Gerações, família, sexualidade | Gilberto Velho e Luiz Fernando Duarte

Os organizadores deste livro já são conhecidos dos cientistas sociais no Brasil. Tanto Gilberto Velho quanto Luiz Fernando Duarte representam uma parte importante da antropologia urbana brasileira e foram os responsáveis por esta obra. Além deles, contribuíram para o livro Myriam Moraes Lins de Barros, Jane Russo e Maria Luiza Heilborn, também autoras bastante conhecidas dos cientistas sociais.

Inicialmente, os autores ressaltam a importância do tema para a antropologia urbana, citando a Escola de Chicago e a antropologia social britânica como fontes importantes para a discussão. Também destacam a discussão interdisciplinar, principalmente através da psicologia, como uma rica contribuição para esses debates.

O texto trata das transformações no âmbito da sexualidade e da família, enfocando prioritariamente as mudanças sociais referentes a gênero e gerações. Tal temática já vem sendo abordada de forma interessante por autores como Michel Bozon, cientista social francês que tem produzido principalmente com Maria Luiza Heilborn.

O texto “Sujeito, subjetividade e projeto”, de Gilberto Velho, aborda uma discussão que o autor já faz desde a década de 1980. Velho – que cita Alfred Schutz e George Simmel como fontes importantes do seu trabalho – apresenta seu objeto de investigação, que são as trajetórias individuais dos sujeitos e as gerações. Isso porque analisa hoje a geração dos que seriam filhos dos seus pesquisados do passado. Sua preocupação com a temática aparece há muito tempo, desde quando elaborou sua tese de doutorado. Só que neste texto fica explícito o que tem procurado investigar: o que muda nessas gerações, principalmente através dos “objetivos e metas, […] valores e autopercepções de individualidade e subjetividade” (p. 9).

O autor aponta para mudanças significativas dos sujeitos e suas relações consigo mesmo e com aquilo que ele chama de “ethos psicologizante” (grifo do autor). Curiosamente, localiza nos estoicos esse processo sobre a individualização dos sujeitos, mas, devido à brevidade do artigo, não chega a aprofundar seus argumentos. No fim do artigo, o autor estabelece as relações da sua pesquisa com países como Portugal e Estados Unidos, além de citar alguns pesquisadores da mesma temática, como já foi apontado por Simmel. Sem apresentar grandes novidades, o artigo faz uma retrospectiva do que o autor produziu até os dias de hoje.

O texto de Luiz Fernando Dias Duarte – intitulado “Família, moralidade e religião” – aponta para a complexidade da administração da vida privada nas diferentes camadas sociais da vida urbana no Brasil. Há, conforme o autor, uma oposição entre os valores como religião, família, moralidade e, principalmente, sexualidade na modernidade. Três interessantes questões vêm sendo estudadas por ele, junto a camadas populares, são elas: a) há formas de conjugalidade diferentes de modelos tradicionais contrastando com formas que reforçam padrões de casamento tradicionais; b) existe um aumento da individualização da sexualidade, ao mesmo tempo que existe uma ampliação sobre seu controle; e c) ocorre um aumento da adesão às religiosidades específicas de certos segmentos, simultaneamente à diminuição da religiosidade e da crença em jovens. Para o autor, isso tem relação com o aumento do subjetivismo.

Segundo Duarte, não existe uma diferença entre camadas sociais sobre essas alterações de moralidade. Assim, tanto camadas médias superiores quanto camadas populares podem oscilar entre esses padrões. Uma pista interessante sugerida por Duarte e que pode contribuir com as pesquisas sobre essa temática é que, independentemente dos diferentes níveis de camadas sociais, o processo de individualização também é importante presença na constituição da singularidade de camadas sociais de baixa renda. Esse fato é muitas vezes negligenciado por pesquisadores que diferenciam as classes sociais pelas distâncias sociais econômicas entre elas.

