defesa intransigente da heternormatividade e consequente regulação das liberdades individuais, qual seja, uma espécie de “naturalização de disposições” através de discursos que presumem um tipo de ordem do mundo como fundamento primeiro para sua ação reativa. De acordo com o sociólogo, “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2007, p. 17).

A natureza é levada, nesse ponto, ao encontro da conveniência. A constatação é tão óbvia quanto necessária, afinal, a mesma natureza que foi enfrentada quando se colocou diante de nossas necessidades ao longo de toda a história humana, é a mesma que é evocada como argumento para restringir as afetividades e desejos que contrariam as expectativas de quem julga que o “natural” é a medida primeira para todas as coisas.

Desnaturalizar as relações sociais é, talvez, uma das necessidades mais prementes das Ciências Humanas como um todo, e da historiografia em particular. Através de argumentos sólidos, de evidências bem coligidas, de análises metodologicamente rigorosas e com refinamento teórico, somos capazes de substituir a perspectiva de uma “ordem do mundo” pelas várias ordens que nossos vários mundos vivem e viveram. Isso não significa, obviamente, ignorar a longa duração, as permanências e recorrências que caracterizam diversos momentos e processos históricos, mas indicar com precisão que o “nem sempre foi assim” enseja sempre um horizonte de mudança que nos liberta do jugo do status quo. Se algo foi diferente, em algum tempo e / ou espaço, é possível recuperar a lógica de que nada é inalterável e permanente. Inclusive nossas consciências. Inclusive nossos preconceitos.

Essa é uma das questões que sobrepairam os três volumes do célebre Histoire de la Sexualité (1976; 1984), de Michel Foucault. É precisamente pela via histórica (criticada por muitos, mas reconhecida em seus méritos por outros tantos) que o filósofo francês irá se aventurar para sustentar a hipótese de que a sexualidade – essa palavra que surgirá apenas no novecentos, ainda que seu referente não seja exatamente novecentista – não é unívoca em suas práticas e representações, nos discursos sobre suas peculiaridades, nos esforços de silenciamento e ocultação e nas manifestações de poder de um pudor vitoriano que por séculos buscou seu controle e / ou repressão. Assim Foucault sintetizou o projeto que se tornou um dos principais marcos nos estudos acerca da temática:

“Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2010, p. 12)

Sua leitura acerca da Antiguidade é um convite para que revisitemos um período histórico em que as visões e formas de experimentar a sexualidade, em geral, e o homoerotismo, em particular, confrontam o imperativo da naturalização que os discursos conservadores buscam impor para cercear direitos. Escusado lembrar que esse retorno não pretende recuperar um passado livre de todas as formas de controle dos corpos e dos afetos, onde as experiências individuais estavam livres de opressões diversas que interditassem os sujeitos da rígida observância de seus costumes e usos dos prazeres. No entanto, é preciso reconhecer a existência de diferentes formas de expressão do homoerotismo para que sejamos capazes de perceber, entre outras coisas, os limites e paradigmas acerca do comportamento sexual nas sociedades antigas e a forma com que foram representados na documentação a que temos acesso, permitindo assim colocar as sociedades pregressas e atuais em perspectiva através de suas similitudes e, principalmente, através das diferenças.

Os autores que contribuíram com esse dossiê recuperam esse debate e vão além, oferecendo assim uma valiosa contribuição para os Estudos Clássicos no Brasil. Abordar o tema do homoerotismo na Antiguidade Clássica – uma temática cujas análises e investigações cresceram exponencialmente nas últimas décadas – representa um esforço de posicionamento político que reforça a necessidade de persistirmos na busca de ampliação de direitos, de recrudescermos o acesso à cidadania e de combatermos, de forma intransigente, toda e qualquer forma de preconceito. A Hélade reforça, assim, seu compromisso de convidar as sociedades antigas a dialogar com os dilemas e conflitos na vida em sociedade.

Notas

3. Diversas informações podem ser consultadas na página da entidade: http: / / www.ggb.org.br /

4. Disponível em: http: / / site.cfp.org.br / wp-content / uploads / 1999 / 03 / resolucao1999_1.pdf. Acesso em 16 / 01 / 2017.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representação e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ). E-mail: [email protected]

Anderson Martins Esteves – Doutor em Letras Clássicas, professor do Programa de Pós- -Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (ATRIVM-UFRJ). E-mail: [email protected]


MORAES, Alexandre Santos de; ESTEVES, Anderson Martins. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Religiões no Mundo Antigo / Hélade / 2016

As grandes religiões atuais são fenômenos antigos. Isso é válido para o judaísmo, presente em várias cidades em torno do Mediterrâneo, e para o cristianismo em suas variedades. É também válido para o islamismo, uma religião oriunda do criticismo dos antigos politeísmos e de vertentes regionais judaicas e cristãs que, como o judaísmo e o cristianismo, também incorporou material clássico em sua cultura religiosa-intelectual. E além do enquadramento estrito do Mediterrâneo, as grandes tradições religiosas atuais são também “antigas” – o hinduísmo, o budismo, ou o confucionismo, e.g.

