História, Historiadores, Historiografia / Projeto História / 2010

I

O leitor poderá observar no presente dossiê como os autores, ao refletir sobre os fundamentos historiográficos que nortearam a análise de seus temas específicos, os situaram no interior das novas e também antigas preocupações inerentes ao historiador: a recuperação do real a partir das abstrações razoáveis possíveis, dados os vestígios históricos disponíveis e o instrumental analítico selecionado.

Desde o debate na antiguidade grega sobre os problemas dos métodos para o resgate da história, concepção que recupera a necessidade da questão de caminhar a partir da identificação dos pontos considerados frágeis na argumentação do historiador – e “não na mera desqualificação da obra como um todo” –, até os debates atuais postos no campo da gnosiologia sobre a verdade e a história, ficam objetivados no presente dossiê.

A perspectiva da validação historiográfica a partir do argumento, ou como meros embates discursivos, nos quais as opiniões se equivalem, e que, por vezes, remete o historiador ao campo da literatura, é contraposta à da cientificidade deste campo do conhecimento, capaz de objetivar a dinâmica histórica em suas contradições internas, a posição relativa de cada uma das diversas forças sociais em permanentes e distintos embates em dadas particularidades históricas. A identificação dessas tendências arrima a mobilidade de ação do ser social, porquanto a abdicação desta o torna mero expectador.

O espectro gnosiológico que hoje assume a primazia no campo da historiografia parece conferir validade à crítica de Políbio a Timeu sobre o “direito de criticar com o objetivo de conferir valor aos próprios argumentos por meio da correção ou redimensionamento dos argumentos alheios”. Tal “guinada hermenêutica” confere ao termo historiografia sentidos muito distintos, conforme aponta um dos autores presentes neste dossiê.

“Ora aparece nomeando um certo ajuntamento de obras históricas, sinônimo então de bibliografia especializada, ora surge identificando linha de pesquisa voltada para os estudos de história da história, ou seja, exame consistente das obras enquanto manifestação cultural ancorada em contextos históricos específicos (…). Entretanto, as extrapolações para os contextos mais gerais quando muito terminam por marcar a temporalidade das obras, mas não sua historicidade”.[1]

Será que poderíamos agregar a esta reflexão a de outro autor que considera ser a produção historiográfica um “museu do saber” que “aspira uma unidade estética, cuja finalidade é dispor uma aparência e um reconhecimento dos objetos com os quais as várias especialidades se envolvem”? Ou seja, sequer se resgata o preceito de Walter Benjamin, recuperado aqui por outro autor, de que, “o narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”? Ou ainda, cumpre a historiografia a função de controle sobre o saber, parafraseando os termos de Foucault, conforme assertivas de outros aqui presentes? Deixamos a pergunta ao leitor, esperando que este dossiê incentive as reflexões.

A ampla diversidade de abordagens, métodos, instrumentos, documentos a compor hoje o campo historiográfico a que nos remete o conjunto dos textos, poderia ser também interpretado como a expressão de uma crise dos sujeitos historiadores? É notória, diz o autor, a situação de “crise” que a disciplina história enfrenta.

“(…) Desde os anos da década de 1970, com a emergência do pós-estruturalismo, a corporação de historiadores enfrenta desafios compreensivos inesperados oriundos dos estudos da linguagem e da semiologia, reconhecidos como linguistic turn ou semiotic challenge. Além da fragmentação disciplinar há a ameaça de um relativismo fantasmático pairando no horizonte das pesquisas”.[2]

Ou, contrapondo-se a tal ideia, revela-se uma profícua retomada da historiografia que, imbuída de novos recursos e mais livre para buscar os fundamentos de suas interpretações, não apenas amplia a base conceitual, parte em busca de novas evidências históricas e também revisita com maior frequência historiografias, ou consagradas, ou esquecidas, ou pouco reconhecidas no momento mesmo de sua produção.

