História e Literatura – um diálogo em andamento / Locus – Revista de História / 2011

Os artigos agrupados neste dossiê corroboram o alerta de Hayden White de que não deveria haver embaraço entre a historiografia narrativa, a literatura e o mito, uma vez que tratam- se de sistemas de produção de significados destilados da experiência de um povo, de um grupo, de uma cultura. Ou, como dizia Richard Morse, as obras literárias são riquíssimos instrumentos para desvendar processos históricos mais ou menos complexos. De formas bastante variadas, tanto em termos de temática como de abordagens teóricas – bem como pela mistura de autores provenientes da literatura, história ou das ciências sociais -, os diversos ensaios que o leitor tem em mãos permitem uma viagem, seja ao universo mental de novelistas ou ensaístas que escreveram sobre mundos mais ou menos conhecidos, ou àquele de historiadores que se valeram de narrativas literárias – ficcionais ou de viagem – para suas interpretações de processos históricos. Aliás, este é precisamente o espírito que buscamos nesta coletânea: abordar a atual, instigante e problemática relação entre história e literatura tentando, tanto quanto possível, contrabalançar a presença de historiadores com a de críticos literários.

Optamos por organizar os ensaios em uma sequência que inicia-se com a discussão de algumas questões teóricas envolvendo história e literatura, e prossegue com ensaios mais específicos sobre movimentos autores e / ou obras: o romantismo brasileiro na figura de José de Alencar, o modernismo português (Fernando Pessoa), o ensaísmo brasileiro dos anos 1930 (Afonso Arino de Melo Franco) e a literatura brasileira dos anos 1950 (Guimarães Rosa). No bloco seguinte estão os estudos de narrativas literárias que, de uma forma ou outra, tratam de encontros interculturais: jesuítas no Brasil, franciscanos na Índia, Lamartine no Oriente ou os dilemas da libertação de Angola através da obra de Pepetela. Ou seja, o dossiê agrupa textos de cunho estritamente teórico com diversas abordagens de autores, obras ou narrativas de viagens (religiosas ou leigas), sempre por meio de um diálogo entre a literatura e a história.

Também gostaríamos de chamar a atenção para a presença de ensaios sobre temas mais conhecidos do público brasileiro como o romantismo e o modernismo e encontros entre europeus e nativos da América do que, por exemplo, a obra do moçambicano Pepetela ou os escritos de Jacinto de Deus e Lamartine sobre o Oriente. Isto é bastante enriquecedor na medida em que proporciona o aprofundamento, pelo leitor, de temas mais ou menos familiares e amplia os horizontes ao apresentar novos autores ou objetos.

As reflexões de cunho “estritamente teórico” sobre o diálogo entre história e literatura ficam aqui por conta dos críticos literários. Mas são bastante pertinentes para os historiadores. A socióloga e também crítica literária Silvana Seabra oferece uma visão histórico-panorâmica das idas e vindas, aproximações e afastamentos entre história e literatura, desde o século XVII até a atualidade, que pode ser um bom guia para leitor se localizar na problemática. Especialmente porque ela se detém não apenas em dois autores que, nos anos 1960 e 1970, escreveram textos polêmicos sobre as proximidades entre história e literatura. Ela se propõe a explicar o porquê da forte reação à Metahistória de Hayden White (1991) em contraste com os textos do também polêmico Roland Barthes que, em 1967, apontara para uma compreensão da história enquanto narrativa e, portanto, muito próxima da literatura.

Paulo César Oliveira analisa, do ponto de vista da literatura, as viagens reais e imaginárias da história e da ficção na literatura contemporânea através de uma análise comparativa entre o romance Nove noites (2002), de Bernardo Carvalho, autor brasileiro de reconhecida representatividade no cenário ficcional contemporâneo, com a obra do autor inglês Bruce Chatwin, falecido em 1989, com destaque para In Patagonia (2005), Th e Viceroy of Ouidah (1990) e Anatomy of restlessness (1996). Oliveira se propõe a demonstrar que a análise comparada das obras de Chartwin e Carvalho desafiam a teoria literária hodierna ao dar “respostas” às “provocações” das narrativas ficcionais através de uma interseção com a história. Considerando que a literatura comparada parece ser o campo mais atuante no panorama atual da teoria literária, ele compara autores que, em cenários bem diferentes, têm em comum o fato de flertarem mais com a etnografia pela via de deslocamentos espaciais, territoriais, geográficos e históricos com a elaboração de sua matéria literária.

