Formação de profissões de natureza técnica ou científica / História Unisinos / 2018

O presente dossiê propôs-se a reunir trabalhos de pesquisadores interessados na análise de processos sociais que se situam na origem da formação de profissões de natureza técnica ou científica, na especialização crescente de meios profissionais ligados ao conhecimento científico e na formação de burocracias públicas de perfil tecnocientífico.

Optamos deliberadamente por uma categorização ampla de profissão “técnica” e / ou “científica”, incluindo sob esta uma série de atividades assentadas em formação acadêmica específica, muito especializadas e cujo exercício profissional se encontra altamente codificado. Assim, além dos trabalhos mais frequentes no meio, como aqueles sobre engenheiros e médicos, também nos interessava destacar outras profissões, bem como a burocracia pública ligada a diferentes formas de expertise científica. Nossa aspiração se confirmou, e este dossiê reúne, além dos atores habituais, uma gama variada de profissões e espaços institucionais pouco frequentes no campo da história social, como aqueles onde atuavam comerciantes, enfermeiras, assistentes sociais ou advogados.

Na maior parte das vezes, deparamo-nos com estudos que se debruçam sobre as características sociais de indivíduos e coletivos envolvidos em projetos de organização profissional, ou seja, sobre situações em que indivíduos tomam parte em projetos institucionais que poderão vir a ter sucesso, mas que ainda não o são. Logo, não se trata aqui de enxergar sob a etiqueta “profissional” papéis estabelecidos e inconfundíveis, mas de se buscar perscrutar os caminhos sociais que levaram à construção das profissões em destaque, às identidades básicas propiciadas pela experiência do trabalho ou da formação escolar, aos sucessos evidentes de empreendimentos “de classe”, mas também aos seus fracassos memoráveis.

Os trabalhos aqui reunidos trazem recortes temporais concentrados, em sua maioria, no século XX, e apresentam análises prosopográficas, de trajetória, da relação entre Estado e profissionais e de projetos políticos e institucionais de formação profissional, entre outras perspectivas.

Embora os textos aqui presentes pudessem ser organizados de diferentes formas, sobretudo obedecendo a algum ordenamento temático, optamos pela distribuição por ordem cronológica aproximada.

Em Francisco Antônio de Sampaio: de cirurgião a homem de ciências (Vila de Cachoeira, Bahia, c. 1780), Lorelai Kury e André Nogueira problematizam as práticas médicas e científicas de Francisco Antônio de Sampaio. Cirurgião, segundo os autores, quase totalmente esquecido pela historiografia das ciências do mundo colonial, Sampaio foi alvo de fiscalização do Protomedicato por extrapolar seu ofício num período em que há, justamente, um aumento desta fiscalização por parte do Reino. Analisando fontes que incluem quatro cartas enviadas por Sampaio à Academia das Ciências de Lisboa, entre 1783 e 1793, e que fornecem informações sobre acontecimentos relevantes de sua atuação profissional e sobre seus estudos relativos à natureza da região em que vivia, os autores concluem que a produção científica do cirurgião visava à sua afirmação como produtor de conhecimento e sua inserção na República das Ciências lusa e brasileira no período da Ilustração.

Em Tentativas de organização do ensino técnico para o comércio e as funções públicas no Instituto Comercial do Rio de Janeiro (1856-1880), Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam os esforços públicos para, através da criação do Instituto Comercial do Rio de Janeiro, em 1856, e até o seu fechamento, em 1880, dotar o país de um espaço de formação técnica profissional do pessoal do comércio, mas, igualmente, preparar adequadamente a burocracia pública destinada ao Tesouro, às Alfândegas e aos consulados. Restando incumpridas as promessas e se vendo declinar a atração dessa formação entre os potenciais interessados, o projeto do Instituto Comercial vai sofrendo ajustes até terminar por ser extinto pouco mais de duas décadas depois. O que os autores nos mostram é o possível descompasso entre a percepção dos agentes públicos promotores da criação e institucionalização do Instituto Comercial e a realidade do ambiente dos diferentes estratos de trabalhadores do comércio, menos propensos a um nível de especialização cuja utilidade não parecia de todo evidente, assim como a existência de incertezas face ao aproveitamento real dos egressos na administração pública, promessa central da formação e que seria objeto de uma reforma parcialmente bem-sucedida, já no início dos anos 1860. Caso interessante de análise, a criação e o desaparecimento do Instituto Comercial permite vislumbrar o caráter efêmero de certos projetos institucionais não associados diretamente, ou associados apenas parcialmente, à pressão social de grupos por formação técnica ou acadêmica, formação que oferecesse recursos tangíveis para sua promoção social.

