História e Gênero / Locus – Revista de História / 2011

Ao longo dos 17 anos da Revista Locus, numerosos artigos foram publicados. A Revista sempre esteve aberta à diversidade temática e metodológica. Nos últimos números, tem aberto espaço a dossiês e este número é dedicado aos estudos de Gênero. Questão que se tem feito presente em História e nas demais áreas de Ciências Humanas e Sociais. O tema deve ser visto em seu contexto histórico.

Desde fins dos anos 60, tornam-se presentes no Ocidente sinais e percepções de desmoronamento. O mundo sobrevivente à Segunda Guerra Mundial, polarizado em Capitalismo X Comunismo, mostrou fissuras em ambos os lados. Negros norte-americanos, em A Marcha para Washington em 1963, tornaram visíveis as contradições da democracia norte-americana. Jovens atletas negros – Panteras Negras – nas Olimpíadas do México, ergueram os punhos em protesto e denúncia às questões raciais norte-americanas.

Em 1967, o Estado de Israel invadiu terras de Gaza e aumentou seu território na Guerra dos Seis Dias. Desconstruiu todo um olhar sobre o sionismo. Em 1968, Dubeck buscou conciliar, na Checoslováquia, a economia planejada com liberdades democráticas. A União Soviética, através do Pacto de Varsóvia, invadiu aquele país e abafou as tentativas de desestalinização. O episódio, que ficou conhecido como Primavera de Praga, aprofundou o descontentamento com o “Socialismo Real”, nas discussões dos marxistas ocidentais.

Ficou conhecida como Maio de 1968 a série de acontecimentos que se iniciaram nas universidades de Nanterre e Paris: protestos estudantis contra o sistema educacional e o estabelecido. Protestos que se estenderam aos trabalhadores e se alastraram pela Europa e Estados Unidos. Caracterizaram-se os protestos e seus desdobramentos pela ampliação dos conceitos de “política” e de “liberdade”. Eros e a civilização, de Herbert Marcuse, é a radiografia identificadora de liberdades que devem ser buscadas: liberdade dos corpos, dos gêneros e convívio com as diferenças. O movimento hippie, Beatles, protestos contra a Guerra do Vietnã e a reivindicação de feministas assinalam aspectos do questionamento ao estabelecido.

Novas questões foram colocadas para o meio acadêmico e a necessidade de propostas metodológicas para estudá-las. O conceito de “Gênero” surgiu na década de 1970, como categoria de análise social, usado por feministas norte-americanas em busca das diferenças baseadas no sexo. A visibilidade do movimento feminista, no período, foi possível pelas questões que assinalamos anteriormente. Em História, ampliou-se o universo a ser estudado, contudo, como assinalou Hobsbawm:

Mas os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser separados de outros aspectos do seu ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização. Não podem ser separados, mais que por um momento, dos modos pelos quais os homens obtêm seu sustento e seu ambiente material.[1]

As questões de gênero estão imbricadas nos diversos aspectos que envolvem os contextos sociais e nos quais os indivíduos atuam na História. Recebem e constroem visões de mundo em seus momentos e em lugares que ocupam na sociedade. Os estudos sobre a questão têm revelado que, homens e mulheres vivenciam, de maneiras específicas, seus contextos históricos. Neste dossiê, os estudos debruçam-se em tais vivências.

O dossiê é aberto pelo texto de Alex Silva Monteiro: “Despidas de suas vestes. Torturas e intrigas: o cotidiano das cristãs-novas nos cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Portugal, século XVII”, no qual o autor discute a questão de gênero no contexto da Inquisição Portuguesa, abordando as rés, especialmente as cristãs novas, diante dos tribunais inquisitoriais. Através dos processos instaurados, o autor mergulha no cotidiano das acusações, buscando resgatar valores e visões sobre a mulher no século XVII português. Ao mesmo tempo, revela as torturas físicas e psicológicas as quais foram submetidas, algumas delas, em tenra idade.

Ainda no campo da religiosidade, William de Souza Martins, em artigo intitulado: “Representações femininas na obra do padre Manuel Bernardes (1644-1710)”, analisa as representações de gênero encontradas em duas obras de autoria de Manuel Bernardes, um padre português que apresentava as mulheres a partir de uma perspectiva misógina, a +m de persuadir os fiéis em relação a seus princípios. Duas obras do padre serviram de base para a percepção de tais representações: Armas de castidade, de 1699 e Nova Floresta, escrita entre 1706 e 1728.

