Festas brasileiras e seus significados / Territórios & Fronteiras / 2020

As festas são manifestações que propalam momentos singulares que fazem parte da vida e do cotidiano de todos nós. Podem ser celebrações tanto por motivações ordinárias quanto em relação a eventos extraordinários que expressem pertenças e questionamentos diversos, e, ainda, afirmem outras vivências socioculturais de seus integrantes. Foi pensando nesses aspectos que o tema “Festas brasileiras e seus significados” materializou-se neste dossiê — ora publicado pela Revista Territórios e Fronteira que chega em momento oportuno à conturbada realidade brasileira atual.

Do ponto de vista sistêmico, as festas demarcam sempre um ponto de encontro de interesses individuais e coletivos em que é possível perceber os fios do próprio tecido social a partir de modos de fazer próprios e singulares que envolvem lutas de representação entre grupos sociais distintos. Quando vistas sob um sentido mais subjetivo e vertical, as festas permitem que se percebam encontros (im)possíveis entre práticas culturais que têm no espaço público um território que pode ser o lugar de vazão dos desejos, que não mais se contém. Elas também evidenciam o tensionamento dos recalques silenciosos acumulados cotidianamente que podem ser extravasados, por exemplo, nos carnavais pelos foliões e foliãs que têm na festa um lugar de júbilo. Em outras palavras, as festas podem agregar pessoas e aferir laços identitários a partir dessas experiências festivas que celebram os rituais do poder, religioso ou laico, mas também as que ocorrem em espaços diversificados que propiciam sociabilidades e lazer com objetivos diversificados. Podem, ainda, favorecer as condições para consolidar arranjos diversos para garantir a manutenção de interesses financeiros, políticos e afetivos. Em todos esses sentidos, marcam as visões de mundo e valores culturais partilhados por seus integrantes.

Resultantes de pesquisas originais com fontes variadas — relatos de viajantes, imprensa, depoimentos orais, atas de clubes etc.—, os textos aqui enfeixados discutem tipos de festividades que vão dos eventos carnavalescos e encontros em espaços de lazer diversificados até aqueles que tratam de festividades do campo religioso. O tempo de seu acontecer remonta ao século XIX e se projeta aos dias atuais, no século XXI.

Os textos que compõem este dossiê moveram o eixo do debate, do centro para a periferia, em sentido amplo e, também, do grande evento. No Rio de Janeiro, por exemplo, o eixo festivo moveu-se ao trazer análise que desbancou a perspectiva que centrava os locais de divertimento apenas na região central da cidade e na zona sul carioca. Ao contrário, mostra-se que havia diferentes formas de diversões nos subúrbios, embora elas sofressem todo tipo de discriminação por parte da imprensa e da polícia. Além disso, as reflexões sobre os carnavais — cuja incidência ainda são os festejos ocorridos no Rio de Janeiro — reposicionam-se para outras regiões, a exemplo de Minas Gerais, Pará e Amazonas.

Portanto, essas festas aqui reunidas transitam por diversos eixos: ensejam as possibilidades de transgressão nos anos 1960 ante uma sociedade reativa ao desejo feminino; destacam valores agregadores na organização dos blocos, cuja marcação de um espaço de (re)existência é sempre possível, principalmente a partir de redes (virtuais) de apoio mútuo visando a communitas, ultrapassando o caráter competitivo. Por sinal, a rivalidade é o corte analítico das festas do boi de Parintins e na organização das torcidas em torno do duo Caprichoso-Garantido e das “galeras” em torno das escolas de samba de Manaus. As suas modalidades também variam desde aquelas brincadeiras do entrudo, passando pelos blocos de enredo e por outras modalidades inscritas muito além dos grandes espetáculos como os desfiles das grandes escolas de samba do carnaval carioca.

Os festejos carnavalescos aqui apresentados situam-se na longa duração que vão dos séculos XIX ao XXI. Iniciaremos pelo artigo “Outros tempos, outros carnavais: brincadeiras de entrudo e de carnaval no Brasil (século XIX)” no qual Patrícia Vargas Lopes Araújo discute as festas carnavalescas ocorridas em Minas Gerais ao longo do século XIX, em particular os festejos de entrudo e do carnaval, a partir de fontes documentais diversas — relatos de viajantes, memórias, jornais, entre outros. A autora se propõe capturar as singularidades de suas manifestações, bem como recuperar “como se elaboravam, na segunda metade do século XIX, os discursos que apresentavam o carnaval como um festejo civilizado em contraposição ao entrudo, considerado um divertimento grosseiro, incivilizado, marca de outro tempo, e portanto, impróprio a uma sociedade que buscava se modernizar”. Fica claro nas reflexões da autora que esse festejo segue a mesma perspectiva presente nas manifestações, de igual natureza, ocorridas no Rio de Janeiro e já fartamente exploradas pela historiografia, o que torna uma operação complexa capturar as possíveis distinções e suas sutilezas, em relação aos ditos eventos ocorridos na Corte.