O romantismo brasileiro é abordado na figura emblemática de José de Alencar pelo historiador Valdeci Borges e pelo crítico literário André Monteiro, que enfocam aspectos muito distintos da obra do autor. Valdeci nos mostra como Alencar, além de romancista, foi um teórico e polemista sobre as inovações necessárias na língua, linguagem e estilo americano de seu tempo, para dar conta de novas realidades. O texto detalha o debate entre ele e dois portugueses contrários a quaisquer “brasileirismos”, ou seja, alterações no idioma pátrio. O interessante é perceber a acuidade e familiaridade de Alencar com as discussões de seu tempo ao contrapor a estes críticos o mesmo autor tido por eles como exemplar da não corrupção da língua inglesa em território norte-americano: Fernimore Cooper. Conforme então assinalado por Alencar, e hoje plenamente reconhecido, a novela de Cooper, O último dos Moicanos, se tornou um clássico da fundação dos Estados Unidos exatamente por ter reproduzido na escrita a forma como o inglês era falado na colônia. O mesmo aconteceu com o espanhol nas colônias hispano-americanos, conforme também reconhecido por Alencar e utilizado por ele como reforço ao seu próprio projeto para o Brasil.

Já o crítico literário André Monteiro aborda um outro José de Alencar, ou melhor, ao invés de centrar-se no autor, opta pela personagem Iracema, mito de formação nacional. Mas, muito além disto, está interessado em demonstrar – talvez na linha sugerida por Ian Watts -, como o personagem se independizou de seu autor e conheceu significados e ressignificações desde o século XIX até o XXI [1]. Segundo Monteiro, Iracema é prova viva da “morte do autor”. Ela não pertence mais aos direitos autorais do Senhor José de Alencar. Dentre as demonstrações deste fato, ele opta por discutir Iracema em uma versão cinematográfica. Produzido em 1974, “Iracema, uma transa amazônica”, de Jorge Bodansky e Orlando Senna, nos oferece, segundo Monteiro, “de muitos modos, grandes possibilidades de realizar uma fricção com o mito alencarino.” A riqueza do filme está exatamente em não se constituir em uma adaptação direta do poema-romance para o cinema. Pelo contrário, vale-se do mito de Iracema para uma profunda crítica ao regime militar exemplificado na construção da Transamazônica. Ilustra bem as ponderações de Robert Stam sobre as amplas possibilidades de diálogo e interação entre literatura, cinema e história que, longe de supor que as versões cinematográficas constituam-se, via de regra, em deformações e / ou traições da novela em que se basearam, podem e devem ser vistas como outra linguagem, igualmente poética e instigante [2].

Embora não represente uma ruptura absoluta com o propósito romântico de descobrir ou redescobrir o Brasil, ou mesmo de buscar uma “língua nacional”, o modernismo opta por outra vertente. A presença do índio, por exemplo, e o apelo à noção de “primitivo”, tema caro ao romantismo, também foi uma bandeira levantada pelo modernismo. A ênfase, porém, não era mais no índio filho de Catarina de Médici, conforme nos lembra Oswald de Andrade no Manifesto Modernista de 1928, mas no índio antropófago, devorador, que sobreviveu ao choque com os brancos. O ensaísmo e as novelas brasileiras dos anos 1930 dão prosseguimento a alguns destes insights, conferindo-lhes contornos mais nítidos e atingem, nos anos 1950 caracterísiticas mais gerais e universalizantes.[3] A propriedade desta “tese” pode ser percebida nas análises da historiadora Libertad Bittencourt e dos críticos literários Franco Daniel Faria e Bruno Flávio Lontra Fagundes.

Franco Faria, através do “sensorismo” do poeta modernista português Fernando Pessoa, ilustra a importância dos insights, da crítica ao racionalismo e da valorização “freudiana e nietzschiana” contrárias à leitura de obras literárias como se fossem meros documentos. Através das “viagens” de Caeiro, ilustra como estes documentos deveriam ser relativizados inspirando-se na tese de Gumbrecht, que afirma que os códigos organizadores das experiências sociais de tempo e espaço no mundo moderno entraram em colapso no século XX. Centro e Periferia, Transcendência e Imanência, entre outros, teriam se fundido, mesclado, interpenetrado. Assim, o espaço, até então, ordenado no mundo ocidental de acordo com paradigmas estáveis, teria se estilhaçado. Se, por exemplo, um viajante europeu romântico que fosse em direção à América do Sul pudesse acreditar que partia do centro da civilização para a sua periferia. Mas isto não mais se aplicava aos anos 1920, tanto que tais distinções tenderiam a se confundir, conforme também explicitado pelos nossos modernistas.

