Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935) – SOUZA (RBH)

Publicado em 2017, Em busca do Brasil, de autoria de Vanderlei Sebastião de Souza, é fruto da tese de doutorado defendida na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e agraciada com o III Prêmio de Teses da Anpuh, no biênio de 2011-2012. Os cinco capítulos que compõem o livro trazem à tona a preocupação com o tema da identidade nacional na trajetória política e científica do médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Em especial, a obra analisa a sua relação com a antropologia física, suas interlocuções transoceânicas e a ampla discussão racial mobilizada durante as primeiras décadas do século XX. Leia Mais

A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo – ROUSSO (RTA)

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Rumo à catástrofe. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.333‐338. jan./abr., 2017.

A história do tempo presente está na moda. De uma abordagem comparada em curioso tom pejorativo ao jornalismo e à sociologia, nos últimos anos ela passou a receber tratamento atencioso no mercado editorial e obteve demonstrações de prestígio na Academia. Da rarefação passamos à oferta ampla. Este movimento, que levou a HTP da periferia para o cerne dos debates historiográficos, pôde ser observado no número crescente de congressos, workshops, simpósios temáticos, grupos de pesquisa e publicações dedicadas à rubrica.

Porém este avanço inspira cuidados. Como lembrou Robert Darnton ao tratar do Iluminismo, quando algo “está começando a ser tudo”, pode findar sendo nada (DARNTON, 2005:18). É preciso, então, buscar uma definição mais acertada das fronteiras, dos procedimentos e das especificidades da história do tempo presente. É este o desafio assumido no livro A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo, do historiador francês Henry Rousso, publicado no Brasil pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2016.

Nos quatro e densos capítulos – além da introdução e da conclusão –, a obra originalmente publicada em francês com o título La dernière catastrophe : L’histoire, le présent, le contemporain (Paris, Gallimard, 2013) propõe questionamentos e apresenta respostas possíveis com desenvoltura e coragem. Com o objetivo de “retraçar a evolução, compreender os móbiles, explicar os paradigmas e os pressupostos dessa parte da disciplina histórica que passou, em algumas décadas, da margem ao centro” (18), Rousso toma a metáfora da catástrofe como “revolvimento” e “desenlace teatral”(28) para, no desenrolar dos ensaios, oferecer uma leitura que parece colocar ordem no caos de abordagens sobre a história do tempo presente.

Os ensaios escritos pelo pesquisador nascido no Cairo, em 1954, são distribuídos através dos capítulos: 1. A Contemporaneidade no passado (31‐98), 2. A guerra e o tempo posterior (99‐164), 3. A contemporaneidade no cerne da historicidade (165‐218) e 4. O nosso tempo (219‐280). Os dois primeiros ensaios percorrem a trajetória da história do tempo presente, enquanto nos seguintes, sobretudo no último, Rousso encara o desafio de pensar respostas aos problemas que levanta na obra.

Assim, após demonstrar a persistência da ideia de uma história do tempo presente na longa duração, o autor evidencia uma forma “particular” de HTP a partir dos anos 1970. O olhar de Rousso percorre a historiografia produzida na Inglaterra, Alemanha e América do Norte, mas é na França, a sua base acadêmica – lembramos que ele é pesquisador do renomado Institut d’histoire du temps present, além de possuir atuação frequente no universo acadêmico dos EUA – o espaço de maior atenção, justamente por ver ali algumas das manifestações centrais ao desenvolvimento do campo.

De modo geral, na argumentação de Rousso, temos dois vetores importantes, dois “momentos inaugurais” fundamentais: a I Guerra Mundial – na qual emergem a testemunha, a busca por coleções e a figura do expert, e a II Guerra Mundial – que reforça a importância do passado recente enquanto objeto.

Mas se as duas guerras mundiais foram elementos fundamentais para uma mudança na prática e na percepção histórica, é nos anos 1950‐1970, que a HTP amplia a sua inserção como disciplina e obtém considerável apoio da mídia. A ideia de acontecimento e “acontecimento‐monstro”, como chamou Pierre Nora (1976), ganha contornos mais evidentes com episódios como o caso dos reféns nas Olimpíadas de Munique (1972) ou a Guerra do Vietnã (1955‐1975), eventos televisionados que ampliaram a demanda social por explicações “históricas”. Um sintoma deste avanço pode ser percebido na ocupação pelos historiadores de importantes espaços midiáticos na Europa (Georges Duby foi, provavelmente, o caso mais emblemático).

Mas quais as fronteiras do presente? Onde ele começa? Para Henry Rousso, na última catástrofe. O autor nos lembra do anjo pintado por Paul Klee (1879‐1940), o Angelus Novus (1920), o mesmo mencionado por Walter Benjamin (1892‐1940) em suas Teses sobre o conceito de História, de 1940. Ali, na nona tese lê‐se que “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1994:226).

Portanto, são os historiadores a definir a última catástrofe. Tais eventos catastróficos exigem das gerações a reflexão e a consequente síntese da sua história recente, implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado. E quais os eventos “inaugurais” possíveis? Anos emblemáticos como 1789, 1917, 1940 (ao menos para a França), 1945, 1989 e 2001? Para além dos anos inaugurais, conforme o autor, a história contemporânea enquanto um conhecimento constituído a partir da mediação é caracterizada pelo peso dos eventos catastróficos, pela demanda social em torno do historiador, pelo quase inevitável envolvimento judicial e pela importância dada à memória e à testemunha. A propósito, a presença da testemunha é marca deste tipo de pesquisa e é necessário considerar os influxos da emergência da “testemunha que vê, a testemunha que fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único” (282), como adverte Rousso.

Uma coisa importante é que o autor não apenas provoca questionamentos, mas demonstra coragem em respondê‐los no decorrer das 341 páginas do livro. A obra nos convida a refletir sobre o ofício do historiador e suas tarefas no século 20. Rousso aponta a relevância do debate sobre o problema fundamental da periodização. A proximidade com os eventos e os desdobramentos disto. Em que medida o historiador deve estar afastado? “A queda do Muro de Berlim ou os atentados de 11 de setembro podem por sua vez constituir fronteiras para um novo período contemporâneo? É… cedo demais para dizê‐lo” (279). Não há resposta fácil quando se trabalha com história do tempo presente.

O livro demonstra que a ideia de contemporaneidade sofreu profunda evolução.

Se “toda história é história contemporânea”, como afirmou Benedetto Croce (1866‐1952), Rousso adverte, no entanto, que: “Isso não significa, contudo, que existe uma concepção contínua e imutável através de vários milênios na maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as finalidades de escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização para a outra” (281).

Mas, sim, toda história é contemporânea na medida em que “a história do passado encerrado que seria distinto, e até mesmo cortado em relação ao tempo presente, não tem sentido realmente” (41). Diferente de outros momentos, não se trata de obter o conhecimento a partir de uma ação da Providência ou de uma revelação, é importante considerar a história como conhecimento mediado como uma mudança crucial no sentido atribuído ao tempo presente.

Por sua vez, a ideia de memória é fundamental à história do tempo presente, pois ela descola a HTP do presentismo, da ideia de uma história imediata. A memória confere duração. Deste modo, Henry Rousso ressalta que se configura como um antídoto ao presentismo, não de um sintoma deste fenômeno. A desconstrução de uma leitura linear da história e a valorização das idas e vindas, da presença do passado no presente e do presente no passado exige o trabalho em duas frentes, como lembra o autor: “a da história e a da memória, a de um presente que não quer passar, a de um passado que volta para assombrar o presente, sendo a distinção entre as duas por vezes indisfarçável” (302).

A publicação da obra em português ocorre em momento bastante adequado, em tempos de ampla demanda por reflexões dos historiadores, dias de tensão nos rumos do Brasil, do Mundo, mas também em momento de duros questionamentos acerca do papel social do historiador, da sua necessidade nas salas de aula e da sua validade na orientação das políticas públicas. Neste aspecto, a obra contempla a situação de inúmeros intelectuais que, em diferentes países e contextos, foram chamados a colaborar em processos judiciais, foram interpelados pelas vítimas e pressionados pelos agressores.

Neste sentido, Henry Rousso nos lembra que “o historiador do presente mantém relações conflituosas com o poder, seja religioso, seja político” (282). Em tempos de Donald Trump acelerando o relógio do Armagedon na Casa Branca, Marine Le Pen tocando o tambor da xenofobia na França e quando, no Brasil, assistimos, atônitos, alguém democraticamente eleito ser afastado do cargo com votos dos que celebram eufóricos, cheios de ódio e preconceito, os piores momentos da ditadura e seus torturadores mais temidos, ler A Última Catástrofe é convite irrecusável.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. I.p.222‐234 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NORA, Pierre. O Retorno do Fato. in NORA, Pierre, LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.p.179‐193 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

Dilton Cândido Santos Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós‐Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Produtividade CNPq. Brasil [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

 

Ensino de História: usos do passado, memória e mídia – ROCHA (RHH)

ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; RIBEIRO, Jaime; CIAMBARELLA, Alessandra (Org.). Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014. 280p. Resenha de: SILVA, Célia Santana. As noções de usos do passado e de cultura histórica como instrumental analítico para a prática e a pesquisa no Ensino de História. Revista História Hoje, v. 4, nº 8, p. 322-327 – 2015.

Os temas relacionados ao Ensino de História trazem reflexões que buscam enfrentar os desafios colocados atualmente pelas diversas demandas, temáticas e possibilidades para a história escolar. Qual história ensinar? Como equilibrar uma história que tem no seu projeto inicial um objetivo nacional com os interesses e expectativas dos sujeitos individuais e coletivos? São desafios que levam os pesquisadores a refletir sobre o uso social da história e suas interfaces entre o Ensino de História e a circulação social da história em diferentes esferas de produção, além de possibilitar considerações acerca dos usos do passado em variadas mídias. Isso significa também a ampliação de diálogos e olhares com e para a história pública, ou seja, as histórias que são produzidas para e além dos muros da escola.

O livro Ensino de História: usos do passado, memória e mídia é uma coletânea de artigos organizada em três partes, e resulta de uma iniciativa de pesquisadores que compõem e/ou dialogam com o Grupo de Pesquisa “Oficinas de História”.1 Organizado por Marcelo Magalhães, Helenice Rocha, Jayme Fernandes Ribeiro e Alessandra Ciambarella, o livro conta ainda com pesquisadores – Temístocles Cezar, Maria Lima, Angela de Castro Gomes, Aléxia Pádua Franco, Flávia Eloisa Caimi, Júnia Sales Pereira, Eucidio Pimenta Arruda e Rodrigo Bonaldo – vinculados a outras instituições universitárias, especialmente dos eixos Sul e Sudeste: Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, respectivamente (UFU, UFMG, UFF, UniRio, UFRGS e UPF).

São pesquisadores que alinham suas perspectivas com o intuito de discutir as interfaces entre Ensino de História e a circulação social da história por meio das diferentes mídias e usos do passado, identificando a complexidade da relação passado-presente no fazer histórico. Eles convidam os leitores para algumas reflexões que repercutem desde o campo epistemológico da história até questões relacionadas ao enfrentamento que os historiadores estabelecem no contexto das discussões atuais sobre os usos do passado. Partindo de temas vigentes os/as autores/as que assinam os artigos do livro apresentam questões direcionadas para se pensar o Ensino de História como prática social e propõem discussões importantes para a formação do profissional de história que investiga o ensino e seus desdobramentos como objeto da pesquisa histórica.

Informa-se que o principal objetivo do livro é promover um “diálogo produtivo entre discussões da historiografia e do ensino de história, elaborando de forma reflexiva as fronteiras entre campos de pesquisa e reafirmando as relações constitutivas entre o mundo acadêmico e o escolar no ensino de história”.

Para esses autores, devem-se ampliar as perspectivas do Ensino de História, considerado aqui como uma manifestação da história pública.

Dividido em três partes: “Diálogos entre a História e seu Ensino”, “Usos do Passado: a história escolar” e “Usos do passado: a divulgação histórica”, o livro apresenta 11 artigos que podem ser lidos individualmente, mas que também se complementam, pois tratam de temas em que o leitor pode exercitar interpretações diversas. Essa divisão se faz necessária para estabelecer diálogos, ampliar as discussões, e “superar os últimos cantões de encastelamento de uma história elitizada” no sentido de dar a conhecer a noção de história pública, que incorpore seus diversos públicos. A primeira parte apresenta alguns conceitos bastante atuais e mobilizados nas pesquisas sobre Ensino de História, tais como memória e mídia, regimes de historicidade e consciência histórica.

Na segunda parte o enfoque recai sobre as estratégias didáticas no Ensino de História e seus desdobramentos, as mudanças que ocorreram como resultado das políticas de avaliação dos livros didáticos de história. Por último, propõe-se discutir como as mídias estão presentes e se relacionam com o Ensino de História, tornando-se textos ou resultantes de produtos culturais diversos. São partes que dialogam mesmo sendo independentes, e percebe-se que as noções apresentadas em cada parte do livro atravessam toda a obra.

Instigando professores, pesquisadores, estudantes e diversos públicos da história à busca por temas diferenciados e adensando discussões antes não iniciadas ou mesmo tratadas com superficialidade, o livro possibilita, com uma escrita firme e consistente nos vários artigos, novos olhares para o Ensino de História. Fazendo uso de uma bibliografia atual e diversificada, percebe-se uma disposição dinâmica e arrojada em apresentar um livro irmanado com as pesquisas históricas do tempo presente. Partindo dessa premissa, nota-se como estão ocorrendo alguns dos muitos usos do passado no espaço escolar, como as diversas memórias estão sendo mobilizadas e como as várias mídias se constituem como estratégias para esses usos do passado e são entendidas como instrumentos utilizados para o Ensino de História no ambiente escolar.

Os artigos que compõem a parte “Diálogos entre a História e seu Ensino” versam sobre os tempos históricos, os regimes de historicidade, mas também analisam como os elementos do passado se fazem presentes na sala de aula mediante produtos culturais disponíveis no mundo social. São textos que demonstram uma densidade teórica e uma boa incursão historiográfica empenhada em contextualizar e problematizar alguns conceitos a partir da cultura histórica.

