Direitos das Crianças e Adolescentes na América Latina – Homenagem a Profa. Esmeralda Moura / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 33 Direitos das Crianças e Adolescentes na América Latina
Meninos e meninas de rua ocupam o Congresso Nacional para aprovar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1989 | Foto: Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua |

Queridos e queridas leitoras, é com o coração contrito que apresentamos o dossiê temático intitulado Direitos das Crianças e Adolescentes na América Latina que trás junto a si o complemento Homenagem a Profa. Esmeralda Moura.

Homenagear alguém não deveria de ser esporádico ou surpreendente, ainda mais porque “flores” devem ser oferecidas em vida, o reconhecimento de ações especiais deve ser valorizado constantemente. Mas, há pessoas que marcam nossas existências de forma especial, Esmeralda Blanco B. de Moura foi uma delas. E o presente dossiê é dedicado ao seu legado.

A querida professora Esmeralda, com seu carinho, voz suave e doce, senso democrático e rigor científico, conseguiu cativar uma legião de pesquisadores a se interessarem por um seguimento da história que por muito tempo foi dado pouca ou nenhuma atenção: as crianças e adolescentes.

Profa. Esmeralda, juntamente com Maria Luiza Marcílio, Eni Samara e Mary Del Priore, todas docentes na Universidade de São Paulo (USP) e vinculadas ao Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina – CEDHAL/USP, tiveram a ambição de trazer luz para a história da família e da criança numa época em que poucos estudiosos tinham esses como objetos privilegiados de investigação.

Esta querida professora, que nos deixou no dia 03 de abril deste ano, era uma mulher combatente pela História e pelos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, foi professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da USP, Diretora do CEDHAL, uma das fundadoras do Grupo de Trabalho História da Criança e do Adolescente da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil), tendo sido sua primeira coordenadora, e da Red de Estudios de la Historia de las Infancias en America Latina (REHIAL), ocupando inicialmente a posição de coordenadora brasileira.

Mesmo aposentada, ainda continuou lecionando, orientando, pesquisando e publicando suas descobertas, sendo que uma de suas últimas publicações se deu justamente no dossiê por nós organizados no volume anterior da RBHCS1.

Tínhamos escrito uma apresentação diferente, fazendo alusão aos dados relacionados a violência contra as crianças no Brasil e na América Latina nesses tempos pandêmicos, reforçando a necessidade de manutenção e ampliação da rede de proteção e assistências aos mesmos, discorrido sobre a importância dos 15 artigos reunidos neste dossiê, mas, com consentimentos os Editores deste prestigioso periódico, repensamos aquela apresentação para fazer algo mais pessoal e prestar essa justa homenagem a profa. Esmeralda e afirmar que seu legado continuará presente em mais gerações de professores e pesquisadores da história das crianças e dos adolescentes.

Saudades.

Rio Grande/RS-Recife/PE, Outono de 2021

Humberto da Silva Miranda

José Carlos da Silva Cardozo

Organizadores do dossiê temático

Humberto da Silva Miranda – Doutor e Pós-Doutor em História (UDESC). Professor Adjunto na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Docente Permanente do PPGE/UFRPE.

José Carlos da Silva Cardozo – Doutor e Pós-Doutor em História Latino-Americana (UNISINOS). Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Docente Permanente do PPGH/FURG.


MIRANDA, Humberto da Silva; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação do dossiê Direitos das Crianças e Adolescentes na América Latina – Homenagem a Profa. Esmeralda Moura. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.13, n. 25, Edição Especial [maio], 2021 Acessar publicação original [IF].

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História e Direitos da Criança e do Adolescente na América Latina / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2020

O menino Miguel, a menina Ághata. O garoto João Pedro, as garotas Emilly e Rebeca… O que essas crianças têm em comum? Tiveram suas vidas ceifadas, tornando-se vítimas da violência, de um adultocentrismo [1] estrutural, que insiste em negar a condição da criança como sujeito de direitos. A História das infâncias e das juventudes na América Latina é marcada por práticas sociais e culturais que objetificam meninos e meninas, levando-as a conviver com diferentes formas de violação dos direitos humanos.

O presente dossiê temático intitulado História e Direitos da Criança e do Adolescente na América Latina na Revista Brasileira de História & Ciências Sociais visa contribuir com a historiografia das infâncias e juventudes no Brasil e na América Latina, buscando colocar em tela estudos que estão sendo produzidas em diferentes instituições de pesquisa no Brasil, com interfaces na América Latina. Registramos que este Dossiê contará com duas edições, haja vista o número expressivo de artigos recebidos.

Organizamos os artigos a partir de uma cronologia que nos permitiu perceber as mudanças das politicas públicas no Brasil e na Amarica Latina através dos tempos. Para entender os que chamamos de “direitos humanos” é necessário perguntar ao passado como foram produzidas as práticas de assistência no campo da política e da legislação.

Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes, no artigo intitulado O “velho” Lemos como transformador do Orphanato Municipal, problematiza a questão da educação das meninas a partir da atuação de Antônio Lemos, em Belém do Pará, na Primeira República. Ainda sobre este período, as contribuições de Fabiano Quadros Rückert, em A infância pobre no Brasil da Primeira República: um panorama das pesquisas, possibilitam analisar como a relação entre infância e pobreza passou a ser colocada em tela pela historiografia nacional.

Seguindo em direção aos anos de 1930 e 1940, os artigos A Institucionalização do Atendimento aos Menores – O SAM, de Fabíola Amaral Tomé de Souza e A “mocidade brasileira” em formação: concepções e investimentos sobre os corpos jovens, escrito por Sonia Deus Rodrigues Bercito, colocam na seara de debates as políticas nacionais voltadas para crianças e jovens, impulsionados pelo Governo Vargas.

Para contemplar a chamada “era dos direitos”, os artigos de A responsabilidade compartilhada no Direito da Criança e Adolescente como dimensão da solidariedade: intersecção entre público e privado, escrito por Ismael Francisco de Souza e Tijolo por tijolo num desenho lógico: crianças e adolescentes brasileiros, de objeto de medidas a sujeitos de direitos, de Elisangela da Silva Machieski, iniciam o debate as questões referentes sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, buscando produzir reflexões sobre a historicidade das legislações nacionais.

As contribuições de Alessandra Nicodemos, em Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua: aspectos históricos e conceituais na defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, e da pesquisadora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, em Infância, adolescência e direitos humanos no conflituoso século XX: o direito à informação no contexto da árdua construção da democracia brasileira, contribuem para o debate sobre os movimentos sociais e as tensões que marcam as mobilizações em torno dos direitos humanos.

Já o artigo de autoria de Silvia Maria Fávero Arend e Reinaldo Lindolfo Lohn, intitulado Sobre a oitiva de crianças e adolescentes na justiça: protagonismo em debate (1989-2017), contempla a complexa questão da cidadania infanto-juvenil e sua relação com o Sistema de Justiça. Ainda sobre a questão dos dispositivos legais, o texto Referências institucionais para a produção descolonial dos direitos das indígenas crianças: os casos do trabalho infantil e da violência sexual, de Assis da Costa Oliveira, coloca na seara de debate a questão das violências praticadas contra as indígenas infâncias.

Por fim, dois artigos trazem abordagens transdisciplinares sobre os conceitos de infância e direitos humanos. Referimo-nos aos artigos A noção de infância e adolescência: inflexões decoloniais sobre os direitos de crianças e adolescentes na América Latina, escrito por Norberto Kuhn Junior e Bárbara Birk de Melo, e De Menores Incapazes e Imputáveis a Sujeitos de Direitos: os Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes desde as Históricas normativas Internacionais, de autoria de Sheila Stolz. Eles nos fazem pensar como problematizar o conceito de infância e a relação com os direitos humanos. Além desses 12 artigos que compõem o dossiê temático, temos a resenha, de autoria de Thiago Nascimento Torres de Paula, sobre um livro clássico que neste ano ganhou sua segunda edição: História das crianças no Brasil meridional.

Debruçar-se sobre os esses estudos nos faz perceber que o século XX não foi “perdido” e que o XXI vem sendo marcado por grandes desafios no campo da política e da legislação, inclusive, para produção historiográfica. A reunião dessas pesquisas, que compõe um efetivo “dossiê” e que traz para a leitora e para o leitor a possibilidade de conhecer a produção de trabalhos, tem como objetivo protagonizar o lugar das infâncias e juventudes como sujeitos históricos e suas histórias.

Contudo, é importante perceber a produção história do conceito de direitos humanos, que por sua vez é marcado por mudanças e permanências. Pelo tempo de caridade e do assistencialismo, pelo tempo do “bem-estar” e das mobilizações em torno da chamada cidadania infanto-juvenil.

Diante das reflexões, é importante afirmar que ao produzir este trabalho assistimos os meninos Miguel (5 anos de idade) e João Pedro (14 anos de idade) perderem suas vidas. Testemunhamos as meninas Ághata (8 anos de idade), Emilly Victoria (4 anos de idade) e Rebeca Beatriz (7 anos de idade) perderem suas vidas.

É neste tempo nebuloso que somos provocados a (re)pensar o “fazer história” nos arquivos, nas bibliotecas e nos espaços de memórias… O “fazer história” é chamado a pensar o compromisso social do ofício das historiadoras e historiadores como uma questão ética e com a política científica, uma vez que negar-se ou silenciar-se diante do extermínio de meninos e meninas é uma forma de “violência epistemológica”, marcada neutralidade científica, firmada na racionalidade disciplinar, que busca se dissociar dos valores sociais e políticos (SANTOS, 2007).

Mas, silenciar ou negar-se a discutir é uma forma de se posicionar no mundo e nós decidimos que não vamos silenciar e negar que este Dossiê foi produzido no período pandêmico [2], onde a vida de meninos e meninas foram (e estão sendo) exterminadas. Neste “tempo sombrios, falar de mortes é se comprometer com a vida. Especialmente, com as vidas negras, pobres e periféricas. Netos ou bisnetos da escravidão, da relação entre a “casa grande e a senzala”, de um passado colonial que insiste em permanecer no tempo presente. É para essas meninas e meninos que este Dossiê é dedicado.

Rio Grande / RS-Recife / PE, Verão de 2020

Notas

1 Sobre adultocentrismo, ver: ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane C.. Descolonizando as pesquisas com crianças e três obstáculos. Educação e Sociedade. Campinas, v. 35, n. 127, p.461-474, abr-jun. 2014.

2 Em 2020 o mundo foi obrigado a viver a Pandemia do Novo Corona Vírus – Covid 19. No Brasil, a crise pandêmica foi marcada por tensões sociais e políticas, onde a sociedade assistiu o crescimento da violência praticada contra crianças e adolescentes negros. Sobre a Pandemia ver: SANTOS, 2020.

Referências

ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane C.. Descolonizando as pesquisas com crianças e três obstáculos. Educação e Sociedade. Campinas, v. 35, n. 127, p.461-474, abr-jun. 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. VOL.: 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2007. _______. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020.

Humberto da Silva Miranda – Doutor e Pós- Doutorando em História. Professor Adjunto na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

José Carlos da Silva Cardozo – Doutor e Pós-Doutor em História Latino-Americana. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Organizadores do dossiê temático


MIRANDA, Humberto da Silva; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.12, n. 24, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Movimentos Sociais e Meio Ambiente / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2020

É com imenso prazer que trazemos a público o dossiê Movimentos Sociais e Meio Ambiente. A ideia de organizar um dossiê que concentrasse trabalhos focados na interrelação entre seres humanos e natureza se origina na percepção de uma demanda social improtelável. As dinâmicas humanas de apropriação do que convencionamos chamar de recursos naturais têm transformado as próprias relações sociais.