Exemplo desta retomada são os balanços, como, por exemplo, o que analisa a produção historiográfica sobre a Revolução Russa. Ao retomar desde os autores clássicos até as principais obras mais recentes, “incluindo as que tentativamente parecem marcar novos paradigmas de investigação no período pós-soviético”,[3 ]as visualiza no interior dos diferentes contextos históricos em que cada produção historiográfica ocorreu e, assim identifica as dificuldades para a objetividade analítica nas reflexões sobre tal tema.

A mesma questão sobre a objetividade está posta no texto que analisa a produção historiográfica sobre o missionário jesuíta José de Anchieta, cujas biografias, segundo o historiador, desde os séculos XIX e XX tiveram o “objetivo de evidenciá-lo (…) como precursor da nacionalidade brasileira, guardião da moral e exemplo de santidade (…) e de destacar condutas consideradas fundamentais para a sociedade brasileira em diferentes momentos da história política brasileira”,[4] cumpre a finalidade de defender sua beatificação, que, para se consolidar demanda ainda que se evidenciem os milagres requeridos para sua canonização.

Um viés historiográfico apontado também no balanço sobre outro tema, ainda que totalmente diverso, se evidencia na historiografia sobre o movimento Punk dos anos 70 com a perspectiva de “um acontecimento social que abalou a sociedade e a cultura num panorama de mudanças estruturais profundas em curso na América do Norte e na Inglaterra”,[5] mas cuja perspectiva analítica tende a reduzi-lo a um movimento de jovens de classe média. Já outro analista demonstra como um debate sobre os indígenas no Brasil revela “uma reflexão política e uma operação historiográfica sobre identidade nacional e o futuro da formação social brasileira”, [6] durante a segunda metade do século XIX. A análise dos embates entre o etnólogo alemão Curt Nimuendaju e o intelectual paraense Jorge Hurley expressa como tais autores intervieram na conformação de políticas sobre as questões indígenas e como foram capazes de definir um campo historiográfico sobre a questão.

Se, por um lado, o reconhecimento da diversidade hoje posta na reflexão dos historiadores leva alguns a enfatizarem que se trata de uma crise e outros a perceberam aí uma profusão de novas possibilidades para o historiador, por outro lado, um terceiro grupo se detém sobre os conceitos produzidos pela historiografia.

Uma pergunta, não obstante, se impõe: produz a historiografia conceitos cuja pertinência está na capacidade de expressar o real concreto e cuja validade se põe a partir de novas evidências empíricas abstraídas pelo historiador quando este se permite ampliar seu espectro analítico?

Ratifica esta questão, verbi gratia, os artigos que debatem o tema das fronteiras. Um dos analistas desvela como tais conceitos necessitam ser revisados à luz da geopolítica. Pois a transnacionalização do capital obriga os historiadores a reconhecer que as noções de territorialidade / fronteiras, antes restritas ao Estado-nação, hoje se expressam na inter-relação entre as mais diferentes culturas e sociabilidades. Ou, conforme outro, a conceituação é sempre relativa em face de novas evidências antes não destacadas, como ocorre, segundo o exemplo, quando se contrapõem as informações sobre fronteiras provinciais no Brasil, grafadas em mapas cartográficos, aos dados advindos de outras documentações. Adentrando ainda à discussão sobre estratégias, métodos e instrumentos analíticos, este mesmo ressalta que, como qualquer outro elemento iconográfico, a analítica cartográfica revela uma historicidade particular, “construída em função de elementos culturais próprios e pertinentes ao momento de sua criação”.[7]

O que remete às discussões sobre os aspectos metodológicos que envolvem outro tipo de material iconográfico, muitas vezes tomado, assim como ocorre com a cartografia, como simples material auxiliar a corroborar ou não informações advindas de outras fontes documentais, a fotografia. Desde a clássica discussão sobre a correspondência ou não entre a concretude social e a representação que dela fica gravada na imagem, ou sobre os limites postos pelo foco da imagem, até o seu reconhecimento como expressão de uma dada forma de interação com o mundo naquele momento, observa-se a preocupação dos analistas com a validade de suas fontes documentais e os métodos mais apropriados para seu tratamento. Revelam estas, conforme se coloca o autor, a essência dos modos de interagir, mas não a essência das coisas com as quais se interagiu?

