Derecho, Literatura e Historia: los símbolos de la justicia | Sur y Tiempo – Revista de Historia de América | 2022

Ilustracion basada en El obsceno pajaro de la noche Imagem Carlos Andueza Garrido
Ilustración basada en El obsceno pájaro de la noche | Carlos Andueza Garrido

El dosier Derecho, Literatura e Historia surge de las inquietudes académicas, críticas y culturales del equipo gestor e investigador de las Jornadas Derecho y Literatura, del Seminario Arte y Derecho, y del comité editorial de Sur y Tiempo. Desde una óptica interdisciplinaria se interroga respecto a las particularidades del diálogo entre el Derecho, la Literatura y la Historia, a la vez que sobre los modos de contribuir a un posicionamiento crítico y responsable de dicho campo de estudios. Todo desde posicionamientos teóricos, críticos y metodológicos derivados del diálogo entre las tradiciones ya existentes (anglosajona y francófona, principalmente) y las aplicaciones que puedan nacer desde el acontecer político, social y cultural latinoamericano.

En este sentido, el presente dosier aspira a problematizar, desde un enfoque histórico, los puntos de encuentro y desencuentro entre el Derecho y la Literatura a partir, especial pero no únicamente, de los símbolos puestos en circulación por la justicia a lo largo de su devenir histórico, atendiendo, por ejemplo, los conceptos de enseñanza/aprendizaje, autoría/creación y cultura jurídica. Leia Mais

A Literatura como campo e reflexão para a História | Escrita da História | 2021

Detalhe de capa de O Exercito de Cavalaria de Isaac Babel.
Detalhe de capa de O Exército de Cavalaria, de Isaac Bábel.

Dialogando com o dossiê da edição passada (História e Linguagens: História. Ficção. Literatura), as discussões propostas no dossiê dessa edição foram estruturadas, basicamente, na ligação entre a História e Literatura, levando em conta as inúmeras intersecções entre as duas perspectivas apontadas.

Como já foi exaustivamente apontado e discutido, a História enquanto uma área de pesquisa científica passou por inúmeras modificações e metamorfoses, deixando de ser apenas uma disciplina de caráter factual e memorialística para tornar-se, no alvorecer do século XXI, uma forma de compreensão da ação humana em suas mais variadas formas e matizes, incorporando elementos de outros campos do saber e sempre aberta à novas formas de se pensar tais aspectos, embora sempre mantendo sua essência e características próprias, tendo em vista a dimensão temporal e as relações advindas desse ponto. Leia Mais

História e literatura: aproximações e diferenças | Escritas do Tempo | 2021

“By such examples taugth, I paint the cot,

As truth will paint it, and as bards will not”

No trecho em epígrafe do poema intitulado The village (1783), de autoria do inglês George Crabbe (1754-1832), descortina-se um contraste, segundo os especialistas e seus intérpretes, entre as formas de representação de uma narrativa bucólica da Antiguidade, do Neoclassismo e de sua própria escrita, pois “Tal como manda a verdade”, diz a passagem – conforme a nossa tradução livre – “eu retrato os campos e não como cantam os bardos em seus cantos”. Ou seja, para o poeta, de certa forma seu texto figura como alegoria de um determinado tempo e espaço, de acordo com os estudos de Raymond Williams (1921-1988) sobre as literaturas do campo e da cidade, quase antecipando, portanto, algumas das premissas básicas que, posteriormente àquele século, seriam firmadas e, hoje, acham-se ainda perenes junto ao ofício de historiador(a). Assim, o presente Dossiê, na trilha do poema setecentista, propõe-se a refletir sobre as possibilidades do estabelecimento de laços entre a História e a Literatura, atento às suas aproximações e diferenças que emergem, paulatinamente, seja à boca pequena ou com mais estardalhaço, feito porta-vozes de cada época, dando a ler ao mundo as suas conexões.

Por isso, buscamos reunir trabalhos que pudessem discutir as relações da emergência da figura-autor com os escritos que são materializados, para debater aspectos tais como os trânsitos – nacionais ou internacionais – da cultura escrita, as apropriações ou economias de leituras, além das práticas letradas, de circulação e recepção de impressos literários. E, por outro lado, visamos igualmente coligir textos que versem e problematizem a historicidade de contos, poesias, crônicas, romances, peças de teatro, coleções, projetos editoriais etc., considerando textos ficcionais provenientes dos mais variados estilos e condições sociais de produção. Leia Mais

África, Literatura e Cinema em Língua Portuguesa: Direito a um Olhar Descolonizado | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2021

É com satisfação que apresentamos o quinto número da revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos, no qual se insere um dossiê sobre o cinema em países africanos de língua oficial portuguesa. Intitulado “África, Literatura e Cinema em Língua Portuguesa: Direito a um Olhar Descolonizado”, o dossiê teve como ponto de partida o simpósio “Literatura e Cinema”, realizado por via remota, nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2020, no âmbito do I Congresso Internacional do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ: Vozes e Escritas nos Diferentes Espaços da Língua Portuguesa.

Concebendo literatura e cinema como artes críticas e transformadoras, nosso simpósio pretendeu efetuar discussões a partir de comunicações que tecessem diálogos com a história, de modo a investigar como a literatura e o cinema de países africanos de língua oficial portuguesa pensavam a nação, após suas respectivas independências. Leia Mais

História e Linguagens: História. Ficção. Literatura | Escrita da História | 2021

O presente dossiê tem como objetivo central fomentar o diálogo e debate entre estudantes e pesquisadores que investiguem fontes e problemas relacionados às dimensões da Literatura e da Teoria da História, bem como suas interações. Para cumprir esse objetivo, toma a oportunidade que a Revista História Escrita propicia ao nosso grupo de trabalho e pesquisa, o História & Linguagens, para criamos espaços como este que estão no cerne de abrangentes e multiformes linhas de contato com a teoria da literatura, a qual, segundo Luiz Costa Lima, tende a ampliar verticalmente e horizontalmente o fazer historiográfico. E ao tomar como ponto de partida a perspectiva de que estes objetos fornecem novas evidências fragmentárias e pistas verossímeis a respeito das formas de sentir e pensar em determinado contexto sócio-histórico se mostram e tornam-se passíveis de tematização crítica.

Nesse sentido, o presente dossiê reuniu trabalhos que dialogam com os fundamentos constitutivos da formatividade literária e da Teoria da História, por meio de análises que concebam a possibilidade de uma escrita da história a partir de um diálogo abrangente, no qual narrativas biográficas e literárias estejam presentes em pesquisas e pesquisadores de várias frentes possíveis. Desde os anos de 1970 Hayden White nos chama a atenção para importância que as estruturas metanarrativas têm para a formação do conceito de história, na mesma esteira, Luiz Costa Lima nos traz a evidência de que o não questionamento teórico entre Ficção e História faz com que o historiador se compreenda como ileso no processo de construção de seu discurso e acarrete um fechamento da historiografia para a possibilidade de reflexão filosófica de si mesma. Leia Mais

História e Literatura | Contraponto | 2020

As relações entre a História e a Literatura permaneceram durante muito tempo influenciadas pelo conceito aristotélico que preconizava o caráter universal da Poesia, em oposição ao caráter particular da História. Segundo essa concepção, a História ocupar-se-ia essencialmente do real, dando testemunho da sociedade e fazendo referência a uma trama complexa e efetiva de fatos e acontecimentos. A Literatura, por sua vez, teria a liberdade de narrar considerando não apenas a mimetização dos fatos inscritos na própria história, mas até mesmo o irrealizável, além de todo um repertório de possibilidades e virtualidades que, escapando ao mundo concreto e referenciado do historiador, poderia ganhar vida e significado no universo imaginário do poeta ou do ficcionista.

Hoje, tendo em vista sobretudo a multiplicidade de tendências historiográficas e o vigor dos estudos que têm como centro as linguagens, multiplicam-se as perspectivas do repensar e repropor as relações entre História e Literatura, em bases mais convergentes, uma vez que, a partir desses novos paradigmas, o discurso historiográfico passa a privilegiar objetos não focalizados por óticas objetivistas e estruturais que predominaram por muitas décadas do século XX, voltando-se cada vez mais para o registro da vida cotidiana, das diferentes modalidades de crenças, dos costumes, das sociabilidades literárias, das relações familiares, da infância e outras idades da vida e para as dimensões imaginárias da sociedade. Esses novos interesses favoreceram, entre os historiadores, a redescoberta do discurso literário como um registro de alternativas ou virtualidades que, embora não necessariamente desenvolvidas no processo real dos acontecimentos, tornam-se testemunhos daquele meio social, expressão legítima de sua historicidade.

Tanto a Literatura como a História vêm colocando em plano secundário abordagens que apenas punham em relevo autores e obras, destacando as ideias por essas veiculadas, em abordagens ligadas à tradição da história das ideias, ainda de padrão iluminista, que se instaurou, ganhou corpo nos últimos dois séculos e cujas “origens” podem ser localizadas no século XVIII. Em que pese a força dessas práticas escriturísticas canonizadas, os estudos historiográficos e as perspectivas do campo das linguagens passaram a incorporar, para além da vida e da obra dos autores, outras variáveis analíticas, ancoradas no social, que podem não apenas explicar a especificidade intrínseca dessas obras, mas também evidenciar articulações mais consistentes entre História e Literatura, vista na sua complexidade de registro rico, tenso e criativo, que associa apreensões de vidas contadas e de mundos inventados. Desse modo, História e Literatura partilham cada vez mais o interesse por aquilo que diz respeito à vida cotidiana, às dimensões da subjetividade humana e às aproximações entre a vida social no seu sentido mais amplo e a vida literária.

Para além da obra em si, e das biografias realistas e imaginárias de seus produtores enquanto sujeitos da criação literária, interessa cada vez mais o estudo da História, não apenas para dar ênfase às conexões vida-obra, para realçar a vida pessoal na composição de biografias intelectuais, porém igualmente para definir (ou para lançar conjecturas) articulações entre essas vidas que têm (ou poderiam ter) uma marca singular e todo o universo social mais amplo que as configura, com graus variáveis de complexidade.

Embora o historiador tenha consciência de que a literatura, enquanto produto estético, resulta de procedimentos linguísticos e retóricos específicos, sendo dotada de plurissignificações, não se pode perder de vista a noção de que tanto o criador quanto a obra estão imersos em contexto social que também confere sentidos particulares ao produto ficcional. Daí a relevância de estudos integrados entre os pesquisadores dos diferentes campos das Letras e da História, em encontros que favoreçam a expansão e a criatividade nos usos de antigos e novos suportes de escrita, divulgação e leitura de fontes capazes de tornar a compreensão da Literatura cada vez mais como registro compreendido em sua historicidade. Nessa perspectiva, não apenas conjugando esforços, mas divulgando os resultados de pesquisas, críticos literários, estudiosos das linguagens nas suas mais distintas expressões, teóricos da Literatura e historiadores podem descobrir novas formas de utilização de diferentes acervos, gerando novos diálogos, enriquecer as respectivas áreas de saber construindo ou incorporando novas modalidades de interpretação.

Realçamos esses aspectos consensuais e de aproximação também para remarcar que eles não correspondem à riqueza dessas relações. Na longa continuidade das relações entre História e Literatura, essas relações guardam especificidades próprias em que cruzamentos interdisciplinares (ou sua recusa), interlocuções conflituosas e problemáticas, distanciamentos e deslocamentos maiores ou menores entre os dois campos, convergências, divergências e afinidades têm ocorrido, propiciando e favorecendo os enriquecimentos disciplinares, seja por meio de diálogos criativos e abertos, seja pelos conflitos mais intensos e de posturas mais agressivas. A emergência e o indiscutível vigor da História Cultural ao tempo em que pôs a nu esse cenário de disputas interdisciplinares, de âmbito global, terminou por criar as bases para novas relações que se estabeleceram entre as duas áreas do conhecimento.

Enquanto as décadas de 1960 a 1990 podem ser, de um modo muito geral, reconhecíveis pelas intensas disputas, criadores de novas divisões disciplinares e de novas relações de poder no âmbito das Ciências Humanas, se constituem como um tempo de vigor do pensamento social e das dimensões estabelecidas e então reconfigurados no espaço-tempo da cultura escrita. O desejo do voltar-se para as produções intelectuais desses tempos recentes nos induz a insinuar, de forma breve, as notáveis transformações, reconfigurações, disputas e partilhas instituídas e favorecidas por obras seminais, como as de Foucault (1986 [publicado originalmente em 1969]; 2019 [1970]), Certeau (2015 [1995]; 1985 [1993]), Veyne (1983 [1976]; 1987 [1983]), Ginzburg (1987 [1976]; 1989 [1986]), Chartier (2002 [1985]; 1996 [1985]; 2002 [2002], Darnton (1987 [1982]; 1992 [1991]), White (2001; 2019 [1985]) e Williams (1989[1973]), para relembrar apenas historiadores, filósofos e críticos literários implicados nessas mudanças e influentes, não apenas na cultura historiográfica, mas na cultura brasileira. Remissão no campo das Letras e das Linguagens não poderia ignorar os impactos continuados de Saussure (2012 [1916]), as leituras de Bakhtin (1990 [1975]), Barthes (1988 [1984]), Hutcheon (1991) e do já citado Hayden White.

No Brasil, a virada historiográfica dos anos 1980 repercutiu essa ebulição no campo das Ciências Humanas de maneira seletiva, enfatizando as interlocuções com a História Social – especialmente a de matriz inglesa. A partir sobretudo dos autores franceses e de seus sugestivos estudos centrados na Linguagem (o enraizamento social dos discursos, as práticas discursivas e suas tônicas, a atenção às retóricas constitutivas das diferentes formas de expressão escrita, o discurso como representação), atentou-se para a necessidade de problematizar as velhas epistemologias. Apesar das reconhecíveis disputas disciplinares na historiografia brasileira dessa época, uma leitura das obras de maior impacto entre os historiadores sugere que estávamos longe de experimentar as batalhas discursivas e as guerras por distinção que em certos momentos pôs em campo o paradigma estabelecido dos Annales, a História Social (marxista), os teóricos da Linguística e da Teoria Literária em suas versões mais críticas ao discurso do historiador e as sugestões de elisão de fronteiras em benefício da Teoria Literária. Essa movimentação do conhecimento e a emersão de suas novas formas, ao vergastar o estabelecido, sugeriu uma leitura metafórica do campo (de disputas): os inimigos batem à porta da História, a cidade historiográfica organiza a defesa e ocorre, seguramente, renovação da disciplina e alargamento que alcança não apenas o aspecto temático como igualmente suas epistemologias. Essa interpelação avassaladora vinda tanto do campo filosófico quanto do linguístico e literário alimentou fantasmas que, em certo momento, aterrorizaram os historiadores – o retorno visto como terrificante das narrativas do político e do sujeito – vistos como um flerte com o passado (e as compreensões dele) caricaturado nas influências e continuidades do modelo Langlois/Seignobos. No Brasil desses anos não tão distantes, essa inquietação foi nomeada como “crise dos paradigmas”.