O autor cita que dentro de camadas médias e letradas existe uma concepção de que ser moderno é estar mais atento às mudanças de comportamentos de sexualidade e relativos – controle de natalidade, mais especificamente. Aqui, mesmo que não tenha sido citado, é possível comparar ao clássico texto de Giddens sobre A transformação da intimidade.1

A contribuição de Duarte aqui é apontar de forma significativa as tensões sobre as disposições “liberais” e as “morais”, mas não fica claro como estas se constituem no universo social desses grupos sociais. Ele utiliza uma categoria que curiosamente chama de “desentranhamento” (p. 23) e que é uma das responsáveis por compreender as mudanças sociais na vida cotidiana.

O autor ao final revela que a sua proposta foi de, através do conceito de cismogênese (abordado de forma muito interessante em seu texto), encontrar elementos teóricos para compreender as “tensões contrastivas” que se apresentam para esses grupos, principalmente a partir da experiência religiosa.

No texto “Três gerações femininas em famílias de camadas médias”, Myriam Moraes Lins de Barros aborda as transformações sociais e de gênero advindas do envelhecimento da população. O estudo enfocou principalmente as mulheres, por meio de 24 entrevistas. Foram escolhidas mulheres nascidas nas décadas de 1940 e 1950, devido às transformações sociais que vão desde o casamento até o trabalho ocorridas para essas gerações.

A autora ressalta a importância dos movimentos sociais da década de 1960 para a “configuração dos valores individualistas” (p. 48). Ela deixa claro que seu interesse é descobrir formas psicológicas de introjeção dos valores individualistas. Uma leitura à primeira vista demonstra forte influência da psicologia, uma marca de todos os trabalhos desta obra. Myriam de Barros ainda aponta para a importância de se entenderem as relações de gênero nas dinâmicas interacionais.

Uma das principais mudanças, segundo a autora, é sobre a compreensão de conjugalidade para as mulheres entrevistadas, que se diferenciou a partir das gerações pesquisadas. A autora identificou tensões entre os grupos pesquisados, principalmente atreladas às diferenças geracionais. O processo de individualização foi fundamental para que as entrevistadas pudessem estabelecer novas relações com seus parceiros, assim como com suas famílias.

No texto intitulado “A sexologia na era dos direitos sexuais: aproximações possíveis”, de Jane Russo, a temática é a politização dos movimentos sociais sobre a sexualidade. Ela inicia falando do movimento gay e sua articulação para tirar a homossexualidade do rol das perversões.

A autora faz uma constatação: houve, simultaneamente, uma politização das sexualidades divergentes e uma medicalização da sexualidade heterossexual. Ela revela que a preocupação com a sexualidade surge na passagem do século XIX para o século XX com estudiosos, dentre eles talvez o mais conhecido seja Havelock Ellis. Essas considerações são claramente influenciadas por Foucault, citado pela autora em diversos momentos. Um apontamento trata da discussão de Russo sobre a despatologização dos chamados desvios sexuais, a partir do discurso sobre os direitos sexuais. O interessante é que, ao mesmo tempo que isso acontece, existe uma crescente disciplinarização da sexualidade dos casais heterossexuais.

A autora apresenta um quadro com datas e acontecimentos políticos significativos para a discussão sobre os movimentos sociais que lutaram contra a medicalização da sexualidade, como a Revolta de Stonewall, por exemplo, em 1969. Aqui vale lembrar o recente livro intitulado Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade,2 que faz uma importante retrospectiva do movimento gay nos Estados Unidos e no Brasil.

O que a autora revela é que começa a haver um levantamento de novas condutas da sexualidade para os casais heterossexuais, principalmente as defendidas como ideal de saúde e bem-estar. Assim como Michel Bozon,3 ela cita o surgimento do Viagra como a inauguração da medicalização da sexualidade. O curioso é que, com o lançamento desse medicamento, aumenta o conceito de disfunção erétil como um problema de saúde pública nos Estados Unidos, atingindo 52% dos homens entre 40 e 74 anos, ou seja, existe uma orientação da sexualidade que passa por uma forma de medicalização dela.