Agradecemos a Revista Brasileira de História & Ciências Sociais pela oportunidade de apresentar ao seu público leitor um dossiê que congrega trabalhos acadêmicos de qualidade e comprometidos com as urgentes demandas da sociedade. Agradecemos, ainda, às autoras e autores que submeteram seus trabalhos, fruto de pesquisas que foram desenvolvidas nos mais diversos âmbitos da vida acadêmica oriundos de diferentes regiões deste país e do exterior.

O dossiê Movimentos sociais e Meio Ambiente foi gestado por dois historiadores que percebem o valor da interdisciplinaridade na pesquisa tanto dos movimentos sociais, quanto na temática ambiental. Os trabalhos aceitos para publicação, depois da avaliação cega por pares, são fruto de arranjos interdisciplinares que exprimem a atual encruzilhada científica que está posta pela crise ambiental, uma vez que a vida em todas as suas tonalidades não respeita as fronteiras criadas pela ciência.

Destacamos que, apesar da crise ambiental afetar a todos os seres humanos, há de se ponderar sobre a forma com que os mais diversos grupos são prejudicados. As populações mais pobres acabam ocupando áreas sujeitas aos mais variáveis riscos ambientais, e, dessa forma, os resultados da produção de riqueza não são divididos universalmente. Há, portanto, uma heterogeneidade dos problemas oriundos desta crise e que toca sujeitos e territórios de maneiras diversas. De forma equivalente, há uma pluralidade de lutas e formas de resistência no contexto latino americano contemporâneo.

A presente edição (2020 / 1) tem a função de trazer exemplos destas formas de organização e luta social em face ao maior desafio que a espécie humana já enfrentou. Os trabalhos dão conta de questões que vão dos movimentos indígenas no Brasil até a falta de esperança expressa pelas obras distópicas do final do século XX. As mais diversas lentes (gênero, patrimônio cultural, decolonialidade, emancipação política, associativismo, direito à existência) são usadas para avaliar condições de vulnerabilidade, estratégias de articulação social e enfrentamento da atual crise ambiental.

O primeiro trabalho é dos organizadores do Dossiê, Alfredo Ricardo Silva Lopes e Mario Marins Viana Junior. O Antropoceno como Regime Historicidade avalia que a velocidade com que os seres humanos têm se apropriado de outros seres e elementos naturais resulta numa nova forma de compreender o tempo. Diferente da ideia progressiva e crescente estabelecida com a Revolução Industrial e Revolução Francesa, o tempo é agora materializado pelos limitados recursos naturais restantes. E a degradação do planeta é o cronômetro que marca a possível extinção humana e provoca a história e a historiografia em desafios teórico-metodológicos.

Em Os Movimentos Indígena e Ambientalista sob o viés de análise da História Ambiental: a repercussão no Ensino de História, Poliene Soares dos Santos Bicalho, Maria de Fátima Oliveira e Fernanda Alves da Silva Oliveira discutem as interrelações entre os movimentos indígena e ambientalista no Brasil. A preocupação com a natureza é avaliada nos diferentes grupos a partir dos discursos nos livros didáticos, tendo como objetivo a temática da preservação do meio ambiente.

Ayelen Dichdji analisa a percepção pública dos primeiros conflitos ambientais na Patagonia Argentina a partir da década de 1980 em Movimientos socioambientales, decolonialidad e historia ambiental en los conflictos patagónicos en Argentina (1980-2003). A autora avalia o surgimento da opinião pública sobre a exploração dos recursos naturais, através das páginas dos periódicos Clarín e La Nacion.

A Região Amazônica teve e tem marcada em todo seu processo histórico uma pluralidade de anseios de diversas fontes. Nesse contexto, Fabiane Araujo Oliveira e Elizabeth Conceição Santos examinam as memórias do processo de ocupação da Área de Proteção Ambiental Floresta Manaós (localizada na zona Centro-sul da cidade de Manaus-AM). Em A História Ambiental da APA Floresta Manaós: um movimento pela defesa territorial e a emersão da Ciência Ambiental foi observada a complexidade nos embates entre os mais diversos atores interessados na preservação do ambiente.

Alicia Ferreira Gonçalves evidencia em Mapas Sociais: Subsídios para a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental potiguara a importância da produção de mapas sociais pelos indígenas Potiguara para gestão do próprio território. Nas observações da pesquisadora, a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) fortalece a autonomia na gestão dos territórios indígenas em consonância com a proteção do ambiente.

Em Movimento Social de Pescadores e Pescadoras Artesanais em Mato Grosso: Patrimônio Cultural e Lutas Políticas, Manuela Areias Costa e Luciano Pereira da Silva trazem reflexões sobre o movimento dos pescadores e pescadoras artesanais, o meio ambiente e o patrimônio cultural imaterial. Na avaliação dos autores as políticas públicas para pesca que restringem o uso de utensílios comunalmente apropriados pelas pescadoras e pescadores colocam em risco o direito ao trabalho e a reprodução cultural do grupo.

A mobilização social das mulheres no Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB) é estudada por Monise Vieira Busquets, em Bordando a Luta: O Coletivo de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens e as oficinas de Arpilleras como estratégia de mobilização social. A partir das reflexões das militantes e idealizadoras do projeto “Arpilleras, Bordando a Resistência” a autora destaca a resistência e organização como parte central da vida dessas das mulheres.

Eunápio Dutra do Carmo discute como o campo político da cidade de Barbacena-PA foi recomposto em função da mineração. Em Contra-informação e conhecimento emancipatório como práticas educativas no enfrentamento da economia de desastres da mineração em Barcarena (PA) o autor analisa atuação dos movimentos sociais na produção social da contra-informação no contexto da economia de desastre, no intuito de romper com a percepção tecnicista dos desastres.

Para avaliar o contexto do surgimento das associações ambientalistas, Olivia Cristina Perez destaca que as associações ambientais em Santos-SP surgem, em sua maioria, após os anos 2000. Em Relações entre Estado e associações: origens de associações ambientais em Santos (SP) fica evidente o papel do financiamento estatal para o financiamento das fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil.

Gustavo Seferian busca, a partir da tradição marxista no direito, evidenciar o duplo caráter do direito à vida. Em O duplo caráter do direito à existência: luta de classes e articulação estrutural das contrarreformas sociais, políticas e ambientais, o autor demonstra como as contrarreformas direcionadas aos direitos sociais guardam articulação estrutural com os ataques direcionados ao meio ambiente. Avalia ainda que a contraposição incisiva dos movimentos sociais na defesa de seus interesses imediatos se aglutina às bandeiras ecológicas.

A representação da distopia ambiental no cinema é examinada por Franco Santos Alves da Silva em “O Mundo de 2020”: Relações sociais e meio ambiente na distopia de 1973. Na observação do filme “O Mundo de 2020”, (Soylent Green, no título original), o autor discorre sobre a relação da narrativa distópica com a emergência das questões geopolíticas e ambientais da década de 1970.

Em suma, o conjunto de trabalho aqui reunidos tem ainda o propósito de provocar o leitor a um duplo-movimento. Aqueles e aquelas que estão distantes do debate sobre a questão ambiental e crise na qual estamos imersos poderão compreender a amplitude dos problemas pelo convite a se aproximarem das reflexões ora apresentadas. Por outro lado, há uma interpelação mais incisiva: a de fomentar aprendizados sobre distintas formas de lutas e resistências que, neste dossiê, incluem desde o debate sobre livros, filmes, documentos oficiais, etc., até as ações diversificadas de uma massa plural de sujeitos (indígenas, pescadores, camponeses, entre outros) que enfrenta amplos e diferentes conflitos ambientais na América Latina.

O dossiê Movimentos Sociais e Meio Ambiente, portanto, é um trabalho coletivo de pesquisadoras e pesquisadores engajados e preocupados com o tempo que nos resta e com o espaço que habitamos. Boa leitura!

Alfredo Ricardo Silva Lopes – Professor

Mário Martins Viana Júnior – Professor

Fortaleza – Campo Grande / Inverno de 2020.


LOPES, Alfredo Ricardo Silva; VIANA JÚNIOR, Mário Martins. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.12, n. 23, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e números: estudos sobre as mulheres em diferentes tempos e espaços / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2019

Em um país profundamente desigual como o Brasil, historicamente marcado pelas diferenças que separaram os distintos segmentos populacionais, é mais do que oportuna a publicação do Dossiê Gênero e Números. De fato, trata-se, mais do que nunca, de uma obrigação das historiadoras, dos historiadores, dos e das cientistas sociais refletir sobre a sociedade brasileira, do passado e do presente. Aliás, diga-se de passagem, estes pesquisadores e pesquisadoras, abraçaram com muita disposição, nestes tempos recentes e sombrios, o desafio de discutir questões candentesque atravessam e dividem o nosso país.

Especificamente, em relação ao tema do dossiê, pelo menos, desde a década de 1990, os estudos sobre as mulheres e as relações de gênero têm reveladosituações em que elas aparecemcomo sujeitos ativos, contrariando as imagens e as representações,teimosamente atreladas a elas,como a passividade, a ociosidade, o confinamento ao lar, sobretudo vinculadas ao nosso passado. Desde então, através do uso de conceitos caros à história e às ciências sociais em geral,as estudiosas e os estudiososvem debatendoa questão da diferença sexual, colocando em evidência as construções sociais sobre os papéis, que se esperava,fossemdesempenhados por homens e por mulheres.

A pertinência e a necessidade dessas análises mantêm-se, ainda no final da segunda década do século XXI, uma vez que os indicadores apontam que profundas diferenças persistem entre nós. Para ilustrar a recorrência das desigualdades que caracterizam a nossa sociedade, podemos trazer dados da Síntese dos Indicadores Sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para o ano de 2019 (SIS) [1].

Alguns indicadores do SIS 2019 revelam o persistente quadro das desigualdades estruturais que marcam nossa sociedade, e que atingem mais duramenteos grupos populacionais considerados mais vulneráveis, como pretos ou pardos, mulheres e jovens. Através desses indicadores fica evidenciada a desigualdade, mostrando que ela podevariar muito (para pior, muitas vezes) dependendo da região brasileira a que se refere. Nesse quadro, as diferenças em relação às mulheres aparecem com muita intensidade, ainda nos tempos presentes.

Apesar disso, esses mesmos indicadores revelam que alguns avanços foram alcançados, especialmente no que diz respeito ao papel cada vez mais proeminente que as mulheres ocupam na atualidade, bastando lembrar, entre outros exemplos, sua inserção no mercado de trabalho, maior acesso à educação e, principalmente o fato de terem aumentado sua participação como “principais provedoras”, ao contribuírem com mais de 50% da renda familiar. Portanto, estudar o lugar das mulheres na sociedade brasileira, no presente e no passado, deve continuar a ser objeto de atenção dos estudiosos e das estudiosas.

Quando a chamada desse dossiê foi lançada, o objetivo era agregar estudos que tivessem como foco as relações de gênero e os novos (ou antigos) papéis assumidos pelas mulheres, em diferentes tempos e espaços, privilegiando a perspectiva quantitativa, por meio de análise de dados seriais no âmbito da história e das ciências sociais. A ideia central era dar uma contribuição para a discussão sobre a atuação e a inserção das mulheres na sociedade, explorando aportes teóricos, fontes e metodologias variadasque pudessem dar elementos para a discussão da temática. O desafio proposto era problematizar as tendências, as mudanças e, (por que não?), as permanências que os indicadores revelavam.

As expectativas das organizadoras foram contempladas. Os artigos que compõem o dossiê atingiram esses objetivos de maneira plena por diversas razões. Inicialmente, pela abrangência temporal e espacial dos trabalhos que integram o volume, acrescido do texto da sessão acadêmicos e pesquisa, que abordam distintas regiões, de norte a sul do país, no arco temporal que vai do século XVIII ao século XXI. De outra parte, a riqueza e diversidade dos temas e perspectivas teóricas para o estudo das mulheres e das relações de gênero no âmbito da política, da religião, da moda, debruçando-se sobre a participação das mulheres em partidos políticos, trajetórias e representações, mulheres que vivenciaram a prostituição, a escravidão e a liberdade, mulheres que no passado, como muitas que vivem no século XXI, estavam à cabeça e na chefia de seus domicílios. Valoriza ainda esse dossiê, o fato que muitos desses aportes foram trazidos por jovens investigadores / as, comprometidos / as com o uso de um aparato teórico-metodológico variado e que oferece evidências para uma estimulante reflexão.

