História da educação católica: produção e circulação de saberes pedagógicos / Revista História da Educação / 2017

Este dossiê apresenta parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto Igreja Católica e circulação de saberes pedagógicos: intelectuais, impressos e práticas educativas (1916-1970) [1]. Embora a ação de intelectuais leigos católicos de destaque tenha história de pesquisa em nosso país, veja-se, por exemplo, os estudos sobre Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima [2], para além, contudo da Revista A Ordem e do Centro Dom Vital, lócus privilegiado da intelectualidade católica leiga e combativa, a partir de 1922 há outros espaços em que intelectuais leigos, mais ou menos brilhantes, com maior ou menor visibilidade, atuaram fazendo circular saberes, representações, defendendo valores e divulgando uma moral. A ampliação dos estudos sobre outros espaços de circulação desta intelectualidade visa a contribuir para a compreensão das várias formas assumidas pelo catolicismo (como prática e como conjunto de ideias) em nosso país, intervindo na educação, seja ela entendida como escolarização ou como socialização.

Os artigos aqui apresentados versam sobre um conjunto de práticas educativas produzidas e postas em circulação por diferentes estratégias e endereçadas a públicos distintos. Todas, no entanto, se valeram do impresso – de forma mais ou menos privilegiada – para sistematizar e difundir os saberes que estavam sendo produzidos por meio dessas práticas. O proselitismo, a doutrinação e a evangelização por meio de impressos foi assunto bastante cuidado pela hierarquia da Igreja Católica, veja-se, para o final do século XIX e início do século XX, o documento resultante do I Concílio Plenário da América Latina, que orientou as ações de religiosos / religiosas e leigos / leigas na região (LEONARDI; BITTENCOURT, 2016). O alvo era a cultura e a sociedade em geral com multiplicidade de ações que buscavam dar conta de diferentes segmentos da sociedade, envolvendo adultos e crianças, leigos / leigas e religiosos / religiosas. Investigar as ações pedagógicas / evangelizadoras empreendidas por intelectuais e educadores leigos favorece a compreensão de como as determinações da Igreja católica, atravessando diversos sujeitos em situações distintas, contribuíram para a permanência do catolicismo na sociedade e no cenário educacional brasileiro ao transitarem no campo da produção, mediação e circulação dos saberes pedagógicos, influenciando a reconfiguração do campo educacional no Brasil.

Com público mais amplo ou direcionado ao campo pedagógico, os impressos colocam em evidência um conjunto de estratégias de difusão e imposição dos modelos pedagógicos ou de comportamento e de táticas de apropriação desses modelos, utilizados como importantes dispositivos pelos diferentes atores que ocupavam o campo educacional na primeira metade do século XX (CARVALHO; TOLEDO, 2007). Assim, além de difundir determinadas práticas, são, eles mesmos, uma prática.

Os impressos aparecem aqui de forma transversal ou como ponto de intersecção entre os sujeitos e suas práticas. Muitos deles produziram livros, escreveram em jornais ou, simplesmente, tiveram suas ações noticiadas por esses veículos, foram editores ou articulistas de revistas. De uma forma ou de outra, usaram a palavra impressa para difundir valores, hábitos, comportamentos que defendiam como os ideais para a sociedade brasileira e portuguesa. O uso dos impressos na conformação de um campo pedagógico ou educacional inspira o que Marta Carvalho e Maria Rita Toledo (2007) denominam de “multifacetado campo de investigações”. São essas investigações que, segundo as autoras, “dão sólido suporte a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se aproxima” (CARVALHO & TOLEDO, 2007, p. 89). Educar pelas leituras tornou-se uma estratégia eficaz e utilizada, em geral, por diferentes grupos de educadores.

Os textos apresentados neste dossiê cobrem o período 1930-1960 e dirigem seu olhar para a ação de leigos ou para a formação de leigos, por meio do estudo do bandeirantismo, da Escola de Pais, dos Focolares, da Escola Ativa católica. Todos tem o impresso como fonte e / ou como objeto. O período dos estudos cobre a ditadura Vargas, a II Guerra Mundial e o pós-guerra. No campo da educação, assistimos aos embates entre leigos e católicos no Brasil pelo Sistema Nacional de Educação, à retomada da Igreja na cena pública brasileira e à inserção de seus pontos de pauta nas Constituições e na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Os leigos forneciam a base de apoio social e combatiam nas mais diversas frentes tendo os impressos como meio.

Os três primeiros artigos abordam práticas educativas distintas e dois deles têm a marca do protagonismo feminino. É sabido o papel fundamental que as mulheres tiveram no projeto de recatolicização, fosse como religiosas ou como leigas (LANGLOIS, 1984). Na qualidade de leigas, é possível identificar suas ações nas mais diversas áreas dando visibilidade e difundindo os padrões de comportamento e valores católicos nos espaços públicos, atuando muitas vezes como mediadoras culturais (SIRINELLI, 1996) no ensino primário, secundário, profissional ou superior, na imprensa periódica ou nas associações filantrópicas (PINHEIRO, 2015).

O bandeirantismo brasileiro e suas relações com o catolicismo é perscrutado por Alexandra Lima, a partir das páginas do Correio da Manhã, marcado pela atuação de Maria José de Queiroz Austregésilo de Athayde, na década de 1950. O estudo indica que, por meio de tal movimento, as mulheres constituíram uma rede de sociabilidades, apoio e prestígio.

O movimento dos Focolares e o periódico Cidade Nova, criados pela professora italiana Chiara Lubich, durante a Segunda Guerra, são objeto de Maria José Dantas (2013). O movimento, simultaneamente eclesial, pedagógico e civil utilizava-se deste impresso que circulava no Brasil, para divulgar sua perspectiva educacional. Neste artigo, a autora atenta para o conjunto de códigos que favorece a formação educacional em tempos e espaços distintos.