O Ensino de História vem se renovando, e os historiadores mostram essa renovação por múltiplos olhares. Na abordagem de “O sentido de ensinar história nos regimes antigo e moderno de historicidade”, Temístocles Cezar utiliza o conceito de regime de historicidade para apresentar as relações entre o passado, o presente e o futuro, destacando a necessidade de reflexões sobre o atual regime de historicidade no sentido de evidenciar o presente como fator determinante dentro da experiência histórica, configurando o que Hartog chama de presentismo. Helenice Rocha, em “A presença do passado na aula de História”, convida a observar como elementos do passado se fazem presentes na sala de aula, e como os professores fazem uso dos produtos culturais que tratam do passado e estão à disposição no mundo social.

Finalizando as discussões dessa primeira parte da coletânea, Maria Lima apresenta algumas reflexões que propiciam novos argumentos para uma discussão atual e pertinente no campo do Ensino de História, que é a aprendizagem histórica, explicada pela autora quando ela sinaliza que é preciso didatizar os conhecimentos, tornar ensinável o que os aprendizes trazem, perceber que antes de ser aluno é preciso ver um sujeito com aprendizagens e saberes. Apresentando diferentes autores que sob perspectivas epistemológicas diferentes sistematizaram os conceitos de consciência histórica, cultura histórica e educação histórica, bem como os seus usos, o artigo se torna uma nova referência para quem busca estudar e debater os sentidos do ensino da história.

No texto, a autora tece considerações afirmando o mérito positivo das pesquisas e dos grupos analisados por ela, que vêm apresentando e desenvolvendo instrumentos para se pensar as possibilidades de reflexão sobre os jovens e crianças e suas relações com os saberes históricos. Certamente o sentido do Ensino de História não está dado, mas busca-se o melhor caminho a seguir. A consciência histórica e a educação histórica certamente acenam como uma possibilidade a ser seguida.

Na segunda parte, “Usos do passado: A História Escolar”, o enfoque recai sobre a literatura escolar e as estratégias didáticas no Ensino de História e seus desdobramentos. As discussões versam sobre a instrução pública no Brasil republicano, livros didáticos e PNLD. São quatro artigos instigantes que atendem às novas demandas do Ensino de História. Ângela de Castro Gomes envereda por uma pesquisa repleta de possibilidades para pensar tanto culturas políticas quanto cultura escolar, apresentando resultados empíricos dos livros que foram utilizados na Instrução Pública no início do século XX em alguns estados do Brasil republicano, especificamente Minas Gerais e São Paulo.

Analisando correspondências trocadas por Ana de Castro Osório com intelectuais, jornalistas e republicanos brasileiros, além de familiares, presenteia os leitores com informações preciosas sobre as redes de sociabilidade que ocorriam no Brasil República e também instiga-nos a perceber os meandros da formação de uma dada “identidade nacional”, pois o material analisado em sua pesquisa versa sobre a nacionalidade exaltada no Brasil nos primeiros anos do século XX, bem como as relações luso-brasileira durante os anos 1910-1920.

Flávia Eloisa Caimi traz encruzilhada, fronteiras e “sobrepeso de informações” e propõe uma discussão sobre as mudanças e demandas educativas e sociais a partir dos valores da geração Homo Zappiens. Mobiliza os conceitos de obesidade informativa2 e presentismo como chaves de leitura para entender como as sociedades contemporâneas adotam a tecnologia e desenvolvem novas estratégias de aprendizagem, de relacionamento e de convívio social. A autora analisa as possibilidades formativas implícitas à utilização de suportes de informação consideradas fontes para o estudo da história escolar, bem como suas contradições e seus limites, que desafiam professores e pesquisadores a uma mobilização constante sobre o aprender e ensinar história no tempo presente.

Na terceira e última parte do livro, “Usos do Passado: A Divulgação Histórica”, os quatro artigos trazem um panorama das discussões anteriores, com temáticas, que atravessam todo o livro. De modo geral, as mídias que apresentam a história com base em contextos, textos e produtos culturais são analisadas aqui como possibilidades de entender as problemáticas e os vários desafios lançados ao Ensino de História. O artigo de Alessandra Ciambarella, por exemplo, potencializa questões que permeiam cultura histórica, tempo presente e memória, quando traz à baila a complexa relação entre mídia audiovisual (cinema, TV) na elaboração e enunciação de discursos históricos, reconstruindo e reelaborando determinadas memórias, imagens e discursos em detrimento de outros. Ganham destaque o direito à memória, os usos do passado e as mídias que com seus diversos produtos sociais e culturais mobilizam o tempo presente e se impõem como possibilidades de fontes para o processo de aprendizagem histórica. Os textos sinalizam que as fronteiras entre escola e sociedade estão cada vez mais largas, pois questões como essa ultrapassam o universo escolar e são pautadas num debate público. Ou seja, os movimentos sociais e a escola dialogam e propõem novas perspectivas de interpretação para o Ensino de História e, assim, rompem com o eurocentrismo curricular que sempre norteou e orientou a sociedade brasileira.

O livro aqui resenhado contribui de forma significativa para o campo do Ensino de História, pois além de apresentar múltiplas investigações acerca dos usos do passado, considerando a cultura histórica como elemento articulador, possibilita perceber a circulação social da história e seu ensino em diferentes esferas de produção. Com questões centrais que problematizam a história pública no ambiente tanto escolar quanto acadêmico, a presente produção torna- -se leitura obrigatória para um público que pensa e reflete sobre a forte presença dessa história nos diferentes espaços de produção do conhecimento.

Certamente um livro com densidade teórica, questões instigantes e atuais, informações embasadas teoricamente se faz convidativo e garante uma rica leitura, que por certo permitirá engrossar os possíveis e irrecusáveis debates postos no campo do Ensino de História.

Notas

1 Trata-se de grupo interinstitucional que reúne pesquisadores vinculados a diferentes instituições universitárias do Rio de Janeiro e de outros estados, os quais se dedicam a pesquisa na área de Ensino de História.

2 Apropriação da expressão cunhada em: POZO, Juan Ignácio. Aprendizes e mestres: a nova cultura de aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2002.

Célia Santana Silva – Doutoranda em História, PPGH, Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc); Departamento de Ciências e Tecnologia, campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Eunápolis, BA, Brasil. [email protected].

A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Marieta de Moraes. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. 464p. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane S. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.

É na ponta de lança da pesquisa atual em história da historiografia que se localiza o livro de Marieta de Moraes Ferreira, recém-lançado pela editora da Fundação Getulio Vargas. Não o afirmo com favor, tampouco por protocolo do gênero resenha.

Qualquer observador sagaz da área nota que o crescimento de pesquisas em seu interior deu-se priorizando ‘grandes homens’ ou ‘grandes obras’, especialmente no que diga respeito aos tempos mais recentes e ao Brasil. Desde os estudos de Manoel Salgado Guimarães, o século XIX ganhou análises que se debruçaram sobre os nexos entre as instituições, sua sociabilidade e as concepções de história nelas correntes e delas decorrentes (Guimarães, 2011). Aos autores do século XX ficou reservado certo enlevo, como se fossem ‘intelectuais flutuantes’ – especialmente aos ensaístas anteriores à virada que deu origem às instituições universitárias que a partir dos anos 1930-1940 concentraram o ensino, e gradativamente a pesquisa, em história.1

Ultrapassamos lentamente tal fase, e A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar parece, a um só tempo, colaborar nessa direção e ser sinal dela. O livro está dividido em três partes – a saber: “A História da História no Rio de Janeiro: da UDF à UFRJ”; “Perfis e trajetórias”; “Entrevistas com alunos e professores da UDF, da FNFI e do IFCS”.

Na primeira parte, encontra-se uma minuciosa reconstituição das vicissitudes que atravessaram o estabelecimento do primeiro curso de história no Rio de Janeiro, por meio de um conjunto de fontes diversificado e de uma quantidade considerável de informações: perfil social e intelectual dos professores, grade curricular, programas de curso, decretos federais, textos programáticos.

Na segunda parte, a escala muda, indo do quadro mais amplo de referência apresentado na primeira ao foco mais concentrado nas trajetórias de Henri Hauser, Delgado de Carvalho e Luiz Camillo, assim como da primeira geração propriamente ‘profissional’ do Rio de Janeiro. Vale assinalar a atenção cuidadosa da autora para a figura de Hauser, ligada à preocupação em esquadrinhar os caminhos da memória institucional que foi sobrevalorizando a presença das missões francesas em São Paulo, em detrimento da presença delas na capital (p.86 e 217). São cabíveis, de passagem, duas observações a respeito disso, aliás: Marieta de Moraes Ferreira foi aos arquivos do Ministério dos Assuntos Estrangeiro (MAE), em Nantes, auscultar redes envolvidas no recrutamento de quadros e no interesse da França pelo ensino no Brasil. Para os que não se satisfazem com uma história da historiografia que esconde os bastidores por que passaram os praticantes do ofício antes de brilharem em cena ou durante o espetáculo, a atitude é entusiasmante e abre um leque considerável para novas pesquisas.

Esta observação leva à segunda. Na qualidade de pesquisadora das missões francesas no curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo (USP) em seus anos iniciais, encontrei na advertência de que as análises têm “supervalorizado o papel de Fernand Braudel e a influência dos Annales como elementos centrais na formação dos cursos de História” (p.92) a perspectiva aliada, que eu buscava há tempos. Pude, em outra oportunidade, assinalar, como o ‘historiador missionário’ manteve-se sob as rédeas dos laços de amizade mantidos e serviços prestados à sua clientela – a elite mentora da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, por sua vez em peleja constante com o governo federal. Eram limitadas as possibilidades que tinha de não reproduzir uma ‘historia historicizante’, contra a qual sua obra já vinha sendo elaborada. Padecerá minguando de lastro empírico aquele que ligar imediatamente a recepção dos Annales à presença de Braudel entre 1935 e 1937, e mesmo posteriormente em passagens breves, na USP (Rodrigues, 2012, p.256-276).

A terceira parte, em que são transcritas entrevistas, parece se revestir de especial interesse, lidas à luz da composição do livro. É como se nelas fosse possível encontrar versões alternativas aos conflitos que animam a narrativa da autora e vislumbrar quais foram as saídas que construiu para, simultaneamente, considerar o que escutava enquanto ia colocando, tête-à-tête, versões orais e documentação escrita.

Seria o caso de se assinalar, por fim, um traço peculiar do livro. É sem grandes alardes teórico-metodológicos que ele se apresenta, na contramão da tendência que se dedica a longos introitos e citações de autores momentosos, cujo nexo com a pesquisa desenvolvida, por vezes, fica a desejar. Lidando todo o tempo com noções de institucionalização e autonomização das práticas científicas, que remetem no limite ao conceito de campo, de Pierre Bourdieu, estas são reconstituídas em seu processo de constituição. Dito de outro modo, ganham destaque tanto avanços quanto recuos no percurso de separação entre poderes político e eclesiástico e instituições de saber – daí, para além da óbvia atenção dirigida às intervenções do governo federal no estabelecimento/fechamento das instituições, a atenção ao perfil dos docentes católicos e sua orientação de ensino (notavelmente, p.38-40). Concomitantemente, são objeto de atenção os processos de divisão do trabalho internos a esse mesmo espaço – não exatamente autônomo, mas em constante conflito por autonomia, a certa altura da rotação dos perfis docente e discente (notavelmente, a divisão em dois cursos separados, Geografia e História, e o estabelecimento da disciplina “Introdução aos Estudos Históricos”). Livro com o qual se aprende, livro para se devorar.

Referências

GUIMARÃES, Maria Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Geográfico Brasileiro (1838-1889). [1995]. São Paulo: Annablume, 2011.         [ Links ]

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.         [ Links ]

RODRIGUES, Lidiane S. A produção social do marxismo universitário em São Paulo (1958-1978). Tese (Doutorado) – FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.         [ Links ]

Nota

1 Talvez por isso cause algum furor ainda o esquema analítico nem de longe incorporado para o entendimento desses “intelectuais/historiadores desvinculados de instituições” que oferece Miceli, 2001.

Lidiane S. Rodrigues – Centro Universitário Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado). E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

 

História e documentário – MORETTIN (RBH)

MORETTIN, Eduardo; Napolitano, Marcos; Kornis, Mônica Almeida (Org.). História e documentário. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012. 324p. Resenha de: MALAFAIA, Wolney Vianna. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.64, p.365-367, dez. 2012.

Nos últimos 15 anos, o audiovisual vem ocupando um espaço privilegiado na produção historiográfica, como objeto ou como fonte, principalmente na sua forma mais envolvente e instigadora: o cinema. E, dentro dessa forma, um gênero, por assim dizer, suscita preocupações no que diz respeito à sua análise, justamente por compartilhar com a história o tratamento dado às noções de verdade e realidade: o documentário.

Procurando enriquecer o debate instaurado em torno do uso do audiovisual, mais especificamente do documentário, como objeto ou fonte da história, Eduardo Morettin e Marcos Napolitano, professores da USP, e Mônica Almeida Kornis, da Fundação Getulio Vargas, organizaram História e documentário, contendo textos que, em seu conjunto, representam o resultado de pesquisas realizadas pelo grupo constituído junto ao CNPq e denominado “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”, coordenado pelos dois primeiros.

Salientam os organizadores, em sua apresentação, dois aspectos que justificariam a edição dessa obra coletiva: primeiramente, como já foi dito, a expansão da pesquisa histórica que privilegia o cinema como fonte e objeto, importando para o campo teórico dessa análise as preocupações concernentes à narrativa e à estética cinematográficas; em segundo lugar, o papel de protagonista que o documentário vem ocupando na produção cinematográfica nacional e, consequentemente, na pesquisa e na reflexão crítica acadêmicas, a partir de meados da década de 1990. Os trabalhos aqui apresentados refletem estas preocupações: a articulação da narrativa histórica com as peculiaridades da narrativa fílmica, e a representação do passado, trabalhando os conceitos de verdade e realidade, o que diz respeito à preocupação tanto do pesquisador quanto do documentarista.

