Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil – BURNETT

BURNETT, Henry. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. Resenha de: GARCIA, André Luis Muniz; PETERLEVITZ, Mayra Closs. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p.135-140, n.1, 2016.

Pode ser estranho iniciar uma recensão pelo final de um livro, mas esse parece ser o melhor caminho para se compreender a estratégia de Henry Burnett neste livro, Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil, que reúne artigos publicados ao longo de 4 anos de pesquisa. Nas duas grandes partes que compõem o livro, uma temática comum pode ser destacada: pensar as mais diversas tendências da cultura europeia e brasileira a partir da música, ou como sugere Burnett, a partir da “canção popular” [Volkslied]. Essa relação entre cultura e Volkslied parece ser o ponto central das reflexões de Burnett. Isso não apenas porque ele quer pensar o reconhecido fracasso da aliança de Nietzsche com a arte de Wagner no que concerne ao “renascimento da tragédia” (primeira parte do livro de Burnett). Seu argumento é mostrar também que as reflexões sobre a música nortearam importantes debates sobre o estatuto da Volkslied no processo de massificação, primeiramente, das culturas ocidentais no início do século XX em decorrência da consolidação do capitalismo como modus operandi de toda formação cultural pautada pelo elemento musical (segunda parte do livro). Se cultura, dentre suas várias definições, pode ser entendida como aquilo que pelos indivíduos é imediatamente comunicável e compreendido, a proposta de Burnett parece ser então conceber a forma “canção popular” como elemento universal unificador, basilar na construção de uma Weltanschauung. Essa é a importância do capítulo final do livro (Autenticidade, Comunidade, Povo: A Canção Popular em O Nascimento da Tragédia), no qual Burnett concebe como seu projeto de pesquisa um estudo sobre o conceito de Volkslied para um diagnóstico mais específico da cultura (2011: 243), em especial, da cultura brasileira.

Essa proposta parece tocar, exatamente, em um sutil e decisivo insight de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. Ao afirmar que a poesia lírica de Arquíloco é a criadora da forma “canção popular”, supõe ter entendido como ocorreu a unificação (Vereiningung) da cultura grega a partir dela:

Quão distinto [era] aquele perpetuum vestigium de uma unidade do apolíneo e do dionisíaco; sua grandiosa propagação, que se estende por sobre todos os povos e insurge em renovados nascimentos, é para nós testemunha de quão poderoso é aquele duplo impulso artístico da natureza: um impulso que, de maneira análoga, deixa suas pegadas na Volkslied tal como os movimentos orgiásticos de um povo se eternizam em sua música. Sim, dever-se-ia também demonstrar historicamente como nas canções populares [an Volksliedern] todo rico período produtivo foi, simultaneamente, estímulo aos mais fortes por meio de fluidos dionisíacos, os quais temos sempre que observar como sendo o fundamento e o pressuposto da Volkslied. (NIETZSCHE, KSA 1: 48) 1

Essa citação apresenta mais do que um ponto de vista sobre a cultura grega, ela apresenta um prognóstico de Nietzsche que Burnett parece perseguir com precisão: ainda não existia um estudo que comprovasse a tese segundo a qual épocas e períodos produtivos e maduros de uma cultura teriam sido estimulados por uma dionysische Strömung, que manifestar-se-ia, assim sugere Nietzsche na seção 6 d’O Nascimento da Tragédia, justamente, na forma “canção popular”. Burnett persegue a compreensão filosófica da forma canção popular em todos os capítulos do livro. Daí seu interesse não apenas pela filosofia de Nietzsche, mas também por Theodor Adorno (um dos mais severos críticos da versão novecentista da Volkslied, a “popular music”) e pelo pensamento de Mário de Andrade, poeta, musicólogo, novelista, reconhecido fundador do modernismo no Brasil. Apesar da ausência de um sistemático diálogo entre os três pensadores, que não ocorreu nem em obras, nem em cartas ou apontamentos, a preocupação com os rumos da cultura ocidental no exato momento em que é patente a deterioração da forma “canção popular” surge como fio condutor das reflexões de Burnett.

Adorno observou e analisou a “morte” do conceito de cultura, tal como o século XVIII e XIX o concebeu, com a insurgência de sua apropriação pelos mecanismos e técnicas de produção industrial. Mário de Andrade via na cultura brasileira, nas primeiras décadas do século passado, o solo fértil para se pensar o contrário: enquanto o Brasil não padecia, como a Europa e a América, do maciço processo de evolução do sistema capitalista, e também devido ao seu “atraso industrial”, o Brasil teve condições de mapear e ordenar as mais diversas fontes de seu “impuro” surgimento. Foi na música popular, na unidade de sua diversa manifestação em solo brasileiro, que Mário de Andrade buscou a origem “impura” (interracial e polissêmica), portanto híbrida e muito rica, da nossa cultura. Não me parece exagero afirmar, seguindo Burnett, que, assim como Nietzsche, Mário de Andrade parece ter entendido a canção popular como o perpetuum vestigium da nossa cultura.

No caso de Nietzsche, a tarefa é mais complexa, não só porque a forma “canção popular” é apenas tratada pelos escritos de juventude do filósofo e de modo, muitas vezes, genérico, como também porque o conceito Volkslied, tal como em Adorno e Mário de Andrade, não é tratado no âmbito de uma “teoria social”. Antes, o tratamento de Nietzsche do conceito Volkslied2 , como mostra boa parte dos apontamentos póstumos, dá-se no âmbito da Kulturkritik, portanto, na esteira de autores como J. G. Herder, W. Goethe e J. Burckhardt. Se por um lado Herder é considerado o “fundador” do conceito de cultura3 , por outro Burckhardt é o responsável por dissolvê-lo em uma pluralidade de processos de formação históricos [Kulturen] ao investigar seu surgimento e morfologia no âmbito das Geisteswissenchaften4 ; mas, no que concerne ao conceito de Volkslied, Goethe é o autor com quem Nietzsche mais dialoga nas anotações e textos preparatórios ao Nascimento da Tragédia. A referência constante a Goethe aponta para um fato muito importante5. Goethe via na incorporação da Volkslied à sua lírica a unificação da força criativa do Individuum – o gênio [das Genie] – enquanto a mais espiritualizada forma de manifestação linguística da natureza: o espírito [der Geist]. 6

Os inúmeros estudos de Nietzsche sobre a lírica poderiam então convergir com seus esforços para entender o elemento poéticomusical presente nas mais genuínas “manifestações de vida de um povo [Lebensäusserungen eines Volkes]”, cuja unidade [Einheit] de estilo poderia ser designada cultura7 . Todavia, aqui, deve-se advertir para o fato de que, ao tratar da função da lírica na formação do drama musical grego, Nietzsche não concede a ela stricto sensu a forma Volkslied. Nietzsche sabia que a relação entre Melodie e Strophenform é conditio sine qua non da formaLied, como observa Henry Burnett em seu livro, mas disso não decorre que a forma musical moderna Lied seja o modo genuíno de comunicação musical e construção (universal) de sentido que Nietzsche reivindica a partir da tragédia grega. Em uma importante passagem de O Drama Musical Grego, Nietzsche, ao falar da peculiar característica da língua grega [Musikvokal], aponta para uma sutil nuance entre a forma Lied e Gesang.

