Fronteiras, sertões e território / Projeto História / 2020

O número 69 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Fronteiras, sertões e território”. Em linha com nosso projeto editorial, interessa-nos abrir espaço para multiplicidade teórica, temática e regional.

Esse número buscou jogar luz para a produção historiográfica acerca do Brasil de dentro, mas também de regiões afastadas dos centros de poder de outros países da América do Sul. Esse número pretende abrir espaço para os estudiosos das zonas interioranas, dos sertões profundos, das fronteiras em seus vários sentidos. Sertão, aqui, não significa apenas o semiárido nordestino, mas sobretudo o interior, variado e múltiplo, áreas culturais, históricas e geográficas cuja historicidade nem sempre tem o devido espaço na historiografia brasileira.

A ampliação dos programas de pós-graduação durante os governos Lula (2002-2010) e Dilma (2010-2016) foi notável, ampliando a produção historiográfica, inclusive em universidades localizadas no interior do país. Apesar da interrupção da expansão e, pior dos ataques a universidade, é preciso reconhecer que uma considerável produção intelectual. Mas é preciso difundir esse conhecimento, nascido, quase sempre o financiamento público.

Pensar as fronteiras, os sertões, os interiores, os territórios sempre em disputas a partir da história reconhece a inevitável interdisciplinaridade, aberto às conexões geográficas, artísticas (da pintura à literatura), geopolíticas (e cartográficas), sociológicas e simbólicas que a temática impõe, temática de nenhum modo presa a recortes temporais fechados.

Não é por outra razão, portanto, que abrimos o dossiê com o artigo Leituras da apropriação territorial europeia na sedimentação de identidades no Brasil, de Jorge Luiz Barcellos da Silva. Nele, o autor buscou identificar de que maneira as diferentes leituras das territorialidades se constituíram em ferramentas auxiliares na sedimentação de identidades no Brasil. Partindo da análise de pinturas de Ekhout e mapas com distintas representações da América portuguesa, Barcellos da Silva demonstra como essas representações do território e de seus habitantes instrumentalizaram a sistematização do processo da posse europeia em diferentes partes do mundo. No caso específico do Brasil, o autor argumenta que foram os fundamentos topológicos que enquadraram os discursos e práticas dando sentido às apropriações territoriais e ao estabelecimento de fronteiras, conferindo novos contornos ao entendimento do que seria o Brasil.

Logo em seguida apresentamos o texto de Gabriel Passetti, intitulado “La cuestión de limites”: intelectuais, diplomatas e a disputa pelas fronteiras entre Argentina e Chile (séculos XIX a XXI). A sensibilidade para temas latino-americanos é um firme compromisso da Projeto História, que não hesitou em nunhum momento em aceitar a proposta. No artigo, o autor coloca em foco as discussões acerca da linha internacional de fronteiras a partir de uma perspectiva comparada e conectada, dando protagonismo às conexões entre intelectuais, diplomatas, políticos e militares. O artigo apresenta o modo como a produção dos intelectuais sobre a questão dos limites entre Argentina e Chile foi levado à esfera pública, culminando na mobilização e construção de rivalidades e tensões internacionais que quase acabou levando os países à guerra em três ocasiões.

O terceiro artigo do dossiê, intitulado Visões sobre o humano: a fronteira-sertão do Brasil meridional (1889-1905), é assinado por Bruno Pereira de Lima Aranha. Neste trabalho, de notável qualidade, o autor se propõe a analisar os relatos das expedições brasileiras destinadas à fronteira com a Argentina entre 1889 e 1905, na atual província de Misiones (Argentina) e regiões sudoeste do Paraná e oeste de Santa Catarina, bem como o Rio Grande do Sul (Brasil). O objetivo é alargar a ideia de fronteira, tradicionalmente pensada a partir de um marco delimitador, inserindo-a em uma concepção baseada na experiência de fronteira móvel, caracterizada por uma borderland, idealizada por viajantes como um sertão a ser ocupado formalmente pelo Estado. O autor destaca as percepções acerca dss populações sertanejas desses espaços, caracterizada por diversas nuances, especialmente pela transnacionalidade do espaço, cuja demarcação, de fato, sequer havia ocorrido.

