História do Crime, da Polícia e da Justiça Criminal / História & Perspectivas / 2013

A Revista História & Perspectiva apresenta neste número 49 o Dossiê História do Crime, da Polícia e da Justiça Criminal, composto por 10 artigos, além de outros 06 textos com os mais variados temas, 01 artigo internacional e 01 resenha. Desta maneira, buscamos divulgar pesquisas inéditas sobre uma gama variada de temas e oferecer ao público leitor a possibilidade de conhecer parte do que tem sido produzido por pesquisadores e professores brasileiros nos campos da História e das Humanidades.

A respeito do Dossiê, os documentos judiciários e policiais conservados nos arquivos oferecem representações acerca do que seus contemporâneos acreditavam a respeitoda criminalidade e da ação do aparato jurídico-policial. Como toda documentação, as fontes escritas sobre tais temas não são neutras: aqueles que as nos legaram (policiais, juízes, escrivães, etc.) estavam inscritos e trabalhavam com base numa legislação específica; num código de processo penal e em normas sociais e culturais que foram, em grande parte, determinadas pela sua própria ação, formando assim o conteúdo dos documentos que serão analisados nos artigos desta seção. Entretanto, as fontes e os documentos utilizados pelos pesquisadores não são os mesmos para essas todas estas instâncias (polícia, justiça penal, etc.) e se diferem também de acordo com o local e época de sua produção. O contexto sociocultural da cidade e do campo, por exemplo, produz elementos distintos que devem ser levados em consideração no momento da análise. Essa percepção pode ser expandida para todos os elementos daquilo que denominamos “contexto”.

É importante ressaltar ainda que além das peculiaridades desses tipos de documentos, existe uma diversidade de abordagens possíveis sobre a temática do crime e das suas formas de “repressão”. Estas interpretações caminham desde a história social da criminalidade até as perspectivas mais culturais. Como exemplo destas podemos ressaltaros trabalhos ligados aos conceitos de representação e imaginário ou o estudo das sensibilidades e das formas de viver e pensar de criminosos, policiais, prisioneiros e funcionários do aparato jurídico.

Os artigos que compõem este dossiê, além da diversidade de abordagem, se diferenciam também em relação à temática. Concentram em sua maioria trabalhos ligados à História da Polícia, mas também apresentam textos preocupados em analisar a questão penal; em examinar as representações criadas pela imprensa acerca do fenômeno criminal bem comoobservar as possibilidades abertas pelos processos criminais na percepção de determinadas realidades sociais.

No que diz respeito à História da Polícia, o historiador André Rosemberg aborda no texto “A greve pelas oito horas em Santos (1908): em busca do inimigo imaginário”, o agente policial numa perspectiva ainda não muito usual na academia brasileira. Este é analisado também como trabalhador assalariado; um sujeito inserido num campo de múltiplas ações e conflitos. Sendo assim, o objetivo do autor é incluir o policial no rol das ocupações legitimadas do dito “mundo do trabalho”, e não como mero anteparo à resistência de outrem, cuja função única é contrapor, com violência, em nome dos interesses patronais, do governo ou do capital, as reivindicações dos trabalhadores.

Já Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira analisa as experiências dos guardas-civis no policiamento do meretrício belo-horizontino entre os anos de 1928 e 1934. Para tal o autor utiliza textos publicados nas colunas policiais dos jornais impressos diários da capital mineira, documentos estes que evidenciam certas relações de sociabilidades estabelecidas entre os funcionários da polícia civil, da Força Pública e as meretrizes e, também, as deficiências do projeto de promoção de um policiamento moral, dada a enorme distância entre a vontade controladora e as práticas sociais.

Considerando as estratégias de segurança implementadas pelas autoridades policiais em Salvador entre os anos de 1937 e 1945, o pesquisador Wanderson B. de Souza destaca a atuação cotidiana dos policiais e o envolvimento dos mesmos com práticas transgressivas, violentas e criminosas. Além de uma contribuição para a história da polícia no Brasil, o texto amplia a temporalidade privilegiada pelos historiadores brasileiros, uma vez que a maioria dos trabalhos sobre polícia no Brasil tem se debruçado sobre a chamada “Primeira República”. É importante ressaltar que o texto tem o mérito de inserir o policial como sujeito social que não é amorfo; um sujeito inserido numa trama de interações sociais que não é de longe uma simples marionete nas mãos da classe dominante utilizado para reprimir os subalternos.