Observa-se assim que tais historiadores situam no interior da discussão o impacto que trouxe para os analistas, a ampliação do corpus documental validado também enquanto expressão das vivências cotidianas nos mais diversos tempos, incluindo-se aí o primado do reconhecimento das informações verbalizadas para os historiadores ou dos relatos de vidas privadas grafados em correspondências particulares. Pois também para a história oral se requisita um campo analítico próprio, metodologias de pesquisa e de análise particulares, principalmente quando, segundo o autor, se tem por objetivo “preparar documentos gravados e transcritos para serem utilizados pelos pesquisadores do futuro”.[8] Centrando a análise, sempre no campo gnosiológico, encontramos em outro analista um exemplo que explicita os questionamentos sobre a relação entre a história e a história do ponto de vista dos resultados da abordagem. Conforme suas reflexões, com o intuito de desvendar os discursos de poder utilizados no confronto conhecido como a revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo, observa este que a historiografia “concentrou seus esforços em diretrizes opostas, recaindo, ora no sentido de elucidar a luta de classes, ora na valorização do caráter espontâneo do levante”, mas que, mesmo assim, acabam por reproduzir “a plataforma aburguesada que se arvorava como revolucionária, embora não primasse por mudanças significativas no país”.[9]

É interessante observar que, das reflexões sobre o campo conceitual, se pode abstrair certa ênfase na percepção do que configura a identidade de um país, de uma nação. Coloca-se assim outro aspecto do embate. Enquanto uns ressaltam, conforme apontado acima, o desaparecimento do Estadonação, para outros, a ênfase atual está no reconhecimento das identidades políticas, nacionais, culturais. Neste sentido, o texto mais representativo nos parece ser o que retoma a obra do historiador francês Fernand Braudel: L’Identité de la France (1986). Representativo também do conjunto dos aspectos fundam este dossiê: o debate historiográfico, as correntes ou tendências em curso ao longo do século XX, a validação de múltiplas e distintas fontes, a pertinência ou não das abstrações formuladas a partir dos dados empíricos, a interdisciplinaridade, enfim, o corpus que resulta da relação entre historia, historiadores e historiografia.

Situando, assim como a maior parte dos historiadores deste número de revista o fazem, o discurso historiográfico de Braudel nas circunstâncias que o condicionam, o autor demonstra como esta obra expressa a necessidade posta naquele momento para os franceses, de reafirmar uma identidade nacional que respondesse a dois imperativos: as contradições de uma conjuntura internacional marcada pela Guerra Fria que conjugava uma pregação pela paz com uma política militarista contra países que questionavam o capitalismo e para a manutenção do mapa artificialmente desenhado após a segunda guerra. Por outro lado, punha-se o imperativo de redesenhar a memória sobre o colonialismo exercido pela França nas regiões afro-asiáticas em um momento em que esta nova ordem mundial em construção reeditava os valores civilizatórios de uma Europa mediterrânea. Ou seja, reafirmando o conceito de longa duração, “Braudel constrói um discurso político ao redor da identidade francesa visando relativizar as contradições da história nacional (…). Na França da virada dos anos 80, o debate girava em torno do ensino de História, da dissolução da memória nacional e da perda dos grandes referenciais, fazendo com que os historiadores se voltassem aos temas nacionais. Ou seja, o livro encaixou-se como uma luva!”.[10]

O mesmo teor reflexivo encontra-se em outro artigo que retoma como a construção do discurso sobre a modernidade no período do Estado Novo no Brasil, com o claro intuito de configurar “identidades individuais e coletivas” foi apropriado também por “práticas disciplinares – ciência, tecnologia, epistemologias – que, em um movimento simbiôntico, procederam a uma troca com ambientes institucionalizados e institucionalizantes edificando aquilo que será conhecido como moderno”,[11] o que faz a partir da recuperação da trajetória intelectual do historiador Alfredo Ellis Júnior, entre 1938 e 1956.