Os gregos aprendiam uma Lied tal como eles aprendiam uma Gesang: no ouvir, eles sentiam, assim, o mais íntimo ser-um da palavra e do tom.(NIETZSCHE, KSA: 529) 8

Nessa fundamental passagem, ele emprega duas palavras, que em geral são traduzidas por “canção” [Lied e Gesang], e então associa ambas. Ali, não se trata de uma distinção conceitual entre Lied e Gesang. A nuance está em apontar para o modo como a Lied é universalmente compreendida, a saber, como Gesang, isto é, como unidade entre Tonsprache (linguagem tonal) e Wortsprache (linguagem-por-palavra). Essa unidade indica que, no caso da língua grega, o timbre e rítmica naturais do tom e do signo fonético articulado (a palavra) ainda não foram rompidos. A compreensão não é tangenciada pela aspecto lexical da canção, mas puramente musical. Assim, o poeta compositor de uma Lied, isto é, o poeta lírico da antiguidade clássica, argumenta Nietzsche em Os Líricos Gregos, “não conhece nenhum leitor [Leser], mas apenas o ouvinte [Hörer], que, em geral, é também o espectador [Zuschauer]” (NIETZSCHE, 1933, V: 307). Assim, Gesang poderia ser interpretada como forma mais geral da comunicação e compreensão musical de sentido; Gesang, portanto, é o tornar comum, o “tornar popular” o componente músicovocal da língua na sua função de estruturação de significar e comunicar. E sua forma fundamental é o coral, o “cantar em conjunto”. Talvez aqui poderia residir o paralelo fundamental entre o popular e o coro, que Nietzsche exaltou no caso da “dionisíaca rural”.

Essa comunhão popular da arte é vista por Nietzsche, no final do famoso apontamento 12[1], que é citado e comentado por Henry Burnett em seu livro, como o momento de passagem do Singen – o cantar – (i.e. a forma Lied) para o Mitsingen – cantar-com – (a forma Gesang, muito próxima, como dito, do que entendemos por forma-coral). Esse talvez possa ser um plausível fio condutor para se pensar as inúmeras confusões que surgem quando se trata de compreender o conceito Volkslied. O caso exemplar, que Burnett chama atenção, é o de Adorno, que, ao relacionar popular music à noção (para ele idêntica) de mass music9 em seu famoso ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1938), mostra surpreendente desconhecimento de uma já diagnostica, na Alemanha, nuance entre Volkslied e Volksgesang. Em seu livro Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang, de 1921, Johann Weygardus Bruinier apresenta um decisivo argumento para aquele insight de Nietzsche concernente aos conceitos Lied e Gesang no âmbito do popular (o coro).

O modo popular de cantar coletivamente [Volksgesang] é a canção [Gesang] dos círculos onde são vívidas as intuições populares, ele está livre dos tipos de coro introduzidos pela moral [Sitte], isto é, não possui uma legislação pela batuta [Taktstock], ele ainda soa em alguns tipos conservados de coro, pois sempre ressoa a partir da memória. Apenas lá onde a moral estabelecida conserva esse coletivo modo de cantar a partir da memória, [apenas ali] vive ainda a Volksgesang, e lá onde a Volksgesang, desbotada pela bruma da vida, tem que ressoar novamente, ali o cantar coletivo, livre e dependente da memória tem que, tal como a moral, surgir. Tem-se que distinguir da Volksgesang e da Volksdichtung [a canção poética popular] a Volkslied. A Volkslied surge sempre da Volksgesang, mas ressoa também na boca do indivíduo [im Munde des Vereinzelten]e daqueles que não mais exercitam a Volksgesang; conserva-se, com efeito, a Volkslied, mas sua apresentação, no entanto, não é de modo algum Volksgesang. (BRUINIER, 1921: 23-24)

Em suma: três são as teses que o argumento de Bruinier apresenta, e que enriqueceriam, por exemplo, os insights de Mário de Andrade explorados por Henry Burnett nos capítulos 8, 9 e no capítulo final (denominado “Um Projeto”): (i) que a Volksgesang é essencialmente uma intuição popular, um sentimento popular livre, que não se deixa fixar em um costume (numa técnica), mas, pelo contrário, o costume mantém-se vivo em virtude da Volksgesang, isso quer dizer que os costumes, a moral é “fundada” esteticamente; (ii) que a Volksgesang é o paradigma de reconhecimento público dos valores, é o paradigma de comunicação e compreensão destes em uma cultura, uma vez que são conservados pela sua memória; por fim, (iii) a Volkslied é uma forma musical especial, “particular”, que, no momento de sua produção, pode representar a ruptura do “costume enquanto canção popular [Sitte als Volksgesang]”. Volkslied é a forma musical por meio da qual uma ação individualmente (já que ela não mais ressoa o “coletivo”, mas o “indivíduo”, e nós podemos pensar aqui na origem do poeta lírico) não mais deseja praticar a “Sitte als Volksgesang”. Em Nietzsche, o poeta lírico é justamente aquele que deseja uma nova “Sitte”, e por isso precisa romper com a anterior. A canção popular [Volkslied] surge de uma prática coletiva, mas é pelo indivíduo (o “cancioneiro” lírico) que ela se distingue de sua forma matricial. É aqui que ato individual e sentimento popular, do qual ela deriva, mais se aproximam. Parece-nos que o insight de Nietzsche vai justamente nesta direção, isto é, em apresentar a força da cultura grega para fazer convergir o (suposto) antagonismo individual/popular. Por fim, perguntamo-nos ainda sobre a utilidade dessas teses de Bruinier para o argumento de Henry Burnett: a terceira tese de Bruinier não ajudaria a compreender a confusão feita por Adorno e discutida por Burnett (2011: 217) concernente ao aspecto “individual” na produção da música popular? A segunda não tornaria ainda mais consistente o insight de Mário de Andrade (2011: 231), qual seja, de que ainda é preciso discutir o “valor mnemônico da canção”? Em suma: em que medida a árdua preservação dessa unidade entre movimentos antagônicos de ruptura e criação musical não custou aos gregos a própria dissolução de sua cultura? Pensamos aqui na transição, diagnosticada por Nietzsche como “natural”, da tragédia na assim chamada dionisíaca rural em direção àquela cultivada em Atenas, pelos poetas nos concursos, e que culmina, com Eurípedes, na potencialização da Wortsprache, do logos. Talvez o projeto que o último capítulo do livro de Burnett pretende realizar possa nos ajudar, futuramente, a entender melhor essas questões.

Notas

1 Trata-se da oba NIETZSCHE, F. Nascimento da Tragédia, 6. Salvo indicações contrárias, as obras de 1 Nietzsche serão citadas a partir da seguinte edição. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999. Essa edição é resumida pela sigla KSA, seguida do número do volume e página. As traduções são de responsabilidade dos autores.