O texto seguinte, de Rogério Monteiro, Pureza e desinteresse como distinção: as matemáticas entre engenheiros politécnicos na virada do século XIX para o XX, coloca em primeiro plano os processos de autonomização profissional da Engenharia e das Matemáticas. O autor mostra como o declínio em importância das Matemáticas entre os engenheiros, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século passado, coincidiu com a aceleração dos processos de institucionalização profissional da engenharia e, ato contínuo, da busca, pelos matemáticos, de um reposicionamento no campo profissional, reivindicando para si o reconhecimento da ciência pura e, portanto, da profissão de cientista: “Pressionados pela desvalorização daquilo que faziam, ao invés de abraçarem a profissionalização da carreira dos engenheiros […] procuraram construir um outro espaço institucional”. Os marcadores desse movimento dos matemáticos seriam os ideais de pureza e desinteresse.

Interações entre os espaços públicos e privados também aparecem, e são mesmo elemento de destaque, no texto de Henry Marcelo Martins da Silva, Nos trilhos do capital: “engenheiros industriais” e ferrovias em São Paulo no início do século XX. Partindo do decreto de falência de quatro companhias ferroviárias paulistas, em março de 1914, o autor vai desvelando as circunstâncias e as personagens do processo, sugerindo que ambiente econômico favorável, disseminação de práticas de participação acionária em investimentos públicos e privados e ausência de instrumentos de regulação, permitiram o florescimento de negócios de legalidade duvidosa, capitaneados por ditos “industriais”, no caso “engenheiros industriais”. Trata-se aqui de um estudo muito rico em evidências acerca de práticas financeiras abusivas que surgem na esteira das grandes oportunidades abertas pela rápida expansão econômica e, sobretudo, pela expansão dos serviços públicos. Neste cenário, o conhecimento, por parte de certos agentes, os “engenheiros industriais”, acerca do funcionamento e das iniciativas dos setores públicos, sua capacidade de antecipação e mesmo de impulsionar a agenda de atuação pública, dela capitalizando os dividendos, oferecem um diferencial importante e reforçam sua posição. Cabe-nos arrolar aqui os recursos e circunstâncias que viabilizaram a rápida ascensão e o declínio desse grupo de “engenheiros industriais”: trajetória e contatos acadêmicos, percurso inicial no serviço público, ambiente de forte expansão econômica e de serviços públicos, acesso facilitado a recursos e investimento público e privado, baixo escrutínio público sobre essas atividades.

O artigo O serviço público de saúde no município de Araraquara. Do Posto Sanitário ao Health Training Center: análise de uma trajetória, de autoria de Cristina de Campos, Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho e Soraya Lódola, apresenta o percurso da saúde pública em Araraquara, São Paulo, a partir da análise dos serviços de saúde locais durante a primeira metade do século XX. Durante o período analisado, os poderes públicos municipal e estadual e a instituição filantrópica norte-americana Fundação Rockefeller atuaram no município conduzindo e orientando a saúde pública. A alternância e a atuação destes entes públicos e privados na questão da saúde criaram um ambiente diferenciado, onde circularam diferentes agentes regionais, nacionais e internacionais que marcaram presença dominante na administração da saúde do município. Foram analisadas, para o desenvolvimento do projeto, fontes salvaguardadas em arquivos nacionais e internacionais, relatórios do poder público municipal e estadual, além dos produzidos pela Fundação Rockefeller.

Luiz Otávio Ferreira e Renata Batista Brotto analisam, em Nordestinas e normalistas: um estudo sobre as características socioculturais das alunas de uma escola católica de enfermagem no Brasil (1940-1960), a ação institucional da Igreja Católica brasileira no campo da enfermagem ao longo da primeira metade do século XX. A partir de um estudo prosopográfico que utiliza como fontes informações encontradas em dossiês de 408 alunas da Escola de Enfermagem Luiza de Marillac (EELM), a primeira escola de enfermagem de orientação católica fundada no Brasil (Rio de Janeiro, 1939), o estudo busca estabelecer as características socioculturais e econômicas das enfermeiras diplomadas pelas escolas de enfermagem de orientação católica analisando variáveis como ocupação econômica dos pais, escolaridade, faixa etária e estado civil, entre outras. Os autores destacam a restrição à presença de mulheres negras entre as alunas da EELM.