Estudar as religiões da antiguidade, contudo, é um desafio em vários sentidos e, talvez, um dos mais graves seja o fato de que, mesmo nas universidades, o estudo das sociedades antigas não é (ainda) uma prioridade no Brasil. Tal estudo nos leva a olhar para além das nossas fronteiras nacionais, culturais etc., ao passo que nos permite um acesso a um patrimônio cultural comum a vários povos atuais. É certo que esse patrimônio foi – e ainda é – objeto de disputas e conflitos identitários e, desde pelo menos o século XIX, o patrimônio histórico e as religiões foram vinculados à identidade dos Estados e das nações, que projetaram em seus mitos fundadores aquilo que definiram como sendo sua essência. Nessa busca de essências, monumentos e documentos foram investidos de funções muito importantes – às vezes, muito perigosas – para a vida em comum.

O estudo das sociedades da antiguidade nos fornece ferramentas e instrumentos cognitivos para compreender, dentre outras, afirmações concernentes a identidades – dos outros e de nós mesmos. E o estudo das religiões desempenha um papel destacado nessa compreensão. Ele nos permite opor aos discursos sectários as “armas” da história, da filologia, da arqueologia etc., desconstruindo os mitos modernos. Permite-nos abandonar os fantasmas das origens, dos passados imaginários, desmontando interpretações tendenciosas sobre o passado. Com ele, podemos contestar e superar equívocos modernos – intencionais ou não – sobre o “milagre grego”, o “gênio romano” e coisas do tipo, bem como superar a dialética hegeliana e seus herdeiros que viam as religiões na história tendendo ao monoteísmo de tipo cristão. Os antigos gregos, romanos, judeus, cristãos etc. são tão distantes de nós quanto os aborígenes australianos atuais, e conhecê-los nos ajuda a desmontar os panos de fundo ideológicos de sua absoluta proximidade.

É certo que cada geração escreve sua própria história, e a história antiga de hoje é diferente das várias histórias antigas do passado. Paul Veyne, há quarenta anos, em sua Aula Inaugural no Collège de France, disse que a história só existe em relação às questões que nós lhe colocamos, e se perguntava quais seriam as questões que convinha fazer ao passado.2 Sigamos Paul Veyne neste ponto, dada sua frequência em bibliografias de cursos de História no Brasil e, mais ainda, pela atualidade de suas declarações: para ele, o ofício do historiador comporta dois aspectos, a erudição e a conceptualização. A pesquisa em história antiga exige que lancemos mão de vários recursos da erudição antes que possa ser formulado um novo questionamento, uma nova problemática. A história tem em Jano bifronte seu patrono: de um lado, o trabalho metódico com a documentação; de outro, o questionamento desses documentos. De um lado, a lide com a documentação; de outro, a problemática. Manejar as técnicas de pesquisa e os conceitos, e então a antiguidade se torna cada vez menos familiar e mais estranha, fazendo-nos rever preconceitos arraigados sobre a universalidade das ideias e dos comportamentos que, lamentavelmente, ainda são frequentes, permanecendo em uso e ativos, sendo propalados nos mass media, nas redes sociais, em campanhas políticas, em escolas, em universidades, no momento em que assistimos a uma exacerbação da religiosidade e de conflitos de base religiosa, que ressurgem como a fênix, com um vigor renovado.

Estudos sobre os discursos e as práticas religiosas da antiguidade vêm revelando aspectos antes insuspeitados das sociedades, e as religiões demonstraram ser um objeto de pesquisa de fundamental importância para a compreensão da experiência humana no tempo e no espaço. A pesquisa antiquista já ultrapassou uma ideia de “religião” compreendida como uma “essência trans-histórica”, existindo como um fenômeno eterno e unitário. Ao contrário, as religiões mudam com o tempo e as circunstâncias, e também muda aquilo que as pessoas entendem como sendo “religião”. As religiões, portanto, não são fixas, nem unitárias, e nem mesmo coerentes, e estão invariavelmente mudando, adaptando-se, recriando-se em realidades intersubjetivas. São fenômenos inerentemente sociais, criando experiências e significados compartilhados, práticas e imagens que são comunicadas e ensinadas. As pesquisas sobre as religiões antigas vêm se sucedendo em um ritmo acelerado nas últimas décadas graças, principalmente, ao diálogo interdisciplinar, o que permitiu a ampliação dos corpora documentais e, sobretudo, a reavaliação de dados e conclusões baseadas em documentos da tradição manuscrita e outros a partir de novas premissas, renovando a compreensão de temas já explorados pela historiografia sobre a antiguidade. As religiões antigas surgem sob novas luzes como elementos centrais na pesquisa e na compreensão, por exemplo, dos sistemas culturais, políticos, intelectuais e institucionais das sociedades do passado.