Os artigos foram organizados considerando, inicialmente, o âmbito de cobertura espacial, secundado pelo recorte temporal. De fato, pode-se dizer que há dois conjuntos de trabalhos, que se organizaram em torno desses eixos. O primeiro conjunto integra textos que analisam o Brasil e / ou as regiões norte (Amazonas) e nordeste (Pernambuco). O segundo conjunto contempla os demais artigos que versam sobre o espaço meridional brasileiro, em momentos diferentes do tempo.

Assim, o primeiro conjunto composto por três trabalhos, dá uma ideia da amplitude das abordagens, da participação das mulheres na política, aos estudos relativos à prostituição, passando pela análise, através da religião, das relações de gênero. O primeiro texto, Notas sobre a participação partidária das comunistas no Brasil, de Theófilo Machado Rodrigues, discute as mulheres na política, através da inserção das mulheres no Partido Comunista do Brasil, que recentemente, segundo o autor tem sido identificado como o “partido das mulheres”. Enfocando a história do partido, dividida em quatro momentos, (dos anos 1920 à segunda década do século XXI), através de um conjunto muito rico e diverso de fontes, o autor analisa a participação das mulheres. Entre vários dados interessantes, revela que, desde o final da década de 1990 até o presente, o PC do B mantém uma bancada formada por mulheres que ultrapassa os 30%, se destacando assim de todo os demais partidos.

O texto seguinte, de Paulo Marreiro dos Santos Júnior, desloca o foco para o Amazonas, especificamente para a cidade de Manaus, nas duas primeiras décadas do século XX, analisando tema de grande interesse: a prostituição no período áureo da borracha. O artigo, intitulado, sugestivamente de Das ‘polacas’ e ‘francesinhas’ às ‘regateiras’ e ‘decantadas’. Crítica ao imaginário e historiografia da prostituição da Manaus da borracha, tem como fonte as ocorrências policiais, registradas no Jornal do Comércio, em um contexto de transformações várias na cidade, analisando a esquecida vida das prostitutas, no tempo em que a capital do Amazonas era conhecida como a „Paris dos Trópicos‟.

O terceiro estudo, que fecha que o conjunto inicial de textos que compõem o Dossiê, é da autoria de Rogério de Carvalho Veras e de Loyde Anne Carreiro Silva Veras. O artigo Castelos de Orquídeas: Rena Butler, as relações de gênero e a presença protestante no espaço público, analisa a trajetória de uma mulher, que viveu em Pernambuco, até meados do século XX. A experiência de vida de Mary Rena HumphreyButler, que foi empresária e missionária, casada com um médico e missionário protestante, coloca em evidência o papel desempenhado por ela no processo de consolidação do protestantismo no espaço público brasileiro. Sua trajetória lança luz sobre a, frequentemente, obscurecida participação de mulheres na missionação, abrindo perspectivas renovadas de interpretação para o campo de estudo das religiões no Brasil.

Os artigos que completam a segunda parte do dossiê têm como foco de estudo o Rio Grande do Sul e abrangem o arco temporal entre o período colonial e o século XXI. Formam um conjunto interessante, que reúne mulheres de condições muito variadas que viveram e vivem na região mais meridional do Brasil.

O artigo de Denize Terezinha Leal Freitas, Uma análise populacional dos domicílios no extremo sul da América portuguesa: mulheres chefes de fogos (Porto Alegre, século XVIII-XIX), analisa a atual capital gaúcha nos primeiros 50 anos de sua existência (1772-1822), quando a localidade ainda misturava elementos de caráter urbano e rural. A partir do uso de uma fonte muito preciosa, os Róis de Confessados e Comungados, elaborados pela Igreja Católica para controlar o sacramento da confissão / comunhão, a autora examina a presença das mulheres, colocando em evidência o protagonismo que elas tiveram, como chefes dos seus domicílios, posição desfrutada por não poucas mulheres, de várias „qualidades‟, desde as mulheres livres e brancas, passando pelas pardas e pretas, livres ou libertas, pelas ricas e pobres, em uma localidade em que havia mais homens que mulheres.

Do século XIX para o XXI. Esse é o salto temporal que o leitor fará, ao ler o artigo quetrata de tema atual e instigante, ligado ao estudo das indústrias criativas no segmento da moda. O foco é a região metropolitana de Porto Alegre, entre os anos de 2008 e 2017. Interessa ao trio de autores, Margarete PaneraiAraujo, Moisés Waismann e Judite Sanson de Bem, evidenciar a presença feminina nesse segmento profissional, analisando a pertinente questão das disparidades variadas que atravessam esse ramo de atividades, analisando o percentual de mulheres envolvidas, sua formação e escolaridade. Através do texto Indústria criativas no segmento da moda: distribuição dos vínculos por sexo e escolaridade na região metropolitana de Porto Alegre em 2008 e 2017, é interessante notar que, entre os resultados apresentados, embora as mulheres trabalhadoras sejam maioria no setor, são menos escolarizadas que os homens que dividem com elas esse segmento das indústrias criativas. Os dados utilizados são do Ministério da Economia, RAIS.

Também vinculado a esse dossiê, mas na sessão Acadêmicos e pesquisa o texto de Marina Haack, nos brinda com um estudo sobre Cachoeira do Sul, na segunda metade do século XIX, entre os anos de 1850 e 1888. A partir do aporte teórico da interseccionalidade, o artigoPensando mulheres escravizadas e libertas: um olhar interseccional para as cartas de Alforria de Cachoeira do Sul busca explorar as experiências femininas, privilegiando o segmento das escravizadas e libertas, que tinham sua vivência marcada não apenas pelo viés da cor, da idade e da naturalidade, mas, sobretudo por sua condição jurídica. A partir das fontes selecionadas, as cartas de liberdade, a autora adentra em temas fundamentais para essas mulheres, como o trabalho e a maternidade, lançando luzes sobre as diferenças que perpassam a experiência de escravidão que marcaram a vida daquelas mulheres.

O elenco dos textos que integram o dossiê, certamente, estimulará as leitoras e os leitores a desvendar e trilhar alguns dos instigantes caminhos de pesquisa que estão sendo explorados em nosso país e em nossas universidades. Trabalhos realizados com o esforço e a dedicação deinvestigadoras e investigadores, ainda que as condições de produção estejam prejudicadas com o contingenciamento / corte de verbas, e que esteja em causa o valor e a importância de suas contribuições, diante dos ataques perpetrados àqueles que dedicam sua vida e seu trabalho à produção de conhecimento de qualidade, a partir de bases científicas.

Boa leitura!

Nota

1. Essa publicação do IBGE foi lançada, pela primeira vez, em 1999, com o objetivo de traçar um quadro sintético das condições de vida da população brasileira e, desde então, dá subsídios para a construção de políticas públicas em todos os níveis do governo (SIS, 2019, p.9). Acesso em https: / / biblioteca.ibge.gov.br / visualizacao / livros / liv101678.pdf , janeiro de 2020

Ana Silvia Volpi Scott – Professora Doutora (UNICAMP)

Denize Terezinha Leal Freitas – Professora Doutora (UNIPAMPA / SEDUC-RS)

Organizadoras


SCOTT, Ana Silvia Volpi; FREITAS, Denize Terezinha Leal. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.11, n. 22, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Pena de morte e penalidade carcerária no mundo Ibero-Americano (séculos XVI-XX) / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2019

O presente dossiê foi fruto de uma inquietação e de uma provocação realizada entre os organizadores, então estimulada pela programação do IV Simpósio Nacional de História do Crime, Polícia e Justiça Criminal, celebrada entre os dias 12 e 14 de setembro de 2018, no Recife / Pernambuco, organizada pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Católica de Pernambuco. Perguntávamos se haveria espaço e colaborações suficientes para travar uma discussão sobre a pena de morte, mas ampliando-a ao incorporar também a penalidade carcerária, desde o século XVI ao XX, da história ibero-americana. Idealizando, pensávamos, igualmente, sobre a possibilidade de fazer conexões entre a velha ibéria e o mundus novus.

A proposta, acreditamos importante recordar, partia da ideia de que a pena de morte acompanhava a humanidade desde muito antes do século XVI, mas que não foi até a Idade Moderna, quando se produziriam mudanças significativas em relação a sua incidência. Com o surgimento dos estados modernos, essa pena se converte na máxima expressão do exercício punitivo dos soberanos, ou, de instituições religiosas que, através do corpo supliciado, reativavam seu poder valendo-se de rituais político-simbólicos, incluído aí a exemplaridade dos castigos.

Paralelamente a esses teatros sanguinolentos, entre os séculos XVI e XX, foram surgindo novas formas de punir, que, muito além de uma mera humanização da pena, buscou responder a uma série de interesses e exigências em vista de novos modelos de governabilidade emergentes. De olho nesse processo se descartaria diretamente qualquer visão teleológica e linear do fenômeno punitivo, das práticas de execução capital à pena de privação de liberdade, e desta à prisão como instituição penal propriamente dita.

Partiu-se da premissa de que a pena é uma instituição sociocultural muito complexa que possui sua historicidade em relação às mudanças estruturais e às transformações da sensibilidade coletiva, motivo pelo qual se erige como um objeto de pesquisa de grande relevância no campo compartilhado com as Ciências Sociais e as Ciências Penais. O paralelo entre a pena de morte e a penalidade prisional ajuda a situar a experiência do castigo carcerário além da mera execução de sentenças judiciais em instituições fechadas. A prisão moderna afeta as “almas” dos condenados, bem como os corpos dos prisioneiros que não pagam seus crimes e delitos apenas com a privação da liberdade, mas também com o cerceamento de direitos básicos como, por exemplo, a saúde, o alimento, a instrução, e o trabalho.

Duas questões-chaves que queríamos colocar de manifesto parecem confirmar-se nesse dossiê: 1) a distinção entre “pena” e “penalidade”. A concepção de punição desenvolvida por David Garland em seus estudos, pode resultar esclarecedora, já que este autor considera a punição desde um enfoque culturalista, como um “procedimiento legal que sanciona y condena a los transgresores del derecho penal, de acuerdo con categorías y procedimientos legales específicos”. Nesta noção culturalista da punição, estão involucrados não apenas a administração das sanções, senão também o processo legislativo, o de condenação e sentença. Trata-se de um conceito específico que, de nossa parte, assimilamos a outro ainda mais amplo, isto é, o de penalidade. Não somente estaríamos falando de um emaranhado de leis, procedimentos e instituições, senão também de discursos, representações e experiências de punição, incluindo as experiências de violência institucional.

A segunda questão: 2) a história social das instituições punitivas, que se ocupou da pena de morte em distintas etapas históricas, oferece uma ampla panorâmica de tipo sociocultural e de longa duração, sem obviar seus significados políticos, sua funcionalidade como propósito político de manutenção ou defesa de um regime determinado. Esse alinhamento presta atenção à relação narrativa entre a pena de morte e a mudança histórica, precisamente porque essa instituição punitiva tão extrema, além de expressar mudança social, também forma parte dela.

Pensamos que o conjunto de cinco artigos que em continuação apresentaremos, compõem um dossiê justo e adequado ao pretendido, uma vez que, de fato, contempla estudos sobre os fenômenos apresentados desde diferentes perspectivas teórico-metodológicas, fruto de aprofundamentos de pesquisa por professionais-sênior e novelles, a partir de fontes variadas e enfoques diversificados.