Por causa dessa articulação geral, os textos formam um conjunto harmonioso, destacando-se afinidades entre alguns, no que diz respeito à fonte pesquisada ou ao tratamento teórico utilizado. Assim, os textos de Eduardo Morettin (“Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso”), e de Ismail Xavier (“Progresso, disciplina fabril e descontração operária: retóricas do documentário brasileiro silencioso”), ao abordar os primórdios da produção cinematográfica de caráter documental, lançam luzes sobre as diversas formas de utilização das imagens produzidas naquela época e a sua própria historicidade. Nesses dois textos encontramos uma análise que se preocupa com a distância entre o objetivo original da produção e os possíveis usos das imagens produzidas; essa distância é reveladora e possibilita a construção de variadas relações, que acabam por enriquecer o sentido dessas mesmas imagens.

Num segundo grupo, analisando documentários inspirados pela experiência imagética do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, temos os textos de Mônica Almeida Kornis (“Imagens do autoritarismo em tempos de democracia: estratégias de propaganda na campanha presidencial de Vargas de 1950”), Rodrigo Archangelo (“O Bandeirante da Tela: cenas políticas do adhemarismo em São Paulo – 1947-1956”), e Reinaldo Cardenuto (“O golpe no cinema: Jean Manzon à sombra do Ipês”). Nesses textos, destaca-se a preocupação com a articulação entre a propaganda política e uma determinada estética própria de cinema documentário inaugurada pelo DIP, mas enriquecida com a expansão dos meios de comunicação, como o rádio, e do próprio mercado exibidor cinematográfico, com um maior número de salas de cinema e o apogeu das comédias musicais populares, as chanchadas. Se, num primeiro momento, quando da campanha presidencial de Getúlio Vargas, encontramos uma estética ainda presa às propostas do DIP, num segundo momento, quando das campanhas de Adhemar de Barros, já verificamos uma sensível transição e, num terceiro momento, quando das produções de Jean Manzon, já percebemos a incorporação de recursos estilísticos próprios do cinema ficcional norte-americano e mesmo das chanchadas brasileiras.

Um terceiro grupo seria constituído pelos textos que trabalham imagens de arquivos. Marcos Napolitano (“Nunca é cedo para se fazer história: o documentário Jango, de Silvio Tendler – 1984″) e Rosane Kaminski (“Yndio do Brasil, de Silvio Back: história de imagens, história com imagens”) trabalham com produções nacionais, analisando filmes de dois profícuos cineastas: Silvio Tendler e Silvio Back; nos dois textos, a análise da narrativa cinematográfica é intermediada pela análise da narrativa histórica, pois os cineastas se preocupam em apresentar suas versões e conclusões, articulando imagens e discursos. Em outro texto, Henri Arraes Gervaiseau (“Imagens do passado: noções e usos contemporâneos”) analisa o documentário Videogramas de uma revolução, de Harun Farocki e Andrei Ujica, sobre a deposição do regime ditatorial de Nicolae Ceausescu, produzido em 1992, utilizando-se para tal das formulações teóricas de Georges Didi-Huberman, que privilegiam o momento da produção da imagem, a experiência de quem produz e sua relação com a imagem produzida, consagrando, assim, a noção de contemporaneidade, externa ao filme, mas cuja compreensão torna-se necessária para um melhor entendimento.

Ainda nesse terceiro grupo, os textos de Mariana Martins Villaça (“O ‘cine de combate’ da Cinemateca del Tercer Mundo – 1969-1973”) e Vicente Sanchez-Biosca (“A história e a providência: cinema e carisma na representação de Franco e José Antonio Primo de Rivera”) trabalham propostas antagônicas: a produção uruguaia voltada à revolução terceiro-mundista e a produção espanhola enaltecedora do fascismo ibérico; cada qual, falando do seu lugar, revela não só as opções ideológicas como as opções estilísticas que procuram apresentar suas propostas da forma mais convincente possível.

Por último, o texto de Fernando Seliprandy (“Instruções documentarizantes no filme O que é isso, companheiro?“), no qual o autor utiliza o conceito de ‘instruções documentarizantes’, formulado por Roger Odin, para analisar a produção de Bruno Barreto e o debate que a cercou. Aqui, mais uma vez, a noção de verdade, presente na narrativa fílmica e na narrativa histórica, é colocada em questão: a indução do espectador, levado a entender o filme como uma representação da realidade, é confrontada pela indução produzida por textos e análises críticas ao mesmo filme, os quais também se apresentam como reveladores daquilo que realmente teria acontecido.

Esse trabalho coletivo recusa a ambição de se constituir como uma referência de perspectivas rígidas sobre o papel dos documentários e cinejornais para os estudos históricos, propondo-se iniciar um debate sobre a rica relação desse gênero de cinema com a história. Considerando que esse debate há muito já foi iniciado, entendemos que História e documentário tem a função de enriquecê-lo e, mais do que isso, serve, sim, a despeito da modéstia de seus organizadores, como uma importante referência para aqueles que se interessam pela relação da história com o cinema, quer sejam pesquisadores ou não, mas, com certeza, todos que sejam encantados pela imagem em movimento.

Wolney Vianna Malafaia – Doutor em História, professor do Colégio Pedro II. Rua Piraúba, s/n – São Cristóvão. 20940-250 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Memórias e narrativas (auto) biográficas – GOMES; SCHMIDT (RBH)

GOMES, Ângela M. de Castro; SCHMIDT, Benito Bisso (Org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas. Rio de Janeiro: Ed. FGV; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 278p. Resenha de: SILVA, Weder Ferreira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.61, 2011.

O entusiasmo dos historiadores pela pesquisa no campo das narrativas biográficas e autobiográficas vem ganhando destaque nas publicações recentes no Brasil e no mundo. Um breve passar de olhos em catálogos de editoras e em estantes de livrarias atesta que o país experimenta grande aumento de publicações de caráter biográfico e autobiográfico – a título de exemplo citemos apenas O retorno de Martin Guerre, de Natalie Z. Davis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987) e D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Esse entusiasmo dos pesquisadores do campo das ciências sociais se deve ao fato de que o contato com fontes primárias, documentos, papéis, cartas, bilhetes e fotografias é capaz de revelar parcelas desconhecidas ou até então invisíveis da história e do mundo social vivenciado tanto por homens e mulheres ‘comuns’ quanto por personagens de maior relevo na história. Essa sensação é fortalecida quando o material foge aos rigores institucionais da produção documental, às características seriais e ao formato burocrático, e tem uma origem privada, um caráter pessoal, conferindo a impressão de que se está tomando contato com aspectos muito íntimos da história de seus personagens. O acesso a tais fontes tem a força de simular o transporte no tempo, a imersão na experiência diretamente vivida, sem mediações.1 Paralelamente a esse movimento, é importante ressaltar que é cada vez maior o interesse do leitor por certo gênero de escritos – uma escrita de si – que inclui diários, cartas, biografias e autobiografias, independentemente de serem memórias ou entrevistas de trajetórias de vida, por exemplo.

Como apontou Giovanni Levi, nosso fascínio de arquivistas pelas descrições impossíveis de corroborar por falta de registros documentais alimenta não só a renovação da história narrativa, como também o interesse por novos tipos de fontes – nas quais se poderiam descobrir indícios esparsos dos atos e das palavras da vida cotidiana dos atores sociais.2 É nesse mesmo movimento historiográfico que se enquadra a publicação do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas, organizado por Ângela de Castro Gomes e por Benito Bisso Schmidt.

O conjunto de textos apresentado no livro constitui significativo exemplo de como os chamados escritos de si ou autorreferenciais vêm ganhando terreno no campo da historiografia, ilustrando, assim, as várias possibilidades e os resultados de pesquisas que utilizam tais escritos como fonte de investigação histórica. Nesse sentido, o livro Memórias e narrativas (auto)biográficas apresenta ao leitor uma nova possibilidade heurística para os arquivos privados. De acordo com os organizadores do livro, “a atenção de muitos historiadores voltou-se para os arquivos privados, nos quais passaram a procurar não apenas rastros das ações e ideias de seus personagens, mas também a forma pela qual eles constituíram a si mesmos, à medida que selecionavam e guardavam seus documentos e, assim, propunham um sentido para suas vidas” (p.7).

Na esteira das transformações pelas quais a historiografia passou desde a década de 1980, a biografia, isto é, o indivíduo, emerge como tema relevante para a compreensão não apenas do social, mas também de questões ligadas à ‘invenção’ de si. Essas novas abordagens passam a ocupar espaço privilegiado no conhecimento histórico, suscitando, com isso, reflexões sobre o espaço privado e o público, sobre o individual e o coletivo e sobre as formas narrativas e analíticas da escrita da história. Daí a importância dos acervos pessoais como elementos para a compreensão da ‘superfície social’ em que age o indivíduo numa multiplicidade de campos, a cada momento. Nos textos que compõem o livro é possível observar que as narrativas autobiográficas evidenciam de forma clara como a trajetória de um indivíduo varia no tempo, o que atesta, mais uma vez, aquilo que Pierre Bourdieu chamou de ilusão biográfica – a ilusão de uma linearidade e coerência do indivíduo.3 Dito isto, cabe ainda ressaltar a proposição de Paul Ricoeur, para quem a história de vida de indivíduo não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta de si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.4

Os textos que integram o livro em questão estão dispostos em quatro partes. A primeira – “O historiador entre a história e a memória” – compõe-se de um artigo de Sabina Loriga em que a autora aborda ‘as porosas fronteiras’ entre história e memória. Com base na obra A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur (Campinas: Ed. Unicamp, 2007), a historiadora tece considerações sobre as múltiplas relações estabelecidas entre a história e a memória. Nesse sentido, o texto de Loriga antecipa o contexto historiográfico em que se situam os artigos subsequentes da obra.

Na segunda parte do livro, Ângela de Castro Gomes, Haike Roselane Kleber da Silva, Yonissa Marmitt Wadi e Keila Rodrigues de Souza abordam facetas das trajetórias de indivíduos com base nas correspondências que trocaram. Ao leitor, ficará evidente que a documentação epistolar permite ‘decompor’ a vida de indivíduos aproximando-se da sua esfera privada de atuação. Ao investigarem a troca de correspondência entre figuras de relevo da política e da intelectualidade da Primeira República, as cartas de germanistas no Brasil e bilhetes de pessoas que cometeram autoviolência, os autores tecem reflexões sobre a construção do ‘Eu’, demonstrando que as escritas de si também se constituem em lugares de memória.

Na sequência, Joseli Maria Nunes Mendonça, Benito Bisso Schmidt e Gisele Venâncio ocupam-se em investigar como determinados atores sociais construíram suas imagens por meio de narrativas autobiográficas. Essas análises são reveladoras para pensar as estratégias utilizadas de forma consciente ou não – no processo de construção de si mesmo. Nesse espectro de análise é possível notar as disputas, os silêncios, as hipérboles, enfim, as oscilações das narrativas que pretendem ‘forjar’ uma imagem de si projetadas para a posteridade.

Por fim, os artigos de Márcia de Almeida Gonçalves, Bruno Barreto Gomide, Marcelo Timotheo da Costa e Maria Elena Bernardes têm como objeto de análise as produções biográficas e autobiográficas que pretenderam traçar um sentido social e existencial para as trajetórias de notáveis intelectuais e políticos brasileiros dos séculos XIX e XX. No capítulo que encerra o livro, Maria Elena Bernardes faz uma incursão à instigante trajetória de vida da escritora e militante comunista Laura Brandão. Nessa biografia, como que em um jogo de escalas, a autora articula aspectos da vida da militante com elementos mais amplos da história do Brasil e mundial, revelando, assim, as potencialidades que a biografia pode oferecer ao campo do ofício do historiador.

Não obstante a diversidade dos objetos e de enfoques, os artigos que compõem a obra Memórias e narrativas (auto)biográficas podem ser conectados um ao outro formando, assim, um ‘hipertexto’ que se constitui em importante contribuição para o campo da historiografia que se ocupa em investigar a multiplicidade de temas relacionados aos fenômenos da lembrança, do esquecimento e da produção do ‘eu’.

Notas

1 HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v.19, p.41, 1997.         [ Links ]

2 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p.169.         [ Links ]

3 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA; AMADO, 2006, p.183-191.         [ Links ]

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997. t 3. p.425.         [ Links ]

Weder Ferreira Silva – Doutorando em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 205. Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Os índios na história do Brasil – ALMEIDA (RBH)

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p. Resenha de: GARCIA, Elisa Frühauf. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.

Até muito recentemente, os índios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados à condição de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização, seu destino inexorável era desaparecer à medida que a sociedade envolvente se expandia. Nas últimas duas décadas, porém, significativas mudanças teórico-metodológicas, associadas a criteriosas pesquisas empíricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva sobre as populações nativas.

A trajetória da inserção dos índios em nossa historiografia, contemplando as mudanças conceituais e os avanços obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os índios na História do Brasil. A publicação, inserida na coleção FVG de Bolso, Série História, sem dúvida será de grande valia àqueles que têm interesse na temática, cumprindo sua função de divulgação do conhecimento produzido na academia. Além disso, o lançamento também ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obrigatoriedade do ensino da história indígena nas escolas de nível fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas. Diante dessa exigência, muitos professores encontram dificuldades para ministrar tal conteúdo, pois ele ainda não foi devidamente inserido nos cursos de graduação em história do país.

A autora inicia o livro apresentando a mudança no lugar ocupado pelos índios na história do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos “bastidores” ao “palco”. Debatendo em linhas gerais as principais modificações teórico-metodológicas que possibilitaram tal mudança, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram fundamentais para uma alteração no paradigma sobre as ações dos índios em diferentes conjunturas. Como demonstrado de forma clara e concisa no texto, a aproximação entre a história e a antropologia, ancorada no diálogo entre os profissionais dessas áreas, possibilitou que as antigas noções de cultura e identidade, percebidas como “fixas e imutáveis” (p.21), passassem a ser consideradas como fruto de processos históricos, resultado das interações dinâmicas dos diferentes agentes envolvidos em situações específicas.

