Por uma história do político – ROSANVALLON (VH)

ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010, 101 p. Resenha de: SANTOS, João Batista Ribeiro. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A história filosófica e a história conceitual são âmbitos das proposições enunciadas sobre o político e sobre a política. O autor, Pierre Rosanvallon, tem por objetivo historicizar os últimos decênios de estudo do político.

O livro começa com o artigo que apresenta Pierre Rosanvallon, “A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Político”, escrito por Christian Edward Cyril Lynch. Nesse artigo a obra teórica e a vida acadêmica de Rosanvallon, suas influências, importância e, sobretudo, seu debate nos domínios do político são apresentados tendo por intuito facilitar ao leitor o acesso à história do político.

Christian Edward afirma que o estudo da teoria política foi colocado à margem, como “idealista e elitista” pela humanitas, representada pelas histórias social e das mentalidades, mas também pelo marxismo; mesmo no século XX, após a Primeira Guerra Mundial, a história do político, como estudo acadêmico, foi tida como “anedótica e individualista”. Poderia mencionar que o resgate da história política só acontece destacadamente com Reinhart Koselleck e John A. Pocock.

É nessa época que os teóricos da história do político reagem aos seus adversários, mormente com René Rémond1 e seu livro, Por uma história política. Rémond postula “a renovação da história política a partir da multidisciplinaridade”; nesse sentido, alarga os domínios do político e busca dialogar com as várias disciplinas das ciências humanas e sociais, sem negar ao político a sua capacidade de arbitrar os conflitos. Entretanto, quem define o conceito de político são os pesquisadores do Centro de Pesquisas Políticas Raymond Aron, do qual Rosanvallon participou desde o início.

O artigo procura demonstrar a importância de Alexis de Tocqueville (1805-1859) para a teoria política e para as pesquisas coetâneas realizadas na França, destacando a sua compreensão da democracia como regime político moderno capaz de fornecer ferramentas adequadas para a igualdade de condições entre os cidadãos, a democracia como opção frente ao desaparecimento da ordem aristocrática e o retorno ao liberalismo através da democracia. Estes três eixos de Alexis de Tocqueville fizeram parte da historiografia dos pesquisadores do Centro Aron. Christian Edward procura ainda delimitar as ações e influências de François Furet e Claude Lefort sobre a obra de Rosanvallon. Esclarecedor do pensamento daqueles dois mestres é a trajetória de Furet e Lefort, da esquerda marxista ao liberalismo conservador pensado por Raymond Aron, seja por decepção política, seja por virada ideológica da maturidade científica – sendo ambos críticos da “experiência soviética”. É importante salientar que Claude Lefort entendia que o político é anterior ao social; seguindo esse raciocínio, eu diria que o político arquiteta o âmbito social.

O artigo de Christian Edward demonstra que Rosanvallon sente-se seguro para retomar seu objetivo inicial, ou seja, reconstruir a teoria geral da democracia; é nesse contexto que o autor do artigo o situa como historiador do político. Demonstra mais espanto por não compreender o motivo que levou Rosanvallon a trocar, na aula inaugural no Colégio de França em 2002, em sua abordagem historiográfica, a qualificação “filosófica” por “conceitual”. Também o autor do artigo não se dá conta que quando Rosanvallon afirma que “a tarefa do historiador é a de tentar restituir ao passado sua dimensão de presente”2 está, possivelmente, dialogando com Reinhart Koselleck,3 o Koselleck de Futuro passado.

Politicamente discordo dos postulados liberais, mas leio com agrado a exposição concisa da trajetória do pensador do político Pierre Rosanvallon, que “define o mundo da política como segmento do mundo do político, operado pela mobilização dos mecanismos simbólicos de representação”.4

No ensaio “Por uma história filosófica do político”, Pierre Rosanvallon faz um balanço, como acadêmico engajado, pelo “retorno do político”. Analisa a história filosófica do político, trazendo ao centro do debate a questão da democracia, mormente o sufrágio universal. Considera que até a década de 1960 a divisão ideológica serviu para preparar a qualificação intelectual para o debate entre marxistas e liberais. A qualificação se deu também em relação à metodologia da filosofia do político quanto ao entendimento dos problemas das sociedades contemporâneas. Na definição dessa história, Rosanvallon recorre mais uma vez a Claude Lefort: o político é “o conjunto de procedimentos a partir dos quais desabrocha a ordem social”,5 unindo assim o político e o social. E para tanto, para pensar a sociedade, Rosanvallon declara juntar textos clássicos a obras menos nobres, cujo objetivo precípuo é fundamentar uma abordagem e um conteúdo originais no campo da história filosófica do político – consciente das objeções suscitadas, cuja voz mais potente é a de Roger Chartier.

