Histórias das diversões: algumas possibilidades investigativas / Caminhos da História / 2021

Caminhos da Historia CH 1 Histórias das diversões

Como dizer das histórias do que aqui chamamos de diversões? Para conhecer o fenômeno é necessário primeiro considerar a palavra. De acordo com a etimologia do termo, diversão se origina do verbo latim dīvertēre4, o qual, na língua portuguesa, trata-se de um substantivo feminino que pode ser traduzido como aquilo que dá prazer; por isso, afasta o espírito dos assuntos que apoquentam e é empregado como sinônimo de passatempo, recreio, entretenimento, recreação, desvio, distração, divertimento e esporte.

No entanto, compreender a ideia de diversão exige um exercício mais ampliado de percepção do que os sinônimos de um simples olhar etimológico sugerem, já que o uso do termo está necessariamente interligado a experiências concretas e a contextos históricos e culturais específicos. Nesse sentido, para compreender uma dada manifestação considerada como diversão, é preciso situá-la no tempo histórico em que existiu, percebê-la como produto de uma sociedade que a legitimou como costume e interpretá-la por meio das experiências dos indivíduos que a vivenciaram em seu cotidiano.

Sendo assim, as práticas que chamamos de diversão são muitas e atemporais: equitação, tiro, leitura, pintura, bordado, encontros amorosos; sentar no passeio, caminhar na praça, ir ao bar, conversar na esquina após a missa; assistir ao filme, ao futebol, praticar esportes de maneira recreativa, viajar, integrar um grupo musical ou simplesmente fazer cantoria nas ruas, vielas e avenidas; organizar e integrar uma festa; passar na sorveteria depois do trabalho, desviar o caminho de casa para penetrar no desfile de um bloco carnavalesco ou beber um paliativo no cabaré; laçar a vaca, o boi, o touro; aproveitar o escuro da sala do cineteatro antes e depois do espetáculo; desbravar-se em atividades de aventura; fazer da rua um lazer; subir em árvore; coordenar uma apresentação dançante ou simplesmente dançar em um, dois, três, sem limites.

O dossiê aqui apresentado é fruto de uma coletânea de artigos sobre manifestações de diversão em diferentes regiões do país, tais como Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Ainda que representem localidades particulares e estejam situadas em tempos históricos díspares, as investigações se conectam em muitos aspectos, compartilhando práticas, eventos e produções culturais.

O artigo de autoria de Renata Oliveira e Ronaldo de Souza Júnior, intitulado “Itinerantes e Citadinos: a Companhia de Teatro Coimbra e suas interações com a população de Diamantina / MG”, destaca a presença da Companhia Coimbra no Teatro de Santa Izabel, em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1899. Para os autores, o estabelecimento foi, ao longo da segunda metade do século XIX, um dos principais espaços de divertimento da cidade, chamando a atenção o tempo em que a Companhia esteve na cidade, e os constantes noticiários carregados de elogios por sua atuação. Os autores concluem que, durante os nove meses de apresentação na cidade, os espetáculos contribuíram para a divulgação de atividades públicas de diversão, com aspectos instrutivos no que tange ao ensino da atuação teatral para a população de Diamantina.

O texto assinado por Marcela Ariete dos Santos, intitulado “O teatro em Mato Grosso (1877-1928)” analisa a forma de organização desta prática naquele período, abordando-a como um forte elemento da diversão no estado. Algumas das conclusões da autora residem na constatação de que os espaços físicos do teatro em Mato Grosso eram todos particulares e apresentavam estruturas ainda incipientes, com tempo curto de sobrevivência, principalmente por falta de recursos financeiros. A autora ainda destaca que, na óptica da imprensa, além de um entretenimento, o teatro tivera também grande importância entre os ideais civilizadores e educativos.