Articulando as questões teórico-metodológicas às pesquisas recentes na temática, a autora aborda aspectos fundamentais para a compreensão do lugar dos índios na história do Brasil, começando com uma discussão sobre a dinâmica das guerras. Sem negar a sua importância para os grupos nativos, como demonstrado por autores como Florestan Fernandes, Regina Celestino enfatiza a impossibilidade de analisá-las sem referência ao seu contexto, pois, a partir dos primeiros contatos e das disputas pelo território americano, as guerras indígenas passaram a convergir com as guerras coloniais. Associada às guerras e à construção da sociedade colonial, a autora enfrenta ainda a difícil questão da formação das etnias, uma das grandes discussões atuais nos estudos sobre os povos indígenas. Pesquisas sobre o surgimento e a operacionalidade dos etnônimos desenvolvidas em várias regiões das Américas, inclusive no Brasil, demonstraram como muitas etnias, antes consideradas anteriores aos contatos com os europeus, originaram-se no decorrer do processo de conquista e das diferentes formas de inserção dos índios na sociedade colonial. Para exemplificar a questão, a autora utiliza como base os dados de sua tese de doutorado, demonstrando como os temininós, aliados fundamentais dos portugueses na Guanabara, provavelmente nada mais eram do que uma dissidência dos tamoios consolidada com o processo de conquista.1

Ao analisar a formação dos etnônimos, a autora enfatiza como eles estavam entrelaçados com o domínio dos povos indígenas por parte do Estado colonial. A criação e cristalização de etnônimos e a rígida separação dos índios entre aliados e inimigos eram uma forma de classificar a população nativa e viabilizar o empreendimento colonial através da sua alocação em determinados lugares na hierarquia social. Regina Celestino, porém, demonstra muito bem como esse processo era mais complexo, pois aborda ainda os mecanismos através dos quais os índios se apropriaram dessas categorias, utilizando-as como base para elaborar as suas próprias estratégias para interagir com a sociedade colonial. Afinal, como apontou John Monteiro, “a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias”.2

Um dos espaços por excelência de inserção dos índios na sociedade colonial e, consequentemente, de redefinição de suas identidades e culturas eram os aldeamentos, analisados com propriedade pela autora no capítulo quatro. Até muito recentemente, nossa historiografia abordava os aldeamentos pela ótica do Estado colonial, dos moradores ou dos missionários. Eles eram então definidos como espaços de agrupamento de índios de origens diversas, que deveriam servir aos intuitos coloniais, possibilitando tanto a concentração da mão de obra disponível, a ser empregada em atividades variadas, quanto a implementação do projeto de catequização dos nativos. Em tal perspectiva, os índios eram sempre objeto de diferentes políticas e de disputas entre determinados agentes, mas nunca sujeitos atuantes na construção do espaço dos aldeamentos. Para a autora, porém, eles devem ser considerados também a partir das motivações dos nativos. Pesquisas recentes permitem afirmar o seu interesse em tais estabelecimentos, pois eles “participaram de sua construção e foram sujeitos ativos dos processos de ressocialização e catequese” ocorridos naqueles espaços (p.72).

Outra importante discussão contemporânea abordada no livro, especialmente nos capítulos quatro e cinco, é a relação dos índios com as diretrizes coloniais, articulando políticas indígenas com políticas indigenistas. Novamente, Regina Celestino redimensiona certos pressupostos historiográficos. De maneira geral, a política indigenista da Coroa portuguesa era apresentada como inoperante, na medida em que não se fazia valer nas práticas coloniais, especialmente em relação à condição de liberdade jurídica outorgada à maioria dos índios, ameaçada diante das estratégias dos moradores interessados nessa mão de obra. Como já assinalado por Thompson, porém, mais do que um mero instrumento de dominação, a legislação também se configura como um campo de lutas.3 Assim, tal como outros sujeitos históricos, os índios, ainda que em posição subalterna, aprenderam a utilizá-la em prol dos seus interesses. Como muito bem demonstrado pela autora, se é fato que a legislação indigenista colonial era aplicada de acordo com conflitos e negociações envolvendo vários agentes (principalmente missionários, funcionários reais e moradores), é imprescindível considerar o papel dos índios nesse processo. Em tal discussão, adquire importância fundamental o capítulo cinco, sobre a aplicação das políticas pombalinas, cujas linhas gerais se orientavam à extinção da categoria dos índios aldeados, promovendo a sua diluição no conjunto da população. Na análise dessa legislação, uma das mais pesquisadas pelos historiadores da temática, fica evidente como a constante negociação com os índios foi uma das marcas da construção e manutenção da sociedade colonial.

No último capítulo a autora aborda o século XIX, enfocando as diferenças entre as políticas imperiais em relação aos índios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional então em construção. Os índios do presente, especialmente aqueles que habitavam as aldeias fundadas durante o período colonial, deveriam ser rapidamente integrados ao conjunto da população, consonante às linhas anteriormente estabelecidas por Pombal. Já os índios ainda não inseridos plenamente na sociedade imperial, comumente chamados “selvagens”, deveriam ser aldeados, também com o objetivo de preparar a sua diluição no conjunto da população, ou implacavelmente combatidos, caso não aceitassem o aldeamento e resistissem à expansão das frentes de ocupação. Assim, o Império projetava uma população homogênea, sem espaço para a permanência dos índios como grupo diferenciado. Reservava, porém, lugar de destaque aos nativos no passado da jovem nação. Apesar de significativas divergências, prevaleceu entre os intelectuais envolvidos na construção da identidade nacional a proposta de atribuir aos índios importante papel no momento fundador do Brasil, simbolizado na sua união com os portugueses.

Ao abordar o lugar dos índios na história do Brasil contemplando diferentes conjunturas, interesses e agentes, Regina Celestino oferece ao leitor uma importante iniciação na temática. Após a leitura, ficará evidente que não se trata apenas de perceber as histórias específicas de diferentes grupos nativos, certamente importantes, mas de considerá-los agentes fundamentais no processo de construção da sociedade colonial e pós-colonial. Apesar de terem enfrentado situações extremamente difíceis e uma série de restrições jurídicas e sociais, eles ajudaram também a delinear os limites e possibilidades daquelas sociedades.

Notas

1 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.         [ Links ]

2 MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP), 2001, p.58.         [ Links ]

3 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.358.         [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus Gragoatá. Bloco O, 5º andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966 – FONTES (RBH)

FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista, 1945/1966. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. 436p. Resenha de: DUARTE, Adriano Luiz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

Um nordeste é desses livros raros que arejam nossas ideias, ampliam nossos horizontes e abrem inúmeras janelas à reflexão. Areja nossas ideias por nos mostrar que devemos pensar a história social e política da cidade de São Paulo considerando o impacto das migrações internas, nos últimos 60 anos. Nesse período, aproximadamente 38 milhões de pessoas saíram do campo em direção às áreas urbanas, e seu principal destino era a cidade de São Paulo. A capital paulista triplicou seu tamanho, enquanto sua população de origem nordestina cresceu dez vezes. Entre 1950 e 1960, a cidade recebeu 1 milhão de migrantes, representando 60% do seu crescimento. Em 1970, o censo apontava que “70% da população economicamente ativa na cidade havia passado por algum tipo de experiência migratória” (p.46).

Norte, Nordeste, nordestino, como mostra o autor, são categorias genéricas que se referem a diferentes lugares, origens e experiências. No entanto, ao chegar à cidade de São Paulo, as diferenças eram esquecidas e todos se tornavam “baianos”. Ser “baiano” tinha uma implicação cultural e étnica, cuja função era, principalmente, marcar a sua diferença em relação aos moradores mais antigos: “[nordestinos] são essas pessoas morenas e de pele mais escura que não eram como nós” (p.78). A migração nordestina cruzava dois elementos bastante explosivos: a origem racial e o baixo grau de instrução. Pesquisas discutidas com muita propriedade por Paulo Fontes mostram que, em 1962, 60% dos trabalhadores que migravam para a capital paulista eram analfabetos (p.64). Não demorou muito para que “os nordestinos” fossem responsabiliza-dos pelas mazelas do crescimento urbano desordenado da cidade: a debilidade dos serviços públicos, o crescimento da criminalidade, a expansão de cortiços e favelas.

A segregação era tanto espacial quanto social e cultural. Uma pesquisa realizada entre universitários paulistas, em 1949, revelou que um em cada três não considerava a hipótese de matrimônio com “baianos ou nortistas” (p.69). Por isso é possível dizer que a identidade de muitos bairros paulistanos, nas décadas de 1960 e 1970, está profundamente marcada por certa percepção dos “nordestinos” como o lado obscuro do progresso: sua presença seria o preço a pagar pelo desenvolvimento. Junte-se a isso a violenta segregação espacial do processo de urbanização da cidade. O seu “padrão periférico de crescimento urbano” – que reservava áreas vazias próximas ao centro da cidade para especulação imobiliária – alterou completamente o cenário. Os trabalhadores foram paulatinamente expulsos das áreas centrais e de industrialização antiga e forçados a se deslocar para áreas periféricas desprovidas de serviços urbanos como água, luz, esgoto, correios etc. Esse processo desencadeou o fenômeno da autoconstrução, que marcou fortemente o cenário suburbano. Segundo Paulo Fontes, em 1980 calculava-se que 63% das moradias na grande São Paulo haviam sido construídas desse modo. São Miguel Paulista, a “Bahia Nova”, foi um exemplo: de um vilarejo com 7 mil habitantes em 1940, chegou a 140 mil em 1960. Mas a autoconstrução supunha a inestimável ajuda de parentes e amigos expressa no mutirão, fortalecendo os laços de solidariedade e consolidando a identidade de moradores e trabalhadores.

Um nordeste em São Paulo amplia nossos horizontes ao mostrar que não era apenas de segregação, isolamento, baixos níveis educacionais e “barbarismo” que se fazia a epopeia da migração nordestina para São Paulo. Solidariedade talvez seja o substantivo que melhor define as múltiplas redes que conectavam os migrantes. Começando pelo simples fato de que sair do Nordeste pressupunha um contato prévio na cidade grande. Ou seja, o processo de migração não era, de modo geral, desordenando e desprovido de planejamento. Era escolha racional, assentada numa cuidadosa teia de contatos que facilitava a decisão de partir, ajudava na viagem e no processo de adaptação na cidade. Essas “redes” forjavam as relações de vizinhança e alcançavam o interior das fábricas, chegando sólidas aos partidos políticos. Elas foram fundamentais para tecer uma identidade específica de trabalhador nordestino, identidade de classe, embora nem sempre suficientes para configurar uma comunidade.

A migração nordestina era fartamente descrita na imprensa como associada à ignorância, à violência irracional e à pobreza. Caracterizados como grosseiros e rudes, tinham sua “propensão natural à violência” atribuída ora à herança de um ambiente hostil e agressivo, ora a um estágio civilizacional inferior. Paradoxalmente, a imagem do “cabra-macho que não leva desaforo pra casa”, simbolizada pelo cangaceiro, foi largamente cultivada pelos migran tes como símbolo de coragem, força e determinação que os diferenciava dos sulistas. Porém, a reação mais comum diante das hostilidades que recebiam não implicava violência, mas a valorização da sua capacidade de trabalho – e, portanto, da sua identidade de operário – sob o argumento de que sem eles São Paulo não seria o que é.

Ao seu suposto atraso, responderam também com forte atuação política no pós-guerra. A despeito de suas ambiguidades, o PCB contou com forte adesão dos moradores de São Miguel e dos operários da Nitro Química. Sua popularidade expressou-se na célula Augusto Pinto, a maior célula comunista do estado, e nos mais de 35% de votos dados ao partido nas eleições para a Assembleia Legislativa, em janeiro de 1947. A cassação do registro legal do PCB pulverizou as fidelidades partidárias em São Miguel, embora não tenha arrefecido o envolvimento político no bairro. As agremiações partidárias saíram a campo para disputar o espólio do “partidão” – espólio eleitoral e organizativo. Adhemar de Barros e Jânio Quadros seriam os principais destinatários do voto operário em São Miguel. Mas não eram apenas os partidos políticos que disputavam a consciência dos operários: o Círculo Operário Cristão também contou com a adesão dos operários, embora – para tristeza dos circulistas – não pelas razões “certas”. A estreitíssima relação entre o Círculo Operário e a Nitro Química era vista com grande desconfiança pelos trabalhadores que o utilizavam como um clube, um espaço de lazer e assistência numa cidade profundamente carente de ambos, mas recusavam seu pacote ideológico.

A crescente repressão do governo Dutra e a cassação da direção do sindicato dos químicos levaram muitos militantes para as Sociedades Amigos de Bairro (SABs) que se tornaram os centros da chamada “luta pelo direito à cidade”. O golpe civil-militar de 1964 acentuaria os vínculos entre as SABs e os sindicatos, visto que muitos militantes e simpatizantes de esquerda se refugiaram nelas. Estabelecendo uma conexão entre as SABs e os chamados “novos movimentos sociais” surgidos na cidade no final da década de 1970, Paulo Fontes sugere que a existência de “uma longa e subterrânea tradição organizativa no bairro iria alimentar e ‘dialogar’ com esses novos militantes e organizações” (p.284). As SABs foram fundamentais também nas campanhas pela autonomia de São Miguel Paulista, movimento iniciado em 1962 e por três vezes derrotado. A primeira metade da década de 1960 foi marcada também pelo crescimento da ação sindical na Nitro Química e no bairro de São Miguel. A expectativa pelas “reformas de base”, prometidas pelo governo de João Goulart, mobilizou a população e desencadeou inúmeras greves. Mas esse período coincidiu também com uma profunda crise econômica na empresa, cuja resposta imediata foi o esvaziamento do famoso serviço social que ela mantiverapor mais de 30 anos. Às milhares de demissões, seguiu-se a deslegitimação do papel desempenhado pela empresa no bairro; assim, o ano de 1966 marcou o fim de uma era.

Um nordeste em São Paulo abre inúmeras janelas à nossa reflexão ao tomar com desassombro a decisão de lidar com o cotidiano operário, com a cultura popular, com as relações de gênero, as identidades étnicas, as formas de lazer e sociabilidade dos trabalhadores na chave das mais atualizadas abordagens sobre esses temas. Problematiza as relações entre campo e cidade, não apenas colocando sub judice uma versão tradicional que percebia a migração como a destruição dos vínculos de solidariedade, mas também mostrando que ela não significava, em geral, rompimento com o campo. O “problema” da comunidade, que emerge quando os historiados buscam a ampliação das análises da formação de classe para além do espaço fabril, é tratado com o devido cuidado, supondo a solidariedade não como uma consequência “natural” da proximidade geográfica, mas como resultado de um esforço humano deliberado e reatualizado cotidianamente, tanto nas redes de lazer quanto nas lutas. Comunidade emerge não como simples categoria teórica, mas como problema historiográfico a ser investigado. Um nordeste em São Paulo é leitura obrigatória não apenas para os historiadores preocupados com o problema da formação da classe operária no Brasil, mas para historiadores, sociólogos, antropólogos e outros preocupados em entender este misterioso lugar chamado Brasil.