No artigo “Polícia Militar paraense: insubordinação, indisciplina e processo de fortalecimento (1886-1897)”, William Gaia Farias observa através da análise de três eventos marcantes na História do Pará e do Brasil a insubordinação, a indisciplina, o despreparo e o envolvimento da corporação policial em disputas políticopartidárias nos anos finais do Império e no início da República. Com essa pesquisa o autor revela questões importantes sobre a História Militar da Amazônia, utilizando os regulamentos militares, os relatórios de governos, os ofícios, os jornais e obras raras como documentação para sua pesquisa.

Com o intuito de perceber parte do conjunto de medidas utilizadas pelos governos da região Nordeste e de debelar os bandos de cangaceiros que assolavam os sertões, Marcos Edilson de Araújo Clemente analisa como as colunas de oficiais e de soldados volantes foram organizadas e articuladas na década de 1920 e como se colocaram nos embates contra o chamado “banditismo social”. De acordo com o autor, este processo por ele pesquisado está relacionado ao contexto de consolidação das formas de poder republicano no Brasil.

Numa perspectiva mais tradicional, Mônica Diniz observou como os chamados “Termos de Bem Viver” foram utilizados pela polícia de São Paulo entre os anos de 1870 e 1890. Segundo a autora, esse recurso legal foi utilizado pelo aparato jurídico-policial no intuito de controlar a vadiagem e ociosidade numa cidade efervescente e em transformação, cujos grupos subalternos precisavam ser submetidos aos ditames dos grupos dominantes.

Ainda no campo da História da Polícia, Francisco Linhares Fonteles Neto analisa em seu texto o processo de criminalização do consumo do álcool ocorrido em Fortaleza no início do século XX. A documentação policial consultada pelo autor revela a existência de uma preocupação recorrente em torno do uso contínuo de bebidas espirituosas, causadoras de problemas físicos e degeneradores: uma ameaça à norma e à moral desejada. Tal situação levou à articulação dos poderes públicos, em especial a polícia, não só no combate ao consumo de bebidas alcoólicas, mas aos lugares de venda desse produto.

Já o historiador pernambucano Flávio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto observa as experiências e repercussões do trabalho penal na Casa de Detenção do Recife na segunda metade do século XIX. Preocupado em desvendar elementos fundamentais da chamada “História das Prisões”, constrói um panorama sobre as primeiras experiências com o trabalho penal na principal prisão da província de Pernambuco, bem como analisa os debates ocorridos na Assembleia Provincial, na década de 1870, quando a questão da utilidade – penal e econômica – das oficinas esteve, por várias vezes, na ordem do dia.

No campo das análises das representações Ana Gomes Porto, no artigo “Amigos do Alheio: Vadios, gatunos e ladrões em São Paulo no início da República” realiza uma pesquisa acerca da representação da gatunagem e da criminalidade criada pela imprensa em fins do século XIX. De acordo com a autora, esse processo histórico pode ser indicativo de uma tentativa de delinear uma visão do que deveria ser o “trabalhador ideal”. Todavia, nessa tentativa, muitas vezes ocorria uma confusão que induzia a sentidos e apropriações diversas. Assim, notícias de crime tornavam-se dúbias e difusas para o leitor, que poderia fazer interpretações que, muitas vezes, tinham sentido inverso àquilo que a imprensa tentava transmitir.

Por fim, o historiador Deivy Ferreira Carneiro analisa alguns tipos de conflitos e experiências cotidianas de trabalhadores rurais da cidade mineira de Juiz de Fora entre os anos de 1863 e 1930 através da interpretação de processos criminais de calúnia e injúria. Estes processos criminais revelam principalmente algumas dificuldades enfrentadas especialmente por roceiros e pequenos proprietários para manterem suas terras, fundamentais para sua sobrevivência autônoma aos grandes latifundiários da região, especializados na produção de café. O texto mostra ainda um processo social que acabou auxiliando na constituição de uma economia agrícola complementar e alternativa à economia cafeeira da localidade, a saber: a produção de alimentos voltada ao abastecimento do mercado interno.