Dessa “Era dos Conflitos” passou-se à “Era das Negociações”, na qual as fronteiras da Ciência, da História e da Arte vão se tornando mais maleáveis e transponíveis, remarcando a convivência e, para alguns, a passagem mesmo de um paradigma do social ao domínio do cultural, cujas porosidades indicam talvez a força de uma maior alteração na produção/difusão dos saberes e uma compreensão mais difundida das pluralidades das práticas sociais e de seu permanente devir. Não que essas passagens sejam necessariamente validadas. Durante a década de 1990 essas aproximações, bem como o emprego recorrente da noção de discurso como representação e também como prática, tornou ainda mais complexas e interligadas as insurgências e as acomodações nos diversos campos do conhecimento. Um dos resultados desses encontros e conflitos instáveis talvez seja o recuo daquelas fórmulas milenares vindas dos tempos de Aristóteles, mostradas no início desta apresentação.

Neste Dossiê é possível ter acesso a faces das relações entre História e Literatura, que guardam sintonia com algumas das cristalizações da tradição, bem como com os novos aportes que vêm sendo introduzidos – modificando, questionando, recusando ou simplesmente reelaborando as tradições anteriores e canonizadas. Percebe-se certo recuo da intensidade das interlocuções e dos desafios que tomavam a feição de retórica de antagonistas. Mesmo que pareça sutil esse deslocamento, já aparece como consolidação de uma tendência na produção das duas áreas. Evidentemente, sugerimos uma hipótese.

Colaboradores de quase todo o Brasil foram sensíveis à chamada, propiciando ao Dossiê a consecução do objetivo proposto pelos coordenadores:

[…] reunir artigos acerca das relações entre História e Literatura, através de reflexões sobre experiências de grupos ou sujeitos históricos inseridos em diferentes espaços e períodos. A partir de perspectivas interdisciplinares, busca-se coligir estudos que problematizem as historicidades dos autores e/ou suas obras – contos, poesias, crônicas, romances, dramaturgias, etc. Nessa proposta, a literatura, para além de seu caráter social, interligado a uma complexa rede de fatores enraizados nas experiências históricas de seus produtores e receptores, bem como um testemunho sobre determinadas realidades, sujeitos, sensibilidades, valores, ideologias, representações e códigos culturais. Dessas múltiplas relações e testemunhos, surge um amplo e diversificado horizonte de pesquisa a ser explorado, no qual podem ser contempladas diferentes temáticas, tais como história das mulheres, imprensa, escravidão, manifestações culturais, política, religião, saúde, entre outras (QUEIROZ, ELGEBALY, FERREIRA, 2020).

As respostas não poderiam ter sido mais animadoras e o número de artigos recebidos para avaliação (56) mostra o interesse pela temática, a vitalidade de ambos os campos, além de uma aparente tranquilidade na convivência interdisciplinar, que apontam não só para relações relativamente pacificadas, o que não significa elidir as notáveis diferenças, como pode ser observado na visível influência norte-americana entre os estudiosos da Literatura em virtude da riqueza e diversidade assumidas pela Teoria Literária e um modo recente de adentrar na seara historiográfica, especialmente com os recursos teóricos e conceituais nomeados “metaficção” e “metaficção historiográfica”. Os estudos metaficcionais, como é sabido, tomam como referência teorias principalmente de origem anglo americana, entre os quais pontifica Hayden White. Entre os pesquisadores atuais, como Linda Hutcheon e Julia Kristeva, a pretensão de ampliar os estudos historiográficos sugere uma revisitação das narrativas construídas pelos historiadores, para nelas apor as virtualidades, os possíveis e, sobretudo, indicar os silêncios e fazer ecoar novas vozes. Evidentemente, há variações no campo e este Dossiê permite a observação de algumas. Os estudos metaficcionais afirmam outras modalidades de encontro/desencontro entre a História e a Literatura e apresentam as renovações na esfera dos Estudos Literários, bem como sinalizam para as multiplicidades de apropriação e reinvenção do passado. Com isso, a História e a Historiografia se tornam objeto da Literatura. A História (escrita) se torna fonte. Os empréstimos e trocas são cada vez mais perceptíveis e apontam para horizontes que aparecem associando os dois interesses.

Verificamos também a apropriação cada vez mais consistente da Literatura, em todos os gêneros, pelos pesquisadores da área de Educação. Identificamos igualmente o cuidado dos colaboradores com as múltiplas historicidades dos produtos, ou seja, cada vez mais uma expressiva consciência do tempo como o solo fecundo e incontornável das diferentes formas da escrita e das características de seus suportes materiais e imateriais.

Esse esforço colaborativo e essas permeabilidades de fronteiras não elidem as especificidades disciplinares e as diferenças nessas duas antigas tradições do conhecimento ocidental. O que se esvaiu, parcialmente, foi o polemismo que marcou as décadas finais do século XX no Brasil, o que pode ser bem exemplificado pelas disputas diretas ou sub-reptícias nas abordagens dessas relações em Nicolau Sevcenko (1992, 2003) e em Sidney Chalhoub (2003), historiadores muito representativos desses trânsitos disciplinares. Ao tempo em que a obra Nicolau Sevcenko é incorporadora das novas vertentes culturais [1] e interdisciplinar, flertando com o linguistic turn e inserindo a historiografia nas perspectivas ditas pós-modernas, Sidney Chalhoub professa continuada e reivindicada adesão à História Social (inglesa). Sob um substrato de diferenças, os autores compartilham a posição que foi bem expressa por Sevcenko: “Fora de qualquer dúvida; a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas não se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade de seus frutos não depender das características do solo, da natureza do clima e das condições ambientais?” (SEVCENKO, 2003, p. 29).

No Brasil, especialmente no que diz respeito aos Estudos Literários, por muitas décadas tem prevalecido o cânone, tanto no sentido da continuidade de aportes teóricos fundados nas obras seminais de Antonio Candido, Luís Costa Lima e Alfredo Bosi – destacando-se a força da Escola Paulista e o domínio do conceito de formação do sistema literário –, como do ponto de vista da seleção dos autores/obras como objeto de interesse. Neste Dossiê, isso pode ser observado nas escolhas feitas – e oriundas em sua maioria dos cursos de pós-graduação em Letras – dos escritores renomados na literatura brasileira, como Machado de Assis e Aluísio Azevedo, cujas produções atravessam séculos sem mostrar sinais de esgotamento e sem redução das edições e das vendas [2]. Destaques para Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo, Alcântara Machado, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Júlia Lopes de Almeida [3]. Para o que nos interessa, queremos reforçar que o gosto pelo cânone não se expressa apenas na escolha dos autores-obras que suportam dezenas de análises, como igualmente nas interlocuções teórico-conceituais envolvendo os mais reconhecidos críticos literários brasileiros.

Para além do aspecto acima apontado, constata-se a ampliação do interesse pelas literaturas de várias origens e que são, seguramente, referências da cultura mundial, hoje. Os colaboradores trouxeram à cena literatos latino-americanos (Jorge Luís Borges), africanos (Mia Couto), europeus (Marcel Proust) e asiáticos (Xue Xinran). Nas escolhas realizadas pelos colaboradores, os destaques, considerando as clássicas periodizações da Literatura Brasileira, contemplaram o Romantismo e o Realismo, mas, sobretudo o Modernismo e a Literatura Contemporânea com suas variadas experimentações estéticas e retóricas. Entre as diversas correntes assumidas pelo Modernismo no Brasil realce para os autores nordestinos dos anos 30 e 40 do século XX, constituidores do nomeado Romance de 30, que se configura como uma das mais expressivas literaturas brasileiras do período, ao lado dos reconhecidos autores paulistas.

Também foram analisadas as literaturas de consumo regional, corroborando o esforço de levar ao proscênio outras possibilidades de expressão histórico-literárias, outrora silenciadas ou pouco conhecidas em recortes espaciais mais amplos. Nesse sentido, autores reconhecidos pela crítica especializada, porém, situados nas periferias da produção da cultura escrita nacional, ganham importância no Dossiê. Tomemos como casos exemplares Assis Brasil, Fontes Ibiapina, Ademar Vidal e Luiz Renato, através dos quais a historiografia e a crítica literária foram levadas a dar mais visibilidade a temas como a cidade, a pobreza, a modernização, os costumes, as práticas masculinas e femininas, a prostituição, as políticas urbanas, bem como a problematizar e colocar sob suspeição diferentes formas de exercício do poder.

As abordagens desenvolvidas em torno de livros, autores, editores, circulação de livros e formas de leitura sinalizam na direção do relevo conferido às expressões da censura promovida por regimes de exceção, marcadores de muitas décadas de gestão política especialmente na América Latina. Argentina e Brasil vivenciam as mesmas dificuldades e seus intelectuais se apoiam no sentido do usufruto mínimo do exercício da liberdade – experimentam uma liberdade restrita, mas possível, conforme aponta Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio, ao se referir à prática literária da “autoria coletiva” e às inventividades dos autores e editores para escapar às censuras de seus respectivos países.

Pesquisadores de diferentes vinculações acadêmicas – História, Educação e Letras – nas suas muitas modalidades e nomeações (Literatura, Estudos Literários, Estudos Culturais, Estudos de Linguagens, Estudos Ortográficos, Linguística) conjugam-se neste Dossiê e apresentam suas descobertas e suas interlocuções principais, com o que podemos perceber o vasto espectro de leituras e as modalidades de apropriação, seja de teóricos reconhecidos em suas respectivas áreas de saber, seja das escolhas que guardam uma especificidade mais local. Esses panoramas de autores de referência podem ser vistos também no recurso a historiadores, teóricos da literatura e críticos brasileiros.

A surpreendente procura por este Dossiê é um indício da continuidade e quiçá do fortalecimento do interesse pelas duas áreas, da aproximação buscada entre a História e a Literatura e, de maneira tendencial, da vinda da Educação e do Direito, para a composição de novos estudos interessantes e instigadores são também os modos criativos e inumeráveis de apropriação das fontes e construção das narrativas, hibridizando autores e tendências que nos pareceriam inconciliáveis em décadas passadas.

Este Dossiê, inicialmente um projeto dos organizadores e dos editores da revista Contraponto, somente se viabilizou por ter se tornado um esforço coletivo, por ter encontrado boa recepção nos membros da comunidade acadêmica, que aceitaram o convite ao diálogo e disponibilizaram seus trabalhos ao escrutínio de um público mais amplo. Ao todo, foram mais de duzentos pesquisadores envolvidos na construção desta edição, profissionais que atuaram como autores, avaliadores, editores e secretários executivos, aos quais agradecemos o esforço e esmero empregados. Por fim, mas não menos importante, agradecemos ao professor Roger Chartier, que gentilmente aceitou o convite e disponibilizou um artigo para tradução, inédito em língua portuguesa e que, certamente, contribui para o constante repensar das relações entre História e Literatura.

Boa leitura!

Notas

  1. No Brasil, propor a cultura como tema, em épocas de governos autoritários, constituía, per se, uma insurgência e atraía um certo desprezo na própria universidade. O “literatura como omissão”, epíteto atribuído ao livro de Nicolau Sevcenko pelas esquerdas “uspianas” é sintomático da força desses preconceitos dos anos 1980 no que se refere à cultura como objeto de estudo e fornece a marca de um lugar, nos termos de Michel de Certeau (SEVCENKO, 2002; CERTEAU, 2015).
  2. Sobre a leitura, esse é um aspecto que deveria ser mais aprofundado, tendo em vista serem incompreensíveis essas continuidades sem um cuidadoso estudo de como funcionam o mercado editorial e as políticas públicas relacionadas aos livros escolares.
  3. As escolhas dos colaboradores recaíram sobre obras e autores que compõem o cânone brasileiro e que podem ser situados como atuantes desde os meados do século XIX até as décadas recentes. No caso, os autores contemporâneos podem ser representados por Carolina Maria de Jesus, Ana Miranda, Jomard Muniz de Brito e Luiz Renato.

Referências

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Teresinha Queiroz –  Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.

Maged Elgebaly –  Coordenador do curso de Letras (Língua portuguesa e suas literaturas) em Aswan University (Egito). Pós- doutorando no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal).

Ronyere Ferreira –  Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.

 


QUEIROZ, Teresinha; ELGEBALY, Maged; FERREIRA, Ronyere. Apresentação. Contraponto. Teresina, v. 9, n. 2, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê [DR]

 

 

Literatura: interfaces | Perspectiva Histórica | 2020

É com grande prazer que realizamos uma nova publicação da Revista Perspectiva Histórica. Nosso dossiê Literatura: interfaces visa refletir sobre as diversas nuances da literatura e sua relação com variadas áreas da produção do conhecimento, levando-se em consideração a diversidade presentes dos trabalhos científicos publicados em diferentes Programas de Pós-graduação nos últimos anos. A temática desta edição, as profícuas discussões e reflexões empreendidas pelos artigos e todo o repertório teórico acessado reforçam mais uma vez o caráter interdisciplinar que nosso periódico sempre fez questão de adotar.

Iniciamos o número com o artigo da historiadora Luciane Silva de Almeida, que nos apresenta uma análise da forte relação entre o protestantismo, a leitura e a imprensa no sistema literário protestante. Partindo da apreciação de parte a produção literária da Igreja Batista, a autora discute, forma como diversos escritos contribuíram para a expansão e formação da identidade protestante brasileira. Leia Mais

História e Literatura: diálogos e interações | História, histórias | 2020

O dossiê História e Literatura: diálogos e interações apresenta um corpus meditativo cujas reflexões procuram estabelecer pontos de contatos entre a criação ficcional e a realidade histórica nela representada. Não é de hoje que história e literatura andam de mãos dadas, as interações e divergências entre as duas encontram ecos no pensamento ocidental desde a Antiguidade.

Aristóteles talvez tenha sido o primeiro a notar a relevância desta intersecção, conferindo-lhe legitimidade ao reformular a noção de mimese proposta no pensamento platônico. Isto porque a importância atribuída ao poeta na filosofia aristotélica resulta do reconhecimento das experiências humanas no mundo sensível, algo anteriormente negado pelo idealismo platônico. Na Poética de Aristóteles, a imitação ganhou novo status por meio da noção de verossimilhança e da experiência daquele que se relaciona com o objeto artístico, bem como os efeitos sobre ele também adquiriram novos contornos, caso das reflexões acerca da catarse. Leia Mais

História e Literatura / História, histórias / 2020

Apresentação

O dossiê História e Literatura: diálogos e interações apresenta um corpus meditativo cujas reflexões procuram estabelecer pontos de contatos entre a criação ficcional e a realidade histórica nela representada. Não é de hoje que história e literatura andam de mãos dadas, as interações e divergências entre as duas encontram ecos no pensamento ocidental desde a Antiguidade.