Temos, por fim, mais dois artigos travando debate acerca da contribuição historiográfica de Capistrano de Abreu. Num primeiro, é discutido o movimento de ruptura na própria obra do historiador cearense, o que enseja a sua recolocação como divisor de águas de toda uma geração historiográfica brasileira – desde a primígena ideia de uma revolução burguesa à brasileira, até sua posição como protopositivista; num segundo momento é identificado, pela autora do artigo, o papel de Capistrano de Abreu em José Honório Rodrigues.

II

Há que pontuar algumas questões que se apresentam nesse espectro de confluências e divergências no campo historiográfico. Ao se contrapor às formulações de Ferdinand Lassale, o autor do Manifesto Comunista de 1848 se vale dos estudos magistrais do filósofo Giambattista Vico (1668-1744). O filósofo napolitano escreveu a obra ímpar A Nova Ciência, publicada pela primeira vez em 1725. Reescreveu-a pela terceira vez no ano de sua morte, em 1744, nos legando categorias da história que fez Jules Michelet, Herder e o próprio Marx, tomá-lo como referência teórica. Uma delas explicitada por Marx em O Capital que – ao refletir sobre os instrumentos de produção e da tecnologia – se pergunta: “Será que não merece igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social específica?”. Recorde-se que Marx não abandonava por um só instante a determinação histórica dos seres sociais e das coisas existentes. Nessa direção, o filósofo alemão formula outra questão: “E não seria mais fácil reconstituí-la já que, como diz Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e não a outra?”.[12]

Ao destacar que o homem só pode conhecer aquilo que faz, Vico acrescentava que sendo Deus o criador da natureza só ele poderia conhecê-la a fundo. Verum et factum convertuntur. Por essa razão, nós conhecemos o efetuado praticamente, o homem é um ser autoproducente. Alguns autores reconheceram certas afinidades entre Marx e Vico, como Adrienne Fulco que faz convergir, entre outras, o impulso à objetividade, ao reconhecimento das determinidades concretas que se encontram no mundo in flux. Ambos, acrescenta Fulco, também “compartem a crença de que a consciência é a característica distintiva do homem; o centro essencial de sua humanidade. Para ambos, a consciência, em sua forma mais geral, é a capacidade de todo homem de conhecer-se a si mesmo e ao mundo que o rodeia. A consciência, com efeito, não é somente uma atividade própria da mente, mas também uma atividade de caráter social determinada”.[13]

Pense-se, nesse último passo, nas contribuições do filósofo húngaro György Lukács, autor de Prolegômenos para uma ontologia do ser social, [14] no que tange ao papel da consciência nos lineamentos histórico-materialistas inscritos na obra de Marx. “A ontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico. (…) Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte movente e movida de um complexo concreto. Isto conduz, portanto, a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da própria matéria: ‘formas do ser, determinações da existência’”.[15]

Vico escrevera que “Somente os homens fizeram esse mundo (…). Mas tal mundo surgiu, sem dúvida, de um espírito quase sempre diverso, às vezes inteiramente contrário e sempre superior às finalidades particulares que os homens haviam proposto”.[16] Marx dispõe essa síntese histórica para seus correligionários em sua correspondência, e, de forma mais apropriada a sua visão do mundo histórico, na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte, quando analisa as determinantes histórico-sociais do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 desferido por Luís Bonaparte em analogia com o golpe do tio, principia-a com essa refutação de qualquer finalismo a reger o processo histórico: “Em algumas passagens de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem a sua própria história, contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”.[17]

