A alma e o corpo por escrito: literatura religiosa e médica, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017

Entre o século XVI e o início do XIX, a produção e difusão de livros e impressos ganhou significativa circulação entre a Península Ibérica e a América portuguesa. Textos de variadas ordens e objetivos, com diferentes origens editoriais, com múltiplos discursos – institucionais, científicos, biográficos, entre outros – foram produzidos com específicos objetivos. Entre eles, se encontravam tratados médicos, livros religiosos, catecismos, relatos de viagem, gazetas, dicionários, só para citarmos alguns exemplos entre aqueles utilizados como fontes pelos autores dos artigos que compõem este dossiê.

Muitas destas publicações tratavam de divulgar as percepções, tanto dos autores, quanto dos editores, sobre o corpo e a alma, mediante explicações para os elementos físicos e metafísicos, das características materiais e espirituais dos seres, das instruções para a saúde corporal e moral, numa relação marcada pela conjugação entre o racional e o transcendente em um espaço – o iberoamericano – onde predominavam fortemente influências religiosas católicas sobre experiências sociais, espirituais e políticas.

Na Europa ocidental, desde o início do século XVI, se pode verificar um eficiente mecanismo de difusão da literatura religiosa, tributário do espírito da Reforma Católica e das descobertas da anatomia divulgadas em publicações médicas. Não raro, estas produções dialogavam entre si, considerando que a disciplina da alma através do corpo era também um discurso recorrente e contemplado em ambas literaturas. Pelo menos até o decorrer do século XVIII, a literatura religiosa e a médica se apresentavam como modelos exemplares de leitura para diversos grupos sociais, uma vez que instruíam, ensinavam e formavam, a partir da idealização, sujeitos cristãos morais, virtuosos e saudáveis. Assim, textos religiosos e médicos, que remetiam às expectativas sociais dos leitores, foram produzidos com intuitos variados, dentre os quais se destacavam a salvação da alma após a morte e a vida saudável moralmente conduzida. Mas as recepções dos discursos textuais foram dinâmicas, na medida em que dependiam de particularidades culturais e sociais dos leitores e da materialidade e suporte dos escritos.

Assim, com diferentes objetos e problematizações, centrados entre os séculos XVI e XIX, os autores dos artigos deste dossiê acionam fontes textuais que se debruçaram sobre a alma e o corpo, buscando compreender, entre outros aspectos, o contexto de produção destes documentos, situando assim, as ideias, os discursos e os sentidos (re)construídos por autores, editores e leitores na sua historicidade própria e específica.

O texto da historiadora portuguesa Maria Marta Lobo de Araújo abre o dossiê, analisando os legados dos benfeitores das Misericórdias do Minho, Portugal, dos séculos XVII e XVIII, como elementos fundamentais para as práticas caritativas, com destaque para as esmolas dadas aos pobres, a assistência aos enfermos e as doações feitas com o propósito de assegurar a salvação de suas próprias almas.

Na sequência, o artigo de Leonara Lacerda Delfino, analisa concepções de enfermidade e cura através da causa mortis de escravos e libertos indicados em registros paroquiais de óbitos da Vila de São João del-Rei entre o final do século XVIII e início do XIX, destacando a apropriação do poder miraculoso de Nossa Senhora dos Remédios e de São Benedito, como entidades curadoras presentes nas acepções de solidariedade dos irmãos do Rosário. De acordo com a autora, a análise da documentação revela a concomitância de saberes médicos com as práticas mágicas do cativeiro.

Já o texto de Carlos Paz analisa discursos jesuítas sobre o consumo de bebidas por indígenas no Chaco, ao longo do século XVIII. Segundo o autor, os jesuítas compreendiam e relatavam as beberagens como um problema de saúde que corrompia o corpo da civitas cristiana, e, ainda, como um “espelho da alma” indígena, vinculada à barbárie e à indolência.

O artigo de Ane Mecenas analisa discursos religiosos sobre práticas de cura dos indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa entre o final do século XVII e o início do XVIII. A partir de dois catecismos, escritos por um jesuíta e por um capuchinho, a historiadora destaca como, no trabalho de conversão, os religiosos descreveram as doenças que acometiam os indígenas e as práticas de cura empregadas.

O próximo texto é de Alexandre Varella e analisa o discurso médico de Juan de Cárdenas, presentes no livro Problemas y secretos maravillosos de las Indias, enfocando, especialmente, as orientações relativas à dieta alimentar dos espanhóis que viviam na América no final do século XVI. Para o autor, o médico Cárdenas procurava, a partir das regras alimentares não apenas evidenciar a presença de uma distinção social aristocrática na sociedade mexicana do final do século XVI, mas também a necessária busca por um sujeito ideal, que teria corpo de compleição sanguínea e colérica.

O texto de Jean Luiz Neves Abreu traz análises das prédicas para a saúde do corpo e a salvação da alma presentes em tratados de medicina e de teologia do século XVIII. O historiador busca, em especial, problematizar as relações entre a medicina e a religião no contexto luso-brasileiro, discutindo as aproximações e tensões entre os discursos médicos e religiosos relativos aos cuidados do corpo e aos sentidos das doenças produzidos no Setecentos.

No artigo de Juliana Gesuelli Meirelles, o foco está nas transformações das concepções de saúde e de medicina entre os séculos XVIII e XIX, a partir das mudanças políticas e culturais da sociedade luso-brasileira propiciadas pela reforma da Universidade de Coimbra. A autora destaca, ainda, a circulação de ideias a partir da criação da Impressão Régia do Rio de Janeiro, inserindo-a na política cultural e científica de D. João VI para a América portuguesa.

Encerrando o dossiê, o texto de Ricardo Cabral Freitas destaca a crítica à atividade confessional encontrada no livro Medicina Theologica, publicado em Lisboa, em 1794, apresentando-a como uma reivindicação de correntes filosóficas iluministas com vistas à reformulação das relações entre conhecimento médico e sociedade e à reparação de uma alegada decadência moral da população.

Por fim, cumpre dizer que ordenamos os textos em dois blocos. Se os quatro primeiros se encontram mais vinculados às análises de discursos produzidos sobre o corpo a partir de um viés religioso, os quatro últimos se detiveram mais em análises sobre os discursos médicos produzidos no século XVIII e no início do século XIX.

Neste dossiê, o leitor encontrará uma representativa mostra de investigações que vêm sendo realizadas por autores brasileiros e estrangeiros, que têm se dedicado a analisar, sob diferentes aspectos e enfoques teórico-metodológicos, a literatura religiosa e médica do século XVI ao XIX.

Uma boa leitura a todos!

São Leopoldo / Rio Grande, Inverno de 2017.

Eliane Fleck – Doutora em História (PUCRS), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Mauro Dillmann – Doutor em História (UNISINOS), Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

(Organizadores)


FLECK, Eliane; DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 17, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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