2 Cf. GAIER, Ulrich. „Herder als Begründer des modernen Kulturbegriffs“, in: Germanisch-Romanische Monatsschrift. Bd. 57, Heft 1, 2007: 5-18.

3 Apenas duas vezes o conceito ocorre na obra publicada, Nascimento da Tragédia 6 e Para Além de Bem e Mal 190.

4 Cf. EBERSFELD, „Durchbruch zum Plural. Der Begriff der ,Kulturen’ bei Nietzsche, in: Nietzsche- Studien, 38, 2008.

5 Cf. KSA 1, 8[47]; 9[85]; 9[146]; 19[270].

6 Cf. SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.

7 Cf. NITEZSCHE, F. Segunda Consideração Extemporânea 4. In. KSA 1: 271

8 Mais precisamente trata-se do texto NIETZSCHE, F. O Drama Musical Grego 1.

9 A partir de um famoso artigo de Philip Tagg, pode-se notar que essa relação “contaminou” boa parte dos estudos, na América, do conceito de “popular music”. “There is no room here to define ‘popular music’ but to clarify the argument I shall establish an axiomatic triangle consisting of ‘folk’, ‘ar’ and ‘popular’ musics. Each of these three is distinguishable from the other two according to the criteria presented in Figure 1. The argument is that popular music cannot be analysed using only the traditional tools of musicology because popular music, unlike art music, is (1) conceived for mass distribution to large and often socioculturally heterogeneous groups of listeners, (2) stored and distributed in non-written form, (3) only possible in an industrial monetary economy where it becomes a commodity and (4) in capitalist society, subject to the laws of ‘free’ enterprise, according to which it should ideally sell as much as possible of as little as possible to as many as possible”. In TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982: 41

Referências

BRUINIER, J. W. Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang. Leipzig und Berlin: Verlag und Druck von B. G. Teubner, 1921.

EBERSFELD, „Durchbruch zum Plural. Der Begriff der ,Kulturen’ bei Nietzsche, in: Nietzsche-Studien, 38, 2008.

GAIER, Ulrich. „Herder als Begründer des modernen Kulturbegriffs“, in: GermanischRomanische Monatsschrift. Bd. 57, Heft 1, 2007.

NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999.

NIETZSCHE, F. Historisch-Kritike Gesamtausgabe Werke. Hg. H. J. Mette et alli. München: DTV, 1933.

SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.

TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982.

André Luis Muniz Garcia – Professor Adjunto Departamento de Filosofia – UnB.

Mayra Closs Peterlevitz – Mestre em Filosofia -UNIFESP.

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Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno – RYAN (RFA)

RYAN, Bartholomew. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.905-915, jul./dez, 2014.

Trilhada quase que exclusivamente sob uma linha mestra que desemboca em uma única vereda, a pesquisa sobre Sören Kierkegaard é demasiadamente pautada ora pelas migalhas que o autor dinamarquês legou, ora pelo interesse que ricocheteia sobre Kierkegaard. Explica-se: certa linha de pesquisa é ainda muito adstrita aos termos kierkegaardianos, realizando uma espécie de exegese textual que, embora essencial, por vezes apresenta limitação pelos próprios horizontes delineados; outra linha de pesquisa tangencia a obra de Kierkegaard quase como que por acidente, vindo a buscar nos textos do pensador de Copenhague uma solução específica e, não raramente, distorcida do autor. Assim, por um lado ocorre a consideração de categorias filosóficas engendradas por Kierkegaard — como instante, salto, angústia, desespero, liberdade, etc. —, por outro lado há uma aproximação capciosa, em que tanto a teologia — em um embate por certa sustentação da fé cristã por via de uma reforma — quanto a filosofia — pela influência exercida sobre Heidegger, Jaspers e outros — acabam gerando uma pesquisa circular e incapaz de corresponder ao devir da obra kierkegaardiana.

O grande mérito de Bartholomew Ryan com seu livro Kierkegaard’s Indirect Politics – Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno é deslocar, desde o início, a pesquisa realizada em torno da obra de Kierkegaard. Para além dos termos já marcadamente conhecidos acerca da produção kierkegaardiana, tais como existência, subjetividade ou religiosidade, Ryan arrisca-se na abordagem de uma temática pouco atribuída a Kierkegaard, ou seja, a questão política. E, conjuntamente, como o próprio título indica, faz essa abordagem temática exercendo uma conversação diferenciada, não com os já habituais filósofos do século XX que costumam acompanhar Kierkegaard (ou seja, o dito existencialismo francês e alemão), mas realizando um diálogo com o conturbado cenário político-cultural do início do século XX na Alemanha. Carl Schmitt, Theodor Adorno e Walter Benjamin são notoriamente figuras de relevância na construção do pensamento político alemão do período entreguerras. György Lukács, húngaro de nascimento, mas culturalmente germânico, é devidamente agrupado por Ryan à intelligentsia alemã. A força política dos autores do início do século XX é notória; o que não restaria evidente é o aspecto político presente na obra de Kierkegaard.

Ryan inicia seu livro assentando seus pressupostos teóricos. Prudentemente, põe-se a questão: “Faz sentido escrever um livro sobre ‘Sören Kierkegaard’ e ‘política’?”1 , tendo em vista a relutância kierkegaardiana de abordar a política manifesta em uma carta, onde o filósofo dinamarquês afirmaria: “Não, política não é para mim”. A aposta de Ryan visa a abordar a política em Kierkegaard não pela via direta, já que esta enfrentaria a resistência confessa do próprio autor, mas pela via indireta, servindo-se de aspectos biográficos, bibliográficos e filosóficos de Kierkegaard. A categoria filosófica, que também opera como método autoral, denominada pelo filósofo dinamarquês de comunicação indireta, é um dentre os pressupostos que Ryan utiliza para engendrar sua política indireta. Tal como no sentido da comunicação indireta, em que um conteúdo, não podendo ser comunicado diretamente, só pode ser feito indiretamente com o uso de recursos autorais dos mais sofisticados, também a política indireta só será comunicada lateralmente quando buscada dentro da obra kierkegaardiana, de forma que o conteúdo primeiro e mais imediato nunca é eminentemente político, mas que as profundezas de um conteúdo, o arcabouço e, mais, as consequências, possam, essas sim, ser políticas. Ryan expõe seu método com clareza:

Em um sentido simples, não podemos falar de Kierkegaard e política juntos. Mas a política indireta de Kierkegaard existe em um nível geral de duas maneiras. Primeiro, porque Kierkegaard não escreve teses políticas e despreza a política tradicional, sua política só pode ser indireta. Se o todo da autoria de Kierkegaard existe para transformar os seres humanos, então a ideia é que se as pessoas tornam-se mais conscientes [self-aware] de si mesmas como indivíduos formados por suas próprias decisões, isto pode levá-los também a questionar mais radicalmente as estruturas da autoridade que frequentemente buscam mascarar a autonomia humana, ou seja, o Estado e certas formas de dogmatismo político (RYAN, 2014, p.2).