Deyssy de La Luz García, no trabalho “Las mujeres en el pentecostalismo mexicano. Apuntes para la historia (Las pioneras, 1910-1948),” analisa o papel das mulheres pentecostais no México, na primeira metade do século XX. A partir de fontes orais e escritas, a autora destacou a atuação relevante das mulheres no processo de divulgação e aquisição de novos adeptos para a doutrina pentecostal, em que pese sua pouca participação no âmbito das atividades de direção e gestão de igrejas. O artigo leva em conta, igualmente, os valores por elas compartilhados e as condutas consideradas ideais no gênero feminino.

No presente dossiê, não só a relação entre gênero e religião é levada em conta, mas também a perspectiva da “ciência” em relação à mulher. Este é o objeto central do artigo de Marisa Miranda e Maria Bargas, intitulado “Mujer y maternidad: entre el rol sexual y el deber social (Argentina, 1920-1945)”. As autoras se voltam para o estudo das relações entre eugenia e gênero e entre gênero e sexo, segundo as visões predominantes na Argentina, nas primeiras décadas do século XX. Através da leitura, conclui-se que, dentro de um paradigma eugênico-latino, sexo e gênero eram duas faces de uma mesma moeda, ou seja, predominava uma relação mimética entre os dois temas. Dessa forma, a desigualdade entre homens e mulheres, a subordinação feminina e a heterossexualidade tinham caráter natural e imutável. Qualquer alteração desse paradigma era vista como um atentado às leis da natureza.

Segue-se o artigo de Marina Garone Gravier e Albert López, intitulado “Rastros invisíveis sobre o papel: as impressoras antigas na Espanha e México (Séculos XVI ao XIX)”, no qual se propõe resgatar o papel das mulheres no mercado tipográfico. Começando a abordagem nos primórdios da imprensa, até meados do século XIX, os autores buscam destacar o importante papel desempenhado pelas mulheres no trabalho de impressão de numerosos livros e panKetos (broadsides). Muitas herdaram o negócio de seus falecidos pais ou maridos, levando à frente, com maestria, as atividades. A partir da análise específica da trajetória individual de várias tipógrafas ao longo do período, os autores revelam a importância de tais análises para os estudos de gênero no mundo do trabalho.

Em geral, os estudos de gênero são voltados para a análise do papel da mulher em sua relação com a sociedade. A historiadora Maria Izilda de Matos presta contribuição inovadora ao tratar da masculinidade, no artigo: “Cabelo, barba e bigode: masculinidades, corpos e subjetividades.” Tendo como palco a cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, a autora relaciona os ideais de masculinidade presentes nos discursos médicos e nas propagandas dos jornais. Destaca a preocupação com o combate ao alcoolismo e com a manutenção de um corpo jovem e saudável, através da propagação da importância da higiene masculina, sobretudo manifesta através dos cuidados com o cabelo, a barba e o bigode.

Complementam o presente volume dois artigos e uma resenha, recebidos em fluxo contínuo. O ensaio de Clarice Cassab, intitulado: “Contribuição à construção das categorias jovem e juventude: uma introdução”, volta-se para o estudo dessas duas categorias ao longo da história. Partindo do período romano, passando pelo período medieval e confluindo para a modernidade, a autora vai acompanhando as mudanças de concepção acerca do que significava, em cada período, ser jovem. Ressalta-se a atribuição à juventude de desvios e inconsequências, sobretudo quando associada à pobreza.

O artigo de Fábio Chagas, intitulado: “O nacionalismo revolucionário e a resistência à ditadura nos anos 1960 no Brasil”, aborda a resistência contra a ditadura militar brasileira levada a cabo, sobretudo, por militantes nacionalistas e comunistas gaúchos. Fundamentando-se em consistente base empírica, o autor analisa os vínculos entre os dois grupos, destaca a participação de importantes lideranças no planejamento e organização das ações contragolpistas e analisa as opções feitas pela resistência em cada conjuntura.

Por fim, a revista é fechada com uma resenha de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, que apresenta aos leitores o livro organizado por Márcio Piñon de Oliveira e Nelson Fernandes, que resume conclusões de um evento que tratou dos 150 anos da área suburbana da cidade do Rio de Janeiro.

Esperamos que o leitor encontre neste volume subsídios para pesquisas futuras, não só para o tema “gêneros”, objeto privilegiado por este número, como também para os demais volumes da revista.

Nota

1. HOBSBAWM, Eric. “Da História Social à história das sociedades”. In: Sobre História. São Paulo.

Vanda Arantes do Valle – Doutora. Professora do Departamento de História da UFJF Organizadora do Dossiê


VALLE, Vanda Arantes do. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.17, n.2, 2011. Acessar publicação original [DR]

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