Adriano Luiz Duarte – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Campus Trindade – Departamento de História. Av. Engenheiro Max de Souza, 620 – Florianópolis – SC. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

 

Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo CASTRO; LEIRNER (A)

CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero. Uma antropologia dos militares – Reflexões sobre pesquisas de Campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009. Resenha de:  ARIAS NETO, José Miguel. Nos caminhos da fé: história, religião e religiosidade da Antiguidade ao mundo contemporâneo. Antítese, v. 2, n. 4, p. 1137-1144, jul./dez. 2009.

Há uma “Antropologia dos Militares”? O livro organizado por Celso Castro e Pierre Leirner procura responder positivamente à questão. A obra divide-se em apresentação e onze capítulos, alguns mais teóricos, outros apresentando estudos de caso. Há estudos sobre as cadetes pioneiras da Academia da Força Aérea (AFA) por Emilia Takahashi, o serviço de comunicação do Exército por Lauriani Porto Albertini, mulheres de militares por Fernanda Chinelli, o mundo do quartel, por Cristina Rodrigues da Silva, rituais militares por Juliana Cavilha, formação de praças do Exército por Aline Prado Atassio. Ao lado destes, alguns textos que desenvolvem reflexões mais teóricas como os de Celso Castro, Piero Leirner, Alexandre Colli de Souza e Máximo Badaró. O único texto de um historiador é a bela reflexão que faz Adriana Barreto de Souza sobre a pesquisa em Arquivos Militares.

Outra característica que de imediato chama a atenção é o fato de que as mulheres são maioria neste grupo de pesquisadores que estuda predominantemente o Exército, com a exceção dos textos sobre as Cadetes Pioneiras da AFA e em parte o que explora o “mundo do quartel”, no qual Cristina Rodrigues da Silva relata a pesquisa que realizou também na AFA. Não há um texto sobre a Marinha do Brasil. É fato que este silêncio é significativo e deve-se refletir sobre ele, contudo, este não é o espaço pertinente. Também esta marcante presença feminina no campo dos estudos militares é alvissareira para a academia.

O livro, como qualquer obra coletiva, apresenta textos de diferentes níveis. Alguns, fruto de acurada reflexão teórica, apontam problemáticas bastante relevantes para os estudos militares na área de antropologia, ou melhor dizendo, para a constituição do que seria uma antropologia dos militares, ou seja, relativa aos militares como bem destaca Leirner à página 31. Outros se debruçam mais sobre a experiência realizada, apoiando-se nas reflexões desenvolvidas pelos pesquisadores seniores.

O subtítulo reflexões sobre pesquisa de campo indica o fio condutor, ou seja, a problemática que articula todos os textos da obra, da qual, derivam as questões apresentadas pelos autores.

Em outras palavras, é o importante momento em que o pesquisador reflete sobre a trajetória da sua pesquisa e como esta influenciou decisivamente nos resultados obtidos e nas conclusões apresentadas. Neste sentido, é o pensamento que se volta sobre si e se desdobra na indagação que todos nós devemos fazer: O que é esta pesquisa que eu faço? Como a faço? E de que maneira o modo como a faço influencia o que estou enunciando ao mundo sobre meu objeto. É, na linguagem dos historiadores, a busca do posicionamento do pesquisador, do lugar social da pesquisa: De onde falo? Para quem falo?, questões de há muito postas por vários pensadores, dentre os quais Claude Lefort no importante livro As formas da História e Michel de Certeau no belo A Escrita da História.

Assim, o movimento dos autores em seu exercício de reflexão sobre o processo de produção do conhecimento é aquele que descreve a formulação da problemática, a pesquisa, no caso em questão, a já tradicional observação antropológica participante e os resultados, mediados pelo contato com o “objeto” ou, como este grupo de pesquisadores se referem aos militares, “com seus nativos”. Estas experiências, embora, marcadas pelo traço comum do estudo de militares, são diferentes em cada caso e, por isto mesmo, narradas em diferentes registros do sensível, isto é, alguns com mais esperança e otimismo, outros nem tanto.

Este registro do sensível é importante, pois, ele revela um aspecto fundamental da pesquisa do etnólogo: o envolvimento direto e pessoal com o seu “objeto”. E causa ao historiador certa surpresa a perplexidade que estes antropólogos revelam quando diante de “seus nativos”.

E que perplexidade é esta? E por que ela causa surpresa? Para iniciar retomo as formulações, por demais conhecidas, de Bacon sobre as relações entre saber e poder, retomadas contemporaneamente por Foucault.

Estas formulações enunciam que não só o conhecimento, mas principalmente sua produção é sempre fruto de relações de poder. Disto também já sabiam, no século XVI, nossos primeiros etnólogos, como Bernardino de Sahagún que ao longo de quarenta anos escreveu junto com os caciques astecas a Historia General de las cosas de Nueva España. Buscava ele, inicialmente, conhecer a cultura asteca para extirpar o pecado da idolatria. Isto porque logo os espanhóis perceberam que os nativos adoravam seus “falsos deuses” no interior dos rituais e dos templos cristãos.

Assim, para esses missionários-etnólogos o conhecimento adquirido, a partir da sua posição de conquistadores, permitiria uma real cristianização dos nativos. Sabemos que o resultado, como bem destacou Tzvetan Todorov em A conquista da América, a questão do outro, não foi o esperado pelos próprios missionários, que passaram, especialmente no caso de Bernardino a admirar e amar a cultura de “seus nativos”, numa espécie de reverso da conquista que constitui um dos mais ricos processos de mestiçagem cultural no período.

No caso do livro organizado por Celso Castro, esta questão é quase que enunciada como uma novidade. Em seu texto, no qual narra sua experiência na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), relata que a pesquisa foi vista como “inusitada” por oficiais e cadetes da escola. Um diálogo particularmente interessante ocorre quando chegando à Academia pela primeira vez, o major que chefiava o serviço de relações públicas, lendo sua carta de apresentação exclamou: “Já sei! Já entendi o que você quer! Agora entendi tudo! Você quer fazer uma coisa tipo aquele trabalho do Gertz sobre a briga de galos em Bali!”.

Ao que Celso Castro observa: Inusitado por inusitado, não sei o que era mais: se minha pesquisa, o se me ver diante de um “nativo” que fazia esta afirmação. Pior que isso, ele passou a perguntar qual a minha “tendência”: se era a do Lévi-Strauss, a do Gertz, a do Malinowski… Confesso que, do alto dos meus 23 anos de idade e apenas um semestre de curso de mestrado, fiquei aterrorizado com a perspectiva de ter que discutir teoria antropológica com meus nativos, desde o primeiro dia da pesquisa de campo. (p. 23-24).

Esse tipo de “leitura do real” remete à questão de como o pesquisador “pensa” o seu sujeito, no caso em questão, como Celso e seu grupo pensam “seus nativos”, os militares. E aqui é importante demonstrar as características específicas do grupo a ser estudado.

Celso Castro começa a estudar militares, ele mesmo vindo de família de militares, no ano de 1987, isto é, no momento de democratização do país após quase vinte anos de regime militar. Assim, as instituições militares e os militares, eram amaldiçoados pela tradição de “esquerda” bastante forte nas faculdades de Filosofia, onde se encontravam os cursos de Ciências Sociais e História. Por outro lado, a visão do mundo universitário que tinham os militares também não era, por assim dizer, muito alvissareira. Querer estudar militares neste período e mesmo em períodos posteriores –como bem mostra o livro– era e, em certo sentido, ainda é um desafio. Pode-se dizer que atualmente a situação é bastante diferente quer de um lado, como de outro. Mas as mudanças na situação política não alteraram a natureza de instituições como as Militares ou como a Universidade, dotadas de suas hierarquias ritualizadas, processos disciplinares e procedimentos próprios.

Assim, o pesquisador que se debruça sobre temas militares vai se deparar com instituições totalizantes, cujos eixos centrais são a hierarquia e a disciplina.

E é esta realidade que vai marcar o andamento e desdobramentos de seu trabalho. Assim, antes de começar uma pesquisa ele pode, atualmente, através do livro organizado por Castro e Leirner ter uma idéia da realidade com a qual vai se deparar, e neste sentido o livro é importantíssimo, pois inserir-se como observador em uma estrutura totalizante requer um conhecimento prévio de suas características básicas e de seu funcionamento.

E é este o fundamento da perplexidade do antropólogo. Como testemunha o próprio Celso Castro: A maior parte da antropologia foi e até hoje continua sendo feita com grupos de alguma forma socialmente subalternos em relação ao antropólogo, ou que não dominam a linguagem acadêmica. A pesquisa com camadas médias ou elite pode, todavia inverter o sentido desta relação de dominação/subordinação. Em muitos momentos da pesquisa , ficou evidente que alguns de meus nativos sentiam-se numa posição intelectual, social ou moral superior à minha (p.24).

A fonte deste sentimento prossegue Celso Castro, é coletiva, não individual. Ela repousa nas características dos militares, que de acordo com ele e os demais autores, tem uma visão de mundo fundada em jogos de oposições: mundo civil/mundo militar, amigo/inimigo. É a partir, portanto, destas categorias, que o pesquisador que adentra uma instituição militar vai ser analisado e julgado e deste julgamento depende o sucesso ou fracasso de seu trabalho ou, pelo menos, da impossibilidade de realização deste como observador participante na instituição.

Assim, no momento em que estão desbravando e inaugurando um novo campo de abordagem da antropologia, os pesquisadores depararam-se com duas contingências estruturantes de seus trabalhos e de sua visão sobre os mesmos: o histórico –a democratização brasileira e o sociológico– a natureza de uma instituição militar. E ficam perplexos diante da recusa de seu “objeto”, ou de “seus nativos” em serem elementos apenas “observáveis” – como se isto fosse possível e algum dia tivesse realmente acontecido– e daí o sentimento de horror quando um militar, não apenas quer discutir antropologia, mas quando a instituição militar controla e limita as condições em que o trabalho etnográfico ocorre, pois, não apenas no contexto da democratização, os militares querem garantir a transmissão ao mundo de determinada memória do passado (remoto e próximo), mas também fixar uma imagem no presente e projetá-la no futuro como continuidade, no caso em questão, de um grupo que se sacrifica em benefício da pátria, isto é, de todos nós.

Esta operação de construção e transmissão de uma imagem do passadopresente e futuro como uma continuidade, isto é o controle da memória e da representação do grupo no universo público, é de fato uma característica específica das Instituições Militares, ou é comum aos vários grupos sociais contemporâneos? Faço a questão pensando, por exemplo, em trabalhos como o de Michael Pollak que demonstra o controle da memória exercido pelos alsacianos, cujo território foi ocupado e dominado sucessivamente ora por franceses, ora por alemães. O que o livro Antropologia dos Militares demonstra é que há, dadas as características dos militares, modos específicos de controle da memória na engenharia do poder que se instaura no interior das instituições e que tem por objetivo não apenas reificar a visão “oficial”, por assim dizer, para “os de dentro”, mas também conquistar ou, numa linguagem mais política, cooptar “os de fora” fazendo com que todos compartilhem da mesma visão, sobre si mesmos e sobre suas instituições. Por isto, o antropólogo sempre deve estar em campo, como bem ressalta Castro, isto é, sempre atento para não ser apanhado nesta rede.

Uma segunda questão, diz respeito ao discurso mais ou menos homogêneo do grupo de antropólogos e da historiadora que participam do livro acerca da “epopéia” para conseguir realizar uma pesquisa em uma Instituição Militar. Este discurso funciona como uma espécie de “narrativa fundadora” do próprio grupo de pesquisadores de modo a valorizar o empreendimento realizado. E este valor é sempre correlacionado às dificuldades existentes, isto é, quanto maiores forem os obstáculos vencidos, maior é o valor do que se realiza. Esta é uma operação fundadora bastante comum, por exemplo, em grupos migrantes em áreas novas de colonização, mas também, por exemplo, para nos situarmos na academia, da História Oral. Fundada por Heródoto, desvalorizada e repudiada pelos “positivistas”, a Historia Oral contemporânea ganha força, vitalidade e legitimidade como campo novo no âmbito da História. Mas para isto, que dificuldades enormes tiveram os historiadores orais que vencer!, que tradições assentadas no texto escrito tiveram que questionar e superar até provarem o seu valor! Este tipo de narrativa fundadora é uma operação fundamental na constituição da legitimidade do campo, e seu público, no caso dos antropólogos é duplo: a academia e o quartel. O discurso dirigido para a acadêmica visa demonstrar que é possível, apesar das dificuldades, trabalhar com os militares sem passar a amá-los, isto é, sem ser “cooptado”. Já para o quartel, a mensagem é: somos capazes de estudá-los e compreendê-los objetivamente, sem aceitar esta categorização amigo/inimigo na qual vocês procuram nos enquadrar. Nosso trabalho transcende esta categorização e conseqüentemente ultrapassa os limites do mundo pensado por vocês como divisão entre civis e militares.

O que me remete à minha última questão. O tratamento dado aos militares como “meus nativos”. Este tratamento, usado sistematicamente por todos os autores do livro, parece ser uma espécie de reação à perplexidade que o antropólogo sente diante do seu “objeto participante”. Na medida em que se descobre em uma relação de poder na qual se encontra em “desvantagem”, ou em uma posição “subordinada” à autoridade, poder e rito das Instituições Militares o pesquisador acaba por usar uma “categoria nativa” dos antropólogos para “enquadrar” os militares dentro de sua própria visão de mundo de modo a inverter esta relação de desvantagem em que se encontra. A contrapartida, portanto, à designação de “paisano” ou “civil” dada pelos militares é tratar a estes como “seus nativos”.

Confesso que esta categorização, como modo de operar um distanciamento em relação ao “objeto” de estudo me causa surpresa. Isto porque, em parte, o termo “nativo” contraria a idéia do livro de que o militar é um constructo histórico-cultural, como tudo o mais que existe neste mundo criado pela humanidade. Em segundo lugar, os cientistas sociais são treinados para identificar as estratégias narrativas que o induzem ao comprometimento com a visão de seu interlocutor, esteja ele morto ou vivo, especialmente no caso dos Historiadores.