Na sequência apresentamos o artigo Reflexões sobre uma zona de fronteira no século XVII: a província do Guairá e Sertão dos Carijós, de Dora Shellard Corrêa. Neste trabalho a autora discute as relações de poder e o conhecimento que os europeus detinham sobre fronteiras dos impérios ibéricos localizadas na porção Sul do continente americano. Trata-se de um espaço indígena, localizado no atual estado do Paraná, mas que, na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do XVII, configurava parte da província espanhola do Guairá, também conhecida como Sertão dos Carijós pelos portugueses. Seu objetivo é discutir esse movimento das fronteiras europeias na América durante o mercantilismo, destacando que a realidade do conceito de fronteira é muito mais complexa do que a que vem sendo descrita, sobretudo se levarmos em conta uma dinâmica espacial indígena à qual os portugueses e demais europeus que ocuparam a região tiveram que se adaptar.

O quinto artigo deste dossiê intitula-se A ferrovia e a ocupação do sertão paulista: a Companhia Paulista e sua linha tronco oeste, pesquisa de Cristina de Campos e Luciana Massami Inoue. As autoras analisam o papel das ferrovias na estruturação do território paulista durante o século XIX, destacando dois momentos: o primeiro, que seguia o ritmo do avanço do café pelo interior; e o segundo, quando as companhias ferroviárias passaram a antecipar as plantações. É neste segundo momento que o foco das autoras irá se concentrar, em especial no que diz respeito à linha tronco oeste da Companhia Paulista, que teriam constituído uma espécie de modelo de ocupação de sertão, de acordo com o que foi observado nas áreas por onde se constituíram as principais companhias ferroviárias paulistas.

O artigo intitulado A escola “Pluvífera” e as secas no Nordeste do Brasil: o caso do “Gargalheiras” (1877-1959), assinado por Yuri Simonini, Ângela Lúcia Ferreira e Adriano Wagner da Silva, trata da duradoura ressonância que as discussões e críticas feitas pelo Instituto Politécnico sobre as secas de 1877 no Nordeste tiveram no debate sobre a influência climática a partir da construção de grandes reservatórios. Recorrendo aos métodos e a contribuição historiográfica da História Ambiental, os autores utilizaram os relatórios governamentais a fim de detalhar as teorias surgidas no Oitocentos que acabaram por legitimar propostas e edificações de barragens levantadas no século seguinte como foi o caso de Gargalheiras, em Acari, no Rio Grande do Norte.

Em seguida publicamos O Nordeste brasileiro e o Noroeste argentino: o sertão cearense e o chaco seco santiagueño em meio às secas da década de 1930, assinado por Leda Agnes Simões de Melo. Nele a autora se dedica a uma análise comparada das coberturas jornalísticas da forte seca que atingiu o estado do Ceará, no Nordeste brasileiro, e a província de Santiago del Estero, no Noroeste argentino, durante a década de 1930. Os periódicos analisados pela autora foram o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e El Mundo, de Buenos Aires. Seu principal objetivo é investigar como as construções discursivas da cobertura jornalística de ambos periódicos estavam ligadas ao padrão de sociedade moderna desses territórios no decorrer dos séculos.

O oitavo artigo deste dossiê, escrito por de Juciene Batista Felix Andrade, intitula-se Os sertões em debate: fronteiras, secas e instituições. Nele a autora problematiza o tema das “secas” no Nordeste a partir de uma perspectiva historiográfica, propondo uma breve incursão nos reportórios de memória estabelecidos nos mais distintos suportes documentais. O destaque conferido pela autora à essa diversidade documental e narrativa acerca das “secas” serve para deslocar o olhar dos historiadores dos sertões de um repertório já muito empregado e consagrado, mais ligados à literatura e ao folclore, para outras temáticas, o trabalho, a economia, as técnicas, os corpos, etc. A pesquisa se vale de importante documentação, como os relatórios técnicos, plantas baixas, ofícios, telegramas, jornais, etc. A diversificação da problemática e das fontes contribuem para alargamentos e enriquecimento do que poderíamos chamar de história social dos sertões.

Em seguida apresentamos o artigo “Doutores” do Sertão: Discursos do III Congresso Médico do Brasil Central (1951), de Éder Mendes de Paula. Neste trabalho, o autor analisa os discursos proferidos durante o III Congresso do Brasil Central e V do Triângulo Mineiro, a fim de compreender as relações entre região e nação. Ao perceber a oposição de sentidos que os médicos atribuíam aos conceitos de saúde e doença nos estados do Brasil central em relação aos do litoral, o autor propõe uma reflexão acerca da construção das concepções de saúde e doença. A pesquisa também trata da própria identidade dos médicos, a partir de uma perspectiva sertaneja segundo as abordagens dos próprios participantes do evento em Goiânia no ano de 1951.