A valorização da originalidade americana, na linha iniciada pelos modernistas dos anos 1920 recebe contornos mais definidos em obras como o pouco conhecido ensaio de Afonso Arino de Melo Franco, O índio brasileiro: da teoria da bondade natural à denegação, de 1937, analisado aqui por Livertad Bittencourt. Seu texto ilustra, através de Afonso Arinos, a importância do próprio estilo ensaístico enquanto uma forma privilegiada de interpretação da história e da cultura. No caso do índio, permite ao autor dar contornos mais nítidos ao desejo de identidade vindo do século XIX, que não havia conseguido definir o que fazer com a herança indígena. Conforme nos mostra Bittencourt, esta interpretação inovadora sobre o índio brasileiro, no sentido de este ter sido inspiração, ao longo de dois séculos, na consolidação da teoria da bondade natural, alimentando o ideário que levou à Revolução Francesa, foi retomada quando nos debates por ocasião das comemorações dos 200 anos da Revolução Francesa a partir de fins de 1979, bem como para repensar a questão do índio durante as comemorações do bicentenário das independências latino-americanas.

Já Bruno Flávio Lontra Fagundes compara as concepções de instrução, educação e sentimento nacionais nos Brasis imaginados de José Veríssimo e de Guimarães Rosa. Tratam-se não só de dois períodos históricos bastante distintos, mas de autores com formação diferenciada. O sociólogo José Veríssimo publicou A educação nacional em 1890, enquanto Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, data de 1956. O ensaio chama atenção para temáticas em comum, apesar da diferença temporal e de formação dos autores, demonstrando a riqueza da abordagem comparativa também nestes casos. Mesmo levando-se em conta que, no caso em questão, Rosa havia lido e anotado a obra de Veríssimo, o foco de Fagundes é na permanência, apesar das diferenças, da temática da instrução e da educação (diferentes para ambos) em sua relação com a criação de uma comunidade imaginada, de um Brasil. Em Grande Sertão, o velho Riobaldo conversa com um “doutor” da cidade que talvez venha a fazer algum sentido em sua história. Na conversa, fica claro o diálogo de Rosa com uma significativa parte do pensamento social brasileiro. Veríssimo, por sua vez, considera a literatura como a expressão mais geral e segura do sentimento de um povo. Ou seja, não existe pura ficção, assim como não existe pura “realidade”.

A relação da literatura com uma “nação imaginada” ou idealizada é também o tema central do ensaio do crítico literário Dernival Ramos. O autor mostra como a narrativa literária pode dar vazão a projetos de modificação do mundo real. Os romances do angolano Pepetela – considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos angolanos e da língua portuguesa -, são excelentes exemplares da importância das narrativas literárias no processo de construção das nações. O historiador e crítico literário Dernival Ramos nos mostra isto no caso de Angola através da análise de três romances de Pepetela: Mayombe (2004), Lueji: o nascimento de um Império (1997) e A geração da utopia (2000). Eles abordam o complexo processo de construção da identidade nacional no contexto da descolonização da África onde constituíram, após a independência, “Estados sem nações”. Segundo ele, os principais obstáculos seriam os tribalismos e a visão limitada das elites. A leitura da análise que ele faz dos romances e do contexto da independência angolana lembram problemas enfrentados pelos estados latino-americanos mais ou menos 130 anos antes.

Em “A imagética jesuítica em zona de contato” do historiador Leandro G. Pinho trata dos textos jesuíticos escritos quando das primeiras viagens ao Brasil no século XVI, chamando atenção para a forte presença de referências a aspectos naturais tais como fauna e flora, mas também para o estilo literário de suas cartas. Nestes primeiros encontros com homens e natureza são diferentes, teriam emergido situações similares ao que Mary L. Pratt denominou como / a / uma “zona de contato”, ou seja, locais de encontro / choque entre culturas diferentes. Leandro explora, inspirado em Chartier, a teia existente nos textos jesuíticos entre a “real” impressão do Novo Mundo e a tradição literária na qual foi formada, mostrando a necessidade de adaptações, ou seja, de releitura do referencial europeu em função da nova realidade circundante.