Já o artigo de Fábio Santana Nunes, intitulado “ ‘A Los Toros!’: As touradas em Feira de Santana (1893-1905)”, almeja identificar e analisar os espetáculos tauromáquicos promovidos em Feira de Santana, Bahia, na transição entre os séculos XIX e XX. Nos espetáculos de Feira de Santana, de acordo com o autor, foram identificados toureiros profissionais espanhóis e a possível presença de portugueses, inexistindo evidências de toureadoras. Relata ainda que, para atender as touradas na cidade, existiram arenas armadas provisoriamente em espaço já projetado, o hipódromo, ou em área aberta contígua ao traçado urbano orgânico, o Campo do Gado. O autor conclui que a festa de touros se expressou na cidade como uma diversão mercantilizada exibida de forma esporádica por companhias tauromáquicas itinerantes, já que as práticas experimentadas não foram capazes de transformála em um divertimento tradicional na cidade.

O texto de autoria de Rogério Othon Teixeira Alves e Georgino Jorge de Souza Neto, intitulado “Volley-ball e Basket-ball no sertão mineiro: o advento dos esportes americanos em Montes Claros-MG na primeira metade do século XX”, tenciona investigar a veiculação e o desenvolvimento dessas modalidades e sua profunda relação com um evidente processo de incremento de uma cultura esportiva local. Os autores destacam que, ao passo em que entidades como escolas e associações vão surgindo, algumas práticas esportivas destacam-se no projeto modernizador / civilizatório em curso, para além do decantado e popular futebol. Relatam, ainda, a ocorrência dos festivais esportivos no período, com destaque às partidas de voleibol e basquetebol, que acentuavam a busca da distinção de uma coletividade atenta às novidades modernas, especialmente pelo viés do esporte.

“Bloco afro Ilê-Aiyê: uma história de luta antirracista” é o artigo apresentado por Juliana Araújo de Paula e tem como objetivo apresentar reflexões sobre a constituição do Bloco Afro “Ilê Ayiê”, fundado em 1974. Para a autora, trata-se de um bloco de carnaval que transborda suas realizações para além dessa festa e que tem forte papel social na luta pela igualdade racial. Ressalta ainda que a revisão de literatura da produção sobre esse contexto indica que suas práticas cotidianas de produção, divulgação, compartilhamento e fortalecimento da cultura afro-brasileira e, especialmente, de empoderamento da mulher negra, apresentam-se como tempos / espaços de ações de re-existência.

Outra importante contribuição ao dossiê é o artigo de Jordania de Oliveira Eugenio, intitulado “Os traçados históricos das ruas de lazer presentes na “abertura” da avenida paulista”, que busca refletir de que forma os traçados históricos das Ruas de Lazer, existentes em São Paulo desde 1976, compuseram o encadeamento da abertura para pessoas e fechamento para o tráfego de veículos da Avenida Paulista a partir de 2015. A autora destaca que a implantação do Programa Rua Aberta na Paulista foi cercada por embates e disputas políticas, sendo o seu uso para o lazer um dos principais argumentos dos grupos favoráveis à abertura. Além disso, identificou similaridades e contrariedades entre as Ruas de Lazer que se difundiram em São Paulo a partir de 1976 e o uso da Avenida Paulista após sua “abertura” em 2015. Por conseguinte, conclui que o exercício da cidadania, por meio da apropriação das ruas pelos próprios cidadãos, parece ocupar centralidade – ainda que indiretamente – no processo de ressignificação da Avenida Paulista.

Já o texto de Marília Martins Bandeira e Sarah Teixeira Soutto Mayor, intitulado “A construção da ‘capital brasileira da aventura’: a transformação da cidade de Brotas em destino turístico-esportivo nas décadas de 1980 e 1990”, aborda parte do percurso histórico que culminou na transformação da referida cidade, localizada no interior do estado de São Paulo, em importante destino turístico-esportivo e possibilitou uma construção discursiva que autodenominou a localidade como “capital brasileira da aventura”. O apelo recorrente à especificidade da formação geológica da região alia-se a narrativas fundadoras fragmentadas, provenientes de documentos do início do século XX, reproduzidos no website da prefeitura, folhetos turísticos e matérias jornalísticas, confererindo à cidade uma vocação natural e espontânea para a prática do turismo de aventura. As autoras sinalizam o enaltecimento de certo prestígio, relacionado a uma origem remota, por meio da valorização de um passado selecionado, para legitimar interesses e ações construídos no presente, tais como o ecoturismo esportivo como alternativa econômica menos predatória, ainda que também produtora de certos impactos mal geridos.