Em uma seção dedicada a autores internacionais temos a honra de publicar um texto da historiadora portuguesa Raquel Varela. Intitulado: “Ruptura e Pacto Social em Portugal (1974-2012)”, o artigo faz um vigoroso balanço dos recentes acontecimentos sociais, políticos e econômicos que têm infligindo mudanças radicais aos trabalhadores do continente europeu.

Os textos que completam a edição da Revista História & Perspectivas 49 abordam diversos e importantes temas históricos. Em “Migração, Memória e Território: Os descendentes de imigrantes italianos da Microrregião de Aimorés / MG”, Sandra Nicoli, Patrícia Falco Genovez, Sueli Siqueira abordam aspectos vinculados à memória e à narrativa de descendentes de imigrantes italianos chegados à microrregião de Aimorés / MG, no início do século XX, por meio de metodologia específica de História Oral.

Rosa Maria Ferreira da Silva discute a “construção histórica do conceito de cidade e seu correlato, o urbano;” através de experiências de intervenção urbana na cidade de Patos de Minas, localizada na região do Alto Paranaíba em Minas Gerais, em texto denominado: “Cidade e Urbanização, Progresso e Civilização. Reflexões sobre a cidade oitocentista no sertão das Gerais (Patos de Minas, 1868 -1933)”.

“A poderosa “mão invisível” da vida cotidiana: reflexões sobre gênero e trabalho na história das mulheres camponesas” é o título do artigo de Losandro Antonio Tedeschi. Neste o autor analisa como a desigualdade que afeta a história das mulheres em contextos produtivos, que se reproduzem muitas vezes a partir das próprias organizações populares. Percebe e discute a necessidade de construir ferramentas de análise que vão além das políticas econômicas, sociais e culturais para abordar questões como gênero e pobreza de modo relacional. Por fim, discute como, na atualidade, grande parte as mulheres venceram a exclusão, mas não venceram as desigualdades.

Outro artigo que lida com mulheres no “fazer-se” de suas histórias, agora na condição de operárias, foi escrito para esta edição por Junia de Souza Lima. Em, “Conventos e Fábricas. Reclusão, religiosidade e educação no cotidiano de operárias têxteis – Minas Gerais, final do século XIX”, a autora discute a materialização do imaginário religioso católico no cotidiano de algumas fábricas têxteis mineiras no final do século XIX, cujos conventos podem ser considerados a sua maior simbologia. Neste sentido chama atenção para os aspectos educativos e formativos que essas instituições exerciam sobre as mulheres no cotidiano do trabalho fabril; contribuindo para a formação de uma identidade feminina, atrelada à devoção, à abnegação, à dedicação, à maternidade e à família.

O tema dos Regimentos do Santo Ofício é revisitado por Alécio Nunes Fernandes, que buscou entender o caminho que, segundo os manuais e regimentos da Inquisição portuguesa, deveria ser seguido para se chegar à verdade que interessava àquele tribunal. “A construção da verdade jurídica no processo inquisitorial do Santo Ofício português, à luz de seus regimentos” é o título deste artigo.

Abordando um período histórico anterior às inquisições, João P. P Coelho e José Joaquim Pereira Melo, em “Educação, poder e cidadania na Roma Antiga: algumas considerações sobre a formação do governante”, apresentam uma discussão a respeito do projeto de formação do governante — do príncipe — defendido por Sêneca, a partir das condicionantes históricas nas quais o pensador estava envolvido. A partir da conjuntura história apresentada no texto ora citado, Sêneca desenvolveu reflexões a respeito de uma formação do governante fundamentada em valores como a clemência e a racionalidade, virtudes de caráter harmonizador e pacificador que, como demonstram os autores, estavam em convergência com as necessidades de seu tempo.

Esta edição 49 se encerra com uma significativa resenha do livro “Hobbes e a liberdade republicana” de Quentin Skinner, publicado pela editora da Unesp. O autor da resenha intitulada “A metodologia de Quentin Skinner e o conceito de liberdade em Hobbes” é Eduardo Teixeira de Carvalho Júnior, doutorando em História pela PGHIS / UFPR.

Esperamos que os artigos e as análises apresentadas por tais autores despertem o interesse e colaborem para a produção de novos conhecimentos e novas pesquisas.

Conselho Editorial


História do Crime, da Polícia e da Justiça Criminal. História & Perspectivas, Uberlândia, v.26, n.49, 2013. Acessar publicação original [DR].

Acessar dossiê