História da Galiza | Ramón Villares

Rámon Villares é diretor do Departamento de História Contemporânea da Universidade de Santiago de Compostela e publicou em 1984 uma obra intitulada História da Galiza, que foi lançada em Portugal no ano de 1991. Nesta obra, o autor faz uma síntese global da história da Galiza, região situada no extremo norte da Espanha e que até o século XII estava unida ao Norte de Portugal. A meio caminho entre a Espanha e Portugal, essa região é importante para o autor devido à sua especificidade cultural, que deu origem a movimentos políticos no início do século XX como o galeguismo. Neste sentido, a retomada histórica realizada pelo autor nesta obra tem a finalidade de demonstrar historicamente as peculiaridades que formam a identidade galega.

O autor inicia sua busca pela identidade galega na pré-história, um período que se estenderá dos primeiros povoadores até a conquista romana. A identificação dos primeiros povoadores, ressalta o autor, é complicada em virtude da escassez de fontes e vestígios antropológicos e arqueológicos, somada a uma imprecisão dos testemunhos literários. Ao trabalhar com a pré-história galega, o autor fornece alguns indicativos da multiplicidade de povos que se situaram nesta região, chegando à verificação de ondas migratórias de povos celtas provenientes da Europa central, que teriam modificado consideravelmente o cenário galego. As principais fontes utilizadas pelo autor para a investigação das diferentes constituições sociais da Galiza são as necrópoles, pois, segundo Rámon, o estudo das formas de enterramento possibilita a compreensão da configuração social, econômica, cultural e das relações sociais desenvolvidas na sociedade.

Assim, para o período anterior à chegada dos celtas no noroeste peninsular, o autor constata, pela disposição dos dólmãs, ou seja, dos monumentos funerários, que a sociedade era pouco hierarquizada e encontrava-se dispersa pelo território, uma vez que os enterramentos eram coletivos, sem acompanhamento de jóias ou objetos pessoais e os monumentos estão situados em diferentes partes do território. Com a chegada dos povos de origem celta (c. VI a.C) ocorre uma hierarquização da sociedade verificada por meio do enterramento individualizado com as jóias e objetos pessoais. Também se desenvolve uma sociedade centrada ao redor de habitações denominadas castros, que serviam também como centros de defesa. A hierarquização da sociedade aconteceu a partir do momento em que esses povos, provenientes da Europa central, trouxeram para a Galiza o conhecimento da utilização do ferro, o que ressaltou o caráter metalúrgico da região, antes voltada para o trabalho com bronze, cobre, chumbo e estanho. Essa introdução de um novo sistema produtivo pode ter modificado sensivelmente as relações sociais dos habitantes da Galiza, a começar pela diferenciação social em dois grupos, os autóctones e os celtas.

A investigação da presença celta na Galiza não é destituída de significado. Segundo o autor, houve na produção historiográfica espanhola uma exaltação dos elementos celtas na cultura galega como fator comprovador da peculiaridade dessa cultura em detrimento da espanhola. O celtismo teve um grande desenvolvimento no decorrer do século XIX, cujo expoente foi o historiador Manoel Murguía, para quem “muitos poucos povos como o galego souberam conservar através dos tempos de forma mais pura, constante e indeclinável a sua fisionomia. Não é possível duvidar disso. Tudo nele é tradicional e está mais no costume que na lei escrita; na literatura oral, que na erudita; no seu coração e não nas manifestações exteriores” (VILLARES, 1991, epígrafe). O forte caráter nacionalista desta idéia é confirmado pela busca incessante do diferencial galego, que se enraíza em seu passado e em sua constituição. A partir daí, tem-se um “mito fundador da nação galega” (VILLARES, 1991: 25), cuja origem seria celta e comprovaria a superioridade e a autenticidade dessa cultura.

Com a romanização do território, que passa a se chamar Gallaecia, há a sua incorporação nos quadros jurídicos do Império, que resultou na divisão espacial do território em conventus: o bracarense, o lucense e o asturiense. Braga, Lugo e Astúria formavam o circuito urbano e intelectual da região e eram centros administrativos, religiosos e jurídicos. Foi a partir desses locais que o cristianismo se difundiu no restante do território galego através da presença das sedes episcopais, que contavam com importantes nomes como Idácio de Chaves, Paulo Orósio e Martinho de Braga. Ao tratar da romanização e da Idade Média, o autor continua disseminando velhos preconceitos como, por exemplo, a consideração de uma cultura superior – a romana – e uma cultura inferior – a pré-histórica –. Isso causa espanto, quando considerado o brilhantismo da exposição acerca da cultura castreja e pré-histórica galega, realizada pelo autor nos capítulos anteriores. Essa superioridade cultural estava pautada no contato e conhecimento da escrita pelos romanos, que latinizaram a região em detrimento da oralidade dos povos autóctones.

Os demais períodos da história galega demonstram o esforço interpretativo do autor para desvendar as características políticas, sociais e econômicas da região com ênfase na interferência da Igreja nas decisões políticas e de uma sociedade agrária até as portas do século XX. Entre os séculos XI e XIII, com a delimitação do território português, houve o período de reconquista do território espanhol ocupado pelos árabes e de movimentação e peregrinação a Santiago de Compostela. Essa cidade foi um importante local de afirmação da religiosidade cristã e do território frente a outros centros religiosos como Braga e Toledo. Novamente, há a exaltação da região frente à portuguesa e espanhola, o que se enquadra nos propósitos do autor. Durante o Absolutismo, o autor ressalta a sua atipicidade na Galiza, uma vez que a incorporação da região ao reino de Castela fez com que ela permanecesse à margem do processo de centralização monárquica. O século XIX é caracterizado pelas constantes migrações dos galegos para outras partes do mundo, como resultante da crise deflagrada a partir das primeiras tentativas de modernização do território e sua incapacidade para tal. Essa modernização será brutal a partir do século XX e resultará na quebra das antigas relações sociais e na economia agrária. Assim, “durante o século XX, se produz uma intensa onda de privatizações da terra, depois de séculos de organização partilhada, sob a forma foral ou comunal, da propriedade da mesma. É o momento histórico em que se desarticulam estes elementos tão centrais na configuração de uma sociedade agrária tradicional, pilotada por camponeses independentes com fortes solidariedades comunitárias” (VILLARES, 1991:134). O movimento mais importante que ocorreu no século XX foi o galeguismo, que levou para a esfera política a defesa do nacionalismo galego. Esse movimento iniciou-se com o Manifesto da Asamblea Nazonalista de Lugo, que tinha por metas, além da defesa do nacionalismo, o republicanismo, o federalismo e do iberismo.

A preocupação fundamental do autor com a identidade galega e sua especificidade em relação tanto a Portugal quanto ao restante da Espanha tem suas raízes na atual situação vivenciada pela Europa de um modo geral. A globalização e a União Européia trazem à tona a discussão a respeito das peculiaridades regionais que formam essa nova realidade econômica que vem se estruturando paulatinamente. Neste contexto, fica evidente a necessidade de acentuar a peculiaridade da identidade galega que, como quis demonstrar Manoel Murguía e outros depois dele, é decorrente da própria história da Galiza e encontra-se fincada em tempos dos mais imemoriais.

Rossana Alves Baptista Pinheiro – Universidade Estadual Paulista/Franca Bolsista FAPESP/Mestrado. Membro do grupo Memória e Parentesco na Idade Média.


VILLARES, Ramón. História da Galiza. Lisboa: Horizonte, 1991. Resenha de: PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.2, p.47-49, 2002. Acessar publicação original [DR]