História Cultural do humor | Faces da História | 2020

O riso e o humor sempre fizeram parte da cultura humana. Apesar disso, foi só a partir da segunda metade do século XX que as narrativas humorísticas passaram a ser legítimo objeto de estudo para a historiografia, a partir do advento da história cultural do humor. Mesmo que, metodologicamente, o estudo da comicidade seja ainda campo de difícil aproximação para o historiador devido à fragmentação dos objetos, é sempre válido apostar em uma leitura atenta das fontes, dialogando livremente com perspectivas epistemológicas.

Daí porque é possível afirmar que o estudo do humor tem se mostrado cada vez mais pujante e merecedor de abordagens originais nas mais diversas áreas do conhecimento. Leia Mais

História Cultural do humor / Faces da História / 2020

O riso e o humor sempre fizeram parte da cultura humana. Apesar disso, foi só a partir da segunda metade do século XX que as narrativas humorísticas passaram a ser legítimo objeto de estudo para a historiografia, a partir do advento da história cultural do humor. Mesmo que, metodologicamente, o estudo da comicidade seja ainda campo de difícil aproximação para o historiador devido à fragmentação dos objetos, é sempre válido apostar em uma leitura atenta das fontes, dialogando livremente com perspectivas epistemológicas.

Daí porque é possível afirmar que o estudo do humor tem se mostrado cada vez mais pujante e merecedor de abordagens originais nas mais diversas áreas do conhecimento.

Pensando historiograficamente, ainda que tenhamos acesso a publicações mais gerais do século XXI, como por exemplo Uma história cultural do humor (2000), organizado por Jan Bremmer e Herman Roodenburg, História do riso e do escárnio, de Georges Minois (2003), e sobretudo o largo compêndio de estudos sobre humor organizado por Salvatore Attardo, The Encyclopedia of Humor Studies (2014), esses volumes possam figurar como parâmetros para o historiador do humor, destacamos que no Brasil o crescimento deste campo ainda é lento, apesar do trabalho pioneiro de Elias Thomé Saliba (2002) e da existência de grupos de pesquisa e seminários sobre comicidade, apontando que esta é uma linha de pesquisa repleta de possibilidades de trabalho.

Este dossiê especial da revista Faces da História pretende celebrar exatamente este momento da pesquisa sobre humor no Brasil, registrando seus diálogos sobretudo com a história cultural, mas abrindo também espaço a interlocuções com a filosofia, a linguística, a literatura, o cinema, a música e o direito. A generosa acolhida da equipe editorial ao tema proposto para o dossiê, portanto, é nosso primeiro motivo de agradecimento como editores.

O segundo foi a boa receptividade encontrada pela chamada de artigos, não só por historiadores, público-alvo da revista, mas também por pesquisadores de outros campos do conhecimento – todos, porém, com propostas extremamente interessantes e inventivas, vindas de diversas partes do país.

Nessa aventura interdisciplinar, a lógica que pretendemos seguir com a ordem de apresentação dos artigos não foi a simples cronologia dos fatos históricos abordados em cada um dos trabalhos. Como o dossiê é composto por abordagens que vão desde a Grécia antiga ao direito contemporâneo, optamos pela divisão em quatro blocos temáticos.

No primeiro deles, reunimos quatro artigos que combinam historiografia e análise literária.

Em Tenupá-Oikó: a filosofia do “Deixa Está” como proposta humorística para a construção da legislação brasileira pela ótica antropofágica de Clóvis de Gusmão, Heraldo Márcio Galvão Júnior, doutor em história pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), resgata um nome pouco estudado do modernismo brasileiro, jogando luz sobre um autor profundamente original que ainda não obteve o merecido reconhecimento. Clóvis de Gusmão utilizava o folclore amazônico – anedotas, em especial – com o objetivo de, nas palavras de Galvão Junior, compreender “a verdadeira brasilidade” e “reedificar as concepções de sociedade, de cultura e de política”, inclusive por meio da substituição da legislação vigente, que seria mera cópia de modelos europeus, por algo verdadeiramente nacional.