Por exemplo, o ambiente familiar criado por Joaquim Nabuco no seu magnífico livro O Estadista do Império, visa, entre outras questões, glorificar a monarquia e os liberais monarquistas. A leitura do livro de Nabuco introduz o leitor em uma experiência de familiaridade. É como se o leitor participasse do diálogo que Joaquim trava com Thomaz e com os políticos imperiais. Esta sensação de “familiaridade” criada por Nabuco tem por objetivo criar uma empatia do leitor com a sua visão e mobilizá-lo para sua causa. Esta é a operação historiográfica que fazem os historicistas como bem observou Walter Benjamin: trata-se de criar uma empatia com os vencedores e perpetuá-los como tais. Por outro lado, dado à sua enorme erudição e profundo conhecimento das fontes, Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Do Império à República cria também um ambiente familiar ao fazer com que o leitor participe da conversa que estabelece com a elite política imperial. O mecanismo operacional e o estilo são opostos aos de Nabuco. Também oposta é a finalidade desta operação, pois Sérgio Buarque, que não tem nenhuma simpatia, quer pela monarquia, quer pelo imperador, visa com esta familiaridade destruir por dentro a representação da monarquia criada pelos monarquistas pós-queda do regime e perpetuada por intelectuais, como Oliveira Viana. Não é possível estabelecer uma empatia com o regime monárquico após a leitura do livro de Sérgio Buarque.

No caso do livro Antropologia dos Militares o termo “nativo” com o qual os militares são tratados denota a vontade de criar um afastamento, por todas as razões já aqui apresentadas, como forma de evitar a construção ou a demonstração de uma empatia. A terminologia, entretanto, soa bastante artificial, quando se verifica que os pesquisadores possuem uma familiaridade com seus temas e um conhecimento de sua pesquisa realizada por meio de uma intensa “observação participante” através da qual estabelece relações e vínculos bastante fortes e significativos com os militares. Esta familiaridade não resulta de modo algum em empatia, ou em outras palavras, como já observou Tzvetan Todorov no seu livro Em face do Extremo, compreender não é justificar. Ele se refere no caso, à compreensão dos regimes totalitários. Diria, portanto, que a familiaridade é fundamental para o trabalho do cientista social, mas o desenvolvimento de uma empatia com seu objeto ou não, é uma questão política de primeira grandeza, pois se refere a uma opção que deve ser assumida publicamente.

Assim, a experiência da leitura de Antropologia dos Militares é fundamental para os iniciantes no campo dos estudos militares perceberem a intensa relação de poder que se estabelece no processo de construção da compreensão de determinado fenômeno e como esta relação caracteriza o conhecimento que temos dos “outros” e de “nós” mesmos.

BRÜGGER, Niels (ed.). Web History, Nueva York, Peter Lang, 2010, 362 p.

José Miguel Arias Neto – Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Associado da Universidade Estadual de Londrina (UEL) / Brasil.

Três famílias. Identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares – DUARTE; GOMES (CP)

DUARTE, Luiz Fernando Dias e GOMES, Edlaine de Campos. Três famílias. Identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2008. Resenha de: FINAMORI, Sabrina. Pesquisando a própria família. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

Mais do que um livro que se destaque pelo ineditismo ao tratar de famílias de classes populares, Três famílias apresenta uma ousada proposta etnográfica e uma reflexão apurada sobre o fazer etnográfico. Logo na introdução, nos é informado que as três famílias referidas no título são a do autor, Luiz Fernando Dias Duarte, a da autora, Edlaine de Campos Gomes e a família Costa, pesquisada por Duarte entre as décadas de 1970 e 1980 e, posteriormente, num contato retomado no início dos anos 2000. Baseado em pesquisa histórica e etnográfica, o livro apresenta uma interessante análise transgeracional destas três famílias que se, por um lado, pode ser considerada polêmica, devido à peculiaridade da pesquisa, por outro, se mostra como um vigoroso exemplo das possibilidades analíticas presentes nos estudos de família.

A introdução apresenta a temática do livro, já anunciando a discussão sobre a particularidade da etnografia, que será melhor discutida no primeiro capítulo, onde os autores problematizam, em específico, como fazer pesquisa sobre a própria família, refletindo ainda acerca das implicações éticas do empreendimento. Cada um dos três capítulos que se seguem se referem a uma das famílias em questão, apresentando e analisando os dados etnográficos particulares a elas. Nas três famílias abordadas, os autores partiram de um casal fundador de referência e sua descendência, todas elas caracterizadas como famílias de camadas populares, nas quais a relação com a casa, o bairro, a localidade é também bastante importante. Os três últimos capítulos analisam, conjuntamente, as três famílias por meio dos eixos: casa, condições diferenciais de reprodução e auto-afirmação.

Certamente, o ponto alto do livro é a refinada discussão feita na introdução e no primeiro capítulo sobre como, e porque, tomaram suas próprias famílias de origem como tema de pesquisa. Do mesmo modo, os capítulos sobre os Duarte e os Campos são os que apresentam a análise e a discussão etnográfica mais relevante. Contudo, no capítulo sobre os Costa destacam-se os ganhos analíticos de um trabalho de campo continuado e mesmo do retorno ao campo após muitos anos da pesquisa. O livro apresenta ainda um rico e extenso diálogo com grande parte da bibliografia sobre parentesco e família.

A prosa bem articulada e envolvente nos leva, logo na introdução, aos percalços enfrentados pelos autores ao empreenderem uma etnografia sobre a própria família. As tensões provocadas pelo trabalho se deram tanto nas primeiras apresentações públicas, nas quais se chegou a questionar a validade da etnografia como também no núcleo familiar. Nesse sentido, não só os ganhos do empreendimento são enfatizados, mas também, talvez até com maior ênfase, as possíveis limitações da proposta, como a disparidade de informação etnográfica entre os três casos ou o possível destaque nas etnografias a um “informante” privilegiado. No caso dos Campos, por exemplo, a proeminência da figura da filha mais velha do casal original, mãe de Edlaine, como “informante” privilegiada, à princípio pode parecer problemática, mas no conjunto da etnografia fica evidente o que ela representa em termos de agregação da família.

No decorrer dos capítulos, a grande rentabilidade analítica do trabalho acontece nos momentos em que os autores conseguem fazer uma leitura entrelaçada das diferentes condições de gênero, geração, classe, raça, religião, localidade, que marcam cada circunstância analisada. Outro ponto relevante na análise diz respeito às formas de agência, marcadas tanto pelo entrelaçamento de categorias como por um forte senso de “pertencimento familiar”.

Gênero, em específico, embora não apareça como categoria central na análise, poderia ter sido melhor aproveitado em alguns momentos. Um deles é quando, na introdução, os autores problematizam as circunstâncias particulares da pesquisa. Ainda que eles mencionem que a diferença de gênero entre os dois pesquisadores é importante, na medida em que levou a um acesso diferencial a certos pontos de vista, eles não chegam a problematizar essa diferenciação. Nesse sentido, as diferenças geracionais entre os pesquisadores e suas implicações na pesquisa são mais esmiuçadas tanto na introdução como também ao longo da obra.

Há que se destacar que ao problematizar questões pessoais que permearam a etnografia sobre suas próprias famílias, os autores não fazem disso um exercício biográfico, mas partem dessa discussão para chegar a questões antropológicas mais amplas sobre parentesco, família, religião e sobre a própria feitura de uma etnografia. Embora muitos antropólogos recorram a redes pessoais para conduzir a pesquisa, poucos trazem isso a público. A coragem em apresentar publicamente a condição particular da pesquisa e o modo claro e direto com que informam ao leitor do que estão tratando, seus métodos, dificuldades, caminhos possíveis é um dos grandes méritos do livro e é por meio do que nos contam os próprios autores que, talvez, possamos inferir algumas diferenças entre as etnografias dos Duarte e dos Campos.

A proposta de realizar uma etnografia da própria família teria partido de Luiz Fernando Duarte, quando este coordenava o projeto “família, reprodução e ethos religioso”, do qual Edlaine Campos Gomes fazia parte. Em diversos momentos, a pesquisadora teria trazido dados da própria família para iluminar as questões que então estavam sendo estudados. A curiosidade crescente do antropólogo o levou a propor que ela pesquisasse explicitamente sua família e que no relatório final houvesse uma reflexão sobre as implicações dessa decisão. A rentabilidade da proposta foi visível e Duarte decidiu incluir também sua própria família na pesquisa.

Os autores relatam o não-estranhamento de Edlaine ante a sugestão de Duarte em investigar sua família de origem. Esse não-estranhamento está claramente estampado na escrita à vontade dela sobre os Campos e no modo atilado como expõe e analisa questões pertinentes de sua etnografia em diálogo com uma extensa bibliografia sobre as questões que propõe.

A qualidade etnográfica, que salta à vista no capítulo sobre os Campos, pode se dever ao fato de a família da antropóloga ser mais numerosa, implicando assim um volume maior de informações e de questões ou mesmo devido ao tipo de etnografia empreendida – enquanto a etnografia dos Duarte é focada em duas gerações passadas, cujos membros já eram falecidos no momento da pesquisa, a dos Campos é apresentada também numa situação contemporânea. Contudo, é possível que a análise articulada e a escrita confortável de Edlaine estejam relacionadas a uma das questões relatadas no livro – não era a primeira vez que a antropóloga acionava “informantes” em sua rede de parentesco para uma pesquisa antropológica. Quando ainda era assistente de pesquisa, ela teria servido como elo entre pesquisadores seniores e seus objetos de pesquisa por ser quem era: originária da Baixada Fluminense e das camadas populares, por associação, ainda que integrante de um ramo ascendente de sua rede familiar (35).

Essa é também uma questão importante acerca das pesquisas antropológicas com camadas populares nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense, que se intensifica a partir de meados dos anos de 1980 com a emergência, na época, de alunos provenientes de áreas periféricas à Universidade, os quais serviam como “informantes privilegiados” e facilitavam o acesso de pesquisadores a essas áreas. Desse modo, como destacado na introdução, não foi, para ela, grande novidade empreender pesquisa na própria família, embora tenha sido importante a passagem de auxiliar e “informante” à de autora. Há que se destacar assim a grande qualidade etnográfica do trabalho de Gomes bem como sua coragem em enfrentar questões teóricas importantes face aos dados provenientes de sua própria família.

A dinâmica das famílias de classes populares aparece freqüentemente relacionada à casa de origem, a um bairro ou uma localidade. Nesta obra, essa questão é examinada com especial atenção no quinto capítulo, no qual a análise se estende tanto para espaços particulares da casa – o quintal, a varanda ou a cozinha -, que podem ser fundamentais para a organização e reprodução familiar, como também para além dela – a vizinhança, o bairro no qual está inserida, as mudanças pelas quais o local passa ao longo do tempo. A casa aparece, então, como “espaço moral”, espaço da memória e mesmo como termo irmanado à família.

A proximidade das residências dos membros da família é mais um elemento considerado na análise, pois estaria relacionado à manutenção da reciprocidade. Mesmo num contexto em que se reconheça que os vínculos familiares estão se perdendo, a família parece ainda operar, em muitos contextos, como rede de socorro mútuo. Nesse sentido, o compadrio, por exemplo, continua a ser identificado como expressão de obrigações recíprocas. Outros elementos importantes a respeito da casa são a comensabilidade e a circulação de parentes, vizinhos, agregados e crianças nas três famílias analisadas. Segundo os autores, a casa pode ser experimentada como “casa da família”, “casa da família e local de passagem” e “casa da família e local de moradia”, enfatizando as correlações entre o local e o pertencimento familiar.

Casa e religião também se conectam. Entre os Costa, a matriarca era rezadeira e parteira, a casa assumia, portanto, o viés de templo quando os vizinhos e parentes eram recebidos na varanda para serem “rezados”. Entre os Duarte, Milton, um dos filhos do casal original, era médium e, muitas vezes, a casa serviu como ponto de reunião das sessões de “mesa branca”. Na família Campos, a matriarca era católica praticante, mas tinha relações com religiões afro-brasileiras, nas gerações seguintes as religiões neopentecostais ganharam espaço. Neste caso, o uso da casa como espaço religioso ganhava ainda peculiaridades devido à ocupação do quintal com pequenas casas geminadas. Assim, era comum que enquanto uma das noras incorporasse entidades de Umbanda, em outra casa estivessem rezando novenas e orações. As relações entre localidade, religião e família são particularmente analisadas na etnografia sobre os Campos, na qual a conversão de alguns membros da família a religiões evangélicas é marcada pela adesão da prática religiosa da mãe do marido, que é melhor entendida tendo em vista a regra de patrilocalidade, que parece reger aquele grupo – são as mulheres da rede familiar que se mudam para o “quintal” da família de seus maridos e adotam a religião da sogra. Em todas as famílias, o pluralismo religioso era freqüente, no caso dos Campos, em especial, a extensa conversão a religiões evangélicas levou a disputas de espaço e mesmo ao questionamento do pertencimento familiar, quando, por exemplo, os católicos passaram a considerar que a “família de fé” dos evangélicos estava assumindo maior importância do que a “família de sangue”.

No sexto capítulo, “Condições diferenciais de reprodução”, os autores intercruzam categorias para analisar as condições e o acesso diferencial a bens de reprodução, enfocando o trabalho, o habitus, o estudo e a habitação. Aqui, mais uma vez, as relações entre localidade e família são fundamentais para compreender as relações com trabalho e estudo, por exemplo, entre os Costa e os Campos, que tiveram o acesso à escola dificultado pela localização marginal da casa de origem, ao contrário do que teria ocorrido entre os Duarte.

Os autores destacam que a mais óbvia distribuição diferencial de recursos entre os membros de uma frátria se dá em função de gênero e posição, beneficiando os descendentes mais velhos, bem como os homens em relação às mulheres. Neste caso, ao analisar as trajetórias educacionais e de trabalho de homens e mulheres da segunda geração, especialmente nas famílias Campos e Costa, percebe-se resultados contraditórios. Embora as famílias tenham feito maiores investimentos sobre a afirmação dos homens, desde muito cedo, a prioridade para eles era o trabalho; assim, as mulheres acabaram tendo maior tempo de escolaridade, do qual se beneficiaram futuramente com melhores condições de trabalho no mercado de serviços, enquanto alguns de seus irmãos teriam ficado relegados à instabilidade dos trabalhos manuais.