Aristóteles talvez tenha sido o primeiro a notar a relevância desta intersecção, conferindo-lhe legitimidade ao reformular a noção de mimese proposta no pensamento platônico. Isto porque a importância atribuída ao poeta na filosofia aristotélica resulta do reconhecimento das experiências humanas no mundo sensível, algo anteriormente negado pelo idealismo platônico. Na Poética de Aristóteles, a imitação ganhou novo status por meio da noção de verossimilhança e da experiência daquele que se relaciona com o objeto artístico, bem como os efeitos sobre ele também adquiriram novos contornos, caso das reflexões acerca da catarse. Leia Mais

História, literatura e religião | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2019

A reunião de um grupo de historiadores para discutir das relações entre literatura e religião, ou as múltiplas possibilidades envolvidas na presença referente da religião na literatura afirma-se como uma possibilidade importante para pensarmos o métier do historiador nos dias de hoje.

A história não se contenta mais com as divisões estanques do passado, nas quais a sociedade, a economia e as relações de poder ocupavam lugar proeminente, capazes de relativizar a importância das religiões/religiosidades enquanto motivações de pesquisa. A religião passa hoje por uma revisão qualitativa do seu papel na estrutura social, em oposição ao ranço objetivista e materialista do passado, o qual mesmo quando reconhecia o seu papel operativo na sociedade, a subordinava a critérios de validade, que muitas vezes a depreciavam ou a negavam simplesmente. Leia Mais

Machado de Assis – abordagens históricas da literatura / História Revista / 2019

Neste seu terceiro número de 2019, publicado, contudo, em meio à pandemia do novo Coronavírus, a História Revista acolhe, pela primeira vez, um dossiê dedicado a um escritor. Os 180 anos de Machado de Assis e a própria figura do escritor contribuem para que essa novidade não suscite grandes reparos. Mas o(a) leitor(a) há certamente de se surpreender – esperamos que positivamente – com os artigos que compõem o dossiê Machado de Assis – abordagens históricas da literatura.

Contando com a participação de pesquisadores da área de letras, nele não se encontram as figuras habituais de uma história literária familiar: nenhuma história desencarnada das grandes obras de um gênio nacional, nenhuma sucessão de escolas ou estilos literários, nenhum privilégio aos romances e contos mais consagrados de Machado de Assis. Em seu lugar, surge aqui a figura inesperada do historiador literário que investiga papéis velhos, que adentra o espaço por excelência do historiador tout court, na busca por respostas para um questionário novo, mais complexo, mais atento à historicidade das condições de produção, circulação e recepção das obras literárias. Para o século XIX, para Machado de Assis, isso significa, entre outras coisas, levar em consideração as relações estreitas entre literatura e imprensa, em suas mais diferentes articulações. Contra o desprezo em relação aos gêneros ditos “menores”, encontramos aqui a investigação de parte da volumosa e variada produção machadiana publicada em periódicos do Rio de Janeiro. Contra a imagem do gênio incomparável, encontramos aquela, histórica, do Machado de Assis escritor em formação (na certeira descrição de Lúcia Granja), para quem os jornais ofereceram laboratórios de práticas de escrita. Contra a ideia de meras influências inglesas, encontramos a consideração do impacto do suporte na elaboração e na transformação da poética machadiana.

Assim, em um diálogo explícito com nossa própria realidade desoladora, Lúcia Granja apresenta-nos, em “Jornalismo e atualidade em Machado de Assis: das crônicas ao Quincas Borba”, um escritor perturbadoramente atual, em suas crônicas do terceiro quartel do século XIX e em seu romance de 1891. Explorando de maneira inesperada as relações entre literatura e imprensa, Granja demonstra que Machado de Assis não apenas buscou nos jornais do dia os temas de suas crônicas; ele se debruçou cotidianamente sobre o discurso jornalístico, empenhando-se em desmontar suas falsas aparências, em evidenciar sua manipulação para fins políticos ou individuais, em assinalar seu pouco compromisso com os interesses públicos. Desse modo – e em um contraponto revelador, que a autora enfatiza de bom grado – a abordagem dessa faceta da produção machadiana não pode deixar de iluminar o fechamento do nosso presente: no século XIX, as vozes dissonantes eram acolhidas no interior mesmo do sistema midiático, ao passo que, atualmente, elas precisam se submeter a “esquemas alternativos de sobrevivência, principalmente nos meios digitais”.

Espaço aberto para o exercício da fina crítica social, inclusive aquela dirigida contra si mesma, a imprensa foi mais do que um suporte para a produção literária do autor de “O alienista”. Em “O Cruzeiro e a reinvenção de Machado de Assis”, Jaison Crestani demonstra que o jornal, para o qual o escritor colaborou ao longo do ano de 1878, atuou também como mediador de exercícios experimentalistas decisivos para a transformação da prática criativa. Enfrentando um tema clássico da fortuna crítica machadiana – a explicação para a passagem de uma primeira para uma segunda fase -, Crestani rejeita os termos habituais em que ela foi discutida, porque rejeita, mais fundamentalmente, os próprios pressupostos da história literária mais tradicional. Machado de Assis não se fez sozinho, nem de um dia para o outro. Sua incontestável grandeza é inexplicável se não se levar em consideração este dado, que fomos acostumados a negligenciar: fazer literatura, no século XIX, é produzir para os jornais, é habitar o solo coletivo da publicação periódica. Uma inscrição plena de ricas potencialidades criativas – e não, como também fomos acostumados a pensar, de simples e penosa sujeição ao ritmo frenético do entretenimento de massa.

Mas não se esgotam aí as surpresas deste dossiê. Nos artigos dos historiadores, não encontrará o leitor mais uma defesa da utilização da literatura como fonte. E isto não somente porque se trata de uma questão sobejamente resolvida – já há bastante tempo gozam as obras literárias de inquestionável legitimidade enquanto documento para o historiador (lembremonos de Lucien Febvre, em 1933: “Os textos, sem dúvida; mas todos os textos. E não somente os documentos de arquivo […]. Mas um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana”.). Tampouco faz aqui sua aparição a figura clássica do “Machado de Assis, romancista do Segundo Império”, forjada por Astrojildo Pereira em 1939 e normalmente evocada quando se trata de ler a literatura machadiana de um ponto de vista histórico. Não é questão, para os historiadores que colaboram com este dossiê, de evidenciar o esforço do escritor de retratar a estrutura social ou a história do Brasil da segunda metade do século XIX. Não se espere, assim, que estes artigos suscitem as velhas diatribes sobre a relação entre texto e contexto ou que seus autores sejam acusados de negligenciar a complexidade da literatura, de perder de vista o essencial – a capacidade, que as obras literárias têm, de escapar à história – e de insistir no acessório, isto é, sua vinculação ao seu momento de produção.

Distante desse universo de questões habitual e, deve-se reconhecer, legitimamente esperado, os historiadores deste dossiê tampouco comparecem, por outro lado, com análises sobre o que se poderia chamar, com Judith Lyon-Caen em La griffe du temps (2019), de “o entorno” do texto literário. Não se dedicaram a estudar as condições de exercício da atividade literária ao tempo de Machado de Assis, não tomaram por objeto as instituições ou os meios literários – o nascimento da Academia Brasileira de Letras, no final da década de 1890, ou o grupo da Petalógica, reunido em torno da livraria de Paula Brito, na Praça da Constituição, no Rio de Janeiro da década de 1850. O público leitor – esse carapicu, tão raro e tão difícil de pescar, na bela imagem de Machado, muito bem evocada por Hélio Guimarães em seu Os leitores de Machado de Assis (2004), também se encontra ausente. Não se trata aqui da recepção e dos usos das obras, da história social ou política de seu autor ou das condições de publicação e leitura. Em seus artigos sobre a literatura de Machado de Assis, os historiadores deste dossiê escolheram ultrapassar limites tradicionalmente auto-impostos e adentraram o texto machadiano, arriscaram-se no exercício da interpretação e propuseram análises de procedimentos propriamente literários.

Nesse sentido, as estratégias de disfarce da natureza ficcional do texto literário são o tema de Lainister Esteves, em “A dissimulação da ficção nos contos de horror de Machado de Assis”. Esteves descortina, em seu artigo, esta dimensão interessantíssima e pouco estudada tanto da literatura do século XIX em geral quanto da obra machadiana em particular: a literatura de terror. Abordando a produção machadiana nesse gênero, o autor analisa o manejo muito bem-sucedido de um procedimento literário chave para a circulação de textos de terror, desde o século XVIII. Foi a dissimulação, segundo demonstra Esteves, o que tornou possível a participação dos contos de terror no movimento mais amplo de popularização e de redefinição, no século XIX, da própria literatura – indissociável, então, da publicação periódica e de sua recepção como entretenimento.

E é também um procedimento literário o meu tema em “O problema do nome próprio e o projeto literário machadiano”. Em meu artigo, detenho-me neste elemento aparentemente banal, mas que jamais deixa de chamar a atenção dos leitores de Machado de Assis: os nomes de suas personagens. Procuro defender que, analisados à luz de uma história da onomástica literária, os modos de nomeação das personagens são reveladores, de um lado, da própria historicidade do regime literário e de sua poética da indistinção entre ficção e realidade. Por outro, eles iluminam a singularidade e as transformações do projeto literário machadiano: se, ao longo da década de 1870, Machado de Assis procurou ser simultaneamente fiel e infiel ao legado do Romantismo, como uma espécie de “inimigo de dentro”, as Memórias póstumas de Brás Cubas significaram o abandono sem volta desse projeto.

E last, but not least, este dossiê conta ainda com a contribuição de um sociólogo, em mais um sinal da vitalidade da obra machadiana e de sua capacidade sempre renovada de suscitar o interesse de pesquisadores das mais diversas áreas das ciências humanas. Mas tampouco aqui se esperem termos habituais. Pois, ao invés de tomar a literatura de Machado de Assis como representação da estrutura social do Brasil oitocentista, na esteira da influente e seminal interpretação de Roberto Schwarz, Marcelo Brice o que faz é se debruçar sobre a análise e, sobretudo, as críticas que essa interpretação recebeu da parte de seu mais importante adversário, Abel Barros Baptista. Em “O verdadeiro Machado de Assis? O confronto crítico de Abel Barros Baptista”, Brice recupera os termos da discussão do estudioso português, em sua densa obra Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis (1998; ed. bras. 2003), com sua perspectiva francamente derridiana e anti-intencionalista da literatura machadiana.

Com este diverso e rico elenco de textos, a História Revista busca trazer para seus leitores e leitoras parte da intensa produção acadêmica sobre Machado de Assis, em uma celebração – esperamos – à altura de seu aniversário de 180 anos. Que este dossiê possa também convidar a uma (re)leitura da literatura do “Bruxo do Cosme Velho”, nestes tempos tenebrosos de peste e desesperança. Afinal, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, nesta outra homenagem, inigualada:

“Uma presença, o clarineta, vai pé ante pé procurar o remédio, mas haverá remédio para existir senão existir? E, para os dias mais ásperos, além da cocaína moral dos bons livros?”

Os dias não poderiam ser mais ásperos. Boas leituras a todos e a todas!

Raquel Campos – Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CAMPOS, Raquel. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 24, n. 3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Conexões mediterrâneas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia / Hélade / 2019

O estudo das conexões mediterrânicas e as humanidades

Os estudos sobre as conexões mediterrânicas trazem um histórico de pesquisas desde os anos 80 do século passado, nos quais historiadores, arqueólogos, antropólogos, geógrafos e literatos passaram a observar com mais acuidade e criticidade modelos que enfatizam o caráter estático e limitante de culturas passando a realçar de maneira mais aguda a fluidez e conectividade dos povos, pensando o tempo presente e a Antiguidade. Já na primeira metade do século XX, mais intensamente nas últimas décadas deste século e primeiras décadas do século XXI, críticas foram e são feitas aos modelos de entendimento sobre conectividade, muitas delas pautadas em uma perspectiva eurocentrista e nacionalista. Tais modelos negligenciavam a força e prevalência do local em detrimento ao destaque dado ao ‘global’, observados na perspectiva econômica de centro-periferia, perspectiva esta inserida no conceito de sistema-mundo, com suas bases no conceito de economia-mundo, criado por Braudel (1949) e desenvolvido por Wallerstein (1974, 1980, 1989), Arrighi (1994) e Amin (1974), com bases anticolonialistas.

Destacamos ainda o estudo de Price (2012) onde afirma que existem dois tipos de cultos nas províncias romanas: os cultos étnicos e os cultos eletivos. Estes últimos, responsáveis por uma maior interação e circulação cultural das divindades. De acordo com o autor, os cultos eletivos eram, em sua grande maioria cultos estrangeiros, e necessitavam, assim, da criação de novos grupos de adoradores nos locais onde estes residiam. Dessa forma, os cultos se movimentavam, circulavam assim como as pessoas, assim como as ideias (PRICE, 2012, p. 7-8). Novas reflexões trouxeram à tona novas compreensões sobre as manifestações culturais, políticas e religiosas que giravam em torno de um Mediterrâneo fluido, atemporal, e fortaleceram a necessidade de encontrar categorias analíticas mais precisas. É sabido hoje o quão importante é reconhecer a necessidade em se respeitar as singularidades dos povos – o que podemos chamar de pesquisas sobre localismo – em meio a natureza global das relações políticas e econômicas e suas repercussões cultural, social e religiosa intragrupos.

Outro estudo de fundamental importância foi realizado por Polanyi (1944), porque apresentava ao mundo uma perspectiva antropológica inovadora às reflexões sobre a economia dos povos antigos. Mais adiante, Braudel revolucionou os estudos sobre a economia e cultura mediterrânica ao abranger o mundo natural e a vida material, economia, demografia, política e diplomacia vivida no Mediterrâneo da segunda metade do século XVI. Renfrew e Cherry (1986) desenvolvem na arqueologia o conceito de Peer Polity Interaction para explicar as mudanças na sociedade e na cultura material. De acordo com este modelo, resumidamente, havia três tipos principais de interação: competição, incluindo guerra e emulação competitiva; ‘transmissão simbólica’, em que as sociedades absorveriam sistemas simbólicos de seus vizinhos, como sistemas numéricos, estruturas sociais e crenças religiosas, porque preenchiam um nicho vazio em sua sociedade; e, por fim, a ‘transmissão de inovação’, onde a tecnologia se espalharia pelo comércio, doações e outras formas de troca.

Em vista dos recursos teóricos que estes célebres e basilares autores nos legaram, este dossiê Conexões mediterrânicas: Oriente e Ocidente através da História, Literatura e Arqueologia pretende apresentar ao leitor as questões concernentes às conectividades entre os povos que habitaram os litorais Leste e Oeste do Mediterrâneo. Oito artigos, uma entrevista com Hans Beck, professor da Universidade de Münster, Alemanha, e um posfácio redigido por Tamar Hodos, professora da Universidade Bristol, Inglaterra, compõem este dossiê. Estes buscam refletir sobre esta intricada rede de relações comerciais, políticas e religiosas existentes nas cidades que circundavam o Mediterrâneo e naquelas que adentravam rumo ao interior, com discussões conceituais e estudos de caso com grande qualidade e profundidade.