A interpretação de Agnes Heller pode lançar luz à improcedência dos autores que insistem na imputação de determinismos à concepção marxista da história e do caráter teleológico inscrito no processo histórico. “A teoria segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas em condições previamente dadas, contém as teses fundamentais da concepção marxista da história: por um lado, a tese da imanência, e, por outro, a da objetividade. À primeira vista, o princípio da imanência implica no fato da teleologia, ao passo que o princípio da objetividade implica naquele da causalidade; os homens aspiram a certos fins, mas estes estão determinados pelas circunstâncias, as quais, de resto, modificam tais esforços e aspirações, produzindo desse modo resultados que divergem dos fins inicialmente colocados, etc.”.[18]

Essa posição dialética, cuja premissa se assenta no fato de que as ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade, foi ressaltada por uma das principais historiadoras brasileiras, Emília Viotti da Costa, em seu estudo sobre a rebelião de escravos em Demerara, em 1823. Numa parte mais desenvolvida, atada à concepção materialista, salienta: “A história é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância, o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam a si mesmas”.[19]

Tal imputação de finalismo no processo histórico também foi refutada por István Mészáros, porquanto “A abertura radical da história – a história humana – criada historicamente é, então, inescapável, no sentido de que não há meio de se predeterminar, teórica ou praticamente, as formas e modalidades da automediação humana, porque as condições teleológicas complexas dessa automediação, através da atividade produtiva, só podem ser satisfeitas – uma vez que estão sendo constantemente criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente fechados e encerrados em si próprios resultam ou em alguma redução arbitrária da complexidade das ações humanas à simplicidade grosseira de determinações mecânicas ou na superposição idealista de um tipo ou outro de transcendentalismo a priori à imanência do desenvolvimento humano”.[20]

Contra outra visão de história bastante disseminada, o mundo se passaria no tropo, um dos mais renomados intérpretes da micro-história, o historiador Carlo Ginzburg vem estabelecendo um consequente embate contra os cépticos que professam o relativismo do conhecimento histórico. Além disso, o historiador italiano se insurge contra os riscos do negacionismo, corrente reacionária que tenta negar a existência do Shoah (Holocausto), da fustigação, massacre e genocídio de milhões de indivíduos de origem semita pelo terrorismo oficial do estado nazista.

Ao ser questionado por Perry Anderson sobre o uso da palavra “prova” ao invés de “testemunho”, Ginzburg mostra para a primeira sua ineliminável presença na pesquisa histórica. Dessa maneira, alinha que “Provare (provar) significa, por um lado, ‘validar’ e, por outro, ‘experimentar’, como observou Montaigne falando de seus próprios ensaios. A linguagem da prova é a de quem submete os materiais da pesquisa a uma aferição permanente: ‘provando e confirmando’, como rezava a famosa divisa da Academia (científica florentina) del Cimento. (…) Caminhamos às apalpadelas, como o luthier que bate delicadamente, com os nós dos dedos, na madeira do violino: uma imagem que Marc Bloch contrapôs à perfeição mecânica do torno, para sublinhar o inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador.”[21]

As teses cépticas têm o condão de reduzir toda historiografia a uma dimensão narrativa ou retórica, desprezando, com isso, o trabalho concreto e específico do historiador. O relativismo céptico, em uma de suas versões, contrapõe a retórica à ideia de prova. Carlo Ginzburg escarafuncha a raiz desta concepção descobrindo o núcleo dela, segundo à qual essa concepção se estrutura: a filosofia de Nietzsche. Em verdade, suas reflexões sobre a linguagem. Segundo Ginzburg, em Acerca da verdade e da mentira, pode-se constatar que “a existência de diversas línguas é citada como prova do abismo que separa palavras e coisas: a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade”.[22] Dessa forma, no estudo relacional de culturas torna-se impossível a compreensão de sua historicidade e concretude social. Em seu duelo com as concepções agostinianas de verdade, Nietzsche acaba por produzir um pensamento com sinal contrário ao cristianismo. A tomada de posição sobre a superioridade de certos povos ou mesmo da língua em relação a outra cultura aponta para um traço definidor da ideologia da historiografia relativista. “O limite do relativismo – seja na versão branda seja na versão feroz – é o de escamotear a distinção entre juízo de fato e juízo de valor, suprimindo conforme o caso um ou outro dos dois termos. O limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral”.[23]

