História das Ciências e Tecnologias / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2016

A ampla área conhecida como História das Ciências nasceu no período entre as duas grandes guerras mundiais. Enquanto as noções de 1civilização, progresso e a ciência enfrentavam um turbilhão de questionamentos na Europa, os Estados Unidos observavam que os fundamentos da modernidade poderiam ainda ser úteis frente aos desafios da sociedade industrial. Naquela época, em Harvard, o cientista belga Georges Sarton fundou um dos pilares que estruturaram o ensino e a pesquisa ao estabelecer um curso de História das Ciências. De influência comtiana, Sarton considerava, nas palavras de Antônio Augusto Passos Videira, “a ideia de progresso linear, cumulativo e direcionado para um determinado ponto de fuga; a saber: a verdade.” Na perspectiva de Sarton, “a ciência conheceria antecipadamente o seu ponto de chegada. O progresso, no domínio da ciência, seria principalmente teórico, de natureza cognitiva e dependente da genialidade de grandes homens, considerados como gênios da ciência [1] ”.

Tal projeto intelectual, no entanto, não resistiu à Segunda Guerra Mundial e a renovação da historiografia das ciências, pautadas principalmente pela influência de Thomas Kuhn, em 1962 – com a publicação de “As estruturas das revoluções científicas”. Mesmo com os questionamentos às noções de paradigma propostas por Kuhn, já a partir da década de 1970, é importante mencionar que cada vez mais o projeto intelectual reunido sob o campo amplamente vasto que é a História das Ciências, afastou-se da construção de uma ideia de reconhecimento dos chamados “gênios da ciência” e de seus “feitos revolucionários”. Como pontua Stephen Shapin, a ciência ao longo do século XX tornou-se parte da indústria, e cada vez mais as inovações científicas aconteceram dentro deste processo e foram realizadas por equipes de “anônimos”, aos quais o grande público desconhece. [2]

Em outro ponto, mesmo em suas primeiras formulações à moda comtiana, a História das Ciências tornou-se um campo interdisciplinar por excelência. Se aos Annales coube propor, após 1929, um diálogo com outras ciências, a História das Ciências já nascia dentro de uma perspectiva interdisciplinar, como também incluindo pesquisadores de diversas áreas. Em resumo, a História das Ciências, durante longo período, não foi um projeto intelectual restrito aos historiadores. Físicos, químicos, matemáticos, entre outros, e à sua maneira, estabeleceram uma produção voltada a demonstrar como chegou-se a determinado conhecimento, a determinada “descoberta” científica. Aos poucos, historiadores e sociólogos, principalmente, construíram uma agenda de pesquisa e exerceram uma considerável influência acerca do tema, acompanhando as renovações propostas pela historiografia e pela teoria social, e sem excluir os historiadores não profissionais. Desta forma, se por um lado a ideia de renovação de métodos, experimentação, formulação de novas teorias ou revisionismo das “descobertas”- que influenciaram a sociedade moderna, iniciaram o debate, por outro, os historiadores e sociólogos da ciência trouxeram conceitos que renovaram em muito as pesquisas na área.[3] Surgiram novos temas e novas abordagens: gênero, poder, impactos sociais, questões ambientais, sem contar os inúmeros questionamentos sobre determinadas noções de método e verdade.

Também, os estudos em História das Ciências popularizaram-se desde a Inglaterra, o berço da Revolução Industrial, Itália, França e Estados Unidos, para os países que até recentemente eram considerados enquanto periferia – outro conceito muito questionado pela historiografia recente. No Brasil, existem cursos de Pós-Graduação, como a Casa de Oswaldo Cruz (COC / Fiocruz), a Universidade Federal de Minas Gerais e outras universidades e instituições voltadas à formação de mestres e doutores na área, assim como uma associação – a Sociedade Brasileira de História das Ciências (SBHC). Em outras palavras, a pesquisa em História das Ciências no Brasil está consolidada, integrada internacionalmente e pronta para novos desafios.

Buscando contribuir para este debate, este número da Revista Fronteiras apresenta o dossiê “História das Ciências”, reunindo trabalhos de diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros.

Stuart McCook que trabalha desde 2003 na University of Guelph, Ontário, Canadá foi o entrevistado desta edição, professor e pesquisador canadense falou sobre sua trajetória e as perspectivas de pesquisa que relacionam ciência e ambiente. O historiador norte-americano Paul Josephson também contribui com um artigo original para este volume de Fronteiras. Josephson é professor de História no Colby College, no estado do Maine, Estados Unidos e da Universidade Estatal de Tomsk, na Rússia. Tem mestrado pela Harvard University e doutorado pelo Massachusets Institute of Technology (MIT). Autor do clássico Industrialized Nature: Brute Force Technology and the Transformation of the Natural World. No artigo “Big Science e tecnologia no século XX” propõe pensar histórias da ciência e da tecnologia no século XX como constructos humanos de larga escala; nunca como objetos em si, mas sim grandes sistemas de instituições políticas, econômicas, sociais e de engenharia. Com isto, abre-se um importante campo conceitual para a renovação de pesquisa em temas já abordados pela historiografia brasileira, como as usinas hidrelétricas, e outras formas de big science, presentes no Brasil.