Outro autor relativamente pouco estudado é o objeto do artigo de Leandro Antônio de Almeida, doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Depois, miseravelmente depois, só rindo: a sátira cômica de João de Minas nos anos 1930 escrutiniza a vida e a obra do pseudônimo de Ariosto Palombo, escritor de matizes inicialmente sertanistas que enveredou mais tarde pelo romance mais popularesco, contudo, sem jamais, abandonar a sátira política como elemento central de suas narrativas ficcionais. Almeida compara esses dois momentos da obra de João de Minas, refletindo sobre o papel do distanciamento na sátira e demonstrando como o autor mesclava os dramas de seus protagonistas com referências explícitas a acontecimentos políticos da época – tudo envolto numa atmosfera um tanto iconoclasta, num “universo regido pela busca […] de poder e dinheiro por meio da corrupção generalizada”.

Fechando o bloco concernente à literatura, Luís Felipe Gonçalves do Nascimento, mestre em história pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apresenta A Ressurreição de Vitorino Carneiro da Cunha: humor e ironia na obra de José Lins do Rego. O artigo mostra como o escritor paraibano utilizou um dos protagonistas do romance Fogo Morto para ironizar a crítica literária da época, e em certa medida a si mesmo, na medida em que se tratava de personagem inserido na mesma oligarquia canavieira na qual o próprio José Lins do Rego havia crescido. O artigo propõe, com isso, uma leitura que ilumina de modo inspirado toda a obra do autor: “É esta tensão que faz de José Lins do Rego um escritor intrigante, no aspecto de falar ou não falar do mundo em que viveu, de representá-lo, ou, de maneira intencional, desmontá-lo com ironia”.

O segundo bloco traz artigos que avaliam o humor na imprensa, começando com mais uma contribuição nordestina. Em O Jornal O Norte e o pioneirismo do humor gráfico na imprensa paraibana, Rosildo Raimundo de Brito, doutor em história pela USP e professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), analisou as edições que circularam entre 1968 e 1980 do primeiro periódico do estado a utilizar de modo consistente tiras e quadrinhos. Para se debruçar sobre as caricaturas do jornal, em especial sobre o personagem Zé da Silva, o autor parte da ampliação do conceito de “documento histórico” pela chamada “nova história cultural”, para concluir que “é possível, a partir das imagens, se conhecer a história social de um determinado tempo”, considerando que por meio delas é possível reconstruir acontecimentos “em toda sua espessura política, social e cultural” – como, por exemplo, as alusões feitas sobre a ausência de voto direto para presidente durante a ditadura civil-militar que governou o país de 1964 a 1985.

Já em “Adoradores de Baccho”: embriaguez, humor e ambivalência na imprensa pelotense (1930-1935), Thaís de Freitas Carvalho, mestre em história pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), retrata como o humor confere ambivalência ao retrato da vida noturna por dois jornais circulantes na cidade, que se equilibravam entre a condenação dos excessos alcoólicos por meio da derrisão e a celebração dos entreveros por meio de notas policiais bem-humoradas. A historiadora reconhece que “muitos dos causos e histórias vividas por entre bares e botequins permanecem inacessíveis aos historiadores”; porém, os fragmentos de brigas e vexames, que ganharam menções nos periódicos, permitem entrever e imaginar a dinâmica dessa sociabilidade, e o que ela revela a respeito do divertimento possível à classe trabalhadora pelotense da época.

No quarto bloco destacamos artigos que abordam o humor em narrativas musicais e cinematográficas, fontes caras aos estudos de história cultural e que aqui primeiro surgem com o artigo Humoristas-cantores: a comicidade na canção brasileira (1964-1985) entre tons de crítica e notas de acidez, de Gabriel Percegona Santos, mestrando em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nele, Santos propõe estabelecer um “diálogo entre a história cultural do humor no Brasil entre os anos de 1964 e 1985 e sua expressão musical”, abordando a comicidade em registros fonográficos de artistas como Ary Toledo, Paulo Silvino, Chico Anísio e Arnaud Rodrigues (Baiano & Novos Caetanos), destacando como tais críticas, porque vieram através do humor, não fizeram com que as obras fossem censuradas e nem “tornaram seus autores e intérpretes personagens visados pela ditadura”, como era comum na época.