Assim como os navegantes, os bens materiais e as ideias que singraram este ‘cimento líquido’ – usando o termo cunhado por Gras (1998, p. 7) – os pesquisadores, ao longo dos séculos XX e XXI vem singrando os conceitos que circundam este imenso mar e os povos que por ele passavam e dependiam. Acreditamos que as contribuições de nossos autores façam com que o leitor navegue conosco neste mar de reflexões, e se encante com as proposições e interações recíprocas sugeridas.

Boa leitura!

Referências

AMIN, S. Accumulation on a World Scale: A Critique of the Theory of Underdevelopment. Nova York: Monthly Review Press, 1974.

ARRIGHI, G. The Long Twentieth Century: Money, Power, and the Origins of Our Times. New York: Verso, 1994.

BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin. 1949.

GRAS, M. O Mediterrâneo Arcaico. Lisboa: Ed. Teorema, 1998 (1995).

POLANYI, K. The Great Transformation. Foreword by Robert M. MacIver. New York: Farrar & Rinehart. 1944.

PRICE, S. Religious Mobility in the Roman Empire. The Journal of Roman Studies. Vol. 102, 2012, pp. 1-19

RENFREW, C.; CHERRY, J. F. (Eds.): Peer Polity Interaction and Socio-Political Change. Cambridge University Press, Cambridge, 1986.

WALLERSTEIN, I. The Modern World-System, Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York / London: Academic Press. Vol. 1, Vol. 2 e Vol. 3, 1974, 1980 e 1989.

Juliana Figueira da Hora – Pesquisadora de pós-doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), doutora e Mestre em Arqueologia pela mesma instituição. Professora do Mestrado Interdisciplinar da Universidade Santo Amaro (UNISA) e membro pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA). Para consultar demais publicações da autora: https: / / usp-br.academia.edu / JulianaHora. E-mail: [email protected]

Maria Aparecida de Oliveira Silva – Doutora em História Social (2007) pela Universidade de São Paulo, com estágios na École française de Rome (PDEE / CAPES) e na Universidade Nova de Lisboa (FAPESP). Pós-Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (2010) e em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2012). Pesquisadora do Grupo Heródoto / Unifesp, do Grupo de Pesquisa em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo Antigo (Taphos / USP). Professora Orientadora Ad-hoc do PPGH / UnB e líder do Grupo CNPq LABHAN / UFPI. Para consultar demais publicações da autora: https: / / independent.academia.edu / MariaAparecidadeOliveiraSilva. E-mail: [email protected]

Vagner Carvalheiro Porto – Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. É Co-coordenador do LARP, Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (USP) no qual desenvolve pesquisa docente sobre as províncias romanas da Síria-Palestina e da Península Ibérica. É Coordenador do Grupo de Pesquisas CNPq-ARISE – Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas. Para consultar demais publicações do autor: https: / / usp-br1.academia.edu / VagnerCarvalheiroPorto. E-mail: [email protected]


HORA, Juliana Figueira da; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira; PORTO, Vagner Carvalheiro. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e literatura: diálogos possíveis / Intellèctus / 2019

As aproximações e dissonâncias entre a história e a literatura tem sido objeto de intensos debates e disputas nos últimos trinta anos, especialmente no que diz respeito à definição das fronteiras entre história e ficção, ou, dito em outras palavras, à possível trajetória autônoma da literatura em relação aos seus contextos de produção. Esse número da revista Intellèctus se propõe a aprofundar tal debate a partir de estudos de autores e / ou obras ficcionais que problematizem as fronteiras entre história e ficção. Acredita-se aqui que, se de um lado cabe historicizar a obra literária, seu autor e seus personagens, também é interessante indagar ao autor e à sua narrativa sobre os conteúdos que tensionam as determinações do tempo. Leia Mais

História e Literatura | Diálogos | 2019 

O presente dossiê teve como intuito selecionar artigos que propusessem diálogos tanto na metodologia do estudo quanto na análise da literatura considerada em suas dimensões históricas e culturais. Abordagens e perspectivas que desenvolvessem a análise de obras, formas e expressões literárias com atenção aos contextos subjacentes sejam do processo, da produção, da autoria, das práticas, do público e da recepção, da crítica e da teoria.

A seleção e organização foi um trabalho de grande aprendizagem e satisfação, pela diversidade e qualidade dos estudos apresentados. Desafio agradável e envolvente foi o de pensar uma ordem na disposição e sequência dos textos. As temáticas eram resistentes às formas mais convencionais de organização cronológica ou geográfica. A variedade também resistia a uma ordenação por categorias, tais como estudos sobre romances, teatro, relatos de viagens, memórias etc. Leia Mais

Poéticas feministas na história, arte e literatura / História – Questões & Debates / 2019

Esse dossiê reúne pesquisas e reflexões historiográficas contemporâneas que elaboram a perspectiva poética e criativa de mulheres nas artes, na literatura e na história. As elaborações das subjetividades numa dimensão de gênero, o dinamismo dos processos históricos e as críticas culturais feministas são alguns dos principais enfoques dessas pesquisas que abordam a produção cultural feminina. Os campos literário, artístico e ativista são, assim, estudados em suas articulações culturais, políticas e históricas, tendo como eixo de análise a transformação cultural incitada pelos feminismos contemporâneos, em suas intersecções com as questões étnico-raciais, de classe e geracionais. Poéticas feministas, dessa forma, podem ser encontradas em diferentes práticas discursivas, relações intersubjetivas, militâncias políticas e mais claramente nas produções artísticas e literárias. Esse dossiê, portanto, pretende refletir sobre suas especificidades, sentidos, impulsos éticos e subjetivos.

Tais reflexões advindas da elaboração epistemológica feminista no campo historiográfico e na crítica literária merecem destaque e reflexão, posto que apenas muito recentemente elas têm avultado maior espaço.[1] Os trabalhos aqui reunidos demonstram o esforço inventivo e investigativo de grande fôlego por pesquisadoras do Brasil como Norma Telles, Margareth Rago e Mônica Campo acompanhadas das argentinas Tania Diz e María Laura Rosa. Merece destaque, também, o espaço dado no dossiê para a publicação de um artigo da escritora Julia Lopes de Almeida que repousava esquecido nos arquivos nacionais. Escritora de grande fama em seu tempo, Julia Lopes de Almeida mostrava entre finais do século XIX e início do XX a necessidade premente de dissolvermos a noção de gênio artístico e de compreendermos o rico universo imaginário e político oferecido pelas mulheres. Os esforços da pesquisadora Gabriela Trevisan, junto ao da historiadora Margareth Rago para trazer esse texto a público, nos mostram, assim, como o pensamento sobre a poética feminista é assunto de longa data, com ressonante atualidade. Julia Lopes de Almeida proclamava que “tudo se pode escravizar no mundo, menos o pensamento”.

A imaginação das mulheres ganhou espaço de reflexão crítica por meio da História Cultural, ao lado dos debates de gênero e pósestruturalistas, que advogam a necessidade de investigarmos as contracondutas para utilizarmos o conceito foucaultiano, existentes em formas de vida ligadas às artes, à literatura e aos ativismos. O conceito de contracondutas permite evidenciar a arte como espaço de construção de discursos radicalmente novos e de práticas de liberdade sempre atentas às estratégias de poder-saber em nossa sociedade. [2] Norma Telles, por exemplo, aborda como a imaginação feminina sobre o reino animal, presente nas escritoras inglesas como Leonora Carrington, carrega o potencial crítico das metamorfoses, dos trânsitos interregnos e devires animais: “Bachelard lembra que é possível ultrapassar formas humanas para tomar posse de outros psiquismos, e que é preciso perceber o animal em suas funções, não em suas formas. ‘A vida animalizada é a marca de uma riqueza e de uma mobilidade dos impulsos subjetivos’ E ainda, ‘é o excesso do querer viver que deforma os seres e que determina suas metamorfoses’ (Bachelard:1995:12).” Margareth Rago, ao analisar a produção artística da italiana Carol Rama, inaugura a compreensão de como a imaginação feminista carrega sofisticadas elaborações sobre os discursos de verdade que incidem sobre os corpos femininos. Subversão do corpo, da sexualidade e do desejo são percorridos por Rago: “Aliás, a serpente é uma figura recorrente na obra de Rama, evocando continuamente a figura da primeira mulher diante da tentação do diabo e na iminência da queda. O pecado ronda as mulheres, nessas paisagens quentes, avermelhadas, chocantes dos quadros da pintora italiana.” Sua postura crítica é luminosa: “Aliás, é Rama quem afirma que ‘pecar é uma das coisas mais importantes da vida, (…) pecar é uma das coisas mais bonitas do mundo’ (RAMA apud VERGINE, 2015: 50), e assim ela se coloca no lugar do pecado para produzir rupturas e desfazer a queda.”

Mônica Campo aborda a produção fílmica das argentinas Lucrecia Martel e Albertina Carri, apreendendo suas linguagens, temáticas e perspectivas, sob a ênfase da subjetividade que: “busca compreender como o ponto de vista das narrativas incide sobre a escrita da história e expressa o tempo presente. O uso inventivo da linguagem e possibilidades do audiovisual marcam a produção destas diretoras e constroem suas especificidades enquanto artistas. Em suas obras, se destacam os temas dos conflitos, tanto aqueles referentes à violência existente no interior da família como também relativos ao trato em sociedade, instigando-nos a pensar sobre a singularidade destas como expressões contemporâneas em nossa história.” Tania Diz, abordando a década de 1970 na Argentina, problematiza revistas conectadas ao ativismo homossexual e feminista e seu espaço na arena política: “En las dos revistas se leen las huellas de la historia que tienen en sus espaldas, el feminismo y la disidencia sexual, a la vez que intervienen con una demanda subversiva en años de represión: aparecer. Tanto la afirmación inclusiva de “somos” como la versión más objetivada de “persona” apuntan a sostener el derecho a ser reconocidos como sujetos políticos y desde allí ambos hacen tambalear la certeza del heterosexismo”. María Laura Rosa apresenta os vínculos políticos e afetivos que permitiram às artistas argentinas Alicia D’Amico e Ilse Fusková elaborarem por meio do corpo, em seus trabalhos fotográficos e em sua militância feminista, críticas culturais contundentes na década de 1980: “(…) cómo la libertad sobre el propio deseo y el cuerpo femeninos podían crear otras imágenes de mujeres, diferentes a las que por entonces circulaban masivamente a través de los medios de comunicación. Los géneros del retrato y el desnudo fueron centrales para ello.”

Elen Biguelini colabora com reflexões sobre as escritoras portuguesas e o debate sobre suas visões da masculinidade no artigo “‘Fiar n’um amigo? é homem. / Tem d’essencia a falsidade’. A masculinidade na obra de Francília (Francisca Paula Possolo da Costa) e Sóror Dolores (Maria da Felicidade de Couto Browne)”; Beatriz Polidori Zechlinski e Stéfani Oliveira Verona, no artigo “Do coelho esperto à ratinha corajosa: representações de gênero nas histórias infantis de Beatrix Potter” exploram como as histórias infantis guardam visões históricas complexas, abordando as dimensões do sonho e da fantasia em Potter, e Viviane Bagiotto Botton, com o artigo “A mulher e o eterno feminino em Rosario Castellanos”, abre espaço para a análise de obras dessa importante escritora mexicana do século XX, em que são denunciados o machismo e as narrativas de violência presentes na América Latina, mas em que também se reivindicam espaços de constituição de si fora das normas sociais estabelecidas:

Meditação no umbral: Não, não é a solução / jogar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy / nem preparar o arsênico de Madame de Bovary / nem aguardar nos campos de Ávila a visita do anjo com dardo / antes de atar-se o manto na cabeça / e começar a agir. Nem concluir as leis geométricas, contando / as vigas da cela do castigo / como fez Soror Juana. Não é a solução / escrever, enquanto chegam as visitas, / na sala de estar da família Austen / nem encerrar-se no sótão / de alguma residência na Nova Inglaterra / e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson, / debaixo de uma almofada solteira. / Debe haver outro modo que não se chame Safo / nem Mesalina nem María Egipciaca / nem Magdalena nem Cemencia Isaura. / Outro modo ser humano e livre. Outro modo de ser (Castellanos, 1972)

Pensadoras feministas têm demonstrado que as poéticas das mulheres no passado e no presente constituem potentes críticas culturais, instigando a desconstrução de discursos binários e hierárquicos, inventando, sobretudo, narrativas e espaços relacionais para a atualidade. Sua pertinência, assim, repousa tanto nas ricas perspectivas teóricas apresentadas nesse dossiê, quanto no esforço de análise das produções, poéticas e práticas das mulheres no intuito de fazer ver sua potência dinâmica e inventividade de vida.

Integra também o volume uma seção aberta que conta com ricas e estimulantes reflexões, com os artigos de Rodrigo Müller Marques e Jane Márcia Mazzarino, “O audiovisual como produtor de histórias”; Fabiana de Oliveira e Maria Aparecida Avelino, “As abordagens acerca da história ibérica medieval em livros didáticos”; Rodrigo Otávio dos Santos, com o artigo “Medo, paranoia, macarthismo e o século XXI: usando o episódio 22 de Além da Imaginação em sala de aula” e o artigo de Rodrigo Cabrera e Renate Marian van Dijk-Coombes, “Desde el Cielo al Inframundo. Reflexiones sobre las representaciones corporales de Inanna y Dumuzi a partir de la evidencia iconográfica y textual”.

Assim, com grande alegria convidamos os leitores e leitoras a percorrerem as páginas desse Dossiê, abrindo espaço aos domínios transversais da criação, do sonho e do devaneio, fundamentais para nossa existência ética e política, sobretudo na atualidade brasileira, em que vemos ameaçadas conquistas feministas históricas, onde vozes de incitação à violência bradam com força cada vez maior. No entanto, as ironias sutis, as zonas de desterritorialização da arte, os espaços de lucidez e reinvenção de si, oferecidos pelas poéticas feministas, permitem-nos saber que nossas tradições femininas não serão facilmente apagadas e que a história das mulheres artistas é um campo primordial desse modo de sublevação.

Notas

1. Além dos trabalhos aqui apresentados, gostaria de destacar as fundamentais produções de Heloisa Buarque de Hollanda, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Roberta Barros e Roberta Stubs, que considero fundamentais para tal debate circunstanciado. Cf. TVARDOVSKAS, L. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015.

2. FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Luana Saturnino Tvardovskas – Departamento de História da Unicamp


TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Introdução. História – Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Diálogos / 2019

O presente dossiê teve como intuito selecionar artigos que propusessem diálogos tanto na metodologia do estudo quanto na análise da literatura considerada em suas dimensões históricas e culturais. Abordagens e perspectivas que desenvolvessem a análise de obras, formas e expressões literárias com atenção aos contextos subjacentes sejam do processo, da produção, da autoria, das práticas, do público e da recepção, da crítica e da teoria.

A seleção e organização foi um trabalho de grande aprendizagem e satisfação, pela diversidade e qualidade dos estudos apresentados. Desafio agradável e envolvente foi o de pensar uma ordem na disposição e sequência dos textos. As temáticas eram resistentes às formas mais convencionais de organização cronológica ou geográfica. A variedade também resistia a uma ordenação por categorias, tais como estudos sobre romances, teatro, relatos de viagens, memórias etc.

A estratégia foi a de considerar proximidades, paralelos, simetrias, contrastes e pontos especulares entre as perspectivas, temas e abordagens. Os artigos selecionados são desenvolvimentos de pesquisas que não se relacionam diretamente umas com as outras, são independentes, ainda que todos explorem relações entre história e literatura.

Não é o caso de se expor todas as ideias suscitadas e animadas com as leituras durante o processo de organização. Apresento apenas o roteiro das aproximações e confrontos que me ocorreram e que definiram uma ordem em meio às possibilidades.

Como abertura, em um primeiro ato, imaginei um possível diálogo entre o ciclope Polifemo e o Mercador de Veneza, de Shakespeare. Uma voz tópica do mundo primitivo e selvagem, onde reinaria a irracionalidade, as paixões e a música. Outra voz, a de uma cidade-república, em que a jurisprudência tem valor crucial e se discute se os contratos e dívidas devem seguir as letras da lei ao seu extremo. Tópicas e representações da civilização e da barbárie, que não excluem ambiguidades e inversões. Problemas relativos à diacronia e sincronia, interpretações e ressignificações.

Em um segundo ato, entram em cena o epítome Heidelberg e o romance El general en su laberinto. Uma fonte histórica, relato síntese do século XV, parte do Códice Palatino Grego, composto de quatro excertos sobre a história dos sucessores de Alexandre Magno. E um romance de Gabriel García Márquez, que mostra as contradições nas representações de Simón Bolívar em confronto com a historiografia sobre o general. Questões e polêmicas que envolvem a produção de memórias e expressões histórico-literárias, com implicações políticas, de duas personificações do poder. A fonte histórica como literatura e a imagem literária como mote historiográfico.

O terceiro ato, em verdade, seria propriamente um colóquio: far-se-ia entre as duplas Jorge Amado/Graciliano Ramos e Gilberto Freire/Pedro Nava. Os dois primeiros falam a partir de relatos de viagem, memórias e romances históricos autobiográficos, “gêneros de fronteiras” em que se expõem o engajamento político de intelectuais e suas visões sobre a URSS. A segunda dupla apresenta-se em excertos de Assombrações do Recife Velho (1955) e Baú de ossos (1972). A articulação entre elementos históricos e ficcionais perpassam as memórias, as obras e também marcam as perspectivas políticas e sociais. Nesse colóquio entra, em seu compasso, Mário de Andrade com seu caderninho de anotações de campo que usava em suas pesquisas sobre as manifestações populares e o folclore brasileiro, realizadas entre as décadas de 1920 e 1940. A observação e os estudos culturais se entrelaçam com a produção ficcional. No autor de Macunaíma, temos uma outra perspectiva literária, pode-se dizer antropológica, que dialoga, com certo viés de classe, com as perspectivas política, sociológica e memorialística dos outros literatos e intelectuais.

Concluem o dossiê duas vozes diversas do Brasil do século XIX, opostas segundo os manuais de retórica dos antigos. Simá, “romance épico” de 1857, escrito por Lourenço da Silva Araújo Amazonas, que segue os modelos da Ilíada e da Eneida. Voz em que ecoa o trágico e o estilo sublime, grandiloquente, ainda que em prosa do dezenove. Outra voz se ouve na “linguagem clara e compreensível do povo”, o cancioneiro Trovador: coleção de modinhas, recitativos, árias, lundus, etc… (1876). Apropriada ao estilo baixo, didático, humilis. Simá fala da colonização, da derrota e do massacre indígena e os lundus falam do progresso e da civilização. Curiosas inversões, ou deslocamentos, que propõem possibilidades e questões para a historiografia e para a literatura.

A sequência, descrita quase em forma de libretto, não impede aos leitores de encontrarem outros diálogos no conjunto dos artigos. A ordem aqui não é absoluta, ainda que não seja tampouco arbitrária. Pode e deve ser desconstruída, repensada, revirada.

Por fim, deixo os agradecimentos a todos os que colaboraram na realização desse dossiê: autores, avaliadores, revisores, editores e à artista Júlia Maria Antunes, cuja aquarela, como uma invocação às musas, é um belo convite à imaginação e à reflexão dos leitores.

Marco Cícero Cavallini –  Universidade Estadual de Maringá, UEM, Brasil. E-mail: [email protected]

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Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura / Varia História / 2018

Este dossiê é resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores que tem se abrigado sob um título amplo o suficiente, mas também claro o suficiente, para o recorte de seu objeto: “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Composto basicamente por historiadores que trabalham com história da imprensa, história da historiografia, história dos intelectuais, história do livro e da leitura e história das ciências, o grupo é também integrado por estudiosos da literatura e das ciências sociais.

Há alguns anos, membros do grupo vêm se debruçando sobre uma questão chave da área de investigações denominada história dos intelectuais, em cuja abordagem os intelectuais estão sempre imersos em redes de sociabilidade que os situam, inspiram, demarcam e deslocam através do tempo / espaço. Uma das contribuições importantes dessa abordagem é a maneira como se define (ainda que de forma fluida) a figura do intelectual. Entendido como um sujeito histórico que se envolve na produção cultural de bens simbólicos, sendo reconhecido por sua comunidade de pares, o intelectual, em uma acepção mais ampla, também é aquele que se volta para práticas culturais de difusão e transmissão, ou seja, que faz “circular” os produtos culturais em grupos sociais mais amplos e não especializados, razão pela qual pode ser identificado, entre outras possibilidades, como vulgarizador ou divulgador. As dificuldades, mas também as potencialidades de se investir em pesquisas para explorar a categoria de intelectuais e de intelectuais mediadores fizeram com que a maioria dos autores desse dossiê tenha participado do projeto de um livro, intitulado, Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos, organizado por Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen.[1]

A possibilidade do grupo – naturalmente reconfigurado, mas sempre aberto – continuar e avançar na investigação sobre a questão das práticas culturais de mediação e dos perfis dos intelectuais mediadores se renovou e ganhou força com o convite para participar de um projeto maior, “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”, coordenado por Isabel Lustosa (FCRB) e Tânia de Luca (UNESP / Assis). Ora, o objetivo principal deste projeto era justamente aproximar pesquisadores que se dedicassem ao estudo da imprensa brasileira – jornais, revistas e almanaques – neste período de tempo, seja em âmbito local ou nacional, sem desconhecer sua necessária inserção no contexto internacional.

Como uma das orientações de nosso grupo era trabalhar teoricamente com uma gama de sujeitos históricos que atuava fortemente na imprensa escrita – embora não exclusivamente – realizando nela suas ações de mediação cultural no campo científico, artístico e político, integrar uma grande rede voltada para o estudo da imprensa adequava-se perfeitamente aos nossos objetivos. Isso significava aproximar esses intelectuais mediadores das atividades jornalísticas (inclusive, porque muitas vezes eles eram jornalistas), mas também demarcar o tipo de atuação que tinham na imprensa, pois, o que desejamos destacar é a atenção que davam a práticas culturais explicitamente voltadas à divulgação de ideias e conhecimentos para públicos variados. Até porque, para se trabalhar com o papel dos periódicos faz-se necessário um conjunto de atores entendido como muito diferenciado, já que se envolve diretamente tanto na feitura material dos impressos como na produção das ideias que eles propagam, o que exige uma grande preocupação com estratégias de promoção de seus títulos e de atração de públicos, segmentados ou não. Daí a importância da ação de editores, livreiros, escritores, jornalistas, tradutores, ilustradores, críticos literários e teatrais etc, muitos deles, embora não todos eles, podendo ser considerados intelectuais dedicados e até mesmo especializados em práticas de mediação cultural.

Se o interesse de fundo do projeto “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX” é detectar e acompanhar a circulação dos títulos, formatos, propostas gráficas, organização do material textual e imagético, e também dos conteúdos publicados; o objetivo específico do subprojeto “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura” é trabalhar com a relação entre imprensa e intelectuais que estejam se dedicando à mediação cultural, situando, nessa dinâmica, o teor extremamente diversificado de seus temas, bem como as múltiplas formas assumidas por suas práticas (direta ou indiretamente ligadas aos periódicos), sempre entendidas em dupla dimensão: política e cultural.

Nesse sentido, a opção teórica realizada pelos artigos que compõem este dossiê é tratar esses intelectuais que estão atuando como mediadores culturais na imprensa, como sujeitos orientados por projetos individuais e coletivos que possuem dimensões políticas e socioculturais, e que sempre estão imersos em redes de sociabilidade diversas, fundamentais para a conformação de seu perfil de intelectual. Sendo assim, a figura dos mediadores culturais e suas formas de ação na imprensa se tornam o foco principal das reflexões dos pesquisadores que colaboram para o dossiê, aliando-se ainda ao enfrentamento de outra questão.

Nas pesquisas históricas recentes que contemplam a relação entre imprensa e mediadores culturais, destacam-se aquelas que apontam a centralidade dessa combinatória para se entender melhor os processos de fabricação e circulação de ideias, valores e conhecimentos no espaço e no tempo, na medida em que, por meio dela, é possível privilegiar seus múltiplos agentes e suas variadas formas de ação, que se beneficiam, crescentemente, do lugar estratégico do impresso no século XIX e XX. Dito de outra forma, o impresso funcionou, durante a maior parte desses séculos, como um vetor incontornável para qualquer projeto político-cultural de produção e divulgação de ideias e conhecimentos.

Por isso, a questão teórica da mediação cultural exige investigações que contemplem a imprensa escrita, lócus de debates e, sobretudo, da ação de divulgação para um público diversificado e não especializado. No caso deste dossiê, interessa atentar para processos e estratégias de divulgação que abarquem as artes (com ênfase para a literatura) e as ciências – quer as ciências da natureza quer as ciências sociais – com particular destaque para a história e, no caso do Brasil, para os chamados estudos brasileiros. Tal tratamento enfatiza a dimensão político-pedagógica dessas ações, ao menos para parte desses mediadores culturais que “militavam” na imprensa, acreditando na possibilidade e viabilidade de permitir a um público mais amplo acesso ao conhecimento científico e artístico, quando estampado de maneira acessível nas páginas dos periódicos. Uma proposta que guardava relações com uma “concepção democrática de ciência” então vigente. Isto é, da defesa do conhecimento “para todos” e / ou para públicos geralmente menos contemplados, como os trabalhadores, as crianças e, no limite, o “povo” de uma nação que desejasse ser moderna.

Os textos reunidos no dossiê foram apresentados, entre outros, no workshop de mesmo nome do subprojeto, “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Ele foi realizado na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, em 30 de outubro de 2017. Assim como na proposta do evento, o dossiê busca explorar algumas possibilidades de análise de práticas de mediação cultural na imprensa, a partir de dois caminhos que, embora possam ser tratados separadamente, acabam se interpelando por muitas vias: o de uma história da divulgação científica; e o de uma história dos intelectuais aliada à história da historiografia. Em um primeiro plano, dá-se destaque aos mediadores das ciências da natureza e da ciência histórica em suas diferentes estratégias de divulgação, cuja legitimação ou “popularização” pela imprensa, impôs determinadas hierarquizações frente aos saberes – academicamente constituídos. Nesse sentido, Kaori Kodama apresenta um estudo de caso sobre o intelectual Louis Figuier – um dos vulgarizadores das ciências mais reconhecidos da segunda metade do século XIX – cujo nome circulou na imprensa brasileira até ao menos a primeira metade do século seguinte. Por meio da trajetória de Figuier, que fez de sua atividade um meio de vida e de carreira, o texto conduz a reflexões sobre uma das questões centrais sinalizadas na historiografia sobre divulgação científica: a dupla posição / identidade dos vulgarizadores desse período, que são vulgarizadores e também autoridades que falam em nome da ciência. Paralelamente, o artigo pretende mostrar como o público de Figuier se modificou ao longo das décadas de 1850 e 1870, conforme se dava a maior circulação de seus textos. Assim, busca-se apresentar alguns aspectos das relações entre as variações do público leitor e o estabelecimento de novas culturas científicas.

Por um ângulo um pouco diferente, mas também tratando da divulgação do conhecimento científico nas publicações brasileiras, ao longo do século XIX, o texto de Maria Rachel Fróes da Fonseca procura mapear jornais e revistas, apontando-os como significativos loci para a afirmação da ideia de uma “ciência para todos”. Nessa perspectiva, apresenta um conjunto de periódicos dedicado à “vulgarização das ciências” e à promoção da instrução, dirigido e redigido por intelectuais mediadores. Entre eles estão A semana: Jornal litterario, scientifico e noticioso; a Academia popular – Semanário de Instrucção e Recreio para o Povo; e a Sciencia para o povo. A ideia do valor central da ciência e da educação para o Brasil era difundida nas páginas de muitos destes periódicos. O artigo igualmente ressalta a importância do pensamento de Rui Barbosa em relação ao ensino da ciência e ao método, na época, considerado mais adequado para seu ensino: o das lições de coisas.

Uma atenção particular é dada ao próprio suporte ou veículo através do qual alguns mediadores criaram seus bens culturais e se consagraram diante de seus públicos. Os vulgarizadores das ciências (como eram chamados) atuaram na imprensa das últimas décadas do século XIX e certamente se inseriram e se beneficiaram de uma conjuntura de crescimento da leitura. Alguns jornais e revistas chegaram a ter uma seção de ciências em suas páginas, e outros passaram a se dedicar exclusivamente a esses assuntos, adotando uma linguagem mais compreensível para a população em geral, o que também ocorria com a publicação de livros. Pode-se dizer, portanto, que no momento em que se ampliava o acesso aos impressos e se discutia, nos países ocidentais, a “educação popular”, os mediadores tornavam-se, eles mesmos, produtores de novas modalidades de bens culturais dentro da mídia impressa e, também, autores de um novo tipo, produzidos por esse mesmo suporte. Assim, transfiguravam-se em intelectuais altamente reconhecidos por seu público, bem como por aqueles que realizavam a crítica de seus textos na imprensa, valorizando-os ainda mais.