O artigo seguinte, escrito em formato ensaístico, intitula-se Memória, escrita de si e identidade nos sertões: ensaio sobre a busca por novas alteridades nas fronteiras, por Evandro Santos. Neste trabalho o autor parte da problematização acerca da dimensão social da produção do conhecimento científico para refletir acerca das possibilidades e limites da escrita da história desde os sertões. No que diz respeito à temática mais específica deste dossiê, o artigo investiga o impacto exclusivamente exterior sobre regiões fronteiriças, como os sertões, apresentando um estudo de caso do sertão do Rio Grande do Norte como resultado de uma pesquisa mais ampla sobre os sertões nordestinos.

O fechamento deste dossiê se dá com o artigo O Brasil sertanejo: a construção do espaço nacional em O sertanejo (1875) de José de Alencar, escrito por Artur Vitor de Araújo Santana e Natanael Duarte de Azevedo. Neste trabalho os autores partem da literatura de José de Alencar, em particular o romance O sertanejo. O objetivo é analisar a construção de um espaço nacional no qual o interior do Brasil é visto como uma paisagem autêntica e o vaqueiro é o principal personagem na formação social do país. Para tanto, Santana e Azevedo recorrem a uma análise mais internalista do romance, buscando caracterizar a geografia física sertaneja e relacioná-la aos debates e concepções da época sobre a nação. O estudo não deixa de abordar a recepção da obra de Alencar nos periódicos do Rio de Janeiro.

Na seção dedicada aos artigos livres, a Projeto História publica O Menino do Gouveia: a história real que inspirou o primeiro conto homoerótico brasileiro de 1914, de Valmir Costa. No artigo, o autor reconstitui o lançamento do primeiro conto homoerótico do Brasil, “O Menino do Gouveia”, lançado em 1914, pela revista erótica O Rio Nu (1898-1916). Pautada em distintos periódicos cariocas da época, a pesquisa revela que o conto é inspirado em fatos reais e que o nome Gouveia acabou por se transformar em gíria e mesmo lenda urbana no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. O trabalho de reconstituição das condições de publicação e circulação do conto revela, dentre outros aspectos, os espaços e as opções sócios sexuais para a experiência da homossexualidade masculina na virada do século XIX para o XX.

Já o segundo artigo livre, chamado a A guinada pragmática da linguagem e “a invenção do cotidiano”, de Gerson Luís Trombetta e Fabrício Antônio Antunes Soares, nos apresenta as características gerais da “guinada pragmática da linguagem”, especialmente na filosofia de Ludwig Wittgenstein. Mais que isso, os autores também apontam como as teses centrais dessa “guinada da linguagem” influenciaram a obra de Michel de Certeau, acerca da narrativa historiográfica, postulando que a maneira como se dá o diálogo teórico entre Certeau e Wittgenstein abre perspectivas para a narrativa historiográfica que extrapolam as limitações empiristas.

A Projeto História, interessada em valorizar a produção de jovens pesquisadores, mantém há muitos anos a seção Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de mestrado de Bruna Carolina de Oliveira Rodrigues, intitulada O embaixador de Hollywood e o cinema brasileiro (1953 – 2000). Nela a autora reconstitui a trajetória de Harry Stone, um lobista dos interesses do cinema estadunidense no Brasil, durante o período em que este viveu no país.

Por fim, o volume 69 da revista se encerra com duas resenhas. A primeira, da pesquisadora Thays Fregolent de Almeida, mais ligada ao dossiê, Fronteiras, sertões e território, trata da obra coletiva Rondon: inventários do Brasil (1900-1930), organizada pelas professoras Lorelai Kury e Magali Romero Sá, em 2017. Já a segunda resenha, em linha com o projeto editorial da revista, comprometido com a pluralidade, abre espaço para a história da escravidão durante o período imperial no Brasil. Em Estado imperial, ordens religiosas, senhores e escravos em um contexto de crise, William de Souza Martins debate a tese de doutorado de Sandra Rita Molina, publicada em livro pela Paco Editorial em 2016.

É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil, e mesmo outros países, possam contribuir com suas pesquisas.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que eles possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Alberto Luiz Schneider

José Rogério Beier


SCHNEIDER, Alberto Luiz; BEIER, José Rogério. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.69, 2020. Acessar publicação original [DR]

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