A tentativa, portanto, não é retirar um conteúdo eminentemente político dos textos de Kierkegaard, mas estabelecer, por sua vez, um diálogo que, pela própria conversação, faça emitir conteúdos políticos. Não por outra razão os autores escolhidos possuem uma evidência política. Contudo, mais do que isso, os quatro autores escolhidos por Ryan para dialogarem com Kierkegaard são, curiosamente, leitores e estudiosos do pensador dinamarquês. O leitmotiv está, portanto, em definir um meio caminho entre a produção e originalidade da obra de Kierkegaard por um lado, a autoria e participação política dos filósofos escolhidos para o diálogo por outro lado e, em meio a esse trajeto, firmar um ponto de encontro que vá além do mero fato de que Kierkegaard foi lido por Lúkacs, Schmitt, Benjamin e Adorno.

Em seu primeiro capítulo, os apetrechos de que se vale Ryan para esse esforço são três: os termos Mellemspil (interlúdio), Skillevei (encruzilhada ou, mais liricamente, vereda) e Dagdriver (andarilho ou flâneur). O interlúdio [Mellemspil] é o instrumento que permite criar o diálogo entre os autores. Como pontua Ryan, “a política indireta é a brecha ou interlúdio que abre espaço para o salto dialético, a exceção, o exílio e o andarilho, e a esquiva negativa a toda totalidade” (RYAN, 2014, p.1). A vereda [Skillevei] diz respeito à vida de Kierkegaard, mais precisamente ao ano de 1848, ponto de virada em que o pensador dinamarquês escreve e publica uma série de textos que dizem respeito ao ambiente de revolução político-social dinamarquesa, como também da revolução pessoal de Kierkegaard. Em 1848 são escritos Duas Épocas: Uma Resenha Literária, Ponto de Vista Explicativo de Minha Obra Enquanto Escritor, A Crise e uma crise na vida de uma atriz, parte dos Discursos Cristãos. Também nesse ano, Kierkegaard havia iniciado a escrita de Prática no cristianismo. Um ano de muita produção, em que grande parte dos textos busca responder ao ambiente social e político da Dinamarca daquele tempo. Por fim, Dagdriver, dificilmente traduzido como andarilho, tendo mais a característica de um flâneur, advém da característica de Kierkegaard de comportar-se como um observador e analisador cosmopolita e urbano, característica que se reflete nos textos e encontra similitudes com os autores escolhidos para os diálogos. Esses são os aparatos utilizados por Ryan, desde o início audaciosos e bastante inovadores quanto à pesquisa sobre Kierkegaard. Ainda que se tratem de categorias independentes e não correlacionadas em uma hierarquia, é certo que ao longo do livro o termo Skillevei tem maior ocorrência e relevância. Isso porque há maior proximidade entre a tese da política indireta e do produtivo ano de 1848 se considerado esse termo como central:

A imagem do Skillevei, traduzida como encruzilhada [vereda], é outro motivo limítrofe (literalmente) que é simbólico do ano de 1848. Como parte da política indireta, o Skillevei é o espaço, o entre, outro Mellemspil [interlúdio] entre momentos na história humana, entre viver e morrer, e na formação do indivíduo em si mesmo que é desafiado pela sociedade e, em contrapartida, confronta a sociedade. Isto está de acordo com o conceito de política indireta que é, antes de tudo, o espaço negativo entre disciplinas (RYAN, 2014, p.20).

Mais do que simplesmente embasar sua tese acerca da política indireta, Ryan realiza uma ponderação sobre textos que não raras vezes não estabelecem um diálogo dentro do corpo da obra kierkegaardiana. É por colocar lado a lado textos como os Discursos Cristãos e Duas Épocas que Ryan é capaz de apresentar um Kierkegaard que, de maneira plausível, poderia apresentar uma política indireta. A preparação do primeiro capítulo, no entanto, tem como pressuposto enunciado o fato de que os quatro autores que estabelecerão o diálogo com Kierkegaard são, dentre outros aspectos, pensadores políticos, de modo que se espera que se justifique com mais ênfase, por meio dos diálogos, a tese da comunicação indireta, sobretudo pela recepção que teriam exercido os filósofos políticos do início do século XX.

O método utilizado por Ryan para criar um cenário possível em que se realizem os diálogos é encontrar pontos de encontro que podem se transformar, conforme a análise, em uma aproximação ou em um distanciamento entre os autores. É assim que se procede, por exemplo, com o diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács no segundo capítulo. Pela via da influência kierkegaardiana na obra de Lukács, Ryan abre suas considerações:

Ao examinar os textos de Lukács, seja naqueles ainda fortemente sob a influência de Kierkegaard, como Alma e Forma e A Teoria da Novela, bem como na explosiva conversão ao marxismo em História e Consciência de Classe, ao período stalinista de A Destruição da Razão, que coloca Kierkegaard como um dos fundadores do irracionalismo e precursor do nacional-socialismo, Lúkacs transforma a interioridade de Kierkegaard em práxis revolucionária, mas no processo tenta aniquilar todos os traços de ambiguidade em uma homogeneidade, em um mundo totalmente unificado (RYAN, 2014, p.43).

Ao longo do segundo capítulo é possível acompanhar essa análise sobre a obra de Lukács e a possível influência de Kierkegaard presente no desenvolvimento do pensador húngaro. A proximidade entre Kierkegaard e Lúkacs no entorno da leitura e as impressões sobre o Fausto de Goethe, apresentadas logo no início do segundo capítulo, parecem ter antes o caráter de comprovar a relação entre os dois autores do que necessariamente lançar luz sobre a tese principal do livro: a política indireta. Isso porque, como Ryan afirma, a primeira fase da vida de Lukács, na qual ocorre a publicação de Alma e Forma, por exemplo, é ainda uma fase pré-marxista e mais voltada para a cultura e para a literatura do que propriamente para a política. A grande questão do diálogo realizado entre Kierkegaard e Lukács se dá pela apresentação da transformação que faz Lukács com a interioridade kierkegaardiana, alterando-a ou, mais precisamente, realocando-a para uma práxis revolucionária. Valendo-se de uma suposta linha de continuidade presente na produção do pensador marxista, Ryan afirma que uma vez que

no início de História e Consciência de Classe Lukács declara ‘postular-se, produzir-se e reproduzir-se — isto é realidade’”, esta seria a comprovação de que se teria utilizado “a interioridade como uma expressão da práxis revolucionária, componente que Lukács carrega para seu período marxista desde Alma e Forma e A Teoria da Novela (RYAN, 2014, p.57).

Entretanto, a influência de Kierkegaard sobre Lukács teria encontrado sua interrupção nesse pequeno adorno, ou seja, no fato de que, de alguma forma, o jovem Lukács, interessado por Kierkegaard — ao qual teria dedicado, inclusive, um belo ensaio em seu livro Alma e Forma —, teria se permitido levar para dentro do marxismo a concepção de interioridade kierkegaardiana. Porém, e isso Ryan parece tentar pontuar, Lukács leva Kierkegaard para dentro do marxismo, não para dentro do stalinismo, já que este condena o subjetivismo do filósofo dinamarquês e rejeita os pensamentos vindos de Copenhague, dando preferência aos prisioneiros da Sibéria. E aqui repousa todo contato Kierkegaard–Lukács.