O número conta com trabalhos de pesquisadores brasileiros que exploraram uma grande quantidade de temas e abordagens, demonstrando os impactos sociais e ambientais de saberes científicos e trazendo novas questões. Jó Klanovicz contribuiu com o artigo “Tecnologia de Força Bruta e história da tecnologia: uma leitura historiográfica”, onde aborda a historiografia de um conceito pouco difundido no Brasil, mas importante para o debate entre ciência e tecnologia, já exposto acima: Brute Force Technology ou a “tecnologia de força bruta”. Entendida por Paul Josephson como “os modos pelos quais a ciência, a engenharia, a política, as finanças agem de maneira conjunta para dar ímpeto a sistemas tecnológicos de larga escala que usamos para manejar recursos naturais”. Na esteira deste debate, o artigo “a difusão dos agrotóxicos como tecnologia benéfica ao agricultor: o papel das cooperativas agropecuárias”, de Elisandra Forneck e João Klug, demonstra como uma determinada ideia de que a “boa utilização” de agrotóxicos poderia beneficiar o agricultor catarinense. Por outro lado, o artigo demonstra as relações propostas por Josephson em seu conceito de “tecnologia de força bruta”, quando as cooperativas receberam apoio do Estado para difundir a modernização agrícola e constituíram-se enquanto importantes parceiras comerciais de multinacionais, que distribuem os agrotóxicos no Brasil.

O artigo de Vanessa Pereira da Silva e Mello e Dominichi Miranda de Sá, “O ‘agricultor progressista’: ciência e proteção à natureza em A Lavoura (1909-1930)” observa a divulgação científica em um período anterior à Revolução Verde, objetivando a promoção da aplicação de conhecimentos científicos no campo e da conservação da natureza brasileira pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) entre 1909 e 1930. A pasta visava expandir a consciência da importância da modernização da agricultura e da diversificação da produção. Se a produção agrícola e a relação com o ambiente foram a tônica dos artigos mencionados até o momento, o texto do professor João Klug, “Entre ciência e aventura: considerações em torno da Expedição RooseveltRondon” nos traz outra perspectiva sobre a ciência: o avanço aos sertões e a possibilidade de transferir espécies. Plantas e animais oriundos do pantanal de Mato Grosso e da Amazônia, foram aclimatados nos Estados Unidos, visando a posterior utilização econômica. Também, o texto “O ato de coletar espécimes silvestres e a legislação brasileira”, de Aline Maisa Lubenow e Magali Romero Sá, explora parte da vida e obra do coletor e colecionador alemão Fritz Plaumann. Radicado no Brasil, mais especificamente em Nova Teutônia, Santa Catarina, desde 1924, Plaumann tornou-se conhecido nacional e internacionalmente pelas suas coleções construídas, em sua maioria, com espécimes oriundas da região Oeste de Santa Catarina e de seus sertões. O artigo aborda o impacto causado ao trabalho de Plaumann a partir das modificações na legislação ambiental brasileira na década de 1960, e como essa nova lei afetou o ato de coletar e comercializar espécimes silvestres.

“Uma geometria de linhas claras: técnica e ciência como ideologia no pensamento político de Colombo Salles (1971-1975)”, de Ricardo Duwe, traz à tona a questão da ciência e técnica como projeto de governo. De acordo com o autor, o pensamento político de Colombo Machado Salles durante a sua gestão enquanto governador do Estado de Santa Catarina esteve ligada a uma ideia de defesa e propagação da técnica e da ciência enquanto uma ideologia. E neste sentido, o artigo demonstra como tais ideais foram bem recepcionados por parte da elite política catarinense.

O presente número é composto ainda, por dois artigos e duas resenhas. Abordando a relação entre História e Memória: em “As outras margens do Rio”, de Maria de Fátima Oliveira e Ademir Luiz da Silva, os autores debatem aspectos da cultura e cotidiano da vida ribeirinha nas longas viagens fluviais das cidades localizadas no Alto Tocantins até o porto de Belém. E em “A república que não nos pariu”, José Bento Rosa da Silva observa, através da leitura de processos crimes, a trajetória de dois ex-escravizados africanos nos primeiros anos do regime republicano, na então província de Santa Catarina. O autor aponta as dificuldades destes ex-escravizados no período, mas adverte que esta narrativa não é de submissão: “eles criaram suas estratégias de sobrevivências em meio às mudanças em curso. ” Isadora Muniz Vieira resenhou a obra de Jean-François Sirinelli, “Abrir a História: novos olhares sobre o século XX francês” e Jaine Menoncin o livro “Vastos Sertões: História e Natureza na Ciência e na Literatura”, as autoras elucidam as temáticas apontadas em cada obra e despertam a curiosidade do leitor aos livro resenhados.

Por fim, os organizadores agradecem a todos que colaboraram neste número de Fronteiras com a certeza de que a edição abordou questões das mais relevantes para os estudos de História da Ciência, quais sejam: as relações entre local e global (Stuart McCook) na América Latina, a “Tecnologia de Força Bruta” (Paul Josephson e Jó Klanovicz) e os agrotóxicos (Elisandra Forneck e João Klug), produção agrícola e divulgação científica (Vanessa Pereira da Silva e Mello e Dominichi Miranda de Sá), transferência de plantas e animais, expedições científicas (João Klug), coleções e legislação ambiental (Aline Maysa Lubenow e Magali Romero Sá), assim como a ciência e a técnica enquanto projeto de governo. Oferecendo temas e abordagens variadas, esperamos que todos façam uma boa leitura.

Chapecó, julho de 2016.

Notas

1. VIDEIRA, Antônio Augusto Passos. História e historiografia da ciência. In: Escritos, ano 1, n.1, 2007. p. 132.

2. SHAPIN, Stephen. Nunca pura. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Ver especialmente a parte I, intitulada “Métodos e Máximas”.

3. Idem. Ibidem.

Claiton Marcio da Silva

Samira Peruchi Moretto

Organizadores


SILVA, Claiton Marcio da; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.27, 2016. Acessar publicação original [DR]

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