Por fim, o artigo de Igor Maciel da Silva, intitulado “O maior cinema na história de Barbacena: panorama dos primeiros anos do Cine-Theatro Apollo (1923 a 1925)” objetiva apresentar um panorama dos primeiros anos de funcionamento do referido estabelecimento, o cinema de rua da cidade de Barbacena, Minas Gerais, que esteve em atividade por maior número de anos, respectivamente de 1923 a 1998, a fim de entender como se deu o funcionamento, qual a equipe de trabalho, público, filmes e programações. O autor conclui que a casa abrigou diferentes tipos de programações adulto, infantil, artística e beneficente; contemplou a presença de diferentes estratos sociais, incluindo pessoas brancas e negras; inovou na compra de filmes e, por fim, incluiu mulheres de modo público em sua equipe de trabalho.

Ao final dessas apresentações dos textos que compõem esse dossiê, ressaltamos a nobre proposta da Revista Caminhos da História, visto que as produções acadêmicas sobre a história das diversões são muitas e multidisciplinares, narradas por diferentes áreas e campos dos saberes, porém, ainda são poucas as propostas que reúnem compilados heterogêneos sobre esse fenômeno.

Nesse sentido, essa reunião de artigos, tomada em conjunto, abarca parte dos desafios mais gerais para a articulação de um campo de pesquisas especializado na história do lazer ou das diversões. Primeiro, o desafio de apreender, simultaneamente, um conjunto amplo e heterogêneo de práticas, desde o teatro ao carnaval, passando pelos esportes, cinema ou outros gêneros de espetáculos, para não mencionar outros mais. Segundo, a necessidade de considerar variações regionais, o que parece especialmente relevante em um país com as dimensões e com os níveis de desigualdades do Brasil. Sudeste ou Nordeste, capitais ou cidades do interior, áreas urbanas ou rurais, são todas clivagens que atravessaram e atravessam o modo de constituição histórica das diversões no país. Quarto, há ainda desafios advindos da necessária contextualização desses fenômenos dentro de um arco temporal maior e mais longo, capaz de oferecer uma compreensão histórica mais profunda. Assim, diferenças e semelhanças entre práticas diversas no fim do século XIX ou nos princípios do século XXI constituem parte do esforço analítico e interpretativo de uma agenda de pesquisas sobre a história do lazer ou das diversões. Finalmente, tudo isso é ainda transpassado pelas relações, ora tensas, ora convergentes, entre forças da economia de mercado e intervenções políticas de diferentes ordens, da mobilização associativa de parcelas da sociedade civil à atuação do aparelho burocrático do Estado.

Um mosaico de problemas dessa ordem não é para um grupo reduzido de autores, mas para uma comunidade acadêmica inteira. Nossa expectativa é que este fascículo ofereça um tijolinho adicional para esta construção, que há de ser bonita e grandiosa. Desejamos excelentes e divertidas leituras!

Notas

4. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon Editora Digital, 2007, p. 272-273.

Igor Maciel da Silva – Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0002-6560-0475 E-mail: [email protected]

Sarah Teixeira Soutto Mayor – Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0003-1643-6223 E-mail: [email protected]

Cleber Dias – Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais. Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-9126-5992 E-mail: [email protected]


SILVA, Igor Maciel da; MAYOR, Sarah Teixeira Soutto; DIAS, Cleber. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 26, n.1, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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