O terceiro artigo chama a atenção para as práticas endereçadas às famílias, pondo em relevo não apenas os saberes produzidos e endereçados às mesmas, como também as estratégias de formação e mobilização dos pais como verdadeiros agentes da causa educacional no Brasil e em Portugal. Foi nesse escopo de atuação mais diversificado que o movimento da Escola de Pais nasceu no Brasil em 1963, liderado por um grupo de pais e intelectuais católicos. Filiado à Fédération Internacionale pour L’Éducation des Parents, com sede em Sèvres, França, estrutura sua matriz em São Paulo, desdobrando-se daí para todo o país e estendendo-se à Portugal e outros países da América Latina. Neste artigo, Evelyn Orlando e Helder Henrique Martins analisam os contornos do movimento, e os saberes produzidos e endereçados à sociedade, tanto no Brasil quanto em Portugal, apoiados na documentação de ambos os países.

Esses três primeiros textos chamam a atenção para outros movimentos relacionados à educação empreendidos pela Igreja, os quais – sem perder de vista a escola – buscaram alcançar outras instituições, ampliando com isso as frentes de ação do laicato católico no projeto de recatolicização da sociedade brasileira. Já os dois últimos artigos abordam impressos pedagógicos, de naturezas distintas, que se propuseram a servir como veículo de formação nos dois países aqui abordados.

Joaquim Pintassilgo, por dentro do regime autoritário português de Salazar, investiga o jornal dos estudantes do Colégio católico Manuel Bernardes intitulado A Nova Floresta. Encontra, aí, uma experiência de «self-government» e de «educação integral» articulada à «Escola Ativa» com um projeto católico e conservador, que contribui para reforçar a identidade institucional do Colégio.

O conjunto de textos reunidos neste dossiê busca dar visibilidade à multiplicidade de ações desenvolvidas pela hierarquia eclesiástica e o laicato católico em diferentes setores da sociedade que, por diferentes caminhos, fizeram circular ideias, saberes e práticas que configuraram o pensamento educacional católico no Brasil.

As pesquisas no campo da História da Educação já vêm atentando para a importância de pensar a circulação de saberes e modelos pedagógicos como caminhos de compreensão dos processos educacionais, de escolarização, da formação e da profissão docente. Nessa relação direta com Portugal, alguns colegas pesquisadores buscam aprofundar a discussão sobre as estratégias mobilizadas por diferentes sujeitos, atentando para as relações que estes atores estabelecem no cenário internacional, e consideram, em alguns casos, uma compreensão a partir da perspectiva comparada. Este dossiê visa a ser mais uma contribuição nessa direção, trazendo como foco privilegiado a relação entre Igreja e Sociedade nos projetos educacionais desses dois países em relevo [3]. O leitor poderá identificar inúmeros pontos de contato, estratégias similares, repertórios que se aproximam – sobretudo, pela circulação dos sujeitos e suas produções pondo em relevo a formação e a experiência dos diferentes atores que estiveram envolvidos, de diversos modos, nos processos de produção dos saberes que conformaram o campo pedagógico no Brasil e em Portugal, especialmente ao longo do século XX.

Notas

1. Apoio CNPq [2014]

2. Há inúmeros estudos a respeito, dentre os quais: PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). Tese de doutorado em Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007; CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Estado, igreja e educação no Brasil nas primeiras décadas da República: intelectuais, religiosos e missionários na reconquista da fé católica. Acta Scientiarum. Education, v. 32, n. 1, p. 83-92, 2010; ARDUINI, Guilherme Ramalho. O Centro Dom Vital: estudo de caso de um grupo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: Intelectuais e militância católica no Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2012; ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945). São Paulo: Edusp, 2014; RODRIGUES, Candido M. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Fapesp, Autêntica, 2005; RODRIGUES, Candido M. Aproximações e conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos anos 1928-1946, São Paulo: Alameda, 2013.

3. Os livros organizados por Pintassilgo et al (2006), Araújo (2009), Carvalho & Pintassilgo (2011), Cardoso (2014), Xavier (2013) e os artigos publicados em co-autoria por Xavier & Mogarro (2011) Mogarro & Orlando (2015), Mogarro & Magaldi (2015), dentre outros, vêm dando conta de ressaltar essas questões. Os livros organizados por Rodrigues & Zanotto (2013) e Pintassilgo (2013) reúnem diferentes pesquisadores que vêm atentando para essa questão da laicidade e religiosidades nas escolas públicas, considerando suas práticas de circulação.

Referências

ARAÚJO, Marta Maria de (Org.). História(s) Comparada(s) da Educação. Brasília: Líber Livro / UFRN, 2009.

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PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). 2007. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

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XAVIER, L. N. Associativismo docente e construção democrática: Brasil-Portugal (1950- 1980). 1. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ – FAPERJ, 2013.

Evelyn de Almeida Orlando – Professora adjunta da Escola de Educação e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013), com período de estágio sanduíche na Universidade de Lisboa 20 (financiamento Capes). E-mail: [email protected]

Paula Leonardi – Professora adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Educação pela área História da Educação e Historiografia da Faculdade de Educação USP (2008), com período de estágio no exterior na École des Hautes Études en Sciences Sociales (financiamento Capes); Pós-doutora em História da Educação e Historiografia pela Faculdade de Educação USP (2011), com financiamento Fapesp. E-mail: [email protected]


ORLANDO, Evelyn de Almeida; LEONARDI, Paula. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 52, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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