No que diz respeito ao diálogo ocorrido entre Carl Schmitt e Kierkegaard, a análise depende em grande parte do que Schmitt expressa em uma carta para Ernst Jünger e que acertadamente Ryan escolhe como epígrafe de seu capítulo: “Tais influências indiretas, que iludem qualquer documentação, são as mais fortes e de longe as mais autênticas.” É preciso admitir, como faz Ryan, que “pouco foi escrito sobre Carl Schmitt e Kierkegaard apesar da reverência que Schmitt faz ao pensador dinamarquês”, sobretudo pelo uso do termo exceção, empregado por Kierkegaard em Temor e Tremor e Repetição, e utilizado por Schmitt em sua definição de soberania no livro Teologia Política. Grande parte da análise de Ryan quanto a esse diálogo se fundamenta pelo uso feito por Schmitt da exceção e pela leitura que faz o pensador alemão dos textos do pensador dinamarquês:

Ler a leitura que faz Schmitt sobre Kierkegaard é um exercício frutífero em trazer à tona várias questões não resolvidas nos últimos escritos, e também acrescenta outro surpreendente membro à lista de radicais pensadores europeus na Weimar dos anos de entreguerras que caiu sob o feitiço de Kierkegaard e apropriou seu pensamento de formas excitantes e polarizadas. Neste capítulo iremos mais a fundo na política indireta da forma que esta fez seu caminho para a vanguarda da política global no século XX. O que é frequentemente negligenciado quando se lê Schmitt é, como em Kierkegaard, a injeção do teatro em seu trabalho, e como os motivos, máscaras e figuras do palco informam e inspiram seu trabalho. Aqui temos o ponto de advertência de uma tentativa de preencher o espaço negativo e Mellemspil que é a política indireta (RYAN, 2014, p.90).

A proposta é encontrar, portanto, elementos que justifiquem a tese sobre a política indireta na influência de Kierkegaard sobre Schmitt. Correntemente referido, o ponto inicial é o conceito de exceção, o qual Schmitt realoca desde o emprego que faz Kierkegaard em seus textos — de maneira interior e existencialmente concreta — para um âmbito político. Ryan demonstra o vivo interesse que Schmitt manifestou na leitura de Kierkegaard e reúne diversas citações sobre como o jurista alemão era um vivaz entusiasta dos ensinamentos de Kierkegaard. No entanto, não é oferecida tese consubstancialmente relevante que permita crer que o conceito de exceção, tão arraigadamente existencial, individual e próprio do homem concreto, tenha saltado para a aplicação política feita por Schmitt senão por uma influência que, mais do que indireta, seria quase opaca, lateral.

Em contrapartida ao emprego do conceito de exceção por parte de Schmitt em sua possível influência kierkegaardiana, Ryan faz. uma excelente análise ao considerar a severa crítica realizada por Schmitt contra o romantismo político em paralelo com a crítica social- -existencial feita por Kierkegaard contra o romantismo germânico. O conceito em questão é a decisão e Ryan demonstra haver similitudes entre as duas críticas. Tanto Kierkegaard quanto Schmitt se voltariam contra o romantismo, uma vez que essa corrente produz uma característica de inação e indecisão. O esteta kierkegaardiano não decide concretamente da mesma maneira que o parlamentar burguês também não o faz. Contudo, a decisão kierkegaardiana é própria do indivíduo, enquanto a decisão demandada por Schmitt é própria da estrutura jurídica e política de um Estado. As consequências são bem pontuadas por Ryan: pelo lado de Kierkegaard a decisão produz a singularização do indivíduo; pelo lado de Schmitt, produz a dicotomia amigo-inimigo, bem como todos os efeitos que dessa dicotomia decorrem. Por fim, ao avançar em sua análise, apresentando o soberano como desespero, Ryan assume posições que já são marcadas por uma interpretação de Schmitt que é pautada pelas leituras de críticos do século XX, dentre eles Agamben, obtendo, com isso, os mesmos resultados relutantes acerca da produção teórica de Schmitt.

É sem dúvida pelo diálogo entre Walter Benjamin e Kierkegaard que o livro encontra seu ponto de maior efervescência. A começar pelas personalidades dos dois autores: ambos, Benjamin e Kierkegaard, exerceram uma espécie de fascinação por possuírem certas idiossincrasias que atraiam os leitores. Não são raros os escritos que dão mais importância às particularidades das vidas de Benjamin e Kierkegaard do que propriamente aos seus escritos. O que normalmente seria cotado como mera curiosidade sem fundo teórico relevante, no caso dos dois pensadores em questão parece ser o contrário, uma vez que suas idiossincrasias encontram reflexo em suas obras, como nota Ryan:

Igualmente ao corpo da obra de Kierkegaard, a variedade e riqueza dos escritos de Walter Benjamin levam o leitor a um vasto labirinto, pois como Kierkegaard oferece uma variedade de perspectivas e modos de vida por via de seus pseudônimos, Benjamin escreve com igual presença de espírito e paixão sobre tópicos como Marxismo, Kafka, A Bíblia, haxixe, cidades como Paris e Nápoles e o quase esquecido barroco alemão (RYAN, 2014, p.135).

Sugestivamente, o quarto capítulo intitula-se Loafers of History, o que põe em questão um conceito que parecer ser caro a Ryan, ou seja, o loafer, Dagdriver ou flâneur, figura representativa do século XIX e XX que bem representa Kierkegaard e Benjamin. Descrever minuciosamente os interiores e os exteriores de um centro urbano é mais do que simplesmente uma atividade poética, é parte de considerações filosóficas que vão se compondo conforme a própria descrição. Nesse ponto, pela potencialidade imagética e por se tratar de uma capacidade criativa e estética avantajada, Benjamin e Kierkegaard encontram-se, conforme a análise de Ryan, em uma esquina para, em uma caminhada, passar a tecer considerações que inevitavelmente levam à política: Kierkegaard, na crítica ácida à Dinamarca de seu tempo, e Benjamin, nas considerações sobre a Paris de Baudelaire, sobre Nápoles ou Berlim. O grande impacto do diálogo estabelecido entre Benjamin e Kierkegaard repousa sobre o fato de que, ao contrário dos outros diálogos, Benjamin parece ter algo a oferecer à leitura da obra kierkegaardiana:

Quem era Kierkegaard? Aos olhos do público ele era um preguiçoso [loafer] de esquina, o Dagdriver, um ocioso sagaz. Kierkegaard via a percepção das pessoas sobre ele como um flâneur como algo negativo, mas o que Kierkegaard se torna por meio de seus escritos é exatamente isso, no sentido de Benjamin; como observador, transeunte e crítico da cidade e da sociedade dentro da qual se vive e respira (RYAN, 2014, p.147).