Na aula inaugural proferida no Colégio de França, cujo título é “Por uma história conceitual do político”, era de se esperar que Rosanvallon justificasse a mudança de abordagem do político entre história filosófica e história conceitual. Eis aqui algo que merece crítica. Por essa razão, justifico a menção a um possível diálogo entre Pierre Rosanvallon e Reinhart Koselleck. Para o pesquisador alemão, conceito é ferramenta para realizar uma história dos conceitos, mas que também se preocupa com a modernidade, tendo esta como fundamento da democracia. Por outro lado, em síntese, Rosanvallon faz história conceitual do político, e logo define o seu conceito de político: “compreendo o político ao mesmo tempo a um campo e a um trabalho“.6 Como campo o político abarca os âmbitos sociais dos seres humanos; como trabalho, movimenta-se nos contextos vitais, nas atividades que tornam a polis uma comunidade viva. Notem que o conceito quase se assemelha à filosofia do político.7 Talvez isso o possibilite a permanecer no campo do político. Assim, Rosanvallon pôde teorizar sobre a democracia como fundamento da modernidade, ainda que a considere “uma solução problemática” na constituição de uma polis de cidadãos. Ao que parece, não é apenas a democracia que é considerada problemática, mas também o povo; como o sufrágio universal institui a igualdade política, o povo é considerado conflituoso. Deter-me-ei agora em duas questões historiográficas.

A história do político distingue-se então, pelo próprio objeto, da história da política propriamente dita. Além da reconstrução da sucessão cronológica e dos acontecimentos, esta última analisa o funcionamento das instituições, disseca os mecanismos de tomada de decisões públicas, interpreta os resultados das eleições, lança luz sobre a razão dos atores e o sistema de suas interações, descreve os ritos e símbolos que organizam a vida. A história do político incorpora evidentemente essas diferentes contribuições. Com tudo o que ela acarreta de batalhas subalternas, de rivalidades de pessoas, de confusões intelectuais, de cálculos de curto prazo, a atividade política stricto sensu é, de fato, o que ao mesmo tempo limita e permite, na prática, a realização do político. Ela é ao mesmo tempo uma tela e um meio.8

Muito esclarecedora a definição acima, a menos que se confronte a consideração acerca do povo, conflituoso, por um lado, quando considerado “nós”; mas quando visto inserido na democracia, legitimado pelo sufrágio universal, torna-se detentor do poder. Concomitantemente, o autor alude a “ficções jurídicas” arroladas ao desenvolvimento das convenções para “assegurar uma igualdade de tratamento e de instituir um espaço comum para homens e mulheres que são, contudo, bastante diferentes entre si”9. E esta é a segunda questão. Pierre Bourdieu destacou que o campo político é um campo de força e que a tarefa dos líderes, nesse caso, seria obter a adesão dos cidadãos. Como o fictício não é nem verdadeiro nem falso (Carlo Ginzburg), quais as mudanças que podem ocorrer na “comunidade” e em que medida? Rosanvallon poderia se considerar com mais um problema de conceito para resolver. Quanto ao pessimismo com relação à democracia, Rosanvallon traz consigo, como apoio argumentativo, Aleksandr Issaievitch Soljenitsyn e, mais uma vez, a crítica ao bolchevismo. No entanto, mesmo para quem prefere endurecer mais contra o que se seguiu a Vladimir Illitch Ulianov Lenin ao nazismo, a democracia não deveria ser tão ruim. Não obstante, por fim chega Marcel Mauss, “nenhuma lentidão é suficiente; em matéria de prática, não se pode esperar”.10 A prática é um risco, sem falácia.

Enfim, Pierre Rosanvallon atinge tanto o objetivo historiográfico quanto, especificamente, conceitual, e insere as suas pesquisas nos debates contemporâneos sobre a história do político, mormente quando analisa a prática política no âmbito do político.

1 RÉMOND, René. Por uma historia política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.         [ Links ] 2 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.34.
3 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC Rio, 2006         [ Links ] 4 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.30.
5 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.41.
6 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.71.
7 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.78.
8 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.78.
9 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.82.
10 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.100.

João Batista Ribeiro Santos – Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), mestrando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador-bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). [email protected].