Há que questionar, portanto, essa visão redutora do campo de possíveis das atividades práticas humanas à retórica ou a meras figuras de linguagem, que resultam nas imputações arbitrárias e exteriores aos objetos em sua integridade histórica. Se a raiz é nietzscheana, os alvos do historiador italiano são os cépticos relativistas, entre os quais, Roland Barthes e Hayden White. Figuras díspares, mas que esposam alguns pressupostos comuns: “a historiografia, assim como a retórica, se propõe unicamente a convencer; o seu fim é a eficácia, não a verdade; de forma não diversa de um romance, uma obra historiográfica constrói um mundo textual autônomo que não tem nenhuma relação demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere e textos historiográficos e textos de ficção são auto-referenciais tendo em vista que estão unidos por uma dimensão retórica”.[24]

Dessa maneira, em posição contrária, a tese de Carlo Ginzburg, ancorada na tradição aristotélica, demonstra que as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fundamental. Por essa razão, o conhecimento histórico é possível. Porquanto, “ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘escovar a história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas”.[25]

Há que escovar a história a contrapelo! O que significa posicionar-se da perspectiva dos vencidos. Extrair das tensões, conflitos e contradições sociais, as alternativas que não vingaram, que se arruinaram, os projetos sociais que ameaçaram as bases materiais antagônicas do metabolismo social. No plano historiográfico, insurgir-se contra a versão oficial, a dos polos dos vencedores.

Decorridos setenta anos, após ter vivenciado os horrores de um campo de concentração (Camp des Travailleurs Volontaires em Nevers), sem ter o visto que lhe permitiria sair da França, acuado e premido pelas constrições e armas das forças franquistas, Walter Benjamin se suicida a 22 de setembro de 1940, em Port Bou, na Catalunha. Sua desaparição, no entanto, não fez soçobrar seus esforços na crítica dialética do mundo da barbárie. Seus escritos mantêm vivos os embates contra os “Estados de Exceção”! Decepcionado com o Pacto de não agressão entre Stálin e Hitler, de 23 de agosto de 1939, escapando da prisão se dedica a elaboração das Teses “Sobre o conceito de história”. Segundo Benjamin, “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história”, nessa direção, anota em suas Passagens: “A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem: Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar”.[26] Contra a dominância das formas do positivismo e dos acentos positivos do progresso do sistema social, o que põe um ponto final na história no que diz respeito à ordem social, Benjamin premido pelo terrorismo imposto pelo fascismo desde as fímbrias do cotidiano às expressões políticas, pontua na oitava das Teses que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável”.[27]

Vivemos uma temporalidade terrível com o futuro constantemente ameaçado, em que as energias humano-societárias materializadas nas riquezas se esvanecem, o desgoverno do sistema do capital em seu desmonte transforma multidões sem nenhum amparo, as individualidades se fragmentam e se apequenam numa vida dilacerada. Todavia, como recorda nossa historiadora: “Todo tempo é tempo de mudança – mas alguns são mais do que outros. Todo tempo é tempo de conflito – mas há momentos históricos em que as tensões e os conflitos isolados que caracterizam a experiência cotidiana subitamente se aglutinam num fenômeno amplo e abrangente, que ameaça a ‘ordem social’. Nesses momentos as queixas individuais havia muito existentes se transformam numa crítica global ao sistema de poder. Desafiam-se as pressuposições das elites acerca do mundo”.[28]