No último texto, intitulado “Homossexualidade feminina em camadas médias no Rio de Janeiro sob a ótica das gerações”, Maria Luiza Heilborn aborda – em uma etnografia realizada em sua tese de doutoramento no Rio de Janeiro com mulheres homossexuais – fortes características de uma valorização da conjugalidade. A autora se propõe a investigar as gerações e a maneira como as suas entrevistadas apresentavam-se em relação à própria orientação sexual. Revela que sua preocupação não está relacionada com a identidade sexual, mas é inegável que essa discussão a tangencia em todo o seu texto. Ela elabora uma interessante definição de conjugalidade, centrando-a principalmente em um tipo de relação estabelecida entre os companheiros, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais. Ainda assim, talvez esse conceito pudesse ser mais bem descrito, pois, em caso de pesquisas, a ideia de “não conjugalidade” dificulta uma distinção, por exemplo, de uniões estáveis para namoros com casais que não coabitam e também se relacionam afetiva e sexualmente. Curiosamente, em sua atual pesquisa, a autora identificou que as mulheres recusaram o modelo de masculinidade lésbica.

A análise é relativa à sexualidade como uma biografia, citando John Gagnon, que tem sua primeira obra publicada no Brasil em 2006, intitulada Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade.4 Tal perspectiva tem encontrado forte amparo nos pesquisadores das ciências sociais, principalmente na Europa e no Brasil. O estudo parte do que Gagnon chama de scripts sexuais: uma relação entre perspectivas sociais, interpessoais e intrapsíquicas; uma teoria complexa, mas de grande contribuição para o campo de conhecimento da sexualidade. Heilborn ainda aponta que os scripts sexuais podem ser úteis para compreender as nuances cada vez mais significativas da orientação sexual, não como algo fixo, mas sim fluido. Aqui é clara uma influência do pensamento queer de Butler, mesmo sem ser citado.

A autora aborda ainda que existem poucas produções sobre homossexualidade feminina no mundo acadêmico nacional, mas que aparecem já algumas teses e dissertações relativas ao tema. Isso teria relação com a imbricação entre sexualidade e gênero. A visibilidade é muito maior entre homens gays do que entre mulheres. A autora revela que a conjugalidade acaba sendo uma preferência das lésbicas, devido à sua constituição caracteristicamente atribuída ao universo feminino.

A obra analisada apresenta contribuições interessantes em relação à temática, principalmente da sexualidade e do gênero, passando pela discussão sobre família e gerações. Mas o que chama realmente a atenção é a influência do processo de individualização sobre os sujeitos, que, na maior parte dos artigos, se faz presente. Essa discussão é um dos principais objetos da psicologia, especialmente da psicologia social. Mas o que podemos identificar é que existe aqui um claro diálogo interdisciplinar que está presente nos trabalhos dos autores e da antropologia que eles abordam.

Os artigos apresentam, na maior parte das vezes, uma contribuição importante para as discussões sobre as mudanças sociais e da família e sua interlocução sobre a sexualidade, ainda que por vezes pudessem aprofundar mais ou trazer outros textos, pois o livro apresenta apenas cinco artigos. Seria mais enriquecedor se outros autores participassem também com suas pesquisas sobre a temática. Ainda assim, como é de praxe, os autores trazem leituras instigadoras para novos pesquisadores que se aventuram no campo da sexualidade, do gênero e da família.

Notas

1 Anthony GIDDENS, 1993.

2 Marco Aurélio Máximo PRADO e Frederico Viana MACHADO, 2008.

3 Michel BOZON, 2004.

4 John GAGNON, 2006.

Referências

BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004.         [ Links ]

GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.         [ Links ]

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades. 2. ed. São Paulo: UNESP, 1993.         [ Links ]

PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.         [ Links ]

Leandro Castro Oltramari – Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade do Sul de Santa Catarina


VELHO, Gilberto; DUARTE, Luiz Fernando (Orgs.). Gerações, família, sexualidade. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009. 96 p. Resenha de: OLTRAMARI, Leandro Castro. As transformações na família e na sexualidade. Revista Estudos Feministas, v.18, n.3, 2010.