Porém, as características da consagração de um intelectual mediador quer pelo público, quer pela crítica – o que, em certo sentido, pode ser avaliado por sua capacidade de “popularizar” um determinado saber – podem ser encontradas também na primeira metade do século XX, como no artigo de Angela de Castro Gomes, que trabalha com o texto e a recepção da peça, A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, estreada em 1938. Nesse caso, o teatro histórico, enquanto texto e encenação, é que ganha destaque, estimulado pelo Estado Novo, então promovendo a nacionalização do ensino e a valorização do conhecimento histórico, que devia ser divulgado a partir de novas e variadas mídias. A Marquesa de Santos foi uma entre diversas produções de teatro histórico desse período a fazer muito sucesso. A numerosa e, em geral, elogiosa crítica publicada na imprensa permite tanto uma aproximação do espetáculo como a realização de reflexões sobre: o tipo de cultura histórica que estava então sendo construída e difundida; o tipo de batalhas de memória que eram travadas, quando um projeto nacionalista de Estado precisava “negociar” com eventos e heróis já conhecidos e consagrados; e o tipo de diálogo que se estabelecia entre uma escrita da história científica e uma escrita da história de teor cívico-patriótico, dirigida a um grande público, diálogo que, nesse caso, beneficiava-se do vetor das artes cênicas. Ambas, na verdade, em processo de construção e afirmação e, portanto, de discussão, dentro e fora das instituições acadêmicas.

Com o artigo de Angela de Castro Gomes, o dossiê começa a enveredar pelo segundo caminho nele contemplado, a saber, o que lida mais de perto com o enfoque dos estudos brasileiros e da história da historiografia. Se um dos interesses deste dossiê é o de situar a própria imprensa como objeto de análise, vislumbrando nela as possibilidades e significados da atuação dos mediadores culturais, é fundamental atentar para tudo que a estrutura e organiza materialmente, tal como os suplementos, as seções, os anúncios, as colunas, as fotografias, as manchetes, os encartes etc. Assim, Robertha Triches, volta-se para a coluna – “Terras de Nossa Terra” – do jornal, A Voz de Portugal, um entre os muitos periódicos da imprensa étnica que circulava pelo Brasil em meados do século XX. Mostra também como essa forma de imprensa se relacionava com o desenvolvimento de outras mídias populares à época, em particular, os programas de rádio. O jornalista e escritor encarregado da coluna era José Correia Varella, um imigrante português que por décadas se dedicou às mais diversas atividades culturais, tendo uma vasta rede de sociabilidade tanto entre a intelectualidade carioca como entre a vasta colônia portuguesa do Rio de Janeiro. Nesta coluna, ele se dedicou especialmente às históricas relações políticas e culturais entre Brasil e Portugal, celebrando a figura de Salazar e se transformando em um agente de propaganda do Estado Novo português no Brasil.

Por fim, Robert Wegner e Giselle Venancio elaboram uma instigante análise sobre o gênero do ensaio, a partir de uma série de artigos publicados no Suplemento Literário doDiário de Notícias, entre 1948 e 1950, com especial atenção para os escritos por dois intelectuais reconhecidos e festejados no momento em que escrevem: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Os debates sobre esse gênero de escrita histórica, travados entre eles, nas páginas do jornal (portanto, lidos por um público não acadêmico), abrem uma janela para um período muito especial: o da implementação das pesquisas históricas em instituições universitárias no país. Um período de mudanças e deslocamentos, com as decorrentes redefinições dos lugares do intelectual acadêmico-universitário e, por conseguinte, do erudito que estava “fora” dessa nova rede de sociabilidade, distinta das associações de pares até então dominantes, a exemplo dos institutos históricos e geográficos.

As diversas caixas de diálogo abertas neste dossiê esperam por contribuições e esforços, individuais ou coletivos, para que melhor possamos compreender o complexo perfil do intelectual que se delineia, quando consideramos que diversificadas práticas de mediação cultural são igualmente parte constitutiva de sua identidade. Algo que, como fica aqui demonstrado, não é tão novo, mas que se torna urgente e quase incontornável no mundo mediatizado em que vivemos no século XXI. Que a leitura do dossiê seja um convite estimulante e convincente.

Nota

1.. GOMES; HANSEN, 2016. O livro recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, na categoria Ensaio Social, atribuído pela Biblioteca Nacional em 2017.

Referência

GOMES, Angela de Castro e HANSEN, Patrícia. Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. [ Links ]

Angela Maria de Castro Gomes – Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 

Kaori Kodama – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-5327-2689

Maria Rachel Fróes da Fonseca – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-0865-2436


GOMES, Angela Maria de Castro; KODAMA, Kaori; FONSECA, Maria Rachel Fróes da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.66, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Arte e Literatura na Amazônia Global / Faces da História / 2018

Neste dossiê estão reunidos estudos acerca da arte e da literatura na Amazônia, aproximando pesquisadores interessados em problematizar os processos de criação, circulação, apropriação e consumo da arte e da literatura, assim como refletir sobre sua condição de fonte histórica. Rejeitamos o pensamento que, por um lado, interpreta a arte e a literatura como um universo autônomo, estudados por si mesmo e, por outro, considera-as como mero reflexo do seu contexto, isto é, consideramos que a obra expressa um processo ativo. Dessa maneira, deve-se relacionar o objeto de análise ao seu contexto, entendendo-o como interação social e não determinado por ela, pois compreendemos a arte e a literatura como expressões de cultura, não em sua totalidade harmônica, mas como zona de conflitos, contradições e oposições existentes no universo social. O autor, a obra e o observador adquirem significado quando colocados em seu contexto material e temporal, assim como a obra adquire uma maior significação quando entendida como parte da totalidade histórica.

Desta forma, temos a intenção, com este dossiê, de desconstruir antigos estereótipos que vislumbram a Amazônia, nascida, desde o século XVI, através do olhar do europeu sob o signo margem da margem do mundo, Eldorado: misto de espanto e expectativa (reduto de riquezas materiais), outrossim, na contemporaneidade, por conta de um exotismo herdeiro do oitocentos, apenas como terra de indígena, vazio populacional, localidade de violência, de florestas selvagens e animais perigosos. Interessa-nos expandir a historiografia da Amazônia como condições de possibilidades onde a voz dos artistas e intelectuais contribuíram com a criação / elucidação de identidades e realidades que por vezes são desconhecidas pela região centro-sul do país. Nessa medida, a intensão do dossiê é trazer à balia a Amazônia na sua alteridade. Daí a polifonia perceptível no conjunto de artigos que reunimos nessa coletânea.

Assim, sobre literatura, temos três artigos. Fadul Moura analisa o livro intitulado Frauta de Barro (2011 [1963]), de Luiz Bacellar, em dois momentos específicos: a visão do poeta acerca da cidade de Manaus e a presença poética de autores nacionais e internacionais em sua obra. Enquanto o autor baliza as tradições manuseadas por Bacellar a partir de sua “memória colecionadora”, vai deixando entrever a intenção do poeta em escapar da configuração tradicional do exótico em relação à Amazônia. Marinilce Oliveira Coelho examina a complexa relação entre a literatura e a memória na obra da escritora modernista paraense Sultana Levy Rosenblatt (1910-2007) a partir de elementos do testemunho pessoal e familiar de sua herança judaica. Observando por uma ótica histórica e literária, perpassa pela análise de diversas questões, como o movimento migratório de judeus para a Amazônia no final do século XIX e o antissemitismo. Matheus Villani Cordeiro, ao se basear na literatura produzida por relatos de viagem, apresenta a obra A Amazônia que eu vi: Óbidos – Tumucumaque (1930), de Gastão Cruls, para compreender a perspectiva deste em relação ao espaço amazônico e as influências que propiciaram a produção etnográfica a partir de sua obra.

Outra questão que se mostra importante no dossiê são as relações de intelectuais e artistas da Amazônia com escolas e movimentos artísticos europeus. Assim, João Augusto da Silva Neto apresenta as relações artísticas ocorridas entre o Brasil e a França na primeira metade do século XX por meio do pintor Manuel Santiago, amazonense, que viajou a Paris em 1928 com a finalidade de estudar arte. A partir de uma profunda análise da tela Tatuagem (1929), o autor discute o lugar de Paris no Brasil com base nas noções de centro e de periferia artísticas. Silvio Ferreira Rodrigues apresenta o vínculo entre o ambiente artístico paraense e a Itália, demonstrando que durante o Segundo Reinado Brasileiro a Amazônia foi palco de intenso intercâmbio cultural com o cenário artístico italiano pois, além de receber objetos de arte, artistas e inovadores movimentos estéticos, enviava para as academias italianas aspirantes a artistas, provendo intenso diálogo no campo das artes entre Brasil e Europa. Também em relação ao encontro com a Itália, Amanda Brito Paracampo analisa o meio artísticomusical belenense em relação à música operística e lírica em finais do século XIX e início do XX por meio de companhias italianas que se apresentavam no Teatro da Paz e da trajetória do maestro italiano erradicado em Belém, Ettore Bosio, em cuja modernidade musical incluía o folclorismo. Não só de encontros mas de desencontros trata Domingos Sávio de Castro Oliveira ao considerar a cidade de Belém do Grão-Pará do século XVIII enquanto local de intensa transculturação. O autor demonstra que o contato entre os saberes tradicionais e acadêmicos ocorrido entre indígenas, negros africanos, mestiços, religiosos e o arquiteto italiano Antônio José Landi deu origem a artes ornamentais e obras arquitetônicos repletas de matrizes culturais diversas adaptadas à região. Tunai Rehm, ao analisar a pintura Avenida Independência (1939), do artista belga Georges Wambach, fez uma leitura da história da cidade de Belém recorrendo a um encontro entre duas épocas, 1986, início do governo de Antonio Lemos, e 1939, ano da produção da tela.

As festas e folias como representações culturais e artísticas foram objetos de dois artigos. Letícia Souto Pantoja apresenta diversos festejos, círculos de sociabilidade e artísticos provenientes dos setores populares que habitavam Belém entre 1920 e 1940, período de decadência da borracha e aumento da miséria de grande parte da população do Norte. A autora demonstra que este período também foi de efervescência cultural articulada pelas camadas trabalhadoras pobres, culminando em muitas práticas festeiras cotidianas, como o boi bumbá e as pastorinhas. Já Leandro de Castro Tavares e Oseias de Oliveira pautam-se nas folias de santo nas áreas remanescentes de quilombos do município de Óbidos, Pará, resgatando seus traços étnicos enquanto cultura afro-brasileira. Além disso, ao discutir as dispersões escravas pela região e a formação de quilombos, apresentam cantos, folias e ladainhas das Folias de Santo que foram importantes para a formação de suas identidades.

Por fim, o cinema e o museu tem papel importante na cristalização de ideias e ideários e não poderiam ficar de fora. Para isto, Carlos Gabriel Sardinha de Medeiros analisa o filme Iracema, uma transa amazônica (1974) a partir de seu contexto de ditadura militar e de construção da Rodovia Transamazônica. Enfoca, no artigo, nas representações e alegorias apresentadas pelo filme que fizeram com que fosse censurado haja vista que apresentava, em tom de denúncia, o modo de vida da população amazônica na beira das estradas, assim como a caracterização dos indígenas enquanto entrave à modernização do país. Baseando sua análise em um guia de exposição chamado “Amazônia Urgente – cinco séculos de História e Ecologia”, Ellen Nicolau evoca narrativas e imagens que foram essenciais na ruptura de paisagens genéricas que estereotipam a Amazônia. A autora traz uma Amazônia enquanto fruto de conexões e materialização de diversidades históricas, assim como contribui para se pensar, a partir das exposições, sobre problemáticas ambientais e indigenistas.

Desejamos a todos uma excelente leitura.

Heraldo Márcio Galvão Júnior (UNIFESSPA)

Ana Clédina Rodrigues Gomes (UNIFESSPA)

Aldrin Moura de Figueiredo (UFPA)

Arcângelo da Silva Ferreira (UEA)


GALVÃO JÚNIOR, Heraldo Márcio; GOMES, Ana Clédina Rodrigues; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; FERREIRA, Arcângelo da Silva. Apresentação. Faces da História, Assis, v.5, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Estudos Históricos / 2017

História e Literatura Afinidades eletivas? A literatura nos pródromos da História

A escolha de um dossiê para a revista Estudos Históricos costuma levar em consideração ao menos três aspectos: o ineditismo de determinado tema, sua relevância na historiografia contemporânea e a aderência às linhas de pesquisa do CPDOC. A introdução de um assunto inédito pode causar certa surpresa aos próprios editores, sobretudo quando se deparam com esta ou aquela lacuna temática em um periódico que já conta com quase 30 anos de existência. Ausências em áreas centrais de atuação da “casa” tendem a chamar mais atenção, como ocorreu com “Patrimônio” (n. 57, 2016), dossiê que tardou a ser contemplado num conjunto de mais de 60 números publicados.

Algo semelhante parece ter-se passado com “História e Literatura”. Escritores e suas obras, movimentos literários e suas revistas, redes de sociabilidade e sua circulação de ideias estiveram presentes na agenda da instituição desde antes da criação da revista, em 1988. Em parte, o interesse pela literatura derivou do próprio material que compõe o acervo original do CPDOC. Arquivos inicialmente voltados para as elites e para a história política traziam consigo a visão de bacharéis, jornalistas, ensaístas e polígrafos, entre os quais se encontravam, não raro, romancistas, poetas e toda sorte de homens de letras.

Fontes primárias do arquivo privado de Gustavo Capanema, por exemplo, são pródigas em informações sobre a atuação pública de Carlos Drummond de Andrade na chefia de gabinete do Ministério da Educação e Saúde (MES) entre 1934 e 1945. Com base neste e em outros arquivos, mobilizaram-se diversos investimentos de pesquisa, que resultaram em livros como Guardiães da razão: modernistas mineiros, de Helena Bomeny, Essa gente do Rio: modernismo e nacionalismo e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo, os dois últimos de autoria de Ângela de Castro Gomes.

Enquanto Helena Bomeny se deteve nas especificidades e nas raízes da geração mineira que tomou parte no modernismo dos anos 1920 e 1930, Ângela de Castro Gomes, professora emérita do CPDOC, dedicou-se em História e historiadores à análise dos escritos de Graciliano Ramos para o periódico estadonovista Cultura e Política. Já em Essa gente do Rio, a autora estudou revistas, prosadores e poetas do movimento simbolista no Rio de Janeiro, grupo literário ligado tanto à linhagem espiritualista mais conservadora da intelectualidade católica radicada na capital da República quanto ao efervescente projeto estético modernista, em contraponto aos próceres mais conhecidos do modernismo de São Paulo.

Para ficar apenas com esses exemplos, trata-se de documentos e de produções relevantes, porquanto contribuíram para iluminar questões centrais da vida republicana brasileira. Durante mais de quatro décadas, pesquisadores do CPDOC envidaram esforços coletivos para analisar a dinâmica do pensamento social no Brasil da primeira metade do século XX, dentro da qual se inscrevia uma galeria de literatos envolvidos com a vida intelectual e com a esfera pública do país.