Lateralmente, a questão da política indireta fica adstrita a uma espécie de embate entre Benjamin e Schmitt, no qual Kierkegaard parece ter pouco a oferecer, salvo algumas considerações pontuais. A aproximação da questão messiânica surge no livro como uma abertura temática que encontra poucas linhas de intersecção entre Kierkegaard e Benjamin, restando a imagem de que se trata de autores de suma potência no pensamento, mas que ainda não trilharam caminhos suficientemente paralelos.

O último diálogo, por sua vez, diz o limite daquilo que as análises de Theodor Adorno podem dizer. Se por um lado Benjamin e Schmitt não dedicam nenhum escrito específico a Kierkegaard e Lukács o faz em meio a tantos outros ensaios e estudos, por outro lado Adorno apresentou de fato um trabalho mais extenso sobre o filósofo dinamarquês. É acertado quando Ryan afirma que “dentre todos os pensadores em conversa com Kierkegaard neste livro, Adorno cita o trabalho de Kierkegaard mais extensivamente” (RYAN, 2014, p.177). Contudo, é também acertado considerar que tal trabalho, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen, é fruto de uma série de desentendimentos de Adorno não tanto com Kierkegaard, mas com tudo aquilo que não serve ao hegelianismo do teórico de Frankfurt. Ryan delineia essa questão ao fazer uma análise sobre a utilização que faz Adorno de um trecho de um conto de Edgar Alan Poe. A desolação de Poe é usada como imagem para o que Adorno considera sobre Kierkegaard:

O que resta após se ler esta notável prosa é uma imagem de niilista interioridade, suspensa entre haver e não haver chão, aliada a nada, uma abundância de copes atrás das quais repousa um buraco negro de futilidade. Esta é a filosofia de Kierkegaard de acordo com Adorno (RYAN, 2014, p.179).

Sentencialmente está sanada toda a relação entre Adorno e Kierkegaard. Havia Hegel entre eles e Adorno já havia prestado seu juramento de ortodoxia. Ainda que se queira afirmar que há qualquer resquício de influência de Kierkegaard na dialética negativa de Adorno, isso é mais benevolência do autor do que necessariamente uma posição embasada. O diálogo entre eles é, em verdade, negativo: não acontece.

Considerando, por fim, a tese da política indireta de Kierkegaard e os efeitos que podem advir do diálogo, é Ryan quem afirma que “um aspecto central da política indireta, como explorada neste livro, é a influência de Kierkegaard sobre a formação do pensamento político de Lukács, Schmitt, Benjamin e Adorno”, mas, para além disso, “como esses quatro interlocutores por sua vez leem e criticam uns aos outros à sombra de Kierkegaard” (RYAN, 2014, p.233). Ao ter frisado a importância das veredas, Ryan adentra em um grande sertão que muitas vezes o põe como um loafer diante das obras e autores abordados. A política indireta emerge de forma colateral, não à maneira que uma tese se evidenciaria. E uma vez que a política indireta é a própria tese, resta certa aporia em meio a alguns dos diálogos propostos.

Em comparação à pesquisa realizada acerca da obra de Kierkegaard, Ryan propõe um ponto de vista singular e perspicaz, seguindo os caminhos que inicialmente foram trilhados por George Pattison. Contudo, como esses caminhos levam a veredas, é preciso ser uma espécie de viandante para seguir a senda ainda muito vasta que se apresenta para aqueles que visam concluir a tese intuída por Ryan acerca da política indireta de Kierkegaard.

Nota

1 As citações feitas com base no texto original do livro de Bartholomew Rya são traduções livres feitas exclusivamente para a presente resenha. Quaisquer lapsos estilísticos são antes deslizes do tradutor que falhas do autor.

Referência

RYAN, B. Kierkegaard’s Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno. New York; Amsterdam: Editions Rodopi B. V., 2014.

Lucas Piccinin Lazzaretti – Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno – SILVA (AF)

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.9, out., 2010.

A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, livro recém-lançado de Márcio Seligmann-Silva, chama imediatamente a atenção pela densidade do texto. O autor da obra apresentada como uma “publicação introdutória” (p.83), e com o desejo de servir “de incentivo para os leitores irem aos originais” (p.12), consegue condensar em poucas páginas, e em linguagem acessível a não especialistas, aspectos importantes do legado intelectual deixado pelos dois amigos, luminares da forma de pensamento conhecida como Teoria Crítica, a partir do conceito de atualidade. Através da apresentação de reflexões dos próprios filósofos em torno do necessário movimento de atualização, Benjamin e Adorno revelam-se, no correr do texto, como pensadores de problemas ainda atuais e como autores de reflexões que ainda podem auxiliar na percepção das realidades atuais.

Depois de uma breve introdução, os protagonistas são apresentados separadamente e em ordem cronológica: a primeira parte é dedicada a Benjamin, a segunda a Adorno. O modo de o autor enfocá-los também é distinto, mais amplo em Benjamin, mais pontual para Adorno. Na primeira parte, denominada simplesmente “Walter Benjamin”, mesmo confessadamente consciente do perigo existente na tentação de explicar as obras a partir da biografia do autor e com isso “cair no biografismo” (p.15), Seligmann-Silva assume o risco de, no seu texto, levar em frente, entrelaçados, o pensamento filosófico e a “memória de sua (dele, Benjamin, ik) trágica vida” (p.16). Ao adotar esse procedimento essencialmente benjaminiano, i.e, o de considerar a obra pari passu com a materialidade do contexto histórico de sua produção, o livro já diz a que veio, na medida em que pinça e dá a conhecer, condensados, detalhes da vida do protagonista potencialmente capazes de lançar novos focos de luz sobre seu pensamento. E se aceitarmos a ideia benjaminiana segundo a qual a repetição é a alma do jogar – ou da brincadeira, em alemão spielen nomeia os dois – e, mais ainda, de que “toda experiência mais profunda quer ser insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e volta, restauração de uma protossituação da qual ela partiu” (BENJAMIN, Gesammelte Schriften III, p.131, citado na p.19), o autor realiza essa experiência anímica como convite ao jogo de levá-la adiante por meio da repetição. Como uma mônada, com mais ou menos ênfase, o texto reflete toda a vida do pensador alemão, do nascimento ao suicídio, e a incidência desta sobre a obra, e vice-versa. A escolha da amplitude leva à apresentação por meio de índices da enorme exuberância dos conceitos benjaminianos e movimenta uma massa de pensamentos sucintamente 214 Imaculada Kangussu apresentados. Corre com isso o perigo de que a intensidade das dobras e manobras presentes na formulação destes passe desapercebida aos neófitos diante da síntese tão bem construída a partir da relação vida e obra. Risco que, da minha perspectiva, vale a pena ser corrido na medida em que é compensado pelo volume de informação fornecido. Por outro lado, em quem encontra-se mais familiarizado/a com o filósofo, o livro provoca um turbilhão mental ao promover, com sua leitura, a rememoração dos percursos realizados até que sejam encontradas as formulações apresentadas. Com isso, o texto ganha uma força extra ao mover leitores e leitoras rumo à rememoração do que não está dito, e, vale lembrar, todo rememorar configura uma forma de atualização. Seja como apresentação, seja provocando rememorações, o livro atualiza a dimensão metafísica da linguagem salientada pelo assim chamado “jovem Benjamin”; a caracterização da crítica como médium da e de reflexão (Reflexionsmedium), de acordo com a tese fundamental de O conceito de crítica da arte no romantismo alemão (Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik); as articulações de uma teoria política, as ideias messiânicas, a percepção corpórea dos fenômenos e sobretudo o desdobramento da filosofia da linguagem, presentes nos textos dos anos 1920; a capacidade de pensar imageticamente revelada em Rua de mão única (Ein- bahnstrasse) e nos Diários de Moscou ; o entrelaçamento entre vida e obra sob a égide da filosofia, na Crônica Berlinense (Berliner Chronik) e em sua versão posterior, Infância berlinense por volta de 1900 (Berliner Kindheit um neunzehnhundert). Deslocando um pouco o termo, também é salientada a atualidade de certas passagens relativas às obras de arte, como acontece por exemplo na defesa da pertinência de uma teoria estética composta a partir “do índice, dos traços, rastros e marcas, em oposição à arte da narrativa totalizante, épica, metafórica e tradicional” (p. 41), percebida por Seligmann-Silva na descrição feita por Benjamin, em “O autor como produtor”, dos objetos dadá, capazes de produzir a percepção de que, devidamente emoldurado, “o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura”. Dialeticamente, revela-se também bastante atual a denúncia da transformação da “própria miséria em objeto de fruição”, encontrada no mesmo texto.