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Três famílias. Identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares – DUARTE; GOMES (CP)

DUARTE, Luiz Fernando Dias e GOMES, Edlaine de Campos. Três famílias. Identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2008. Resenha de: FINAMORI, Sabrina. Pesquisando a própria família. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

Mais do que um livro que se destaque pelo ineditismo ao tratar de famílias de classes populares, Três famílias apresenta uma ousada proposta etnográfica e uma reflexão apurada sobre o fazer etnográfico. Logo na introdução, nos é informado que as três famílias referidas no título são a do autor, Luiz Fernando Dias Duarte, a da autora, Edlaine de Campos Gomes e a família Costa, pesquisada por Duarte entre as décadas de 1970 e 1980 e, posteriormente, num contato retomado no início dos anos 2000. Baseado em pesquisa histórica e etnográfica, o livro apresenta uma interessante análise transgeracional destas três famílias que se, por um lado, pode ser considerada polêmica, devido à peculiaridade da pesquisa, por outro, se mostra como um vigoroso exemplo das possibilidades analíticas presentes nos estudos de família.

A introdução apresenta a temática do livro, já anunciando a discussão sobre a particularidade da etnografia, que será melhor discutida no primeiro capítulo, onde os autores problematizam, em específico, como fazer pesquisa sobre a própria família, refletindo ainda acerca das implicações éticas do empreendimento. Cada um dos três capítulos que se seguem se referem a uma das famílias em questão, apresentando e analisando os dados etnográficos particulares a elas. Nas três famílias abordadas, os autores partiram de um casal fundador de referência e sua descendência, todas elas caracterizadas como famílias de camadas populares, nas quais a relação com a casa, o bairro, a localidade é também bastante importante. Os três últimos capítulos analisam, conjuntamente, as três famílias por meio dos eixos: casa, condições diferenciais de reprodução e auto-afirmação.

Certamente, o ponto alto do livro é a refinada discussão feita na introdução e no primeiro capítulo sobre como, e porque, tomaram suas próprias famílias de origem como tema de pesquisa. Do mesmo modo, os capítulos sobre os Duarte e os Campos são os que apresentam a análise e a discussão etnográfica mais relevante. Contudo, no capítulo sobre os Costa destacam-se os ganhos analíticos de um trabalho de campo continuado e mesmo do retorno ao campo após muitos anos da pesquisa. O livro apresenta ainda um rico e extenso diálogo com grande parte da bibliografia sobre parentesco e família.

A prosa bem articulada e envolvente nos leva, logo na introdução, aos percalços enfrentados pelos autores ao empreenderem uma etnografia sobre a própria família. As tensões provocadas pelo trabalho se deram tanto nas primeiras apresentações públicas, nas quais se chegou a questionar a validade da etnografia como também no núcleo familiar. Nesse sentido, não só os ganhos do empreendimento são enfatizados, mas também, talvez até com maior ênfase, as possíveis limitações da proposta, como a disparidade de informação etnográfica entre os três casos ou o possível destaque nas etnografias a um “informante” privilegiado. No caso dos Campos, por exemplo, a proeminência da figura da filha mais velha do casal original, mãe de Edlaine, como “informante” privilegiada, à princípio pode parecer problemática, mas no conjunto da etnografia fica evidente o que ela representa em termos de agregação da família.

No decorrer dos capítulos, a grande rentabilidade analítica do trabalho acontece nos momentos em que os autores conseguem fazer uma leitura entrelaçada das diferentes condições de gênero, geração, classe, raça, religião, localidade, que marcam cada circunstância analisada. Outro ponto relevante na análise diz respeito às formas de agência, marcadas tanto pelo entrelaçamento de categorias como por um forte senso de “pertencimento familiar”.