Em Estado, capitalismo e profissão: metamorfoses da advocacia nas décadas de 1940 a 1960, Marco Aurélio Vannucchi oferece uma análise densa do perfil mutante da profissão de advogado num período-chave da modernização social, política e institucional do país. Neste, ocorre a consolidação das entidades representativas, particularmente a OAB, mas também a disputa pela representação se acelera. Crescimento do assalariamento, expansão vertiginosa dos cursos de formação da profissão, perda relativa de importância na concorrência com outros profissionais – cientistas sociais, economistas – no tocante a posições no Estado, mas institucionalização de novos órgãos públicos de acesso exclusivo pela profissão jurídica, como é o caso do Ministério Público, são algumas das muitas mudanças que ocorrem no cenário profissional dos advogados no período em análise.

O artigo de Bruno Sanches Mariante Silva, por sua vez, intitulado Tecnificação e gênero no corpo laboral da Legião Brasileira de Assistência: assistência social e modernidade (1945-1964), discute a atuação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), fundada por Darcy Vargas em 1942, no contexto da II Guerra Mundial. Utilizando como fonte principal o Boletim da Legião Brasileira de Assistência e se valendo de conceitos como gênero, o autor analisa, entre outras questões, a estrutura do corpo laboral da LBA e as transformações que a instituição sofreria ao longo do período analisado, quando se observaria a passagem de uma atuação orientada pela caridade para uma assistência mais técnica e científica, em que se destacariam os(as) assistentes sociais.

Em Aparato estadístico, paradigma de la planificación y desarrollismo en Argentina (1955-1970), Claudia Daniel analisa o espaço de produção das estatísticas públicas argentinas ao longo dos governos desenvolvimentistas. No texto são tratados o regime de produção estatístico que vigorava no período, as relações entre a agência oficial e as novas dinâmicas institucionais apresentadas pelo Estado desenvolvimentista, as disputas entre diferentes agências que produziam conhecimentos relevantes para o Estado e a profissionalização do setor. Daniel oferece um olhar mais amplo sobre a complexidade do Estado e de seus agentes, entre os quais ganham destaque as elites técnicas estatais, seus saberes e estratégias. Em suas palavras: “o caso da estatística pública [poderia ser também o caso de várias outras especialidades ou espaços profissionais descritos neste dossiê] serve como uma porta de entrada para entender o funcionamento do Estado moderno tomando em consideração as tensões que se dão em seu interior, as distintas dinâmicas e temporalidades que o habitam”.

Em nosso último artigo, intitulado La capacitación en salud pública en la Argentina entre 1900-1960, Carolina Biernat, Karina Ramacciotti e Federico Rayez têm como objetivo refletir sobre os projetos e a implementação de sistemas estatais e universitários de formação de médicos sanitaristas na Argentina durante o século XX. Estes sistemas buscavam formar quadros técnicos e administrativos para satisfazer as demandas de saúde pública e aperfeiçoar o pessoal que já ocupava cargos no sistema sanitário do país. A partir da análise de fontes como os Archivos de la Secretaría de Salud Pública (1946-1949), a Memoria del Ministerio de Salud Pública de la Nación (1946-1952), a Revista de Salud Pública (1962-1969) e o Boletín de la Asociación Argentina de Salud Pública (1963- 1970), entre outras, os autores discutem a formação histórica da saúde pública como especialidade na Argentina e a formação de médicos especialistas na área entre o final de 1950 e início de 1960. São enfocadas, ao longo do texto, experiências ocorridas em Buenos Aires, entre as quais a instituição, em 1958, de um curso universitária a partir da fundação da Escuela de Salud Pública de la Universidad de Buenos Aires.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Ana Cardoso de Matos – Universidade de Évora

Ana Paula Korndörfer – Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Flávio Madureira Heinz – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro


MATOS, Ana Cardoso de; KORNDÖRFER, Ana Paula; HEINZ, Flávio Madureira. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.22, n.4., novembro / dezembro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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