Apesar disso, um olhar retrospectivo pelas edições anteriores da revista não identifica um dossiê consagrado à literatura. Chega-se, quando muito, a lograr aproximações, mediante interesses afins ou mais amplos, como foram os números dedicados a “Viagem e narrativa” (n. 7, 1991), a “Intelectuais” (n. 32, 2003) ou a “Arte e História” (n. 30, 2003). Neste último, entretanto, a literatura sequer comparece, com textos em sua maioria voltados para a arquitetura, a pintura e a música, entre outras expressões, linguagens e manifestações artísticas.

Uma visada mais benevolente seria, no entanto, capaz de reconhecer que, embora lhe falte uma edição exclusiva, o interesse literário reponta aqui e ali no corpo da revista, disperso ao longo de suas dezenas de números e de suas centenas de artigos. Sem a preocupação de um levantamento exaustivo, é possível compulsar pouco mais de 20 artigos acerca do tópico. Machado de Assis, Oliveira Lima, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Paulo Prado e Murilo Mendes, entre outros, pontificaram na revista no decorrer de 60 números.

Temas “clássicos” da vida literária foram abordados, tais como o modernismo, a identidade nacional e a sociabilidade urbana. Assuntos menos centrais também se fizeram presentes e deram a conhecer a literatura regional no Rio Grande do Sul, o movimento modernista na Amazônia, o novo romance histórico no Brasil, o gênero autobiográfico e memorialístico, a questão do sujeito na narrativa, a correspondência epistolar, os concursos literários, os projetos enciclopédicos, a presença de literatos na diplomacia, o neorrealismo em Portugal e a sociologia da literatura.

Mas o ineditismo no histórico da revista e a aderência às áreas de concentração da instituição que a publica não bastam para justificar a decisão em favor de um dossiê. A relevância da questão na contemporaneidade é fundamental para sua escolha como tema. Neste sentido, é sabido que as gerações de historiadores formadas no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século XXI vêm enfrentando o problema epistêmico da escrita da história. Esta questão vem de par com a polêmica em torno das fronteiras da narrativa historiográfica em face da literatura e, mais precisamente, da ficção.

Desde a chamada “virada linguística” nos idos de 1970, como se sabe, revolve-se a antiga querela que opõe o mito à ciência e avança-se nos questionamentos filosóficos de um Michel Foucault ou de um Paul Ricoeur acerca das maneiras de narrar dos historiadores profissionais. Em paralelo, a teoria literária estadunidense, com Hayden White e Dominick LaCapra à frente, aprofundou ainda mais a crítica aos fundamentos epistemológicos da narração na história e postulou o protagonismo da linguagem figurada e da imaginação no processo de reconstituição do passado histórico. Em razão disto, assestaram-se as baterias contra estatutos canônicos da ciência e buscou-se desconstruir a técnica tradicional de composição de textos científicos.

De sua parte, longe de apenas rebater ou esquivar-se defensivamente das críticas, a História procurou nos últimos decênios ser também propositiva e ampliar seus domínios. Para tanto, em meio à decantação da interdisciplinaridade e à própria renovação da historiografia em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e mesmo Itália, os historiadores penetraram na seara antes exclusiva dos Departamentos de Letras.

Com efeito, munidos de pressupostos teóricos da Sociologia para fustigar a redoma estetizante das belas-letras – evoquem-se tão-somente o Flaubert de Pierre Bourdieu e o Kafka de Pascale Casanova –, os historiadores apropriaram-se a seu modo da literatura como objeto de estudo. Desde então, interpelam as formas materiais e simbólicas de fruição do livro, examinam as práticas e representações da leitura, preconizam o polo da recepção na compreensão mais plena do sistema literário, emulam o desenvolvimento de subáreas como a história literária, a história social e a história cultural.

A falta de consenso gera ruídos de comunicação de ambas as partes. Grosso modo, para a crítica literária de extração acadêmica, o imbróglio diz respeito à utilização documental, por assim dizer, que o historiador pode fazer da ficção. O fato de um romance, um poema ou um conto ser considerado fonte, documento ou testemunho para escrutínio da História tende a ser visto como reducionista por críticos e teóricos do métier.

A comunidade de historiadores, por sua vez, rechaça de maneira taxativa a redução das suas atividades à produção de enredos mais ou menos arbitrários, mais ou menos fictícios. Embora o britânico R. G. Collingwood entrevisse, no livro A ideia de história, de princípios do século XX, as afinidades eletivas entre o romancista e o historiador, para os profissionais da História as categorias temporais não são artefatos ou construtos mentais a serviço da verossimilhança ou da trama romanesca. Cumpre, segundo eles, refutar o argumento de que o tempo constitui uma variável neutra na narrativa, mero adorno ou pano de fundo a emoldurar a ação dramática, destituído de dinamicidade e de significado social mais amplo.

A recusa à condição fática de registro do real, por meio do material ficcional, leva, pois, a infindáveis controvérsias acerca dos condicionantes do imaginário de um escritor, que se acredita idealmente autônomo, coerente e indiviso. Tais discordâncias acionam tensões, quase sempre regidas sob a égide de uma razão dualista. Esta tanto une quanto separa vida e obra, texto e contexto, reflexo e autonomia, imanência e transcendência, matéria e espírito, real e imaginário, documento e monumento, numa palavra lukácsiana: forma literária e processo social.

Uma exceção nessa cena é Antonio Candido, cujo método dialético, amadurecido entre os anos 1950 e 1970, procurou superar o binarismo estruturalista e, com ele, a suposição apriorística de um “dentro” versus um “fora” do texto. Ao propor um terceiro eixo sintético, Candido tinha como premissa a necessidade de um esquema analítico ternário, pois tencionava dar conta do sistema literário triangular: autor – obra – público. Nesta esteira, perseguiu, nos ensaios antológicos que se sucederam a Formação da literatura brasileira, uma síntese capaz de fundir os pares antitéticos invocados por “internalistas”, de um lado, e “externalistas”, de outro.

A despeito das tentativas conciliatórias, o peso dos referentes internos versus externos compele historiadores e teóricos literários a debater não apenas os contornos como também os nervos da criação de uma obra de arte. A fatura literária continua a ser apreciada ora em função da intencionalidade do autor e da lógica interna que conforma a mimesis, ora em virtude dos nexos sociológicos que demandam a realidade, o cotidiano, a memória, o verossímil, a experiência vivida, narrada e transfigurada.

O presente dossiê almeja ser uma ocasião para a atualização de um debate cujas implicações teóricas e conceituais permanecem a desafiar a historiografia e a epistemologia nos de dias de hoje. A impossibilidade de esgotá-lo ou de superá-lo em suas discussões mais controversas não impede de reconhecer os rendimentos analíticos, bem como os avanços das várias frentes de pesquisa nesse âmbito.

Se as Ciências Humanas e Sociais lidam com o assunto desde a segunda metade do século XX, informadas por vertentes críticas que vão do marxismo ao estruturalismo, do funcionalismo ao culturalismo, da fenomenologia à semiótica, da filologia ao existencialismo, da estética da recepção ao círculo hermenêutico, dos cultural studies aos estudos pós-coloniais, a historiografia nacional principiou a se debruçar sobre a temática somente a partir dos anos 1980.

A proposição de um ponto de partida é sempre um risco, com eventuais omissões ou injustiças, mas seria o caso de arriscar aqui apontando a publicação de Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983). A tese de doutoramento de Nicolau Sevcenko, defendida em 1981 na USP, configura uma espécie de momento fundante de uma perspectiva intelectual-cultural calcada na literatura.

De início o impacto do livro foi diminuto no interior da comunidade científica, mas a repercussão mostrou-se significativa fora da universidade, junto ao público leitor não acadêmico e aos meios editoriais. Estava-se diante de uma primorosa reconstituição da trajetória intempestiva de dois literatos-missionários, Euclides da Cunha e Lima Barreto, a contrastar, cada um a seu modo, o teor de suas “ideias em movimento” com os ideais reacionários dos conservadores de seu tempo.

De forma mais orgânica e institucionalizada, o estudo acadêmico da literatura se consolidou no cenário universitário durante os anos 1990 e 2000. No âmbito da pós-graduação em História, merece destaque a atuação de um grupo de pesquisadores reunidos na Unicamp. A convergência entre as linhas de pesquisa da História Social do Trabalho e da História Social da Cultura permitiu que investigadores de ponta da área renovassem interpretações consagradas. Estas evidenciaram uma capacidade de formular questões e fontes próprias do ofício do historiador, para lançar luzes menos reverentes sobre ícones da literatura, a exemplo de Machado de Assis ou de Coelho Neto.

Dissertações e teses defendidas na Unicamp, muitas delas publicadas em livro, vêm contribuindo para um conhecimento sólido, produzido coletivamente nesse centro universitário. Seus egressos têm dado continuidade ao debate, mediante, por exemplo, a organização de sucessivos Simpósios Temáticos nos encontros da ANPUH, “Literatura, História e Sociedade”, estimulando a formação de jovens discentes em nível de mestrado e doutorado e ensejando a sua renovação geracional.

Longe de ser um polo único e exclusivo, via de regra adstrito ao eixo Rio – São Paulo, outros programas pós-graduação em História têm-se notabilizado por linhas de pesquisa com esse foco. Bastaria lembrar universidades federais e estaduais de cidades como Belém, Florianópolis, Goiânia, Ouro Preto, Porto Alegre, Recife, Salvador, Teresina e Uberlândia, entre outras, para aferir uma realidade que é hoje plural e multifacetada.

O presente dossiê pretende ser também uma amostra de tal diversidade. Enfeixa-se a seguir um total de dez textos, publicados após um notável número de submissões recebidas e avaliadas por quase duas centenas de pareceristas. A marca interdisciplinar, cultivada pela revista, faz-se igualmente perceptível neste número, com a abertura para abordagens que não se restringem a esta ou aquela escola de pensamento, a esta ou aquela filiação departamental, a este ou aquele recorte histórico.

Num arco temporal que vai do século XVI à contemporaneidade, e num horizonte espacial que não se limita à fronteira nacional, a díade história-literatura encontra aqui um apanhado do estado da arte do universo literário, tal como vem sendo estudado em determinados programas de pós-graduação do país. Fornecem-se elementos para entender como os estudiosos das gerações atuais têm respondido, por meio de estudos de caso e de trabalhos empíricos – valendo-se de obras, cartas, arquivos, manuscritos, jornais, biografias, memórias, escritas de si, correntes estéticas, traduções, edições e reedições –, ao conjunto de questões sumariamente esboçadas acima.

Além dos textos submetidos e aprovados na seção “Artigos”, este dossiê dá espaço para a série “Colaboração Especial”, com o artigo assinado pelo professor Roger Chartier, do Collège de France. Trata-se de versão apresentada pelo historiador francês em palestra proferida no CPDOC em 2013, quando da comemoração dos 40 anos da instituição, na abertura da quarta edição do Ateliê do Pensamento Social, evento promovido pelo Laboratório de Pensamento Social (LAPES).

Na ocasião, conforme consta do texto aqui publicado ineditamente em língua inglesa, Chartier revisitou o cerne de suas inquietações intelectuais ao perquirir as formas de comunicação facultadas pelas correspondências epistolares no alvorecer da Idade Moderna europeia e ao indagar a tensão das formas literárias com a cadeia comunicacional emissor / mediador / receptor, na esteira do advento da tipografia e da imprensa, nos séculos XV e XVI. Chartier analisa ainda a irrupção da figura autônoma do Autor na chamada República das Letras francesa, entre os séculos XVII e XIX. Considera, para tanto, seus corolários imediatos, quais sejam, a consagração da ideia de indivíduo e a conversão da noção de autoridade em autoria intelectual personalizada na Era Moderna.

Por último, mas não menos importante, a seção “Entrevista” traz o depoimento transcrito e editado de Heloísa Starling, professora titular do Departamento de História da UFMG, concedido a mim e ao professor Marcelino Rodrigues da Silva (Dep. Letras / UFMG) em fevereiro de 2017, na cidade de Belo Horizonte. Em seu percurso acadêmico, sempre sensível à sonoridade e à poética das criações artísticas, as reflexões da entrevistada vêm ao encontro do presente volume, ao rememorar a experiência de realização de sua tese de doutorado, que versa sobre a obra magna de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

Referências

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: [email protected]

Editor convidado.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.62, set. / dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e literatura (13ª Jornada de História Cultural) / História em Revista / 2017

Prezado (a) leitor (a),

É com satisfação que disponibilizamos aos leitores da História em Revista, publicação do Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas, os trabalhos apresentados na 13ª Jornada de História Cultural – História e Literatura. O evento, organizado pela Gestão 2016-18 do GT História Cultural RS [1], vinculado à ANPUH em sua Seção RS, foi realizado em Porto Alegre em 31 de agosto e 01 de setembro de 2017, no Santander Cultural.

O presente dossiê temático é fruto de uma primeira e muito bem-vinda parceria entre o GT História Cultural RS e a revista do NDH da UFPel. Uma parceria que agradecemos e que almejamos seja repetida futuramente, permitindo, como agora, que as pesquisas apresentadas pelos estudantes de pós-graduação e pesquisadores pós-graduados de diferentes universidades brasileiras possam ser socializadas, ampliando o acesso público aos conhecimentos produzidos na academia e incrementando os diálogos multidisciplinares.

Este tem sido um dos objetivos da Jornada de História Cultural, evento bienal cuja primeira edição ocorreu em 1997, ano da fundação do GT História Cultural RS, que está comemorando vinte anos de atividades. As Jornadas têm sido empreendidas visando-se aprofundar uma temática previamente escolhida. A programação integra uma conferência, uma mesa-redonda e mesas de comunicações, oportunizando a divulgação e discussão das investigações. Especialistas na temática do evento são convidados para apresentar suas produções e reflexões. Neste ano de 2017, dedicamos o encontro à exploração das relações entre a História e a Literatura. A conferência de abertura foi proferida pela Profª Drª. Luciana Murari (PUCRS). Já a mesa redonda de encerramento contou com as palestras dos professores Dr. Mauro Nicola Póvoas (FURG) e o Dr. Charles Monteiro (PUCRS).

O presente dossiê, que é aberto com a conferência da Profa. Luciana, reúne onze das quinze comunicações apresentadas no evento, mantendo-se a organização original das exposições. Para a publicação, elas foram desenvolvidas e ampliadas para o formato artigo, possibilitando aos autores uma melhor elaboração das preocupações, metodologias de trabalho e resultados das suas pesquisas.