Dois deles tocam de cheio na questão da pena de morte no Brasil. Allister Andrew Teixeira Dias, em A pena de morte no debate criminológico do Rio de Janeiro dos anos 1930, analisa os debates criminológicos acerca da pena de morte na velha capital tupiniquim, atentando principalmente para o conteúdo e a maneira como os saberes biomédicos e psicológicos eram instrumentalizados. Para tal, recorre aos posicionamentos dos membros da Sociedade Brasileira de Criminologia, e ao conteúdo do livro do advogado Jurandyr Amarante, A Pena de Morte (1938). Traça a partir desses materiais o perfil do debate, que então se valia de ideias e noções biológicas e psicológicas para mobilizar um discurso tanto favorável como de rechaço à pena de morte.

O outro estudo é de Fernando Afonso Salla, Alessandra Teixeira, e de Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho, intitulado Contribuições para uma genealogia da pena de morte: desnudando a “índole pacífica” do povo brasileiro. Para os autores, houve disputas em torno da pena de morte no Brasil, as quais podem ser documentadas e evidenciadas a partir dos discursos, dos instrumentos legais que a estipulavam, e das práticas extralegais que indiretamente a promoviam. Descutem-se três níveis de potencial aplicação: aos crimes militares, à dissidência política e à criminalidade comum. Identificada a legislação e os debates travados entre os anos 1920 e 1950, ao contrário da ênfase dada por Dias nos anos 30, Salla, Teixeira e Marinho situam a década de 50 como decisiva para que o discurso da pena de morte passasse a ser mobilizado como principal recurso à contenção da criminalidade comum. Assim, contrapondo à imagem e retórica de um povo pacífico, apresenta-se o apoio popular às formas de justiçamento, as execuções sumárias de suspeitos, esquadrões da morte, além da violência policial.

Como sugere o próprio título do texto de Eli Narciso da Silva Torres e de Dirlene de Jesus Pereira, Punição, sujeito e poder: uma analítica foucaultiana, o estudo se debruça sobre dois dos conceitos-chaves do pensamento foucaultiano, a saber, o de poder e punição. Tomando-os, os autores discutem a sua pertinência e relevância enquanto arsenal teórico e político capaz para se compreender os principais aspectos da sociedade disciplinar em crise, destacando a necessidade de uma ruptura epistemológica devido às íntimas relações entre saber, poder e sujeito na cultura ocidental.

Em Crime e castigo: as consultas ao Conselho de Estado acerca de Processos Criminais envolvendo escravos (1841-1889), a senda trilhada por Ricardo Bruno da Silva Ferreira segue os passos de outros pesquisadores que já se debruçaram alcançando importantes resultados sobre as atas e consultas realizadas ao Conselho de Estado. Para Ferreira, o referido colegiado não ignorou a escravidão, sendo inclusive um ponto de discórdia entre os seus membros, mas por questões políticas circunscreveu a questão às suas reuniões de porta fechada. Devia-se, portanto, evitar a todo custo que vazasse para o âmbito da discussão pública ou do debate parlamentar.

Por último, em Crime e alienação no Portugal de finais do século XIX e inícios do século XX, Alexandra Esteves analisa a atenção dispensada pelo Estado português aos criminosos alienados. Baseada em fontes arquivísticas diversificadas, revela que, apesar de uma legislação e determinações a favor de que os denominados criminosos loucos fossem recolhidos em locais devidamente apropriados, isso de fato nunca ocorreu durante o marco cronológico estabelecido. Em geral, foram duas as instituições que albergaram esse coletivo até bem avançado o século XX, a saber, os hospitais para alienados de Rilhafoles, em Lisboa, e o de Conde de Ferreira, no Porto. Conclui-se, ademais, que as velhas práticas de encarcelamento de loucos nas cadeias persistiram, assim como a entrega daqueles aos cuidados das famílias.

Gostaríamos ainda de agradecer aos autores pela acolhida à nossa chamada para compor este dossiê, aos pareceristas tão indispensáveis para manter a qualidade dos trabalhos, e à equipe de editores da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, pelos cuidados dispensados. Desejamos que os potenciais leitores encontrem discussões norteadoras e subsídios para a reflexão acerca desses e de novos objetos de pesquisa.

Boa leitura!

Tiago da Silva Cesar – Professor Doutor. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

Pedro Oliver Olmo – Professor Doutor. Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM)

Organizadores


CESAR, Tiago da Silva; OLMO, Pedro Oliver. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.11, n. 21, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços contemporâneos / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018

Em continuidade à primeira parte deste dossiê, abordamos neste número da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS um abrangente leque de trabalhos – seja do ponto de vista da periodicidade seja do ponto de vista das regiões sobre os quais se voltam – que conferem visibilidade aos processos que envolvem os indígenas enquanto protagonistas na história do Brasil e de outras regiões da América Latina.

Ao concluir este volume, percebemos como a área de conhecimento relativa aos indígenas na história permanece apresentando lacunas que os estudos já realizados permitem vislumbrar. Neste sentido, abordagens nos campos da demografia social e do meio ambiente na história indígena constituem propostas relativamente inovadoras aqui desenvolvidas.

Conhecer os povos indígenas na história traz ainda o desafio e a perplexidade de compreender que muitos dos aspectos do “passado” neles representado parece, de fato, ainda não ter “passado”, já que muitas de suas formas podem ser percebidas ainda nas trágicas situações contemporâneas que presenciamos hoje, após 30 anos de celebrada a Constituição Cidadã.

Dos nove artigos deste dossiê, a maior parte se volta para o exame de contextos referentes ao Século XIX – cinco deles no Brasil e um na Argentina. Dois dos outros artigos referem-se a contextos estudados ao longo do Século XX e um, último, contemporâneo.

O século XIX foi bastante variado em relação aos regimes políticos nacionais no Brasil, pois inicia como colônia (1500-1822), atravessa mais de seis décadas como Império independente (1822-1889) e termina como República. Entre as legislações que afetaram diretamente os povos indígenas e seus territórios ao longo daquele século no Brasil, especialmente considerando o Segundo Reinado (1845-1889), destacam-se o Regulamento das Missões, de 1845, e a Lei de Terras, de 1850. Neste período além do tráfico negreiro, foi também abolida a escravidão (1888), cujos significados se estendem aos indígenas, muitas das vezes considerados pelas elites como mão-de-obra disponível para substituir a força de trabalho africana.

Seguindo uma ordem cronológica, o presente número do Dossiê inicia com o artigo a quatro mãos das historiadoras Ana Carollina Gutierrez Pompeu e Alessandra González Seixlack, intitulada “Juan Calfulcurá e os crioulos. Protagonismo indígena no Pampa argentino na primeira metade do século XIX”. O artigo aborda a ocupação das áreas indígenas do Pampa pelo Estado argentino, marcada por conflitos e pela negociação. Conhecida como “Negócio Pacífico de Índios”, essa forma de negociação entre indígenas e exército argentino caracterizou-se pelo uso de diplomacia interétnica que fortaleceu personagens como Juan Calfulcurá, durando até a década de 1870, quando o Estado argentino passou a incorporar os territórios antes negociado com os indígenas do Pampa.

O segundo artigo, do historiador André de Almeida Rego analisa a trajetória do índio João Baitinga, que viveu na aldeia de Pedra Branca e no Ribeirão (atuais municípios de Santa Terezinha e Amargosa, na Bahia), no Período Imperial. O artigo intitulado “João Baitinga: análise sobre protagonismo histórico, a partir da trajetória de um índio (Bahia, 1804-1857)”, examina, por meio de sua trajetória biográfica as perdas de direitos experimentadas pelos indígenas ao longo dos processos de formação do Estado brasileiro.

A historiadora Soraia Sales Dornelles apresenta em seu artigo questões resultantes de sua análise sobre a construção de dados estatísticos sobre as populações indígenas na segunda metade do século XIX, com base a província de São Paulo. A autora encara o desafio de interpretar a estratégia da descaracterização identitária sofrida pela população indígena na produção dos dados demográficos presentes ou ausentes nos Relatórios oficiais, que, deste modo, invisibilidade e oficializavam o desaparecimento dos indígenas e de seus descendentes. Seu artigo “A produção da invisibilidade indígena: sobre construção de dados demográficos, apropriação de terras e o apagamento de identidades indígenas na segunda metade do XIX a partir da experiência paulista” dialoga perfeitamente com o de autoria da também historiadora Ana Paula da Silva, que aborda as tessituras do processo de invisibilização da população indígena do Rio de Janeiro oitocentista, por meio da análise dos recenseamentos realizados na Província fluminense. A autora de “Demografia e Povos Indígenas no Rio de Janeiro Oitocentista” coteja ainda as informações censitárias aos relatórios dos presidentes da província e às correspondências oficiais de juízes de órfãos de modo, revelando o discurso oficial do „desaparecimento‟ indígena na prática das autoridades e de políticos interessados nos patrimônios indígenas.

O artigo a seguir, de autoria da antropóloga Izabel Missagia de Mattos aborda, por meio de um exercício histórico-etnográfico espacialmente situado, o ambiente e suas transformações ao longo da história da ocupação de uma região de fronteira nos altos dos rios Doce, Mucuri, Jequitinhonha e São Mateus, acompanhando os indígenas em suas relações com os adventícios, naquele contexto de transição para a República e de formação da nacionalidade brasileira. A categoria teórico-metodológica assume um caráter de centralidade no artigo intitulado “Povos dos Altos Rios Doce, Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus (Minas Gerais): paisagens de “perigos” e “pobreza”, transformações e processos identitários”.

No artigo a seguir, o historiador Giovani José da Silva busca reconstituir as memórias de anciãos do povo Kadiwéu a partir das narrativas recolhidas por antropólogos ao longo do século XX e XXI. Em “Protagonismos Indígenas em Mato Grosso (Do Sul): Memórias, Narrativas e Ritual Kadiwéu Sobre a Guerra (Sem Fim) Do Paraguai”, o autor demonstra como, para os indígenas daquele povo, a Guerra do Paraguai jamais seria encerrada. Com efeito, por meio de rituais e outras técnicas mnemônicas, por sucessivas gerações e a despeito de transformações vividas, a memória social Kadiwéu continua a produzir e a reproduzir aquele evento histórico, pleno de significados identitários.

Adentrando o século XX, Cleube Alves Silva, em seu artigo “E os índios corriam por aí – Das lutas pela terra e de um povo indígena no norte de Goiás (1900- 1971)” descreve e discute a dinâmica de ocupação espacial dos Xerente desde os primeiros contatos com os colonizadores até o final do século XX. Procuramos ver a partir de quais contextos o povo Xerente foi se reconfigurando socioculturalmente para manter-se como grupo étnico portador de uma cultura e destinatário de um território.

Por meio de uma parceria interdisciplinar, o jurista João Mitia Antunha Barbosa e o historiador Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes procederam, no artigo “Uma revoada de pássaros: o protagonismo indígena no processo Constituinte”, uma revisão bibliográfica sobre os movimentos indígena e indigenista brasileiros na década de 1970, visando a compreender o jogo de forças políticas atuantes no campo do indigenismo ao longo do processo que culminou com a Assembleia Nacional Constituinte e o texto da Constituição Federal de 1988.

E, encerrando o dossiê, o educador e historiador Roberto Kennedy Gomes Franco enfoca em seu artigo “A Experiência Histórico-Educativa entre Docentes Indígenas no Ceará / Brasil (1988-2018)” as reivindicações dos professores e professoras das escolas indígenas do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro. Tais reivindicações de uma escola “com os índios”, em contraste com uma escola “para os índios” encontram-se, por sua vez, relacionadas aos contextos contemporâneos de ameaça de genocídios e etnocídios que exigem uma educação escolar indígena posicionada na defesa dos direitos indígenas por território, trabalho, educação, saúde, entre outros meios mínimos necessários à produção da vida e da cultura.