Gênero, em específico, embora não apareça como categoria central na análise, poderia ter sido melhor aproveitado em alguns momentos. Um deles é quando, na introdução, os autores problematizam as circunstâncias particulares da pesquisa. Ainda que eles mencionem que a diferença de gênero entre os dois pesquisadores é importante, na medida em que levou a um acesso diferencial a certos pontos de vista, eles não chegam a problematizar essa diferenciação. Nesse sentido, as diferenças geracionais entre os pesquisadores e suas implicações na pesquisa são mais esmiuçadas tanto na introdução como também ao longo da obra.

Há que se destacar que ao problematizar questões pessoais que permearam a etnografia sobre suas próprias famílias, os autores não fazem disso um exercício biográfico, mas partem dessa discussão para chegar a questões antropológicas mais amplas sobre parentesco, família, religião e sobre a própria feitura de uma etnografia. Embora muitos antropólogos recorram a redes pessoais para conduzir a pesquisa, poucos trazem isso a público. A coragem em apresentar publicamente a condição particular da pesquisa e o modo claro e direto com que informam ao leitor do que estão tratando, seus métodos, dificuldades, caminhos possíveis é um dos grandes méritos do livro e é por meio do que nos contam os próprios autores que, talvez, possamos inferir algumas diferenças entre as etnografias dos Duarte e dos Campos.

A proposta de realizar uma etnografia da própria família teria partido de Luiz Fernando Duarte, quando este coordenava o projeto “família, reprodução e ethos religioso”, do qual Edlaine Campos Gomes fazia parte. Em diversos momentos, a pesquisadora teria trazido dados da própria família para iluminar as questões que então estavam sendo estudados. A curiosidade crescente do antropólogo o levou a propor que ela pesquisasse explicitamente sua família e que no relatório final houvesse uma reflexão sobre as implicações dessa decisão. A rentabilidade da proposta foi visível e Duarte decidiu incluir também sua própria família na pesquisa.

Os autores relatam o não-estranhamento de Edlaine ante a sugestão de Duarte em investigar sua família de origem. Esse não-estranhamento está claramente estampado na escrita à vontade dela sobre os Campos e no modo atilado como expõe e analisa questões pertinentes de sua etnografia em diálogo com uma extensa bibliografia sobre as questões que propõe.

A qualidade etnográfica, que salta à vista no capítulo sobre os Campos, pode se dever ao fato de a família da antropóloga ser mais numerosa, implicando assim um volume maior de informações e de questões ou mesmo devido ao tipo de etnografia empreendida – enquanto a etnografia dos Duarte é focada em duas gerações passadas, cujos membros já eram falecidos no momento da pesquisa, a dos Campos é apresentada também numa situação contemporânea. Contudo, é possível que a análise articulada e a escrita confortável de Edlaine estejam relacionadas a uma das questões relatadas no livro – não era a primeira vez que a antropóloga acionava “informantes” em sua rede de parentesco para uma pesquisa antropológica. Quando ainda era assistente de pesquisa, ela teria servido como elo entre pesquisadores seniores e seus objetos de pesquisa por ser quem era: originária da Baixada Fluminense e das camadas populares, por associação, ainda que integrante de um ramo ascendente de sua rede familiar (35).

Essa é também uma questão importante acerca das pesquisas antropológicas com camadas populares nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense, que se intensifica a partir de meados dos anos de 1980 com a emergência, na época, de alunos provenientes de áreas periféricas à Universidade, os quais serviam como “informantes privilegiados” e facilitavam o acesso de pesquisadores a essas áreas. Desse modo, como destacado na introdução, não foi, para ela, grande novidade empreender pesquisa na própria família, embora tenha sido importante a passagem de auxiliar e “informante” à de autora. Há que se destacar assim a grande qualidade etnográfica do trabalho de Gomes bem como sua coragem em enfrentar questões teóricas importantes face aos dados provenientes de sua própria família.