Ainda assim, as religiões da antiguidade formam um tema de estudo complexo per se, pois, seguindo-se uma das religiões atuais ou não, todos nós fomos formados – ou deformados – por dezesseis séculos de monoteísmo, e não é possível abandonar nosso mundo de compreensão e saltar simplesmente para outro. Desse modo, os contrassensos são vários e persistentes. Mas, não apenas no que tange à religião, como também em relação a outras manifestações culturais da antiguidade, é preciso ultrapassar o enquadramento do pensamento judaico-cristão. É certo que muitos estudos nos habituaram, nos últimos anos, à observação da alteridade. Mas a reiteração da necessidade da observação das categorias discursivas, religiosas e ideológicas das sociedades antigas merece ser feita, posto que o próprio desenvolvimento dos estudos sobre as práticas e os discursos religiosos da antiguidade ainda se dá pleno de ideias fundadas em “premissas monoteístas” que agem como pano de fundo de boa parte da pesquisa sobre a religião, analisando-a a partir de categorias religiosas judaico-cristãs.

Este dossiê congrega artigos de estudiosos brasileiros e estrangeiros que lidam com práticas e crenças religiosas da antiguidade, observando aspectos religiosos cruciais para a compreensão das sociedades analisadas, bem como lidam com a transformação de práticas e crenças religiosas que levaram à formação de novas fronteiras e novos conhecimentos para os grupos humanos. As religiões antigas são aqui entendidas como um spectrum de ações, crenças, experiências, conhecimentos e comunicações com seres e agentes super-humanos, incluindo, mas não se limitando a “deuses”, “demônios”, “anjos”, “heróis” e outras personagens transcendentes. A ritualização e as elaboradas formas de representação e apresentação dessas ações e experiências e desses seres e agentes são um tema de pesquisa atual para diversos ramos especializados em regiões, épocas, tradições e corpora documentais particulares.

A institucionalização da religião, assim como os papéis religiosos; a construção da religião como conhecimento; os rituais como produtos de contextos históricos e sujeitos à mudança, como testemunhos de tensões sincrônicas e / ou diacrônicas; os espaços das experiências religiosas, compartilhados por indivíduos ou grupos em santuários públicos ou privados, ou o espaço móvel dos festivais e procissões; o espaço religioso virtual da comunicação literária e os discursos intelectuais sobre a religião; os diferentes modos de apropriação das religiões, de comunicação com o “outro” invisível, representado ou epifânico; rituais e performances e sua relação com o corpo, em que movimentos e gestos são elementos fundamentais na percepção e estruturação de mundos religiosos; as imagens de deuses e de rituais e a criação de sentimentos e conhecimentos compartilhados, criando regimes de visualidade, são temas caros aos estudos sobre as religiões antigas, permitindo a análise de culturas religiosas criadas pelas interações interpessoais e intergrupais, pela imitação, apropriação de gestos, imagens e conhecimentos que criam comunidades fundamentadas em memórias compartilhadas, sempre sujeitas a mudanças. A intenção de reunir “religiões” diversas, especialistas, disciplinas e enfoques variados visa ao cruzamento ou à redefinição de fronteiras disciplinares e convida ao engajamento com discussões contemporâneas nos campos da pesquisa e do ensino das religiões, da história antiga, e das ciências humanas e sociais em geral.

Claudia Beltrão da Rosa – Professora Associada de História Antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.


ROSA, Claudia Beltrão da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.2, out., 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Hélade

Helade1 Hélade

A Revista Hélade (2000-) é uma publicação eletrônica quadrimestral voltada para os estudos da Antiguidade Ocidental e Oriental, sob a responsabilidade do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA), vinculado ao Departamento de História e ao Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense.*

Sua proposta é reunir debates interdisciplinares com especialistas das áreas de História, Arqueologia, Antropologia, Filosofia e Filologia.

Admite-se como norte a construção de um espaço de divulgação do saber acadêmico pautado pela isonomia, pelo respeito à diversidade teórico-metodológica e pela valorização de novos objetos e temas de pesquisa.

Nossa proposta é ampliar o diálogo, criando um espaço que reúna pesquisadores brasileiros e estrangeiros, ultrapassando fronteiras.

Mais do que divulgar novas pesquisas, desejamos buscar a integração de interessados no estudo da Antiguidade nessas diversas áreas, fomentando novos debates.

A revista publicará dois dossiês temáticos e um número com artigos livres.

Periodicidade quadrimestral.

Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento.

ISSN 1518-2541

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(*) “Lançada em 2000, a Hélade foi a primeira revista eletrônica brasileira dedicada exclusivamente à História Antiga. Editada pela iniciativa de Adriene Baron Tacla (1), Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (2) e Maria Regina Cândido (3), o periódico foi pioneiro no Brasil em disponibilizar artigos sobre a Antiguidade gratuitamente através da internet, atuando na vanguarda da atual tendência editorial das revistas científicas nacionais e estrangeiras.”