Os artigos reunidos nos dois volumes do dossiê evidenciam – não apenas quantitativa, mas, sobretudo, qualitativamente – o crescimento da História Indígena no Brasil nos últimos 25 anos. Se em 1995 o saudoso John Manuel Monteiro escrevia a respeito dos desafios da pesquisa sobre a temática no país, alertando para as dificuldades de se encontrar fontes históricas e, ao encontrá-las, de se realizar uma leitura antropológica das mesmas, os percalços no tempo presente são outros. Em um momento histórico em que há a negação, oriunda de determinados setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira, de direitos conquistados pelas populações indígenas localizadas em todos os recantos do país e consagrados pela Constituição Federal de 1988, nada mais urgente e necessário é a publicação de estudos que revelem o passado e o presente indígenas nas Américas. Afinal, não se pode falar em História do Brasil e / ou História da América sem se referirar presenças indígenas como protagonistas dessas trajetórias espaço-temporais. Trajetórias dolorosamente entrelaçadas e que não podem ser compreendidas encerradas em si mesmas…

Boas leituras!

Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)

Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)

Organizadores


SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 20, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços coloniais / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018

Na organização da coletânea História dos Índios no Brasil (1992), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha atentava para o problema das fontes sobre o passado dos povos indígenas. Por meio de esforços de diversos pesquisadores, desde então, tem havido muitos avanços nesse sentido. O saudoso John Manuel Monteiro, um dos precursores mais atuantes nocampo da história indígena e do indigenismo no Brasil, contribuiu sistematicamente na organização de informações sobre as fontes em arquivos públicos nas capitaispaís, tendo coordenado a elaboração de um Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo (1994). Mais recentemente, vale lembrar os esforços realizados na organização dolivro-catálogo resultante do projeto Catálogo Geral dos Manuscritos Avulsos e em Códices Referentes à História Indígena e Escravidão Negra no Brasil (RICARTE, 2017), que se somaàprodução de catálogo de fontes específico para o Estado do Rio de Janeiro (FREIRE, 1995 / 96).

Algumas facetas importantes do impacto da história sobre os povos indígenas podem ser observadas, por exemplo, em estudos a respeito de etnogênesese de processos de territorialização, que configuram a agência de homens e mulheres indígenas em relações sociaisgeradas no interior desituações coloniais.

Reunimosnesta primeira parte do dossiê sobre protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços, trabalhos que abrangem questões referentes às inúmeras lacunas até hoje existentes sobre a indelével presença destes processosna história das Américas, no passado colonial, em fecundos diálogos entre História e Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política).

Com imensa satisfaçãoapresentamos esta primeira parte do dossiê Protagonismos ameríndiosem diferentes tempos e espaços, composto por oito artigos que revelam diálogos transdisciplinares entre História e Antropologia a partir de pesquisas cujos marcos espaço-temporais se conformam ao período colonial nas Américas (séculos XVI ao início do XIX). O primeiro artigo, de autoria de Chantal Cramaussel Vallet e Celso Carrillo Valdez, trata dos indígenas do Bolsón de Mapimí, que eram caçadores e coletores e compreendiam múltiplas parcialidades que receberam dos espanhóis distintos nomes. Por meio da biografia deSantiago Alonso os autores mostramcomoas lideranças entre aqueles povosforamduradourase contavam com uma ampla rede de alianças que lhes permitiam reunir forças bélicas consideráveis e escapar com facilidadepara fora do domínio espanhol.

Em “„A persuasão (que?) fazem os índios a este Governo‟: os Kiriri e os conflitos no „sertão de dentro‟ da América portuguesa (1677-1679)”, Ane Mecenas aponta que na segunda metade do século XVII, após a Restauração Portuguesa, intensificou-se o povoamento do sertão da América portuguesa. O processo visava à constituição de aldeamentos e à formação de alianças, com o intuito de garantir segurança no acesso comercial às rotas dos criadores de gado que seguiam da Bahia ao Piauí, bem como a constituição de um grupo de índios Kiriri que coibisse a formação de quilombos nas impenetráveis rotas do sertão. Ordens religiosas foram incumbidas da tarefa de organizar as aldeias, “disciplinar as almas” e fornecer mão de obra nas entradas para o sertão.

O terceiro artigo, intitulado “A evangelização calvinista dos indígenas no Brasil holandês: o poder cristalizador da leitura”, de Maria Aparecida de Araújo Barreto Ribas, aborda a evangelização calvinista dos indígenas pelos neerlandeses no Brasil holandês (1630-1654) e a especificidade de tal projeto que teve como característica fundamental a alfabetização dos nativos.

Rafael Ale Rocha, em “Os Aruã: políticas indígenas e políticas indigenistas na Amazônia portuguesa (século XVII)”, analisa a política adotada por grupos indígenas Aruã durante o século XVII. Tratava-se de uma “nação” que habitava a Ilha de Joanes (Marajó), o Cabo Norte (Amapá) e arredores e interagia com os mais diversos indivíduos e / ou grupos – portugueses, ingleses, holandeses, franceses, negros, mestiços, outros indígenas. O autor prioriza as respostas dos Aruã às políticas indigenistas adotadas pela Coroa portuguesa naquele rincão da Amazônia.

Leandro Goya Fontella, por sua vez, trata de uma análise demográfica em perspectiva comparativa, afirmando que entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX uma complexa trama histórica mergulhou a região platina em um contexto de endemia bélica que provocou a decadência demográfica do complexo guaranítico-missioneiro. A partir do tratamento serial dos assentos de batismos da Matriz de São Francisco de Borja e de informações censitárias coevas, é analisado como se desenrolou tal processo nas reduções orientais do rio Uruguai.

No artigo “Índios independentes, fronteiras coloniais e missões jesuíticas”, Maria Cristina Bohn Martins propõe-se a examinar o caso da “misión del sur” dos jesuítas no século XVIII, fazendo-o a partir de uma perspectiva que privilegia as expectativas dos nativos relativamente a ela. Isto é, através de uma inversão de enfoque e ponto de vista, a autora revisita um tema clássico retirando os indígenas da situação de invisibilidade em que eles foram colocados pelas fontes e pelas narrativas históricas tradicionais.

Max Roberto Pereira Ribeiro, em “MbabuçúOiconê: a profecia de Felicitas, tempo e história nas reduções do Paraguai”, trata das disputas coloniais entre Espanha e Portugal no século XVIII que resultaram em um novo tratado de limites na América meridional, firmado em 1750, em Madrid (Tratado de Madrid). O acordo entre as Coroas estabeleceu que a Espanha entregasse a Portugal um território composto por sete missões indígenas e houve da parte dos Guarani grande resistência àquele acordo, resultando em inúmeros conflitos.

Finalmente, em “A execução do Tratado de Santo Ildefonso e as atuações indígenas na fronteira platina”, Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo analisa como os indígenas envolveram-se ativamente nos trabalhos da comissão demarcadoradurante a execução do Tratado de Santo Ildefonso. Ao localizar os pontos por onde passaria a linha divisória, abastecer partidas com recursos oriundos dos povos, patrulhar e arriar gado nos territórios indivisos pertencentes aos seus departamentos, os indígenas demonstraram sua inserção em redes comerciais e políticas bastante amplas.

Os artigos reunidos para este primeiro volume do dossiê Protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços retratam o vigor da História Indígena no Brasil e nas Américas no início do século XXI. Passados mais de 25 anos de sistemática produção historiográfica sobre os ameríndios no Brasil percebe-se queo palco da História– em feliz expressão tomada por empréstimo de Maria Regina Celestino de Almeida – passou a ser ocupado por estes importantes atores, há muito deixados nos bastidores. Como alertava John Monteiro, para que as trajetórias espaço-temporais tanto de indígenas, africanos e seus descendentes ou migrantes de partes do mundo não europeu não sejam mais invisibilizadas, contudo, ainda há muito a ser feito.

Esperamos cumprir com uma parte importante da divulgação técnica e científica da produção mais recente e qualificada, neste ano em que é celebrada uma década da existência da lei 11.645 / 2008, que obriga a transversalização de conteúdos em todos os componentes curriculares da Educação Básica com as temáticas indígenas e afro-brasileiras, notadamente a História, e que se celebra ainda 30 anos da primeira Carta Constitucional brasileira em que os povos indígenas surgem como sujeitos de direitos. Oxalá que as lutas travadas inicialmente por John Monteiro e outros para que a História Indígena fosse vista com a importância que lhe é devida não esmoreçam.

Boas leituras!

Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)

Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)

Organizadores


SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 19, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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História dos Serviços Públicos / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017

No final do ano de 2016 a Revista Brasileira de História & Ciências Sociais definiu como tema para o dossiê referente ao segundo semestre de 2017 a História dos Serviços Públicos. No texto usado para divulgar a chamada de trabalhos afirmamos que “temas como a intervenção do governo na economia, a saúde pública, a promoção da educação básica e superior, o funcionamento da justiça e da assistência social são frequentes na agenda de pesquisadores de diferentes áreas”; no entanto, apesar do interesse da História e das Ciências Sociais pela organização e funcionamento das instituições públicas, “os estudos focados especificamente na historicidade dos Serviços Públicos ainda são incipientes no Brasil”.

A publicação do presente Dossiê insere-se neste contexto e pretende fomentar uma reflexão sobre as possibilidades e as dificuldades existentes no estudo dos Serviços Públicos. Acreditamos que uma das dificuldades reside na imprecisão dos limites entre as Políticas Públicas e os Serviços Públicos. A priori, ambos se complementam e são interdependentes, no entanto, a dinâmica das suas relações é complexa. A eficiência das Políticas Públicas implantadas por um determinado governo depende em parte da estrutura organizacional dos Serviços Públicos e da capacidade desta estrutura se reformular e absorver novas demandas. E, no sentido inverso, a qualidade de um Serviço Público pode ser ampliada ou reduzida a partir de prioridades definidas pela agenda das Políticas Públicas.

Outro tipo de dificuldade encontrada pelos que exploram a organização e funcionamento dos Serviços Públicos diz respeito às relações entre a sociedade civil o governo. Para além da tradicional representação política partidária, a sociedade civil desenvolveu um amplo conjunto de práticas através das quais busca influenciar nas decisões e ações do governo. E, as instituições governamentais, por sua vez, se encontram em constante interação com a sociedade civil. Nesta interação, as instituições governamentais podem incorporar ou refutar demandas e críticas procedentes do coletivo social e, ao mesmo tempo, podem modificar o modus operandi sob a influência de alterações na conjuntura econômica e política.

Sem a pretensão de explorar todas as dificuldades existentes no campo das pesquisas sobre os Serviços Públicos, consideramos ser pertinente incluir nesta breve reflexão, o problema do financiamento dos Serviços Públicos – problema relevante no contexto de uma crise sem precedente nas finanças públicas brasileiras. Como sabemos, a crise nas finanças públicas é geralmente dimensionada pelo desequilíbrio entre as receitas públicas e as despesas da União Federal, dos Estados e Municípios. No caso do Brasil, parte deste desequilíbrio pode ser atribuída à corrupção que existe dentro e fora do governo. Outra parte diz respeito à disparidade na distribuição dos recursos entre os entes da federação, aos erros na definição de prioridades para os investimentos públicos, ao constante endividamento dos órgãos públicos, à ineficiência dos gestores públicos e à retração nos índices de consumo. De forma direta ou indireta, estes fatores influenciam na oferta e qualidade dos Serviços Públicos e, consequentemente, também demandam uma atenção especial dos historiadores e Cientistas Sociais.