A questão racial, por sua vez, é retomada ao se falar da corporalidade e das estratégias e trajetórias matrimoniais, invocando-se aqui a dimensão da “beleza”, da constituição física, dos estigmas e dos juízos relativos à “cor”. Na família Campos, a questão racial é relevante desde o casal original por meio da ideologia do branqueamento, claramente estampada na frase de Elza, a filha mais velha, quando se remete à memória familiar: “todo mundo só quer se lembrar dos portugueses”. Nas outras famílias, embora a questão não seja explícita, Duarte especula sobre as diferenças de “cor” entre os membros da frátria de seu pai, observada através do acervo fotográfico e das narrativas sobre a história familiar. O ponto mais interessante talvez seja a reflexão do autor sobre o silenciamento da questão racial na família, silenciamento este que o próprio pesquisador não conseguiu quebrar nas entrevistas, passando, então, segundo ele mesmo, a participar da perpetuação nativa do silêncio.

O último capítulo retoma o importante trabalho de Luiz Fernando Duarte (1986) sobre a vida nervosa na classe trabalhadora, abordando, de modo mais pormenorizado, as categorias de individualização e individuação. Os autores concluem, contudo, que nenhuma dessas categorias daria conta de tratar das identidades, projetos e processos de reprodução das famílias que abordam, as quais, embora sejam de classe popular, encontram-se entre as camadas menos pauperizadas e com possibilidades de acesso a condições de reprodução que permitiram a alguns de seus membros ascenderem à classe média, o que teria ocorrido, por exemplo, com os ramos dos quais eles próprios fazem parte. Optam, então, por utilizar a categoria auto-afirmação. Destacam ainda que o processo de auto-afirmação está ligado à classe, idade, desenvolvimento de unidade doméstica, circunstâncias históricas conjunturais e, portanto, só fazem sentido situacionalmente. As possibilidades de agência e auto-afirmação são assim dependentes do intercruzamento de múltiplos fatores. Desse modo, retomam “situações” de cada família nas quais houve um processo de auto-afirmação, fosse por nuclearização familiar, estudo, profissionalização ou militância política. Destacam, por fim, que quando esses processos são bem-sucedidos podem levar à transição para uma nova condição e identidade social, embora fique claro também que a tensão permeia o processo: na medida em que um ramo familiar ascende socialmente, as relações com a família original tornam-se mais sujeitas a sofrer abalos.

Se toda escolha por um recorte ou perspectiva metodológica pode comportar limitações, a boa etnografia é, em geral, aquela que tira o melhor proveito possível das opções que fez. Os autores destacam que o livro é um experimento e como experimento pode ter limitações e estar sujeito a controvérsias, é, contudo, um livro muito bem-sucedido e bem-vindo exatamente pelas controvérsias e debates que põe a claro. Unindo boa etnografia, diálogo constante com uma extensa bibliografia sobre família e parentesco e uma escrita que entrelaça de modo competente etnografia e teoria, o livro conduz o/a leitor/a por uma contundente análise que não deixa dúvidas sobre a relevância continuada do campo de estudos de família para a antropologia. O livro é de interesse tanto para aqueles que estudam família ou religião como também para qualquer antropólogo interessado numa instigante discussão sobre etnografia.

Referências

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas). Rio de Janeiro, Jorge Zahar/CNPq, 1986.         [ Links ]

Sabrina Finamori – Doutoranda em Ciências Sociais – área de Estudos de Gênero – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (Bolsista Fapesp). [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Mulheres e Poder – histórias, ideias e indicadores – MELO (S-RH)

MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder – histórias, ideias e indicadores. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.  Resenha de: SILVA, Tamy Amorim. Mulheres, feminismos e poder: caminhos de lutas. SAECULUM – Revista de Hhistória, João Pessoa, v.40, p.461-466, jan./jun. 2009.

Mulheres e poder – histórias, ideias e indicadores é uma obra necessária em momentos atuais. Publicado no ano de 2018 pela editora Fundação Getúlio Vargas, o livro nos traz relevantes discussões para aprendermos sobre a longa duração das lutas das mulheres pelo acesso à educação, ao trabalho, ao voto, entre outras, esboçadas durante os capítulos, e procura nos fazer refletir sobre o quanto ainda falta para lograr a equidade de gênero.

Uma das autoras, Débora Thomé, é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense. Entre outras publicações suas estão os livros O Bolsa Família e a social democracia e 50 brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer – este último voltada para o publico infantil. Atualmente, suas pesquisas se destinam a explorar a participação política de mulheres no Brasil. A outra autora é Hildete Pereira de Melo, professora associada da Universidade Federal Fluminense, doutora em Economia. Seu currículo se expande em número de publicações, orientações e experiências de pesquisa, sendo que um dos temas aos quais dedicou suas investigações diz respeito às assimetrias de gênero no campo do trabalho doméstico. Na apresentação do livro fica evidente que militância e pesquisa acadêmica estão imbricadas e é relevante mencionar que Hildete Pereira indica sua articulação com os feminismos desde meados de 1976, sendo, nesse livro, uma “testemunha desta história” escrita (Melo; Thomé, 2018, p. 191). Leia Mais

Jango: as múltiplas faces – GOMES; FERREIRA (RBH)

GOMES, Ângela de Castro; FERREIRA, Jorge Ferreira. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 280p. Resenha de: MONTENEGRO, Antonio Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008.

O livro Jango: as múltiplas faces, de autoria dos professores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, vem de forma muito própria ampliar o debate em torno da trajetória pública de um político que teve participação fundamental na história do Brasil, particularmente na segunda metade do século XX.

Em que pese essa participação ampla e ativa nos acontecimentos, sobretudo políticos, econômicos e sociais, produziu-se em torno do ex-presidente João Goulart uma história carregada de significados negativos. E essa produção (como assinalam os autores) foi instituída tanto por setores adversários (partidos e grupos políticos dos mais diferentes matizes ideológicos e segmentos da sociedade civil) como pelos partidos e grupos políticos que o apoiavam. Em razão desse cenário, desconstruir essa história que hoje opera como uma memória não é algo instantâneo nem uma operação que ofereça facilidade aos historiadores.

É nessa trincheira de uma história a contrapelo que este livro irá se posicionar. E o primeiro movimento para quebrar o quadro monolítico das adjetivações de Jango indeciso, Jango sem controle da situação política do País, Jango dominado pelos comunistas, Jango de quem todos desconfiavam, é trazer à tona uma série de atores constituidores desses discursos e confrontá-los com outros atores e outros discursos que apontam em sentido diametralmente oposto. O segundo movimento é romper com um relato e uma imagem que comumente reduz a trajetória de Jango ao seu período como presidente. Assim, os autores ao reconstruírem a trajetória de Jango, desde seus primeiros encontros com Vargas em São Borja em 1945, depois deputado estadual pelo PTB no Rio Grande do Sul, deputado federal, secretário do Interior e Justiça do governo de Ernesto Dornelles no Rio Grande do Sul, presidente do PTB, ministro do trabalho de Getúlio em 1953-1954 e depois vice-presidente de Juscelino entre 1956 e 1960, instituem a história de um político que acumulou uma larga experiência ao longo da vida.

Entretanto, para todos que acompanham os artigos e livros dos professores Ângela de Castro e Jorge Ferreira, não é difícil perceber que tanto esse período da história do Brasil, como a atuação de João Goulart, constantemente atravessam as trilhas de seus escritos, mesmo quando o foco de suas narrativas históricas é outro. Este registro é importante, pois sem um amplo conhecimento do período e de uma documentação bastante diversificada, não seria possível construir uma contra-história que rompesse a rede de significações estabelecidas. Afinal, constitui-se um grande desafio aos historiadores que se dedicam a pesquisar esse período, não subsumir a sua produção a uma lógica dualista e teleológica que, de maneira ‘apriorística’, institui uma visão histórica positiva ou negativa acerca de João Goulart.

Em razão do exposto, qual engenharia escriturística montaram estes historiadores? Poderiam ter escrito uma biografia política tradicional. No entanto, optaram por um caminho muito mais sinuoso. Poder-se-ia dizer uma meta-história. Mas não reduzida à perspectiva lingüística, em que o sentido ou os significados se estabelecem a partir das figuras da linguagem, e sim, fundamentalmente por meio de um caleidoscópio documental. Neste, a história de vida e, sobretudo política de Jango, apesar de se apresentar narrada em sete capítulos ou períodos referenciais, adquire formas as mais diversas à medida que lemos o conjunto documental em que se apóia cada capítulo. Dessa maneira, desafia o leitor a realizar uma leitura difícil, articulando, detalhando a trama que obriga à reflexão a todo instante, pois os distintos documentos e imagens emitem signos de diferentes matizes. E, possivelmente, as pessoas que buscam uma resposta pronta, uma representação sem paradoxo, sem conflitos, sem dúvidas, não terão neste livro uma leitura fácil.

Ao percorrer atentamente as linhas labirínticas que instituem essa história, descobre-se como mãos extremamente habilidosas operaram no limiar ou na fronteira da unidade e da pluralidade de sentidos e significados. Os autores, ao afirmarem “que se buscou não foi a homogeneidade e a convergência de pontos de vista, ‘fechando’ a biografia, mas justamente o inverso: o confronto, o debate de opiniões, ‘abrindo’ a trajetória de Jango a leituras variadas”, possibilitaram ao leitor conhecer relatos de aliados e de adversários de Jango, produzindo as mais diferentes análises, avaliações e pontos de vista. Entretanto, essa pluralidade/diversidade caleidoscópica está montada para nos causar a sensação ou o efeito literário de que o acaso, a incerteza e a dúvida não são apenas atributos da história cotidiana, mas, também da reconstrução historiográfica.

A seleção de alguns pequenos trechos de relatos presentes no livro possibilita ao leitor antever como essa diversificada e paradoxal documentação sugere a potencialidade de distintas histórias, ou talvez a impossibilidade de uma história conclusiva. Observa Raul Ryff, secretário de imprensa da presidência de Jango, o qual abre a sessão de documentos do capítulo VI, “Jango e o golpe de 1964”:

Ele incentivou a sindicalização rural, mexeu numa área perigosa, uma área de coronéis, no sentido de chefia política. Lutou pela reforma agrária; estabeleceu a Lei da Remessa de Lucros controlando, colocando normas para essa remessa e diminuindo a taxa de retorno do capital estrangeiro; desapropriou as refinarias particulares entregando-as à Petrobras. Enfim, tomou várias medidas importantes. Foi um governo notadamente nacionalista, popular e democrático.

Ainda numa perspectiva muito próxima a esse depoimento de Ryff, poder-se-ia apontar nesse mesmo capítulo o depoimento de Hércules Correia, membro do PCB que no dia do golpe acompanhou o diálogo ao telefone entre Jango e um dos militares golpistas:

Aí o Kruel ligou e Jango pediu que um de nós fosse para o telefone na extensão. O Oswaldo Pacheco pediu: “Vai você”. Aí eu fui para a extensão e ouvi a conversa. O Kruel disse que a única forma de evitar um golpe era dissolver oficialmente a CGT e prender todo mundo. Naquela época, seria prisão de mais ou menos 500 dirigentes sindicais aqui do Rio e dos estados; as principais cabeças. E o Jango não aceitou. Respondeu na hora, disse que não, que não ia prender, não ia fazer aquilo. A partir daí não tinha mais condições de ficar na presidência. Então foi para Brasília e, de Brasília, pegou outro avião e foi para o Uruguai.

Esses fragmentos positivam a atuação e o comportamento do presidente João Goulart. No entanto, há nos autores uma clara opção por uma trilha marcada por paradoxos que recolocam a dúvida e a incerteza, desconstruindo a possibilidade de instituir uma história conclusiva. E nesse sentido é revelador o relato de Hugo Faria, que conhece Jango ainda no período em que este assumiu o Ministério do Trabalho de Getúlio, vindo posteriormente a se tornar seu amigo e conselheiro:

E chegou um ponto em que ele me disse: “Hugo, você sabe por que tirei você da Casa Civil?”. Eu respondi: “Saber eu não sei, mas desconfio. O senhor não tem condições de aceitar críticas, e como eu sou por natureza um crítico, o senhor se encheu. Como é meu amigo, me deu uma outra posição. Na verdade, o senhor não aceita crítica”. Ele concordou: “É, você me enchia… Todo o dia era notícia ruim, notícia ruim…”. Não era. Eu estava mostrando a evolução, ele não queria acreditar. Não fui eu só, não! Juscelino foi três vezes ao palácio alertar Jango de que a revolução ia estourar. E na última vez Jango disse: “Eu boto esse pessoal nas ordens em meia hora, uma hora. O Assis Brasil tem um esquema montado”. Ele preferia acreditar nas bazófias do general Assis Brasil…

Este pode ser visto como um fragmento de um relato crítico de um amigo, que foi preterido como voz aconselhadora quando tentou (da mesma forma que outros também o fizeram) alertar Jango acerca do perigo de uma conspiração golpista que se avizinhava. Ou seja, o presidente não era receptivo a críticas e às boas avaliações na visão do amigo de longa data, Hugo Faria.

Um relato do campo adversário, também instituindo uma perspectiva negativa da imagem de Jango, encontra-se no relato do general Geisel. Este irá apontar para uma grande resistência a Jango, apenas contornada provisoriamente enquanto se manteve o regime parlamentarista: “A conspiração começou a tomar vulto quando o Jango derrubou o parlamentarismo, foi para o presidencialismo e passou a ser dominado pelo Dante Pellacani e uma série de outros líderes sindicais que mandavam e desmandavam”.

Revela o general que, no momento em que o presidente obteve por meio de um plebiscito amplamente favorável os poderes constitucionais de presidente, o movimento conspiratório foi colocado em marcha.

Estes fragmentos oferecem ao leitor uma pequena visão da riqueza e diversidade documental dessa narrativa que elege a figura emblemática de Jango para estudo e que faz recordar Foucault com sua crítica ferrenha às biografias, que instituem representações fechadas, acabadas e na maioria das vezes heróicas dos seus personagens. Ou ainda, por que não lembrar Pirandello e seu maravilhoso Moscarda em Um, nenhum, cem mil?