As pândegas do Rio de Janeiro são abordadas em “Carnaval em Revista: os sentidos da festa na apreensão de mulheres brincantes pela imprensa ilustrada dos anos 1960” por Ellen Karin Dainese Maziero, que faz uma análise de fôlego em torno de um conjunto documental composto por charge, fotografias, entrevistas e músicas. Essa documentação farta tem nas revistas ilustradas O Cruzeiro e Manchete, notadamente em sua cobertura fotojornalística, seu núcleo. Aqui, os bailes fechados são lidos como possibilitadores da transgressão de mulheres que tinham sua liberdade amputada em plena década de 1960, marcadamente refratária à manifestação da sensualidade e sexualidade femininas alheias ao desejo masculino. Sua análise atilada abarca tanto a conjuntura nacional quanto o que é próprio desses carnavais, relacionados por uma densa revisão bibliográfica.

No que diz respeito aos blocos, o leitor e a leitora têm nas mãos dois trabalhos que avançam no entendimento que as Ciências Humanas têm sobre os blocos carnavalescos, sempre tidos como manifestação carnavalesca “menor” quando comparados às escolas de samba.

Em “‘Que escola é essa que está desfilando?’: os blocos de enredo do carnaval do Rio De Janeiro”, Julio Cesar Valente Ferreira analisa os blocos de enredo enquanto representações de forças sociais localizadas nas camadas periféricas do Rio de Janeiro. O autor rastreia as acepções que os blocos de enredo receberam dos estudiosos do assunto, que variam de “mini-escolas de samba” à “sub-escola”, sempre envoltos em uma hierarquia que certamente não auxilia no entendimento do objeto em si. O autor nos remete a uma tipologia sobre a história dos blocos, fazendo uma revisão bibliográfica sobre a caracterização dos mesmos, seus tipos e demarcando uma diferença substancial que vai além dos tipos, mas de princípio: aqueles que têm uma estrutura competitiva e aqueles de caráter comunitário. A partir de quadros explicativos o autor organiza sua pesquisa em torno de blocos que foram fundados de 1944 a 2016, rastreados a partir do corpus documental da Biblioteca Nacional e pensados juntos e a partir de entrevistas semi-estruturadas. O conjunto dessas entrevistas, cabe destacar, agrega nuances à cobertura feita pela imprensa periódica e valoriza as vozes daqueles e daquelas que estavam envolvidos na consecução dos desfiles: de representantes dos quadros administrativos do poder público e das entidades representativas até os participantes das agremiações rastreadas pelo autor. Nessas, as marcas identitárias, as redes de solidariedade – que além do investimento de tempo e dinheiro de foliãs e foliões, envolve o comércio local e as escolas de samba – que dão sustentação à permanência dos blocos de enredo, que se utilizam também das relações clientelistas com os representantes do poder público, como as escolas de samba, demarcam uma diferença substantiva: almejam a communitas, não o comércio.

Ainda na seara dos blocos, Tiago Luiz dos Santos Ribeiro e Felipe Ferreira trazem à baila as formas inventivas que foliões e foliãs se utilizaram para driblar as proibições que os alvejavam e ameaçavam seu carnaval. Em “Esse bloco é meu: noções de pertencimento e apropriação nos blocos carnavalescos da cidade do Rio De Janeiro”, os autores articulam a assunção de blocos de rua como resposta / revide ao cancelamento de outros. A estratégia de pesquisa dos autores para pensar as formas de resistência do brincar feito correlato a esses blocos, impedidos de desfilar, encerra uma plêiade de fontes: entrevistas via e-mail, observação participante posts de internet, pensado à luz de teóricos que articulam a descentralização como forma de organização diferenciada, que catapulta a rua e, cabe acrescentar, as redes sociais, como espaços de articulação, organização e projetos coletivos. Doravante, a Internet entra como fonte nuclear na análise dos autores que buscam arejar o debate em torno das fontes e formas de se trabalhar com qualquer festividade do século XXI. A pesquisa demonstra que a estratégia de divulgação dos novos blocos e / ou das novas datas dos desfiles cancelados pelos representantes do poder público só foi possível porque havia uma confluência de valores e propósitos entre os membros que reconfiguraram os blocos, alterando seus nomes e subvertendo o regramento. A pesquisa, com tons singulares de um observador-participante, é um convite para se debruçar nos “processos de negociação, espaço de tensões, resistência e incorporação como estratégias de sobrevivência”.