Cientes das dificuldades existentes na interpretação acadêmica dos Serviços Públicos, a RBHCS apresenta aos seus leitores um conjunto de oito artigos que formam o Dossiê História dos Serviços Públicos. Os três primeiros são procedentes do exterior: Alejandra Laura Salomón contribuiu com um estudo sobre as relações entre a política viária e as condições de vida nas áreas rurais da Província de Buenos Aires, no período de 1940 e 1950. Juan Manuel Mátes-Barco abordou o desenvolvimento do serviço público de abastecimento de água na Espanha dos séculos XIX e XX e explorou a convergência de interesses públicos e privados no respectivo serviço. Gloria Paterna Sánchez e Felipe Morente Mejías participam do Dossiê com um artigo sobre o papel do Terceiro Setor no contexto da crise econômica espanhola. Fácil é perceber que os temas procedentes do exterior são distintos e, ao mesmo tempo, relevantes para os leitores interessados na dinâmica das relações entre a sociedade civil e o governo.

Os autores brasileiros estão representados no Dossiê por cinco artigos: Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes contribuiu com um texto sobre as intervenções urbanísticas que resultaram na criação do Boulevard da República, na cidade de Belém (PA). José Carlos da Silva Cardozo escreveu sobre as transformações ocorridas no Juízo dos Órfãos e destacou a crescente importância que esta instituição recebeu na cidade de Porto Alegre, no final do século XIX. Mario Luis Grangeia mostra o progressivo fortalecimento do Ministério Público Federal a partir da Constituição de 1988, observando empiricamente os Grupos de Trabalho Educação e Saúde para discutir sobre as possibilidades e limites do MP brasileiro, suas continuidades e mudanças na área não penal.

Ana Lucia Britto e Suyá Quintslr colaboraram com um estudo sobre o desenvolvimento das redes de abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Completando o Dossiê, o artigo escrito por Fabiano Quadros Rückert e Felipe Maropo aborda as experiências de municipalização do abastecimento de água ocorridas nas cidades de Pelotas e Porto Alegre (RS) no período da Primeira República. No conjunto, os autores brasileiros apresentaram importantes contribuições, sobretudo se considerarmos que a História dos Serviços Públicos não pode ser construída sem pesquisas que explorem variáveis como o impacto das obras públicas no espaço urbano, o funcionamento das instituições governamentais, a gradual ampliação de um determinado serviço e as negociações entre o poder público e o setor privado.

Ao final, somente podemos desejar uma ótima leitura e o incentivo para novas pesquisas.

Corumbá / MS; Santa Vitória do Palmar / RS, dezembro de 2017.

Fabiano Quadros Rückert – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS)

José Carlos da Silva Cardozo – Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

Organizadores


RÜCKERT, Fabiano Quadros; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 18, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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A alma e o corpo por escrito: literatura religiosa e médica, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017

Entre o século XVI e o início do XIX, a produção e difusão de livros e impressos ganhou significativa circulação entre a Península Ibérica e a América portuguesa. Textos de variadas ordens e objetivos, com diferentes origens editoriais, com múltiplos discursos – institucionais, científicos, biográficos, entre outros – foram produzidos com específicos objetivos. Entre eles, se encontravam tratados médicos, livros religiosos, catecismos, relatos de viagem, gazetas, dicionários, só para citarmos alguns exemplos entre aqueles utilizados como fontes pelos autores dos artigos que compõem este dossiê.

Muitas destas publicações tratavam de divulgar as percepções, tanto dos autores, quanto dos editores, sobre o corpo e a alma, mediante explicações para os elementos físicos e metafísicos, das características materiais e espirituais dos seres, das instruções para a saúde corporal e moral, numa relação marcada pela conjugação entre o racional e o transcendente em um espaço – o iberoamericano – onde predominavam fortemente influências religiosas católicas sobre experiências sociais, espirituais e políticas.

Na Europa ocidental, desde o início do século XVI, se pode verificar um eficiente mecanismo de difusão da literatura religiosa, tributário do espírito da Reforma Católica e das descobertas da anatomia divulgadas em publicações médicas. Não raro, estas produções dialogavam entre si, considerando que a disciplina da alma através do corpo era também um discurso recorrente e contemplado em ambas literaturas. Pelo menos até o decorrer do século XVIII, a literatura religiosa e a médica se apresentavam como modelos exemplares de leitura para diversos grupos sociais, uma vez que instruíam, ensinavam e formavam, a partir da idealização, sujeitos cristãos morais, virtuosos e saudáveis. Assim, textos religiosos e médicos, que remetiam às expectativas sociais dos leitores, foram produzidos com intuitos variados, dentre os quais se destacavam a salvação da alma após a morte e a vida saudável moralmente conduzida. Mas as recepções dos discursos textuais foram dinâmicas, na medida em que dependiam de particularidades culturais e sociais dos leitores e da materialidade e suporte dos escritos.

Assim, com diferentes objetos e problematizações, centrados entre os séculos XVI e XIX, os autores dos artigos deste dossiê acionam fontes textuais que se debruçaram sobre a alma e o corpo, buscando compreender, entre outros aspectos, o contexto de produção destes documentos, situando assim, as ideias, os discursos e os sentidos (re)construídos por autores, editores e leitores na sua historicidade própria e específica.

O texto da historiadora portuguesa Maria Marta Lobo de Araújo abre o dossiê, analisando os legados dos benfeitores das Misericórdias do Minho, Portugal, dos séculos XVII e XVIII, como elementos fundamentais para as práticas caritativas, com destaque para as esmolas dadas aos pobres, a assistência aos enfermos e as doações feitas com o propósito de assegurar a salvação de suas próprias almas.

Na sequência, o artigo de Leonara Lacerda Delfino, analisa concepções de enfermidade e cura através da causa mortis de escravos e libertos indicados em registros paroquiais de óbitos da Vila de São João del-Rei entre o final do século XVIII e início do XIX, destacando a apropriação do poder miraculoso de Nossa Senhora dos Remédios e de São Benedito, como entidades curadoras presentes nas acepções de solidariedade dos irmãos do Rosário. De acordo com a autora, a análise da documentação revela a concomitância de saberes médicos com as práticas mágicas do cativeiro.

Já o texto de Carlos Paz analisa discursos jesuítas sobre o consumo de bebidas por indígenas no Chaco, ao longo do século XVIII. Segundo o autor, os jesuítas compreendiam e relatavam as beberagens como um problema de saúde que corrompia o corpo da civitas cristiana, e, ainda, como um “espelho da alma” indígena, vinculada à barbárie e à indolência.

O artigo de Ane Mecenas analisa discursos religiosos sobre práticas de cura dos indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa entre o final do século XVII e o início do XVIII. A partir de dois catecismos, escritos por um jesuíta e por um capuchinho, a historiadora destaca como, no trabalho de conversão, os religiosos descreveram as doenças que acometiam os indígenas e as práticas de cura empregadas.

O próximo texto é de Alexandre Varella e analisa o discurso médico de Juan de Cárdenas, presentes no livro Problemas y secretos maravillosos de las Indias, enfocando, especialmente, as orientações relativas à dieta alimentar dos espanhóis que viviam na América no final do século XVI. Para o autor, o médico Cárdenas procurava, a partir das regras alimentares não apenas evidenciar a presença de uma distinção social aristocrática na sociedade mexicana do final do século XVI, mas também a necessária busca por um sujeito ideal, que teria corpo de compleição sanguínea e colérica.

O texto de Jean Luiz Neves Abreu traz análises das prédicas para a saúde do corpo e a salvação da alma presentes em tratados de medicina e de teologia do século XVIII. O historiador busca, em especial, problematizar as relações entre a medicina e a religião no contexto luso-brasileiro, discutindo as aproximações e tensões entre os discursos médicos e religiosos relativos aos cuidados do corpo e aos sentidos das doenças produzidos no Setecentos.

No artigo de Juliana Gesuelli Meirelles, o foco está nas transformações das concepções de saúde e de medicina entre os séculos XVIII e XIX, a partir das mudanças políticas e culturais da sociedade luso-brasileira propiciadas pela reforma da Universidade de Coimbra. A autora destaca, ainda, a circulação de ideias a partir da criação da Impressão Régia do Rio de Janeiro, inserindo-a na política cultural e científica de D. João VI para a América portuguesa.

Encerrando o dossiê, o texto de Ricardo Cabral Freitas destaca a crítica à atividade confessional encontrada no livro Medicina Theologica, publicado em Lisboa, em 1794, apresentando-a como uma reivindicação de correntes filosóficas iluministas com vistas à reformulação das relações entre conhecimento médico e sociedade e à reparação de uma alegada decadência moral da população.

Por fim, cumpre dizer que ordenamos os textos em dois blocos. Se os quatro primeiros se encontram mais vinculados às análises de discursos produzidos sobre o corpo a partir de um viés religioso, os quatro últimos se detiveram mais em análises sobre os discursos médicos produzidos no século XVIII e no início do século XIX.

Neste dossiê, o leitor encontrará uma representativa mostra de investigações que vêm sendo realizadas por autores brasileiros e estrangeiros, que têm se dedicado a analisar, sob diferentes aspectos e enfoques teórico-metodológicos, a literatura religiosa e médica do século XVI ao XIX.

Uma boa leitura a todos!

São Leopoldo / Rio Grande, Inverno de 2017.

Eliane Fleck – Doutora em História (PUCRS), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Mauro Dillmann – Doutor em História (UNISINOS), Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

(Organizadores)


FLECK, Eliane; DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 17, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Infância, Juventude e Família / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2016

A Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS tem a satisfação de apresentar sua nova edição. Com uma posição editorial orientada pela transdiciplinaridade, essa edição segue seu ideal ao trazer produções acadêmicas que fornecem ao leitor a oportunidade de discutir temas caros às ciências humanas, por diversas abordagens e enfoques teóricos. Trata-se de explorar olhares múltiplos sobre temas comuns aos campos científicos que exploram as relações humanas. Nessa edição o Dossiê Temático “Infância, Juventude e Família” trás exemplos dessas discussões referente à essa temática ao longo da História.

Apresentamos aqui abordagens que navegam por temas como a infância e sua representação ao longo tempo até discussões jurídicas acerca da menoridade penal. Resgatar a criança e a juventude ao longo da História é um desafio, assim como entender esses agentes em nossa realidade presente. A ponte entre o presente e o passado pode nos ajudar a compreender realidades sociais esquecidas e marginalizadas como a infância desvalida e o jovem infrator, estigmas discursivos tão presentes.

Além do dossiê, esta edição ainda conta com artigos livres com temas comuns à História & Ciências Sociais, como migrações, saúde e religião, além de resenhas e a sessão Arquivo e Pesquisa. Estamos assim, imensamente gratos pela colaboração dos nossos autores, avaliadores e leitores que acreditam e tornam a RBHCS um verdadeiro instrumento de troca e produção de conhecimento para as Ciências Humanas.

Denize Terezinha Leal Freitas

Jonathan Fachini da Silva

José Carlos da Silva Cardozo

Diretores da RBHCS


FREITAS, Denize Terezinha Leal; SILVA, Jonathan Fachini da; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.8, n. 15, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Dinâmica demográficas e estudos de população / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2015

No momento em que o mundo assiste a novas ondas migratórias internacionais, o dossiê “Dinâmicas demográficas e estudos de população” abre ao leitor a oportunidade de avaliar esse processo à luz de um estudo sobre as mudanças operadas na legislação argentina dos anos 2004- 2014. Diego Sebastián Crescentino apresenta um panorama histórico do processo de formação discursiva da identidade nacional homogênea, criando o mito do argentino branco-europeu, e assim tornando invisível os demais grupos étnicos. Aponta para a importância das discussões de conceitos que embasam os princípios do multiculturalismo, e convida a uma reflexão quanto a relevância e pertinência de tais políticas no contexto da realidade cultural argentina deste início de século.

Reavaliando um aspecto importante dos estudos populacionais, quer seja, o das relações interpessoais, Alexandre Assis Tomporoski retoma um tema clássico da historiografia como o movimento do Contestado, para nos apresentar uma análise detalhada dos costumes sertanistas ligados ao trabalho, como o pixirum, uma prática indígena conhecida também por muchiron (mutirão) em outras partes do território do país, e que redundou muitas vezes na formação de bairros rurais. Os resultados dessa pesquisa procuram revelar que o conflito não se revestiu pela presença de simples jagunços e fanáticos na região do conflito, mas de homens e mulheres ditos caboclos, que dotadas de profunda racionalidade e solidariedade, lutaram pelo que era seu por direito.