A dinâmica das famílias de classes populares aparece freqüentemente relacionada à casa de origem, a um bairro ou uma localidade. Nesta obra, essa questão é examinada com especial atenção no quinto capítulo, no qual a análise se estende tanto para espaços particulares da casa – o quintal, a varanda ou a cozinha -, que podem ser fundamentais para a organização e reprodução familiar, como também para além dela – a vizinhança, o bairro no qual está inserida, as mudanças pelas quais o local passa ao longo do tempo. A casa aparece, então, como “espaço moral”, espaço da memória e mesmo como termo irmanado à família.

A proximidade das residências dos membros da família é mais um elemento considerado na análise, pois estaria relacionado à manutenção da reciprocidade. Mesmo num contexto em que se reconheça que os vínculos familiares estão se perdendo, a família parece ainda operar, em muitos contextos, como rede de socorro mútuo. Nesse sentido, o compadrio, por exemplo, continua a ser identificado como expressão de obrigações recíprocas. Outros elementos importantes a respeito da casa são a comensabilidade e a circulação de parentes, vizinhos, agregados e crianças nas três famílias analisadas. Segundo os autores, a casa pode ser experimentada como “casa da família”, “casa da família e local de passagem” e “casa da família e local de moradia”, enfatizando as correlações entre o local e o pertencimento familiar.

Casa e religião também se conectam. Entre os Costa, a matriarca era rezadeira e parteira, a casa assumia, portanto, o viés de templo quando os vizinhos e parentes eram recebidos na varanda para serem “rezados”. Entre os Duarte, Milton, um dos filhos do casal original, era médium e, muitas vezes, a casa serviu como ponto de reunião das sessões de “mesa branca”. Na família Campos, a matriarca era católica praticante, mas tinha relações com religiões afro-brasileiras, nas gerações seguintes as religiões neopentecostais ganharam espaço. Neste caso, o uso da casa como espaço religioso ganhava ainda peculiaridades devido à ocupação do quintal com pequenas casas geminadas. Assim, era comum que enquanto uma das noras incorporasse entidades de Umbanda, em outra casa estivessem rezando novenas e orações. As relações entre localidade, religião e família são particularmente analisadas na etnografia sobre os Campos, na qual a conversão de alguns membros da família a religiões evangélicas é marcada pela adesão da prática religiosa da mãe do marido, que é melhor entendida tendo em vista a regra de patrilocalidade, que parece reger aquele grupo – são as mulheres da rede familiar que se mudam para o “quintal” da família de seus maridos e adotam a religião da sogra. Em todas as famílias, o pluralismo religioso era freqüente, no caso dos Campos, em especial, a extensa conversão a religiões evangélicas levou a disputas de espaço e mesmo ao questionamento do pertencimento familiar, quando, por exemplo, os católicos passaram a considerar que a “família de fé” dos evangélicos estava assumindo maior importância do que a “família de sangue”.

No sexto capítulo, “Condições diferenciais de reprodução”, os autores intercruzam categorias para analisar as condições e o acesso diferencial a bens de reprodução, enfocando o trabalho, o habitus, o estudo e a habitação. Aqui, mais uma vez, as relações entre localidade e família são fundamentais para compreender as relações com trabalho e estudo, por exemplo, entre os Costa e os Campos, que tiveram o acesso à escola dificultado pela localização marginal da casa de origem, ao contrário do que teria ocorrido entre os Duarte.