Ao mesmo tempo, confirma-se o compromisso político da prática historiográfica dos autores, aliando o fazer intelectual a uma busca incessante de novas compreensões de uma realidade em que passado e presente são ressignificados em uma nova forma de fazer política, permanentemente desafiando nosso agir social. É possivelmente com esse espírito que os autores finalizam esta biografia com um pequeno texto manuscrito de Jango, datado de 18 de julho de 1975, portanto um ano antes de sua morte: “Os últimos acontecimentos não podem e não devem ser julgados apressadamente. Não podemos viver placidamente quando milhões de Brasileiros estão sofrendo inúmeros sacrifícios. Peço fé e confiança. Estarei sempre ao lado dos que sofrem em defesa de seus direitos e de nossos ideais”.

Antonio Torres Montenegro – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Pesquisador do CNPq. Rua Acadêmico Hélio Ramos s/n – Cidade Universitária. 50670-901 Recife – PE – Brasil. [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007. 272p. Resenha de: RODEGHERO, Carla Simone. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.235-242, 2007.

Jango: as múltiplas faces, de Ângela de Castro Gomes e de Jorge Ferreira, é um livro que foi pensado a partir do reconhecimento de que a memória e a história sobre João Goulart se concentram no período da presidência da República e a partir da percepção de que, ainda hoje, esse personagem histórico continua suscitando paixão e polêmica. Para mostrar que a atuação política de Jango foi muito mais longa do que seu mandato presidencial, os autores optaram por produzir uma narrativa biográfica acompanhando a trajetória de Jango e contemplando tanto sua dimensão política quanto a pessoal. (p. 9). Optaram também por mostrar que essa trajetória foi multifacetada. Segundo Gomes e Ferreira, as múltiplas faces de Jango vão além da pluralidade constitutiva do homem moderno., já que Goulart pode ser caracterizado, por excelência, como um personagem assinalado pelo contraditório, sendo, por isso, um desafio para interpretações que se queiram unívocas e lineares. (p. 9).

Essa percepção ganha corpo, a cada capítulo do livro, com a apresentação de um vasto conjunto de depoimentos e de alguns pessoal de Jango aí retratado. Assim, após uma exposição elabora- da pelos autores e acompanhada por imagens, são transcritos os depoimentos e os demais documentos, que possibilitam que o leitor se confronte com a diversidade dos pontos de vista a respeito de João Goulart. Com esta estratégia, os autores buscaram escrever uma biografia aberta à interpretação dos leitores., (p. 10) sem, no entanto, descartar o auxílio e a mediação dos historiadores.

A maior parte das entrevistas foi recolhida no acervo de depoimentos do Setor de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. São entrevistas realizadas no contexto de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos desde a década de 1970. Outras, mais recentes e relacionadas à trajetória pessoal de Jango, foram recolhidas pelos autores. Entre os depoentes estão familiares e pessoas próximas da família, como a esposa, Maria Thereza; a filha, Denise; o procurador Bijuja. Outro grupo é formado por membros do PTB e do governo deposto, como Abelardo Jurema, Ministro da Justiça entre 1963-1964; Almino Afonso, Ministro do Trabalho e da Previdência Social, em 1963; Evandro Lins e Silva, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República e Ministro das Relações Exteriores, em 1963; Hugo de Faria, Ministro do Trabalho em 1954, Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República em 1963 e Presidente do Banco do Brasil em 1964; Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul entre 1958 e 1962 e deputado federal pela Guanabara, eleito em 1962; Raul Ryff, Secretário de Imprensa da Presidência da República entre 1961 e 1964; e Wilson Fadul, Ministro da Saúde, entre 1963 e 1964. Também são apresentados depoimentos de apoiadores e de opositores políticos, que revelam os diferentes níveis de apoio e de oposição que se fizeram sentir ao longo da trajetória política de Jango. No primeiro caso, têm-se, entre outros, Francisco Julião, Deputado federal e líder das Ligas Camponesas, e Hércules Correia, ser citados Afonso Arinos de Mello Franco, da UDN, e os milita- res ligados ao golpe, Antônio Carlos Muricy e Ernesto Geisel.

Os depoimentos são apresentados ao final de cada capítulo, aprofundando, exemplificando, complexificando e enriquecendo a narrativa dos autores. No final do livro, o leitor encontra um quadro com a relação dos depoentes, com um breve currículo dos mesmos, a data da entrevista e o nome dos entrevistadores. Porém, como boa parte dos entrevistados não é automaticamente reconhecida pelo leitor comum e mesmo pelo especializado, fica faltando, no momento em que cada depoimento é apresentado, a remissão a uma nota de rodapé que permita situar, com rapidez, quem está falando, qual sua relação com os fatos em discussão, para quem está falando e quando concedeu a entrevista. Este de- talhe técnico beneficiaria o leitor, já que a consulta ao quadro final quebra o ritmo da leitura e prejudica a avaliação sobre as escolhas feitas pelos autores quando da seleção dos depoimentos. Por outro lado, várias notas explicativas acompanham os capítulos, mas elas se referem a personagens, fatos, instituições, leis que são, muitas vezes, de maior conhecimento público do que a trajetória ou filiação política dos depoentes.

Feita esta breve apresentação da obra, antes de entrar no relato das múltiplas faces de Jango., é preciso lembrar que a trajetória de pesquisa de Gomes e Ferreira sobre os temas do getulismo e do trabalhismo torna-os altamente qualificados para escrever sobre João Goulart. Ao longo das últimas décadas, seus trabalhos têm contribuído para repensar fenômenos da história brasileira pós- 1930, especialmente no que diz respeito ao período que é inaugurado com a redemocratização de 1945 e com a Constituição de 1946.

Boa parte das manifestações políticas e sindicais desse período havia sido alvo de severas avaliações e críticas, construídas a partir do conceito de populismo, ao longo dos anos 1960 e 1970.

Gomes e Ferreira têm realizado trabalhos pioneiros que permitem repensar tais interpretações. Além disso, o próprio personagem João Goulart já foi alvo de atenção direta de ambos os autores, em diversas oportunidades.

Ao longo do primeiro capítulo, o leitor acompanha João Goulart desde seu nascimento, em 1919, até sua entrada no mundo da política. Fica sabendo a respeito das posses da família em São Borja, do curso de Direito realizado em Porto Alegre e da posterior volta à terra natal para assumir os negócios, após a mor- te do pai. Acompanha, em São Borja, a rotina do jovem Jango transformada com a chegada de Getúlio Vargas, no final de 1945, seu posterior envolvimento com a criação do PTB e sua eleição para a Assembléia Legislativa gaúcha em 1947. É informado sobre o aprofundamento da sua atuação política nas articulações para a eleição de Vargas em 1950, ano em que Goulart também é eleito deputado federal. Neste capítulo, ainda é descrito o período de 13 meses, durante o qual Jango se afastou do mandato para atuar como Secretário do Interior e da Justiça no Governo de Ernesto Dornelles, no Rio Grande do Sul. Sabe-se, finalmente, que ao reassumir o cargo, no Rio de Janeiro, Vargas lhe concedeu um gabinete de trabalho no Palácio do Catete. Lá, Jango seria muito mais visto do que no Congresso Nacional.

Essa trajetória de envolvimento na política se consolidou com a passagem de Jango pelo Ministério do Trabalho, em 1953, o que é tratado no segundo capítulo da obra. Neste momento, teria se revelado a capacidade de negociação de Goulart, mediando questões entre empresários e trabalhadores, como aconteceu na greve dos marítimos. Medidas como a abolição do atestado ideológico para dirigentes sindicais permitiram a atuação em conjunto de lideranças trabalhistas e comunistas. A informalidade com que Jango se dirigia a essas lideranças aceitando, inclusive, convites para churrascos em final de semana para discutir demandas sindicais de trabalhadores, segundo relatam os autores, chocou setores da sociedade brasileira. A estada no Ministério culminou com militares com ampla repercussão levou à saída de Goulart da pasta do Trabalho.

Antes da entrada no Ministério, porém, Jango havia assumi- do a Presidência do PTB. O terceiro capítulo trata do sindicalismo no período entre 1945 e o começo da década de 1960, mostrando as aproximações entre os trabalhistas e o PCB. Em parte desse período, Jango viria a ocupar a vice-presidência da República (nos governos Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros). Naquela época, como se lê no quarto capítulo da obra, ser vice-presidente exigia fazer uma campanha à parte e, depois de eleito, assumir, entre outros encargos, a presidência do Senado. Segundo os autores, ser vice-presidente significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos. (p. 111). A junção das possibilidades oferecidas pelo cargo com a prévia experiência de diálogo de Jango. que mantinha forte influência sobre o Ministério do Trabalho com o movimento sindical, teria contribuído para a estabilidade política do governo JK. O relacionamento com Jânio, todavia, teria sido mais difícil, já que o presidente fazia questão de demonstrar seu distanciamento em relação ao vice, eleito pela chapa oposta. O episódio da renúncia de Jango e a campanha da Legalidade também são narrados neste capítulo.

No capítulo seguinte, os autores se debruçam sobre o período em que Jango esteve na Presidência da República. Nesta parte, são enfatizados, entre outros aspectos, o seu programa nacionalista mínimo; as dificuldades com os credores internacionais; a falta de apoio no Congresso, onde PSD e PTB divergiam sobre questões essenciais do programa de governo; o afastamento das forças reformistas da estratégia da luta parlamentar; as substituições de gabinetes e o plebiscito que aprovou a volta do presidencialismo.

A partir dessa fase, é apresentado o Plano Trienal, com suas metas e a conjuntura que levou ao seu abandono. O capítulo é concluído com o tratamento da crescente radicalização política que atingiu optativas de negociação, aproximando-se das organizações que, ao longo do tempo, mais abertamente o sustentaram: o movimento sindical e as esquerdas radicais. (p. 144).

O golpe de 1964 é tratado no penúltimo capítulo do livro, que narra os acontecimentos que se seguiram ao comício de 13 de março: a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais, o compareci- mento do presidente à solenidade de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, no Automóvel Clube, o levante em Minas Gerais e a movimentação de Goulart até sua saída para o Uruguai. O não-apelo à resistência estaria ligado à percepção do Presidente de que havia um alto risco de guerra civil. (p. 196).

Jango no exílio. é o capítulo que encerra a biografia. Aí é tratado o rompimento definitivo entre Goulart e Brizola, depois de uma curta aproximação. Fica-se sabendo que após um ano de exílio, Jango passou a se dedicar a investimentos agropecuários no Uruguai. Por conta disso, além de engordar bois, tornou-se um dos maiores fornecedores de arroz daquele país. São brevemente descritas as articulações em torno da Frente Ampla, logo tornada ilegal. Vigiado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o ex-presidente afastou-se de qualquer atividade política, voltando a se dedicar exclusivamente a seus negócios pessoais. (p. 231). Sofreu um enfarte em 1969, viu a sua situação e a da família se com- plicarem com o golpe de 1973, no Uruguai. Em 1974, passou a residir em Buenos Aires. Na Argentina, continuou com seus negócios agropecuários e comprou propriedades. Sua saúde, no entanto, estava debilitada: Jango alimentava-se mal, fumava e bebia muito, sofrendo de bruscas quedas de pressão arterial, desmaios e dores no peito. (p. 232). Em 1976, após receber ameaças de que seus dois filhos seriam seqüestrados, Goulart os enviou para Londres. Fez gestões para voltar ao Brasil. Em 6 de dezembro daquele ano, morreu no exílio, vítima de um enfarto fulminante.

para os autores do livro, o conjunto dos depoimentos e documentos apresentados instiga o leitor a tirar suas próprias conclusões, dialogando com a narrativa dos capítulos. Os autores resgataram também a própria voz de João Goulart, apresentando alguns discursos por ele proferidos, um dos quais no formato de CD. Tal material permite empreender uma série de comparações e de questionamentos. Avaliações absolutamente contrastantes sobre Jango convivem, em tais documentos, com diferentes valorações atribuídas a certas características pessoais ou políticas de João Goulart. A leitura dos depoimentos suscita questionamentos sobre como era visto e como foi descrito o preparo (ou a falta de preparo) de Jango para o cargo de Presidente da República; sobre as avaliações a respeito da consistência do seu programa de reformas de base e sobre a sinceridade no propósito de realizá-las; sobre o paradoxo de o rico proprietário de terras propor uma reforma agrária; sobre a sua capacidade de dialogar e de construir consensos, em situações nas quais os interlocutores eram sindicalistas e quando o diálogo precisou ser feito com os setores mais conserva- dores da sociedade brasileira. O perfil que os autores apresentam de Jango, como um governante que queria dialogar e, ao mesmo tempo, fazer as reformas acontecerem, faz pensar sobre o papel da conciliação e da radicalização na política brasileira, dos anos 1960 aos dias atuais.

Finalmente, é preciso chamar a atenção, no livro de Gomes e Ferreira, para a importância do recurso à memória na escrita da história recente do Brasil e para as contribuições da História Oral nesta tarefa. Isso é particularmente fecundo no caso de Jango, um personagem polêmico que, apesar de ter uma longa trajetória política, ainda é associado quase exclusivamente à derrota representada pelo golpe de 1964. Isso se deve, creio, ao fato do golpe e do regime militar serem, ainda hoje, marcos fundamentais da nossa da ditadura ainda permeiam boa parte das discussões políticas no Brasil. Ao mesmo tempo, cada vez mais, instigam historiadores a se voltarem a este período e àquele que o antecedeu. Desta tendência fazem parte livros como Jango: as múltiplas faces.

Notas

1 Sobre outras publicações dos autores sobre o assunto ver: Ferreira, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: Jorge Ferreira; Lucília de Almeida Neves Delgado. (org.). O Brasil Republicano O tempo da experiência democrática – Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 1, p. 343-425; Ferreira, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 181-212, 2004. Ferreira, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005 (especialmente os capítulos: O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do trabalho; A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961 e O último ato: sexta-feira 13 na Central do Brasil). Ver ainda: Ferreira, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. No que se refere a Ângela de Castro Gomes, ver: GOMES, A. M. C. . O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói – RJ, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996; GOMES, A. M. C.  Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos Trabalhadores? In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) João Goulart entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006; e GOMES, A. M. C. O Populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. Revista Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

Carla Simone Rodeghero – Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.

Acessar publicação original

[IF]