Em nossa época, povoada por excessos de dados e ausências de nexos, soa extremamente up to date o termo fantasmagoria, usado para nomear certas indistinções (frutos da impossibilidade de distinção) entre o real e o universo da fantasia. Seligmann-Silva observa que foi nos brinquedos e nas brincadeiras que Benjamin aprendeu pela primeira vez seu significado: “os brinquedos e as brincadeiras implicavam para ele (Benjamin, ik) uma libertação” (p. 78). Antes de passar para a segunda parte do livro, onde o autor discorre sobre Theodor W. Adorno, julgo – tendo em vista a analogia temática – valer a menção a um brevíssimo texto de Norbert Bolz, “Estéticas da Media”, composto em torno da questão relativa ao “custo de se manter Benjamin atual”. Bolz atualiza o pensamento deste ao salientar a verdade ainda presente na necessidade, reclamada por Benjamin, de se reformular, na teoria estética contemporânea, a distinção entre individual e coletivo, a partir do momento em que, na prática, organizar a percepção coletiva constitui a principal tarefa do cinema. O preço atribuído por Bolz à atualização de Benjamin consiste, portanto, no necessário abandono das categorias estéticas focadas nas relações entre a obra e o indivíduo, cujo conceito precisa acompanhar o deslizamento factual deste, rumo à sua dissolução nas amorfas massas urbanas. Parece não ter sido ainda levado às últimas consequências o fragmento (K 3, 3) das Passagens, onde se apresenta o filme como “desdobramento (resultado?) de todas as formas e percepção, tempo e ritmo que se encontram pré-formados nas máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte atual só podem encontrar suas formulações definitivas na correlação com o cinema” (Der Film: Auswicklung (Auswirkung?) aller Anschauungsformen, Tempi und Rhyth- men, die in den heutigen Maschinen präformiert liegen, dergestalt dass alle Pro- bleme der heutigen Kunst ihre endgültige Formulierung nur im Zusammenhange des Films finden). Quando se vai, para além do conceito de obra de arte, em direção à dimensão estética em seu sentido original mais abrangente, pode-se perceber que a necessidade de atualização do pensamento filosófico relativo às transformações provocadas nos modos de percepção sensível pelo incessante processo de maquinização – incluindo nesse processo o próprio cinema – permanece viva. E lembro aqui o duplo significado de “atual” (duplicidade existente também no termo alemão Aktuell) que pode dizer respeito tanto a algo significativo no momento presente, quanto àquilo que é a realização de uma potência, do que se encontrava anteriormente em estado virtual.

Conforme já foi registrado, a segunda parte do livro, relativa à atualidade de Adorno, tem um foco mais fechado e a chave de leitura da filosofia adorniana é encontrada na teoria estética. Seligmann-Silva inicia seus comentários sublinhando o caráter assistemático do filósofo e o engano de se considerar sua recusa ao sistema como abandono dos conceitos. Na realidade, Adorno elege a forma ensaística como modo privilegiado para expressar campos de força onde as “partículas (efêmeras) do real” são organizadas a partir de conceitos dinâmicos, tendo em vista que, “em lugar da falsa definição, do artigo de dicionário, o pensamento que se deixa embalar pelo ritmo do ensaio permanece aberto, tenso” (p.85). Parece-me bem aguda, a esse respeito, a observação formulada por Alfred Whitehead, em Process and Reality, segundo a qual o conceito de “mundo real” é similar a “ontem” e “amanhã”: ele muda de sentido de acordo com o ponto de vista. Esse preâmbulo torna-se essencial por- que, conforme a citação de A Dialética do Esclarecimento, recolhida por Seligmann-Silva, “a história real (die reale Geschichte) se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito” (p.86). Em outras palavras, para Adorno, “crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa” (ibidem). Na segunda parte do livro, também se apresentam as relações entre vida e obra, através do entrelaçamento das duas esferas e ao mesmo tempo mantendo a distinção entre ambas, procedimento consoante ao proposto por Adorno para abordar a relação entre sujeito e objeto. Grande destaque é dado ao ponto de vista adorniano da “arte como expressão do sofrimento e memória da barbárie”, nome de uma das seções da obra. A arte aparece como potência capaz de fazer vir à tona o reprimido, o recalcado, e, a partir de certo momento, ao colocar em cena vidas danificadas pelos horrores da história, de constituir uma forma de “memória do sofrimento acumulado”. Segundo o filósofo citado, “os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras ressoa o terror mais radi- cal” (“ Die authentischen Künstler der Gegenwart sind die, in deren Werken das Grauen nachzittert ”, p.97). Tal perspectiva implica ir além dos limites do trágico e do sublime assinalados por Schiller, dentro dos quais a dor e o sofrimento extremos não tinham lugar. Vemos no texto de Seligmann- Silva (p.104), como Adorno ultrapassa essa limitação e, no ensaio – de 1967 – “A arte é alegre?” (“ Ist die Kunst heiter? ”), critica a famosa frase de Schiller, escrita no fi nal da introdução de Wallenstein, “A vida é séria, a arte é alegre” (“ Ernst ist das Leben, heiter ist das Kunst ”), com o irônico comentário, segundo o qual “o burguês deseja que a arte seja voluptuosa e a vida ascética, o contrário seria melhor” (“ Der Bürger wünscht die Kunst üppig und das Leben asketisch; umgekehrt wäre es besser ”).