O humor no cinema aparece representado em Cinema e consumo popular de pornochanchadas: da nudez explorada às representações femininas (1970), de Julio Eduardo Soares de Sá Alvarenga, mestre em história pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), e Pedro Vilarinho Castelo Branco, doutor em história e professor da mesma universidade. No artigo, os autores não só abordam o gênero pornochanchada em geral como também apresentam análises mais detalhadas das comédias eróticas Um Virgem na Praça (1973), de Roberto Machado, e Mulheres Violentadas (1977), de Francisco Cavalcanti, para discutir a questão da nudez naqueles filmes e, sobretudo, “a dominação masculina e as formas de resistência feminina” e, com isso, esboçar possíveis papéis das mulheres naquele gênero cinematográfico de alto consumo na década de 1970.

Inaugurando a última e mais interdisciplinar seção do dossiê, dedicada a outros campos do conhecimento, Walter Claudius Rothenburg, livre-docente em direitos humanos pela USP e professor da Instituição Toledo de Ensino (ITE), apresenta O humor e seus limites jurídicos – amparado sobretudo no caráter paradoxal da manifestação humorística, que caminha quase sempre no fio da navalha entre a proteção e a repressão por parte do ordenamento jurídico. Escrito em linguagem clara e acessível a não-juristas, o autor defende que o humor pode iluminar determinados fatos e questões sociais de modo inestimável, porém, “[q]uando inferioriza, quando agride, o humor discriminatório deve ser encarado pelo Direito como ilícito: uma manifestação intolerável de ‘discriminação recreativa’”.

Segundo consta na Encyclopedia of humor studies (ATTARDO, 2014, p. 120-7) o campo do humor infantil é um dos mais considerados como tema de estudo pelos pesquisadores da comicidade e neste dossiê ele está representado pelo artigo Da compreensão à produção de incongruências por uma criança pequena: dados de humor, de Caroline Prado Gouvêa, graduada em letras e mestranda na área de linguística pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Araraquara; Alessandra Del Ré, que é doutora e professora na área de linguística na UNESP / Araraquara, e Alessandra Jacqueline Vieira, que é doutora e professora do curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Neste artigo, bastante empírico, as pesquisadoras se propuseram a considerar “o processo de compreensão e a produção das incongruências que vão produzir efeito humorístico no discurso” durante a interação com o outro. Essa pesquisa foi feita a partir da análise dos vídeos de crianças entre três e quatro anos de idade disponíveis no banco de dados do grupo NALingua (CNPq). Interessante é que os resultados parciais alcançados nesta pesquisa mais ampla na área de aquisição da linguagem infantil mostram que o humor estaria presente na fala da criança desde cedo.

Para finalizar nosso dossiê, apresentamos uma colaboração advinda da filosofia sobre a presença das narrativas cômicas na Antiguidade com o artigo A tripartição da retórica no cinismo de Diógenes de Sínope, de George Felipe Bernardes Barbosa, graduado e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), que se propõe a analisar trechos da obra de Diógenes, o Cão. Considerando aspectos cômicos no cinismo, Barbosa defende que se “dissipa a ideia de que o filósofo é sempre a figura séria, presas em pensamentos transcendentais”. Além de divertida e surpreendente, essa contribuição também é enriquecida com uma linguagem erudita e reflexões pertinentes sobre gêneros textuais humorísticos como anedotas.

A pluralidade do dossiê que temos a satisfação de apresentar ao público leitor é, portanto, espelho das próprias possibilidades oferecidas pelas diversas formas de manifestação humorística. Atravessando gêneros e formatos, séculos e povos, o humor ainda se apresenta intrigante e aberto às perguntas que, espera-se, lhe sejam feitas com frequência cada vez maior.

Boa leitura!

Referências

ATTARDO, Salvatore (org). Encyclopedia of humor studies. New York: SAGE Publications, 2014.

BREMMER, Jan; ROODENBURG (Org). Humor e história. Uma história cultural do humor. Trad. Cynthia Azevedo; Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 13-25.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

SALIBA, Elias Thomé. Crocodilos, satíricos e humoristas involuntários: ensaios de história cultural do humor. São Paulo: Entremeios; USP-Programa de pós-graduação em história social, 2018.

SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

Camila Rodrigues – Doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP) https: / / orcid.org / 0000-0001-5842-8737

João Paulo Capelotti – Doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) https: / / orcid.org / 0000-0003-3009-9729


RODRIGUES, Camila; CAPELOTTI, João Paulo. Apresentação. Faces da História, Assis, v.7, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original desta apresentação

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