A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das transições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana, a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mundializada –, é o de olhar para trás e reconstruir o utopismo em lutar por uma nova sociabilidade livre das bases materiais antagônicas. Todavia, há que salientar as sucessivas greves e rebeliões que eclodiram em várias partes desse cotidiano minado pelas contradições do capital mundializado. Operários, estudantes, mulheres, camponeses se juntaram em manifestações contra o desemprego, a miséria, a privatização da educação, na Grécia, Turquia, Itália, Portugal, e tantas outras formações sociais, como a greve geral de 29 de setembro na Espanha, etc. Na Bolívia, os trabalhadores sustaram por meio de paralisações a elevação dos combustíveis… Em Túnis, capital da Tunísia, um jovem engenheiro desempregado, como tantos outros, surrado por tentar vender frutas numa praça, acabou por se imolar… Com este ato extremo, detonou um represamento incontido de um processo social que alija as maiorias do próprio trabalho assalariado, um amplo movimento social que pôs fim à sangrenta ditadura de Zine al Abidine Ben Ali, que estava instalado no poder há mais de duas décadas.

Está claro que o “futuro ausente” que se apresenta como molde atual, dado pelas circunstâncias históricas, pela conservação de estruturas autocráticas, pelos voos desmesurados dos impérios financeiros, pela crise estrutural do capital que a tudo absorve em sua universalização, que produz a enormidade da população de reserva na escala de milhões de desempregados, mas que ao invés de nos fazer recuar deve nos lançar ao encontro de uma permanente busca de alternativas, regrado por um “otimismo ponderado”, que vislumbra um traçado radical necessário à luta contra essa impotência e apodrecimento sob a própria pele. Porque, como assegurava um crítico dessa particular forma de metabolismo social, “donde o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente”.[29]

Notas

1. Cf. Políbio Contra Timeu, ou o Direito de Criticar de Breno Battistin Sebastiani, nesta edição, p. 210.

2 Cf. o artigo de Carlos Alvarez Maia, p. 354.

3 Cf., neste volume, o artigo de Angelo Segrillo, p. 65.

4 Cf. o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, p. 157.

5 Cf. Ivone Gallo, nesta edição, p. 298.

6 Cf. Aldrin Figueiredo, neta edição, p. 317.

7 Cf. Airton José Cavenaghi, nesta edição, p. 385.

8 Cf. Maurílio Rompatto, p. 345 desta edição.

9 Cf. João Paulo Rodrigues, p. 152.

10 Cf. Guilherme Ribeiro, p. 108.

11 Cf. Diogo da Silva Ruiz, p. 219.

12 MARX, Karl. O capital – crítica da economia política, vol. 1, tomo 2. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Köthe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 8.

13 FULCO, Adrienne. Vico y Marx: consciencia humana y estructura de la realidad. In: TAGLIACOZZO, G. Vico y Marx: afinidades y contrastes. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 123.

14 LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento . São Paulo: Boitempo, 2010. Nesta obra estão expostas as principais categorias ontológicas da filosofia de Marx.

15 LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 228.

16 VICO apud COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 13. Ver VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Tradução de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro, Record, 1999, p.487.

17 MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25. Grifos nossos.

18 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 8.ª edição. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 11.

19 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.

20 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Tradução de Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 129. Grifos nossos.

21 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 13-14.

22 GINZBURG, Carlos. Relações de força. In: Op. cit., p. 28.

23 Idem, p. 38.

24 Idem, p. 48.

25 Idem, p. 43.

26 BENJAMIN apud SELIGMAN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 62-63.

27 BENJAMIN apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de JeanneMarie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo, Boitempo, 2005 p. 83.

28 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue, op. cit., p. 23.

29 CHASIN, J. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista. In Ensaios Ad Hominem 1 – Tomo IV – Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001, p. 72-73.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 41, 2010. Acessar publicação original [DR]

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