Na teoria estética adorniana pós-Auschwitz, a verdadeira arte é a expressão do indizível, aquela que tira da pressão o que em outra linguagem não encontraria som nem figura. Conforme recortado por Seligmann-Silva: “Não há quase outro lugar [senão na arte] em que o sofrimento encontre a sua própria voz” (“ kaum woanders [als in der Kunst] findet das Leiden noch seine eigene Stimme ”, p.107). O problema reside no fato de, por um lado, a obra testemunhar o irreconciliável, e, por outro, de tender à reconciliação, devido à linguagem própria da forma, que provoca prazer. Dor e sonho se acasalam tendo como pano de fundo uma espécie de anseio quimérico. Mesmo o radicalismo formal de Schonberg na canção “Sobrevivente de Varsóvia” (Überlebende von Warschau) também pode consolar. Se o movimento pode ser considerado traição do conteúdo através da forma, a aporia nesse caso não é o fim do caminho, ao contrário, pode ajudar a ir adiante porque expressa também o que ainda não encontrou reconciliação: a barbárie testemunhada e a outra esfera criada pelas obras, a qual, mesmo quando se trata de obras formalmente radicais, aponta para a reconciliação, em uma ambiguidade bastante condizente com a já famosa metáfora utilizada por Adorno da mensagem na garrafa. Depois de assinalar tais questões, entre outras, sumamente atuais, o livro sobre A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno termina lembrando que “o importante é percebermos o pólen ativo do pensa- mento de ambos. Eles possuem potencial para fertilizar muito em nosso presente” (p.126). Palavras que faço minhas.

Imaculada Kangussu – UFOP.

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Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão – DUARTE (E-CHH)

DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão. Chapecó: Editora Argos, 2008. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  v.11, n.19, p.346-348, jan./jun. 2008.

Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão, novo livro de Rodrigo Duarte, amigo do saber e figura destacada no cenário internacional da Estética e da Filosofia da Arte, lançado na coleção Debates da Editora Argos, traz como subtítulo “Para uma filosofia da expressão”. Expressão pode ser percebida como “tirar da pressão”, manifestar algo recalcado cujo manifestar- se produz, ao mesmo tempo, um alívio em quem exprime e um apelo sensível ao acolhimento – ainda que este não lhe seja assegurado. Trata-se de fazer aflorar algo até então oculto, dando-lhe uma forma objetiva que pode ser compartilhada. Por não lhe estar garantida a desejada recepção, toda expressão é uma espécie de mensagem na garrafa.

Nos seis artigos que compõem a obra, mostra-se como o conceito fundamental nas obras de arte e na dimensão estética em sua maior amplitude é também um fundamento da filosofi a, tendo como base o pensamento do filósofo crítico Theodor Adorno.

Apresenta-se como a divisão estrita do trabalho intelectual em esferas ultra-especializadas – a partir do sem dúvida fabuloso desenvolvimento das ciências tecnológicas – gerou uma restrição progressiva do pensamento humano que perde com isso a noção de um sentido maior capaz de nortear o desenvolvimento das pesquisas particulares. “No caminho para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido”, afirmam Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento. É a expressão deste sentido abandonado que parece guiar o autor no livro de linguagem acessível não só aos dedicados às questões fi losófi – cas, mas também a quem quer que esteja familiarizado com os problemas intelectuais postos pelo processo histórico no mundo contemporâneo, dito “globalizado”.

Nesse sentido, é ressaltada a potência da arte como uma forma de cognição, na medida em que o conhecimento envolvido na experiência estética é radicalmente diferente do científico: é capaz de dar a conhecer não apenas o que já conhecido, mas de abrir-se ao novo, ao inaudito. Duarte distingue, portanto, “expressão” de “comunicação”. Enquanto esta última diz respeito ao trânsito de informações, “a uma impalpabilidade das torrentes de dados contínua e simultaneamente transmitidos”, a expressão envolve alto grau tanto de responsabilidade intelectual quanto de refinamento formal. Cito o autor: “o que a qualifica para uma indispensável – ainda que, para alguns, quixotesca – militância teórica pela humanidade”. Trata-se de revelar o invisível, trabalho teórico ligado à produção de novas formas de discurso. A necessidade – para o processo cognitivo – de trazer à tona o que está oculto fica bastante evidente quando lembramos que, apesar de contemplarmos, diariamente, o movimento do sol em torno da terra, sabemos que é a terra que se move em torno dele. E sabemos também quantos mártires foram necessários para que disso soubéssemos. A distinção entre pseudo evidência imediatamente comunicável e trabalho expressivo coloca este último, muitas vezes, sob suspeita, sobretudo na esfera das artes, conforme Adorno nas Mínima moralia: “quanto mais precisa, conscienciosa e adequadamente se expressa [o escritor], o resultado literário será avaliado como mais dificilmente compreensível; enquanto que, tão logo se expressa de modo relaxado e irresponsável, se é recompensado com uma certa compreensão”. A dificuldade advém do entrelaçamento entre forma e conteúdo. Se a forma é conteúdo sedimentado, há uma não-exterioridade entre o que se diz e como se diz. Pensamentos de ponta não encontram elocuções banais. “O que é frouxamente dito é mal pensado”, ainda Adorno, “isso pode ajudar a explicar por que à fi losofi a sua expressão não é indiferente nem exterior, mas imanente à idéia. Seu integral momento de expressão, não-conceitual e mimético, só é objetivado através de apresentação – linguagem […] Onde a filosofia desiste do momento expressivo e do dever da apresentação, ela se iguala à ciência.” A riqueza da ideia exposta reside na possibilidade de se expressar a dimensão pré-conceitual, pré-lógica, que é o fundo de todo pensamento. O momento expressivo caracteriza, assim, também a partir da perspectiva de Duarte, uma differentia specifica entre a filosofia e a ciência. O autor contrapõe-se à ideia de que as questões éticas e metafísicas estão fora das possibilidades do discurso articulado, ao qual se alinhariam as ciências naturais. E enfrenta a célebre proposição 7 do Tractatus lógico-philosophicus, de Wittgenstein, “daquilo que não se pode falar, deve-se calar”, encarando-a como autocensura extremamente positivista imposta pela lógica a toda linguagem que não seja logicamente exata e salientando a impossibilidade (e o autoritarismo, acrescento) de dizer como deve ser o próprio dizer. Duarte adverte que “uma das mais evidentes manifestações da liberdade está associada à possibilidade de expressar aquilo que se pensa, na medida em que configura a liberdade naquele sentido de confluência entre o objetivo e o subjetivo”. Contra Wittgenstein, Adorno considera tarefa filosófica primordial justamente “dizer o que não se deixa dizer”.

Dizer o que não se deixa dizer, o livro, traz ainda figurações do conceito de “expressão” conforme filósofos voltados para a estética, a comparação deste com o movimento nomeado por Freud como “sublimação”, seu papel na linguagem a partir de Walter Benjamin, e o caráter expressivo da música, segundo Adorno. Parodiando este último, pode-se dizer que, na obra de Duarte, a expressão busca conquistar a força sem a qual a vida se dilui sem ser ouvida. E a filosofia aparece como expressão do inexprimível, abismo infinito, desafio incontornável à mente humana. E trabalho sem fi m já que, como bem assinalou a poeta Ana Caetano, há sempre um bis no abismo.

Imaculada Kangussu – E-mail: [email protected]

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