O final do século XIX foi marcado pelo crescimento populacional de inúmeras cidades e vilas, quer na Europa ou América. Londres, Paris, Rio de Janeiro e São Paulo, são alguns exemplos que revelam as preocupações higienistas que emergem na mesma medida que os elevados índices de mortalidade, muitos deles causados pelas grandes epidemias, como de febre amarela, por exemplo, que obrigou os políticos e administradores das cidades a tomarem novas posturas sociais. Assim, Daniel Oliveira nos brinda com um importante estudo que nos mostra a Porto Alegre dos anos 1880 por meio de análise da mortalidade gaúcha em comparação a outros centros de população.

Recuando mais algumas décadas, Ricardo Schmachtenberg passa a estudar duas instituições importantes para entendermos dinâmicas demográficas locais, a família e a Câmara Municipal. A primeira, quer pela sua constituição legal ou não, quer pelo seu tamanho ou composição, sempre nos impõe cuidados. A segunda, uma representação do poder local, representação do poder senhorial dos “homens bons”, foi a primeira instituição política que passou a definir os rumos de cada vila / cidade que nasceu no Brasil desde a fundação da vila de São Vicente em 1532. Assim, avaliar os mecanismos de poder dessas duas instituições por meio de um estudo das relações sociais e de poder que cercaram os homens bons permite entrever a importância dos estudos sobre família, quer no passado como no presente.

A expansão dos estudos sobre as populações no passado brasileiro não apenas abriram a visão para além da casa-grande e da senzala, como permitiram perceber a existência de relações que passaram a desvendar novos grupos sociais, o de livres pobres, muitos dos quais eram oriundos da senzala, outros descendentes de nativos – negros da terra – para usar uma expressão também corrente nos documentos. O fato é que o lugar social de muitos desses livres pobres era marcado pela cor, designados de “pardos”. Assim, Mateus Rezende Andrade a partir de um cuidadoso estudo procura revelar as nuances do processo de empoderamento de pessoas numa sociedade marcada pela estratificação social, utilizando de estratégias que permeavam a conformação de redes sociais promovidas ao longo da vida dessas pessoas em meio aos ritos religiosos do compadrio, ou seja, do parentesco espiritual.

Finalmente, o dossiê é encerrado com um estudo demográfico do distrito de Guaratiba, no Rio de Janeiro, a partir de um mapa populacional de 1797 com muitas informações que foram posteriormente tratadas com o cruzamento de outras fontes documentais com a finalidade de evidenciar o potencial dos estudos de população, e revelando algumas características da população livre e cativa que viveram no passado colonial.

Aos leitores da Revista Brasileira de História e Ciências Sociais o presente dossiê traduz, enfim, a riqueza teórico-metodológica aplicada ao conhecimento histórico, sociológico e demográfico, revelando inúmeras fontes de pesquisa que tem enriquecido as análises contemporâneas sobre o passado e o presente, e permitindo um olhar mais amplo da história latino-americana e suas conexões com o mundo.

Paulo Eduardo Teixeira – Professor Assistente Doutor da UNESP – Marília e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Historiador, e atualmente coordenador da RED Demografia Histórica e História da População da Associação Latinoamericana de População – ALAP.


TEIXEIRA, Paulo Eduardo. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.7, n. 14, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Arranjos familiares: as famílias ontem e hoje / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2013

Entregamos ao leitor mais uma publicação da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS. Resultado de um árduo trabalho e, também, da surpreendente constatação do crescimento deste periódico. Foram mais de 200 trabalhos recebidos entre artigos, resenhas e transcrições, motivo de muita lisonja para a equipe de editores, todavia de grandes desafios para o Conselho Editorial.

O desenvolvimento “de vento em popa” da revista, ratificado pela manutenção em 2013 da avaliação Qualis / Capes B1 – A Nacional e pelo aumento considerável de trabalhos, trouxe novos desafios para os editores. Primeiramente, percebemos que a procura da RBHCS reflete a qualidade e o constante cuidado do processo de avaliação e editoração quanto à busca da excelência nas publicações. Em segundo lugar, isso significou um redimensionamento da quantidade de trabalho. Foram muitos problemas gerados pela enorme demanda de trabalhos. Pedimos desculpas para aqueles que, infelizmente, não conseguimos dar a atenção devida e agradecemos imensamente à paciência daqueles que aguardam uma resposta.

Esperamos que os nossos leitores e autores compreendam que este trabalho só acontece graças a uma rede mútua de trabalho que depende desde a espera dos autores, como também, da perspicácia e rapidez dos pareceristas ad hoc, bem como, da nossa agilidade e cuidado na formatação e demais procedimentos editoriais. Sabíamos que não seria um trabalho fácil, porém temos consciência e a honestidade de nos dirigirmos ao público e dizermos que estamos providenciando o mais rápido as respostas a todos os autores.

De modo geral, agradecemos a atenção e compreensão quanto as nossas limitações. E, também, dirigimos agradecimentos aos autores, leitores e demais membros do corpo editorial pelo sucesso deste nosso sonho chamado Revista Brasileira de História & Ciências Sociais!

Ótima leitura!

Ana Silvia Volpi Scott

Denize Terezinha Leal Freitas

Jonathan Fachini da Silva

José Carlos da Silva Cardozo

Editores


SCOTT, Ana Silvia Volpi; FREITAS, Denize Terezinha Leal; SILVA, Jonathan Fachini da; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.5, n. 9, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Fé, religiosidade e cultura religiosa / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2012

A Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS – finaliza seu quarto ano de existência com sua oitava edição, encerrando assim, um ano de 2012 de muito trabalho e conquistas para a RBHCS. Sempre com a meta do diálogo interdisciplinar entre a História e as Ciências Sociais a RBHCS vêm se empenhando para a divulgação da produção acadêmica nessas colossais áreas do conhecimento. Neste último ano, sentimos o peso da responsabilidade em manter um periódico em alto nível. Foram mais de cento e cinquenta trabalhos, entre artigos, resenhas e transcrições enviados de todos os cantos do Brasil e do exterior.

Um trabalho árduo para seus editores que de forma autônoma tem mantido um padrão de qualidade classificado como Qualis Capes B1 — A nacional — pela Capes / MEC. O que faz com que a RBHCS seja um motivo de orgulho e respeito a todos que fazem parte dessa realidade. Entretanto temos de salientar que para continuar mantendo esse nível e melhor atender as demandas de trabalhos ao longo do ano, para os próximos números, aceitaremos apenas artigos cuja temática esteja em afinidade com os dossiês temáticos propostos. É uma maneira de potencializarmos o processo avaliativo e a editoração afim de melhor atender aos autores que confiam seus trabalhos a RBHCS.

Nesta 8ª edição fruto dessa massiva demanda, presenteamos nossos leitores com uma edição ampliada, contando com dez artigos no dossiê temático, 16 artigos cuja temática é livre, uma resenha, uma pesquisa de iniciação científica e duas transcrições de documentos. É uma forma de retorno e agradecimento a confiança depositada na RBHCS. Então, podemos apenas agradecer infinitamente aos membros do Conselho Editorial, pelo zelo e direcionamento da RBHCS, aos membros do Conselho Consultivo pela avaliação criteriosa dos trabalhos, bem como aos pareceristas ad hoc que generosamente prestam essa gentileza com rigorosidade e elevada qualidade. E, especialmente, a você, nosso leitor a quem temos a honra de lhe entregar agora o produto final de nosso trabalho.

Que esta edição contribua para promover o conhecimento e sirva de inspiração para a produção científica.

Ótima leitura!

Ana Silvia Volpi Scott

Denize Terezinha Leal Freitas

 Jonathan Fachini da Silva

José Carlos da Silva Cardozo

Editores


SCOTT, Ana Silvia Volpi; FREITAS, Denize Terezinha Leal; SILVA, Jonathan Fachini da; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.4, n. 8, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Os trabalhadores: experiência, cotidiano e identidades / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2011

Os estudos sobre o trabalho e os trabalhadores vem sendo, por décadas, uma espécie de indicador sensível das transformações pelas quais passou e passa a história em suas relações com as ciências sociais em geral. Temas de pesquisa, fontes, conceitos e categorias analíticas, modelos interpretativos, enquadramentos teóricos: nenhum dos grandes parâmetros fortes da disciplina passou intacto pelos muitos desafios intelectuais que deram forma ao campo historiográfico contemporâneo.

Mesmo uma análise breve e resumida do panorama dos estudos sobre o trabalho nas seis últimas décadas demonstra esse argumento eloquentemente: tomando como um ponto de partida qualquer (ainda que não inteiramente arbitrário), como os estudos dos historiadores marxistas britânicos que, desde os anos 1950, redefiniram a história da Inglaterra a partir do protagonismo dos trabalhadores, podemos identificar o impulso forte, que marca os desenvolvimentos mais importantes da história social, de integrar à história os instrumentos e perguntas das ciências sociais e da antropologia. Basta lembrar a originalidade do trabalho de alguém como Eric Hobsbawm, por exemplo, que em Rebeldes primitivos (1959) estudou as formas de resistência popular, mostrando como era possível ler a “política” dos grupos subalternos em suas atitudes de desafio da lei e da ordem, como no “banditismo social” do Cangaço. Não faz falta mencionar também outro originalíssimo Englishman, que foi Edward Palmer Thompson, cujos trabalhos sobre o “fazer-se” da classe operária inglesa, sobre as revoltas camponesas pré-industriais ou sobre as relações entre lei, costume e conflito social, foram fundamentais para colocar no centro da história social o tema da experiência e do protagonismo dos atores sociais, bem como mostrar a importância da interrogação sobre a “cultura” entendida em um sentido marcadamente antropológico. Desenvolvimentos e críticas posteriores, como o chamado “cultural turn” e os estudos de gênero, também se dedicaram a repensar categorias identitárias, colocando em causa a própria ideia do “trabalhador”, chamando a atenção para sujeitos e experiências sociais que foram por muito tempo negligenciados pelos estudos mais “convencionais” sobre o trabalho, tradicionalmente centrados nos trabalhadores da indústria (frequentemente do sexo masculino e sindicalizados) ajudando a formular a crítica a uma história do movimento operário que dava destaque unicamente às associações formais dos trabalhadores, bem como às ideias políticas dos seus membros mais destacados, dando como favas contadas a “identidade de classe” e o seu significado.

Foi também o campo amplo dos estudos sobre o trabalho que descobriu e redescobriu outros atores que por muito tempo ficaram à margem da narrativa mestra da história social: não apenas as mulheres (descobrindo, por exemplo, que a “classe operária tem dois sexos” [1]), mas também os escravos e trabalhadores livres pobres na cidade e no campo, os marginalizados, o mundo do trabalho “informal” e precário, o mundo colonial e pós-colonial, em suas dimensões sociais e culturais.

A despeito das inflexões e reviravoltas, das transformações teóricas e conceituais, o leque amplo de estudos a que estamos nos referindo não deixou jamais de reconhecer a centralidade do “trabalho” na experiência social contemporânea.

No Brasil, esse entrelaçamento entre os estudos sobre o trabalho no âmbito das ciências sociais e da história tem uma trajetória igualmente rica, marcada pelas trocas recíprocas e pela atenção constante sobre as transformações do campo político contemporâneo. Aqui, mais uma vez, é nesse horizonte intelectual e político que o influxo entre a história e ciências sociais aparece com mais força e consistência, como atestam os estudos seminais, produzidos já nos primeiros anos da década de1980 (não por acaso, em resposta ao momento político da democratização e do fortalecimento do movimento operário que contribuiu com a dissolução do suporte político da ditadura militar na década anterior), exemplificados por estudos como os de Emir Sader, Maria Célia Paoli ou José Sérgio Leite Lopes – entre outros –, que aliavam a pesquisa sociológica e etnográfica a um olhar profundamente informado pela reflexão histórica.[2] Um princípio inspirador que se manteve forte e que continua a mover os debates e a renovação dos estudos sócio-históricos ainda hoje.