Os autores destacam que a mais óbvia distribuição diferencial de recursos entre os membros de uma frátria se dá em função de gênero e posição, beneficiando os descendentes mais velhos, bem como os homens em relação às mulheres. Neste caso, ao analisar as trajetórias educacionais e de trabalho de homens e mulheres da segunda geração, especialmente nas famílias Campos e Costa, percebe-se resultados contraditórios. Embora as famílias tenham feito maiores investimentos sobre a afirmação dos homens, desde muito cedo, a prioridade para eles era o trabalho; assim, as mulheres acabaram tendo maior tempo de escolaridade, do qual se beneficiaram futuramente com melhores condições de trabalho no mercado de serviços, enquanto alguns de seus irmãos teriam ficado relegados à instabilidade dos trabalhos manuais.

A questão racial, por sua vez, é retomada ao se falar da corporalidade e das estratégias e trajetórias matrimoniais, invocando-se aqui a dimensão da “beleza”, da constituição física, dos estigmas e dos juízos relativos à “cor”. Na família Campos, a questão racial é relevante desde o casal original por meio da ideologia do branqueamento, claramente estampada na frase de Elza, a filha mais velha, quando se remete à memória familiar: “todo mundo só quer se lembrar dos portugueses”. Nas outras famílias, embora a questão não seja explícita, Duarte especula sobre as diferenças de “cor” entre os membros da frátria de seu pai, observada através do acervo fotográfico e das narrativas sobre a história familiar. O ponto mais interessante talvez seja a reflexão do autor sobre o silenciamento da questão racial na família, silenciamento este que o próprio pesquisador não conseguiu quebrar nas entrevistas, passando, então, segundo ele mesmo, a participar da perpetuação nativa do silêncio.

O último capítulo retoma o importante trabalho de Luiz Fernando Duarte (1986) sobre a vida nervosa na classe trabalhadora, abordando, de modo mais pormenorizado, as categorias de individualização e individuação. Os autores concluem, contudo, que nenhuma dessas categorias daria conta de tratar das identidades, projetos e processos de reprodução das famílias que abordam, as quais, embora sejam de classe popular, encontram-se entre as camadas menos pauperizadas e com possibilidades de acesso a condições de reprodução que permitiram a alguns de seus membros ascenderem à classe média, o que teria ocorrido, por exemplo, com os ramos dos quais eles próprios fazem parte. Optam, então, por utilizar a categoria auto-afirmação. Destacam ainda que o processo de auto-afirmação está ligado à classe, idade, desenvolvimento de unidade doméstica, circunstâncias históricas conjunturais e, portanto, só fazem sentido situacionalmente. As possibilidades de agência e auto-afirmação são assim dependentes do intercruzamento de múltiplos fatores. Desse modo, retomam “situações” de cada família nas quais houve um processo de auto-afirmação, fosse por nuclearização familiar, estudo, profissionalização ou militância política. Destacam, por fim, que quando esses processos são bem-sucedidos podem levar à transição para uma nova condição e identidade social, embora fique claro também que a tensão permeia o processo: na medida em que um ramo familiar ascende socialmente, as relações com a família original tornam-se mais sujeitas a sofrer abalos.

Se toda escolha por um recorte ou perspectiva metodológica pode comportar limitações, a boa etnografia é, em geral, aquela que tira o melhor proveito possível das opções que fez. Os autores destacam que o livro é um experimento e como experimento pode ter limitações e estar sujeito a controvérsias, é, contudo, um livro muito bem-sucedido e bem-vindo exatamente pelas controvérsias e debates que põe a claro. Unindo boa etnografia, diálogo constante com uma extensa bibliografia sobre família e parentesco e uma escrita que entrelaça de modo competente etnografia e teoria, o livro conduz o/a leitor/a por uma contundente análise que não deixa dúvidas sobre a relevância continuada do campo de estudos de família para a antropologia. O livro é de interesse tanto para aqueles que estudam família ou religião como também para qualquer antropólogo interessado numa instigante discussão sobre etnografia.

Referências

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas). Rio de Janeiro, Jorge Zahar/CNPq, 1986.         [ Links ]

Sabrina Finamori – Doutoranda em Ciências Sociais – área de Estudos de Gênero – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Bolsista Fapesp). [email protected].

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