Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão – DUARTE (E-CHH)

DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão. Chapecó: Editora Argos, 2008. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  v.11, n.19, p.346-348, jan./jun. 2008.

Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão, novo livro de Rodrigo Duarte, amigo do saber e figura destacada no cenário internacional da Estética e da Filosofia da Arte, lançado na coleção Debates da Editora Argos, traz como subtítulo “Para uma filosofia da expressão”. Expressão pode ser percebida como “tirar da pressão”, manifestar algo recalcado cujo manifestar- se produz, ao mesmo tempo, um alívio em quem exprime e um apelo sensível ao acolhimento – ainda que este não lhe seja assegurado. Trata-se de fazer aflorar algo até então oculto, dando-lhe uma forma objetiva que pode ser compartilhada. Por não lhe estar garantida a desejada recepção, toda expressão é uma espécie de mensagem na garrafa.

Nos seis artigos que compõem a obra, mostra-se como o conceito fundamental nas obras de arte e na dimensão estética em sua maior amplitude é também um fundamento da filosofi a, tendo como base o pensamento do filósofo crítico Theodor Adorno.

Apresenta-se como a divisão estrita do trabalho intelectual em esferas ultra-especializadas – a partir do sem dúvida fabuloso desenvolvimento das ciências tecnológicas – gerou uma restrição progressiva do pensamento humano que perde com isso a noção de um sentido maior capaz de nortear o desenvolvimento das pesquisas particulares. “No caminho para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido”, afirmam Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento. É a expressão deste sentido abandonado que parece guiar o autor no livro de linguagem acessível não só aos dedicados às questões fi losófi – cas, mas também a quem quer que esteja familiarizado com os problemas intelectuais postos pelo processo histórico no mundo contemporâneo, dito “globalizado”.

Nesse sentido, é ressaltada a potência da arte como uma forma de cognição, na medida em que o conhecimento envolvido na experiência estética é radicalmente diferente do científico: é capaz de dar a conhecer não apenas o que já conhecido, mas de abrir-se ao novo, ao inaudito. Duarte distingue, portanto, “expressão” de “comunicação”. Enquanto esta última diz respeito ao trânsito de informações, “a uma impalpabilidade das torrentes de dados contínua e simultaneamente transmitidos”, a expressão envolve alto grau tanto de responsabilidade intelectual quanto de refinamento formal. Cito o autor: “o que a qualifica para uma indispensável – ainda que, para alguns, quixotesca – militância teórica pela humanidade”. Trata-se de revelar o invisível, trabalho teórico ligado à produção de novas formas de discurso. A necessidade – para o processo cognitivo – de trazer à tona o que está oculto fica bastante evidente quando lembramos que, apesar de contemplarmos, diariamente, o movimento do sol em torno da terra, sabemos que é a terra que se move em torno dele. E sabemos também quantos mártires foram necessários para que disso soubéssemos. A distinção entre pseudo evidência imediatamente comunicável e trabalho expressivo coloca este último, muitas vezes, sob suspeita, sobretudo na esfera das artes, conforme Adorno nas Mínima moralia: “quanto mais precisa, conscienciosa e adequadamente se expressa [o escritor], o resultado literário será avaliado como mais dificilmente compreensível; enquanto que, tão logo se expressa de modo relaxado e irresponsável, se é recompensado com uma certa compreensão”. A dificuldade advém do entrelaçamento entre forma e conteúdo. Se a forma é conteúdo sedimentado, há uma não-exterioridade entre o que se diz e como se diz. Pensamentos de ponta não encontram elocuções banais. “O que é frouxamente dito é mal pensado”, ainda Adorno, “isso pode ajudar a explicar por que à fi losofi a sua expressão não é indiferente nem exterior, mas imanente à idéia. Seu integral momento de expressão, não-conceitual e mimético, só é objetivado através de apresentação – linguagem […] Onde a filosofia desiste do momento expressivo e do dever da apresentação, ela se iguala à ciência.” A riqueza da ideia exposta reside na possibilidade de se expressar a dimensão pré-conceitual, pré-lógica, que é o fundo de todo pensamento. O momento expressivo caracteriza, assim, também a partir da perspectiva de Duarte, uma differentia specifica entre a filosofia e a ciência. O autor contrapõe-se à ideia de que as questões éticas e metafísicas estão fora das possibilidades do discurso articulado, ao qual se alinhariam as ciências naturais. E enfrenta a célebre proposição 7 do Tractatus lógico-philosophicus, de Wittgenstein, “daquilo que não se pode falar, deve-se calar”, encarando-a como autocensura extremamente positivista imposta pela lógica a toda linguagem que não seja logicamente exata e salientando a impossibilidade (e o autoritarismo, acrescento) de dizer como deve ser o próprio dizer. Duarte adverte que “uma das mais evidentes manifestações da liberdade está associada à possibilidade de expressar aquilo que se pensa, na medida em que configura a liberdade naquele sentido de confluência entre o objetivo e o subjetivo”. Contra Wittgenstein, Adorno considera tarefa filosófica primordial justamente “dizer o que não se deixa dizer”.

Dizer o que não se deixa dizer, o livro, traz ainda figurações do conceito de “expressão” conforme filósofos voltados para a estética, a comparação deste com o movimento nomeado por Freud como “sublimação”, seu papel na linguagem a partir de Walter Benjamin, e o caráter expressivo da música, segundo Adorno. Parodiando este último, pode-se dizer que, na obra de Duarte, a expressão busca conquistar a força sem a qual a vida se dilui sem ser ouvida. E a filosofia aparece como expressão do inexprimível, abismo infinito, desafio incontornável à mente humana. E trabalho sem fi m já que, como bem assinalou a poeta Ana Caetano, há sempre um bis no abismo.

Imaculada Kangussu – E-mail: [email protected]

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