Deslocando-nos do eixo fluminense, o trabalho “Da galera do Caprichoso aos Gigantes do Morro: notas sobre rivalidade e sociabilidade nas torcidas organizadas do Carnaval de Manaus e Festival De Parintins No Amazonas”, de autoria de Ricardo José de Oliveira Barbieri, faz um estudo comparativo que parte da rivalidade e do engajamento das torcidas do Boi Bumbá e da “galera” das escolas de samba de Manaus. A pesquisa se constituiu a partir da figura do observador participante, o próprio autor, que participou dos festejos do Boi Caprichoso em 2010 e das escolas de samba na cidade de Manaus entre 2012 e 2016. O recorte cronológico e a distância dos anos em que os festejos foram observados importam menos para o texto, que gira em torno do papel da rivalidade das torcidas e da rivalidade e nos seus sentidos. O leitor e a leitora terão em mãos um artigo que faz um retrospecto interessante sobre essas manifestações culturais, como o caso do Boi-bumbá, que estão fora do eixo sul-sudeste e que frequentemente passam ao largo do radar dos foliões e mesmo dos pesquisadores. O trabalho também abre espaço para pensar o imbricamento de termos como “galera”, advindo do carioca “galeras funk”, que, como as torcidas organizadas de futebol, são organizações heterogêneas em ocupação social e idade. Com fortes tons pessoais, característico da metodologia adotada, o autor busca transmitir algo da essência no sentimento de engajamento que invade os organizadores das torcidas de fenômenos com diferentes induções, e de naturezas festivas diferenciadas.

Outros tipos de festas ocorreram no Rio de Janeiro e alhures. Como exemplo, naquele estado essas festas se deslocam aos subúrbios (do Rio de Janeiro) e são discutidas no texto “Diversões nos subúrbios cariocas: identidades, representações e tensões (1900-1930)”, de Nei Jorge Santos Junior. O autor percorre vários bairros do arrabalde carioca identificando os diversos espaços de sociabilidade e diversão que os segmentos populares frequentam tais quais os bailes de seus clubes, os botequins, os quiosques e os jogos de futebol. Esses registros foram feitos a partir da cobertura da imprensa carioca que se esmerou nos adjetivos desqualificadores daqueles sujeitos, sempre chamados de “desordeiros”, “agressivos”, “violentos” e “vagabundos”. Nesse sentido, demonstra o autor, que as “representações” dos cronistas da imprensa não diferiam das posturas da polícia que acionam, a todo momento, os mecanismos de repressão para coibir os “abusos” das práticas populares nesses locais de encontro e diversão. O autor conclui que os jornais e a polícia tecem várias críticas desqualificadoras às formas de diversão suburbana, buscando “redefinir usos e costumes considerados inadequados aos padrões daquilo que se julgaria civilizado”.

Ainda nesse universo das festas, o texto “Festa e território: modo de vida e devoção a Nossa Senhora das Graças em uma comunidade camponesa”, de autoria Rafael Benevides de Sousa e Cátia Oliveira Macedo, discute outro tipo manifestação. O artigo é resultado de pesquisa realizada na comunidade do Cravo, no nordeste do Pará, que visa compreender o papel desempenhado pela festa de Nossa Senhora das Graças para a territorialização camponesa local. Os autores enxergam tal festa como um dos componentes de forjamento desse território, posto que a partir dela “se articulam relações sociais densas, explicitando-se o sentimento de pertencimento a comunidade”. A entrevista oral e a história de vida, coletadas entre 2017 e 2018, foram fundamentais para os autores entenderem os meandros desse território camponês e os significados simbólicos inerentes ao evento.

Concluindo essa Apresentação, podemos dizer que o tema situa o debate teórico e historiográfico sobre os sentidos possíveis aferidos às festas que conformam as relações sociais dos sujeitos, homens e mulheres, cujos valores se manifestam nessas práticas culturais e em suas representações simbólicas de tipos variados. Se, por um lado, essas manifestações simbolicamente celebram a vida e os acontecimentos considerados relevantes por esses sujeitos em seu cotidiano, por outro, também estabelecem limites e barreiras sociais ao definirem fronteiras entre os seus integrantes e os outros, mesmo que o objetivo almejado seja garantir a coesão social e também tornarem-se instrumentos de apaziguamento os possíveis conflitos e divergências entre os seus integrantes e o mundo que o cerca.

Portanto, caro leitor e cara leitora, convidamos você para a leitura das reflexões dos diferentes autores e autoras, a quem agradecemos pela colaboração. Eles e elas se empenharam para analisar as respectivas manifestações festivas, com toques de originalidade e competência, atendendo ao nosso convite e de T&F, viabilizando o presente dossiê.

Zélia Lopes da Silva – Doutora pela USP e Livre Docente na área de História do Brasil pela Unesp. Integra o Programa de Pós-Graduação em História da Unesp, ministrando curso e orientando pesquisas. Aposentada. E-mail: zelia.lopes @terra.com.br

Danilo Alves Bezerra – Doutor em História pela Unesp -Programa de Pós-Graduação História e Sociedade. É professor adjunto no curso de graduação em História da Uespi / Parnaíba e de pós-graduação do ProfHistória / Parnaíba. E-mail: [email protected]


SILVA, Zélia Lopes da; BEZERRA, Danilo Alves. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.13, n.1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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