Diversidade temática e regional, diálogo interdisciplinar e centralidade do trabalho são elementos que se entrelaçam no dossiê da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais (RBHCS) que aqui se apresenta e que é dedicado aos estudos sobre os “Trabalhadores: experiências, cotidiano e identidades”. Nele encontramos de saída dois estudos etnográficos sobre o mundo do trabalho: O primeiro é um trabalho comparativo realizado por Marta Cioccari sobre um setor central da história operária – os mineiros – que foram protagonistas de algumas das mais significativas transformações ao longo do último século. Temas como “honra”, “orgulho do trabalho”, bem como os vários pertencimentos dos trabalhadores são investigados em duas comunidades mineiras distintas: Minas do Leão (RS) e em Creutzwald, na Lorena francesa. Flávio Ferreira, por outro lado, foca as relações entre o “tempo do trabalho” e o “tempo da festa”, também explorando o entrelaçamento e porosidade entre a esfera do trabalho e do “não-trabalho” em sua relação com a organização do tempo na Serra da Gameleira (RN). Na sequência, Jairo Falcão apresenta seu estudo sobre as memórias dos portuários de Porto Alegre, mostrando mais uma vez a importância da história oral para a reconstrução de dimensões difíceis de capturar em outros documentos, como as relações entre o trabalho, a memória e o corpo. Finalmente, um grupo de pesquisadoras na área de saúde em Santa Catarina apresentam seu diagnóstico de vida e saúde sobre um bairro de trabalhadores de Criciúma, focando elementos da violência urbana através dos registros da Delegacia da Mulher daquela cidade.

Como se pode ver, trata-se de um conjunto sugestivo de temas e de abordagens que marcam os artigos aqui apresentados, entrelaçando o interesse pelas permanências e tradições dos trabalhadores com dimensões absolutamente contemporâneas da sua experiência. Motivos mais do que suficientes para indicar fortemente a sua leitura.

Notas

1. A referência é do livro de Elisabeth Souza-Lobo, A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência. 2a edição, São Paulo: Perseu Abramo, 2011 (1a edição de 1991).

2. Paoli, Maria Célia; Sader, Eder & Telles, Vera Silva. “Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico”. Revista Brasileira de História, Vol. 3, no. 6, 1983, pp. 1291-49. Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Lopes, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo / Brasília: Marco Zero / CNPq, 1988.

Henrique Espada Lima – Professor Adjunto do Departamento de História da UFSC. Bolsista de Produtividade do CNPq.


LIMA, Henrique Espada. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.3, n. 6, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Infância, Adolescência e Juventude: olhares sobre o passado e o presente / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2010

O século XX é o século da descoberta, valorização, defesa e proteção da criança. No século XX formulam-se os seus direitos básicos, reconhecendo-se, com eles, que a criança é um ser humano especial, com características específicas e que tem direitos próprios. No século XX as pesquisas sobre a Infância entram no campo da Historia e das Ciências Humanas.

O ano de 1959 representa um dos momentos emblemáticos para o avanço das conquistas da infância. Nesse ano, as Nações Unidas proclamaram sua Declaração Universal dos Direitos da Criança, de significativo e profundo impacto nas atitudes de cada nação diante da infância. Nela, a ONU reafirmava a importância de se garantir a universalidade, objetividade e igualdade na consideração de questões relativas aos direitos da criança. A criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história, prioridade absoluta e sujeito de Direito, o que por si só é uma profunda revolução. A Declaração enfatiza a importância de se intensificar esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação.

Fundada nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e neste instrumento dos Direitos da Criança (1959), a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos promoveu em 1989 a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

O Brasil ratificou a Convenção logo em 1989, momento em que o país tratava de remover o entulho autoritário de anos de ditadura militar, acolhendo-a com grande entusiasmo. O cumprimento integral das disposições da Convenção exigiria uma ação integrada e integradora por parte do Estado e da sociedade civil, tanto no âmbito das políticas sociais universais, como no dos programas dirigidos aos grupos vulneráveis; tanto no campo de uma ação codificadora destinada à adequação das leis nacionais aos preceitos da Convenção, quanto no de uma ação concreta de políticas sociais.

A ação codificadora do Brasil está positivada já na Carta Constitucional de 1988, principalmente em seus artigos 227, 228 e 229, que seguiram a doutrina da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. Vale a pena relembrar aqui os termos do artigo 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à Criança e ao Adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A homologação dos dispositivos da Carta Magna em favor da infância, fundados na Declaração dos Direitos Humanos e na Declaração dos Direitos da Criança foi estabelecida primorosamente no Estatuto da Criança e do Adolescente o ECA , assinado em 1990. Este documento legal representa uma verdadeira revolução em termos de doutrina, idéias, práxis, atitudes nacionais ante a criança. O ECA colocou o Brasil como modelo em termos de leis em favor da criança.

Em 1984, quando foi criado na USP, o CEDHAL (Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina), seu Projeto de pesquisas inaugural, multifacetado intitulou-se: A Criança e a Família na Historia da População Brasileira. De forma sistemática, coletiva, com metodologias avançadas inaugurava-se no país a inclusão da Criança na pesquisa da Historia Social.

De lá para cá, houve um avanço extraordinário nos conhecimentos sobre a criança brasileira (aqui entendida, como pela ONU, como todo o ser menor de 18 anos). Sabemos hoje muito mais sobre a criança da elite, a criança pobre, a criança abandonada, a criança escrava, a liberta, a negra, a indígena, a criança na escola. Trata-se de um campo de pesquisas vasto, multifacetado, complexo e exige grandes esforços para se conhecer melhor esse segmento da sociedade, exige proteção e cuidados especiais em razão de sua falta de maturidade física e mental.

As dificuldades começam justamente pelas fontes. Os conhecimentos sobre a criança no passado se dão pela escrita dos adultos, e de modo geral de adultos homens e das categorias letradas. As fontes escritas preservadas são escassas, espalhadas, pontuais. Uma verdadeira garimpagem pelos arquivos vem revelando, nos últimos anos, acervos novos que trazem luzes sobre facetas ou setores da infância que não se conhecia.

A Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, demonstrando sua concepção avançada incluiu neste seu número especial a temática da “Infância, Adolescência e Juventude: olhares sobre o passado e o presente” estimulado pesquisadores que estão trabalhando na área a escreverem artigos sobre a Criança.

A variedade de assuntos deste número mostra a percepção da amplitude do interesse atual de jovens pesquisadores em aprofundar os conhecimentos sobre o tema da infância. São aqui incluídos trabalhos que vão do sepultamento dos anjinhos no Ceará, aos contratos de trabalho infantil no século XIX, em área de São Paulo, à experiência única de uma escola paroquial no sertão na Bahia, criada e dirigida por um monge cisterciense alemão em meados do século XX, à colocação da juventude como valor a partir da referencia ao cotidiano, passando pelas crises dos anos de 1980 expressas em música Rock e as referencias sobre a atenção normativa sobre a infância e a adolescência expressas no ECA de 1990.

Os artigos aqui publicados mostram a variedade de temas na História da Criança. Será certamente um estímulo ao desenrolar de novas pesquisas, com novas fontes e em novos campos a serem iniciadas.

Maria Luiza Marcílio – Professora Titular de História da USP. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP, desde 1997.


MARCÍLIO, Maria Luiza. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.2, n. 4, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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A sociedade no século XX / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2009

O século XX pôs em movimento experiências sociais, culturais e políticas em quantidade e velocidade nunca experimentada anteriormente pela humanidade. Em nenhum outro momento da história os homens foram tão impactados por seus próprios atos e pelas conseqüências (im)previstas destes.

A indústria do século XX liberou forças produtivas em escalas nunca imaginadas, utilizando-se de recursos naturais de forma vertiginosa, com pouca ou nenhuma preocupação com a sustentabilidade. Mudanças profundas nas relações de e no trabalho tiveram implicações marcantes sobre a subjetividade e sociabilidade humana. O “modelo” fordista de produção, em meio a um processo de urbanização crescente, contribuiu decisivamente para emergir simultaneamente um modo de consumo insustentável e a massificação de diferentes expressões da vida, do trabalho ao lazer. O século XX não havia terminado e este padrão de desenvolvimento entra em declínio dando lugar a novos arranjos organizacionais e tecnológicos no mundo do trabalho. Tais transformações juntamente com as políticas de corte neoliberais, que retornam a cena na década de 1970, fragilizaram ainda mais o trabalho frente ao capital, trazendo inseguranças muito agudas para os trabalhadores. O desemprego, que ainda hoje assombra a contratualidade social, é a conseqüência mais visível, de um conjunto de transformações profundas em curso.

Em outro plano o século XX revela um complexo menu de experiências políticas tais como diferentes manifestações do socialismo e democracias capitalistas, nacionalismos, fascismo, nazismo, ditaduras militares na America Latina, levantes anticoloniais, assim como movimentos sociais diversos.

Mesmo contendo experiências políticas nefastas, comparativamente a outros momentos da história pode-se dizer que foi um século de ampliação dos valores democráticos e dos direitos sociais. Vale registrar, também, as conquistas realizadas pelas mulheres e a instituição de direitos fundamentais para as crianças. Mas, simultaneamente o século XX foi o mais violento da história humana com duas grandes guerras mundiais e dezenas de ininterruptos conflitos civis e entre nações. Acredita-se que mais de 100 milhões de pessoas tenham perdido a vida nestes conflitos.

Assistimos igualmente, ao longo do século, a uma vertiginosa torrente de inventos e descobertas que mudaram a vida biológica, social e subjetiva de imensos contingentes humanos. A mecânica quântica, as viagens espaciais, os antibióticos, os transplantes, a televisão, a lâmpada, a telefonia, computadores e inúmeros eletrodomésticos, são alguns exemplos. Por outro lado, o século XX ainda não havia chegado a sua metade e Walter Benjamim (1892-1940), em uma de suas Teses sobre a Filosofia da História, vale-se de uma pintura do suíço Paul Klee (1979 -1940), o Angelus Novus, para interrogar os horrores produzidos pelo progresso e a forma desorientada pela qual nos dirigimos ao futuro.

Por tudo que até agora referimos o que mais me chama a atenção no século XX é a grande quantidade de paradoxos que a experiência humana pôs em movimento.

Para as ciências humanas o século XX foi incrivelmente profícuo, não apenas em razão do acelerado processo de institucionalização de suas disciplinas, mas, sobretudo pelos avanços produzidos em relação a alguns postulados do Iluminismo e do Positivismo. Embora este embate epistêmico e social ainda esteja em curso dentro e fora das universidades, ganham força no final do século XX os empreendimentos teóricos e empíricos que procuram: i. superar antinomias tais como sujeito / objeto, material / ideal, sociedade / individuo; ii. descentrar o sujeito iluminista; e iii. mostrar que as ciências humanas não produzirão os meios para um conhecimento e controle integral das ações humanas e que a contingencia e o risco, em maior ou menor grau, é verdade, sempre estarão presentes.

Em outro artigo lembrei de uma frase de Tristão de Ataíde que diz : “o passado não é o que passou. É aquilo que fica do que passou.” Nesse sentido podemos afirmar que, em alguma medida, para o bem e para o mau, o século XX ainda está entre nós e, portanto, devemos seguir levantando algumas de suas bandeiras. A ampliação e aprofundamento dos valores democráticos na sociedade e o exercício da política seguem sendo urgentes e imprescindíveis.

Fernando Coutinho Cotanda – Doutor, professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.


COTANDA, Fernando Coutinho. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.1, n. 2, Dez., 2009. Acessar publicação original [DR]

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