O artigo da historiadora Patrícia Souza de Faria sobre literatura espiritual e história dos franciscanos no Oriente lida, como o de Leandro Pinho, com uma literatura religiosa que se propunha a ser documental, ou seja, a retratar, da forma mais fiel possível, as realidades vistas e vivenciadas e, claro, os progressos (avanços) proselitistas alcançados. A autora atenua a tese de que no encontro com outros mundos, os jesuítas foram os monopolizadores da evangelização. Na Índia, por exemplo, os franciscanos foram os primeiros a chegar e tiveram forte atuação, da qual resultou uma importante produção literária. Mas, embora o número de jesuítas e franciscanos no Oriente fosse próximo, demorou bem mais para que as obras dos capuchinos fossem publicadas do que as dos jesuítas. Dentre esta literatura franciscana, ela destaca os escritos de frei Jacinto de Deus (1612-1681) que, na qualidade de representante da coroa portuguesa no Oriente, escreveu também sobre o que se convencionou chamar literatura de aconselhamento a príncipes, na qual se destacou, na mesma época, o jesuíta português Antonio Vieira.

Ainda falando de Oriente e do encontro com outros mundos, o ensaio da historiadora Vera Chacham nos faz pensar no quanto o exotismo do Levante, para nós ocidentais, pode e deve ser contextualizado. Ela nos introduz na visão de Alphonse de Lamartine que, no início da década de 1830, ilustra como se modificou o olhar exótico do europeu sobre a narrativa de viagens do começo do século XIX, vista como uma forma de expressão da cultura histórica do período, pois os valores – pictóricos e estéticos, mas também éticos – atribuídos ao Oriente muçulmano começam a ser vistos como aqueles que teriam sido perdidos pelo Ocidente. Na Idade Média, esclarece ela, o ódio ao muçulmano não era acompanhado por tal curiosidade por sua cultura. O texto de Lamartine pode então ser analisado como um novo tipo de narrativa de viagem que se vale muito mais do que as anteriores, especialmente a iluminista, do recurso à literatura. Ilustra uma forma de aproximação entre as duas formas de escrita na primeira metade do século XIX.

Uma instigante sugestão para os interessados pela abordagem histórica que se ampara na literatura é o recém lançado Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis (2009), de Mary Del Priori, no qual a historiadora reconstitui não somente a biografia de Euclides da Cunha, mas a da família Cunha, envolvendo várias passagens de traições e rearranjos matrimoniais. O resenhista Francisco das Chagas Silva Souza enfatiza o quão bem a autora consegue integrar a história das famílias de Euclides e de Dilermando com o tempo em que se passa, bem como dialogando intensamente com a literatura, especialmente com a literatura de gênero. Mas, no caso em questão, para chamar atenção para um aspecto polêmico e pouco tratado: o sofrimento que o machismo causa também nos homens, e não somente nas mulheres.

Entre os artigos de fluxo contínuo, o leitor encontra o da historiadora Fernanda Aparecida Domingos Pinheiro, que analisa o funcionamento da justiça colonial em Mariana nas contendas em torno da obtenção e do usufruto da liberdade, comparando dois períodos históricos: de 1750 a 1769 e de 1850 a 1869. Por fim, novamente um texto que aborda colônias africanas, mas no caso, o historiador Reinaldo Guilherme Bechler propõe-se a demonstrar, baseado em fontes primárias inéditas, como o III Reich alemão lidou com a epidemia de lepra que se alastrou pela região em fins do século XIX e início do XX.

Notas

1. watt, ian. mitos do individualismo moderno. fausto, don quixote, dom juan, robinson crusoe. rio de janeiro: zahar, 1997.

2. stam, robert. “teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade” in: ilha do desterro. florianópolis, n.51, pp. 19-53, junho-julho de 2006.

3. morse, richard m. “th e multiverse of latin america identity (1920-1970)” in: bethel, leslie. ideas and ideologies in twentieth century latin america. cambridge: cambridge university press, 1996.

Beatriz Helena Domingues – Professora do Departamento de História da UFJF e organizadora deste dossiê.


DOMINGUES, Beatriz Helena. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.17, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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