Os trabalhos selecionados investigam e problematizam as relações entre a História e a Literatura em suas diferentes possibilidades. O eixo que mais motivou estudos foi a apropriação da literatura pela história como objeto ou fonte, com suas implicações teórico-metodológicas. Outra questão que perpassou diversos trabalhos foi a do entrecruzamento dos discursos histórico e literário no âmbito de diferentes gêneros: a produção literária de conteúdo histórico, a literatura como objeto cultural e a história como matéria literária. Em boa parte das pesquisas, as reflexões sobre as relações entre o ficcional, o literário e o histórico foram motivadas por indagações relacionadas à identidade, ao imaginário e à memória. O estudo da história do livro, da impressão e da leitura, ou das práticas de produção, circulação e apropriação dos objetos e narrativas literárias, também marca presença no dossiê, contribuindo com as investigações pautadas pela percepção da literatura como fenômeno histórico e sistema de criação, produção e consumo das obras e visões de mundo. Os estudos mais instigantes e motivadores são aqueles que se situam justamente no entrecruzamento das diferentes problemáticas e linhas de pesquisa elencadas, dando conta da potencialidade dos diálogos entre a História e a Literatura para o melhor conhecimento e reflexão sobre a sociedade, em sua história e dinâmica.

Nosso intento é contribuir, mediante a aproximação com novos parceiros, para a constante reformulação dos problemas, temáticas e objetos da História Cultural, considerando-se as relações entre os historiadores e as fontes e objetos literários, bem como entre os profissionais das áreas de Letras e de História, de modo que suas práticas investigativas possam ser aperfeiçoadas e novos conhecimentos possam ser produzidos a partir de tais experiências.

Desejamos a todos uma profícua leitura!

Nota

1. Constituem a Coordenação do GT História Cultural RS em sua Gestão 2016-18: Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Alice D. Trusz; Vice-coordenadora: Prof.ª Dr.ª Carmem A. Ribeiro; 1º Secretário: Prof.ª Dr. Eduardo R. J. Knack; 2ª Secretária: Prof.ª Dr.ª Viviane V. Herchmann. Contato: [email protected] Site: HTTP: / / WWW.UFRGS.BR / GTHISTORIACULTURALRS / INDEX.HTM Facebook: HTTPS: / / WWW.FACEBOOK.COM / GTHISTORIACULTURALRS

Alice Dubina Trusz – Historiadora, Coordenadora do GT História Cultural RS – Gestão 2016-18.


TRUSZ, Alice Dubina. [História e literatura (13ª Jornada de História Cultural) ]. História em Revista. Pelotas, v.23, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: ficção e verdade (II) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2017

Nesta edição de Intelligere temos o prazer de apresentar a segunda e última parte do dossiê “História e literatura: ficção e verdade”, dando continuidade aos debates que abrimos no número anterior sobre as múltiplas e instigantes relações entre a história e o universo ficcional.

A segunda parte do dossiê é composta por cinco artigos e um texto da seção “Pesquisa”. Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba parte de autores como Michel Foucault, Jacques Derrida e Silviano Santiago para pensar o problema da colonização brasileira e a questão das identidades nacionais na América latina. Margareth dos Santos propõe uma leitura da poética de Ángel González sobre a Espanha durante a ditadura de Franco, mostrando como essa literatura é um ponto de referência para se compreender a experiência sombria do franquismo. Rogério de Almeida e Fábio Takao Masuda tratam das relações entre ficção e história por meio da literatura de Clarice Lispector, explicitando como aspectos da realidade social brasileira aparecem como partes constitutivas dos dramas íntimos de seus personagens. Camila Rodrigues explora os manuscritos de Guimarães Rosa, nos quais encontra questionamentos acerca do devir histórico, mostrando o quão fecunda é a proposta de Carlo Ginzburg para a análise das obras literárias. Flávia Maria Corradin apresenta um estudo sobre as obras de Vasco Pereira da Costa e Rosa Lobato de Faria, dois autores portugueses contemporâneos, para apontar a força das relações entre história, mito e literatura. Na seção “Pesquisa”, Michelly Cristina da Silva compara dois livros de Ricardo Piglia para explorar o tema do relato policial e sua narrativa.

A segunda parte do dossiê “História e Literatura” aparece apenas poucos dias após o anúncio da morte do escritor argentino Ricardo Piglia, que foi tema de dois artigos aqui publicados. Manifestamos nosso reconhecimento à sua obra e legado.

“A história é o lugar em que se vê que as coisas podem mudar e se transformar. Nos momentos em que parece que nada muda, que tudo está enclausurado e que o pesadelo do presente parece eterno, a história (…) prova que houve outras situações iguais, enclausuradas, nas quais se terminou por encontrar uma saída. Os rastros do futuro estão no passado, o fluir manso da água da história gasta as pedras mais duras.”

Ricardo Piglia, Crítica y ficción

Júlio Pimentel Pinto (USP),

Francine Iegelski (UFF),

Stefania Chiarelli (UFF).

Os coordenadores do dossiê


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 3, n. 1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Representações, identidades e literatura na América Latina / Varia História / 2017

A presente edição da revista Varia Historia traz o dossiê “Representações, identidades e literatura na América Latina” com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história e a literatura. O dossiê tem como objetivos apresentar um enfoque interdisciplinar, trazer perspectivas diferenciadas acerca do tema e colocar em destaque a percepção de que diferentes narrativas, história e literatura, podem ser construídas, quase sempre, nas fronteiras. Utiliza-se fronteira como um espaço privilegiado para estabelecer laços, trocas, intercâmbios e não como um dado rígido e intransponível. Aliás, a fronteira é também movediça e sofreu no passado diversos deslocamentos (Pomian, 2003). O diálogo do historiador com diferentes linguagens, como a narrativa literária, possibilita-o “sondar outros terrenos de linguagem, construídos em torno de outros fazeres interpretativos, de outras experiências narrativas” (Pinto, 2004).

As diferenças e semelhanças entre história e literatura já foram amplamente debatidas. Debate que privilegiou as discussões sobre os limites e as especificidades das narrativas historiográfica e ficcional. Embora partilhem de recursos literários comuns, história e a ficção possuem metas distintas, com diferentes resultados. O discurso ficcional põe a “verdade” entre parênteses, enquanto a história procura fixá-la como conhecimento sobre o passado, ou seja, prima pela busca da condição de veracidade. Luiz Costa Lima sustenta que ambas são modalidades discursivas que “mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”. Além do mais, cada uma, história e literatura, “ocupa uma posição diferencial quanto à imaginação”. A imaginação “atua na escrita da história, mas não é o seu lastro. Porosa, a história não há de ser menos veraz. Mas veraz, ela não pode pretender, como as ciências da natureza, a formulação de leis porque não pode renunciar à parcialidade”. A ficção tem fronteiras muito mais fluidas que a história e não tem limites para a imaginação. Portanto, do ponto de vista dos seus respectivos princípios de organização, história e literatura são formações discursivas que guardam suas especificidades.

Mesmo sendo formações discursivas diferenciadas, a literatura se nutre da história e a história, da literatura. Desde a epopeia antiga, observa-se que a história tem servido frequentemente de inspiração para as mais diferentes formas de produção literária, do poema épico às canções de gesta, do romance medieval ao romance moderno. Outro exercício possível, que se relaciona com o que foi dito, é a inserção da obra literária no contexto histórico em que ela foi produzida. Há uma interação do texto ficcional com o contexto ao qual ele se insere, isto é, a uma determinada época em que foi produzido. Para Dominick LaCapra (1983), é fundamental privilegiar a leitura de um texto literário em relação a seu contexto, articulando a obra com a formação social e cultural de seu autor e o momento histórico em que ela foi produzida. Desse modo, a literatura pode ser também compreendida como a expressão ou sintoma de formas de pensar e agir dos homens em um certo momento da história. Para o autor, ao analisarmos os textos literários, é mister compreendermos que, quase sempre, eles propõem articulações gerais com os grandes problemas do momento e tendem a deslocar-se das questões parciais e específicas para as perspectivas globais, instalando-se na esfera pública e ali construindo sua interlocução.

A escrita da história está em constante movimento e se adaptando às “demandas” e transformações do seu tempo. A introdução de novos temas, novos objetos e o uso de novas fontes, permitiu aos historiadores a construção de novas metodologias de investigação histórica e novos métodos de produção do conhecimento. O alargamento do caráter interdisciplinar — ou a aproximação com outras áreas do saber — permitiu ao historiador aprimorar ainda mais a produção historiográfica. O texto literário passou a ser incorporado às pesquisas históricas como mais uma forma de acesso ao passado. O presente dossiê, nessa perspectiva, coloca em destaque o entrecruzamento de temas, ideias e fronteiras.

Na América Latina, a literatura esteve e está em constante diálogo com a história. No século XIX, foram intensas as conjunções entre política, literatura e cultura em textos ficcionais produzidos durante os intensos debates sobre a construção das identidades nacionais e os projetos de nação. No século XX, não foi diferente: as vanguardas, com seus manifestos e polêmicas; as revoluções mexicana e cubana que despertaram o apoio e a crítica de muitos escritores; o fenômeno do boom da literatura latino-americana; e as ditaduras caribenhas, centro-americanas e do Cone Sul, com seus mecanismos de poder autoritários, contribuíram enormemente para aproximar, cada vez mais, a literatura da história. Diferentes escritores como José Mármol, José Martí, Andres Bello, Machado de Assis, Ezequiel Martínez Estrada, Oswald de Andrade, Mariano Azuela, Gabriela Mistral, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Pedro Henríquez Ureña, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Clarice Lispector, Diamela Eltit, Héctor Libertella, Jorge Volpi — e muitos outros —, são exemplos de escritores que, a partir de diferentes concepções estéticas e diferentes formas discursivas, aproximam ficção e história e nos levam a compreender que a literatura está em constante diálogo com as tradições e a modernidade, com as mudanças socioculturais, com as representações e construções identitárias, com os ideários políticos. Uma literatura que, de um modo geral, se quis realista, militante, utópica, mágica, ciclópica e mítica, mas que nunca perdeu seu diálogo, mesmo que, às vezes, em filigranas, com a história.

Pensar literatura e identidades na América Latina pressupõe pensar também a história da literatura, não somente para compreende-la ou revisá-la, mas como uma forma de acesso ao passado. Importantes empreendimentos para compreender a história da literatura na América Latina foram realizados por pesquisadores e críticos literários, e também da cultura, com o intuito de compreender as realidades latino-americanas — em diálogo com as realidades nacionais — como Angel Rama, Antônio Cândido, César Fernández Moreno, Bella Josef, José Miguel Oviedo, Rafael Gutiérrez Girardot, Ana Pizarro, Alfredo Bosi e tantos outros. As ideias de Rama e Cândido, em especial, tiveram o mérito de demarcar a preponderância da escrita literária para a formação das sociedades latino-americanas.

Os artigos que compõem o dossiê abordam temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários em suas relações com a história, as conexões texto-contexto, os vínculos com a cultura e a política, as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais latino-americanos. O resultado é a constituição de um dossiê formado por três densos artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes como romances, contos, poemas e ensaios.

No primeiro artigo, “Identidades erosionadas: literaturas latinoamericanas, de la espacialidad ontológica a la atopía”, Cláudio Maíz mostra como a literatura se constituiu como um importante espaço para expressar diversas identidades: das mais ontológicas às étnicas, sexuais e ecológicas. No século XXI, diferentemente do século XIX, e mesmo de grande parte do XX, as espacialidades e as tradições deixaram de ser os marcos referências para construções identitárias mais “homogêneas”. Em sua análise, o autor explora desde os textos sarmentianos e martianos, produzidos nos oitocentos, aos textos polêmicos da Geração de McOndo e do Manifesto Crack mexicano produzidos mais recentemente.

Indagar por que e como o ensaio se tornou, a partir da década de 1970, um espaço por excelência para compreender e definir a literatura latino-americana é o propósito do artigo “Literatura latino-americana e representatividade cultural. Uma leitura dos ensaios de Héctor Libertella e Jorge Volpi”, de Ana Cecília Arias Olmos. A autora analisa os ensaios do escritor argentino Héctor Libertella e do mexicano Jorge Volpi como importantes estratégias discursivas que contribuíram para a “descentralização de uma noção ideologizada da literatura latino-americana que a sujeitou a funções de representatividade cultural”, exemplificada, principalmente, pela narrativa do boom e do “macondismo”.

O escritor uruguaio Juan Carlos Onetti é o centro da análise de Júlio Pimentel Pinto no artigo “Sobre fantasmas e homens: passado e exílio em Onetti”. Como o próprio título sugere, o foco da análise é compreender, por meio dos contos “La casa de la desgracia” (1960) e “Presencia” (1978), como o escritor abordou, nos respectivos contos, temas recorrentes, tais como o passado, a memória, o tempo e o exílio, com o intuito de problematizar as fronteiras e os diálogos entre história e ficção.

Para finalizar, agradeço a todos os que colaboraram com a viabilização do dossiê e saliento que o intuito foi o de despertar inquietações para além das fórmulas já consagradas de pensar as interações entre história e literatura. Espero que a leitura dos textos que o compõem possibilite reflexões enriquecedoras para a construção de novos conhecimentos e a ampliação dos debates sobre o tema.

Referências

LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca / London: Cornell University Press, 1983. [ Links ]

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]

PINTO, Júlio Pimentel. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. [ Links ]

POMIAN, Krzysztof. História e ficção. Projeto História, n. 26, p.11-45, 2003. [ Links ]

Adriane Vidal Costa – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


COSTA, Adriane Vidal. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.62, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID – línguas materna e estrangeiras e suas respectivas literaturas | Revista Práticas de Linguagem | 2017

Nesta edição especial, a Revista Práticas de Linguagem elege o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID – línguas materna e estrangeiras e suas respectivas literaturas. Dessa forma, reúne um vasto registro de trabalhos desenvolvidos por bolsistas, supervisores e coordenadores de área de subprojetos vinculados a diversas universidades brasileiras e a escolas públicas. Reforçando os objetivos traçados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – para o programa, o grande intento deste volume é dar visibilidade às ações de formação inicial de professores para a educação básica, além de reconhecer e valorizar o esforço despendido por todos os proponentes para refletir sobre questões específicas de ensino e aprendizagem de linguagem, de modo amplo.

Os relatos de experiência, os artigos científicos, as resenhas e a entrevista que compõem esta edição são oriundos de reflexões sobre a prática educativa e estão organizados em quatro seções temáticas, a saber: 1) a formação inicial e continuada de professor da educação básica; 2) metodologias de ensino da língua portuguesa e de suas literaturas; 3) elaboração de material didático; e 4) letramentos, multimodalidade e tecnologias no ensino de língua e literatura. Em todas elas, a discussão empreendida privilegia a presença, a participação e o engajamento dos bolsistas e supervisores pibidianos na rotina escolar, particularmente, em escolas da rede pública de ensino brasileira. Leia Mais

História & Literatura | ArtCultura | 2017

A constituição disciplinar da história foi marcada, ao longo do século XIX, pelo distanciamento de certos campos intelectuais, vistos como outros em relação aos quais era mister demarcar fronteiras. A veracidade dos relatos dos historiadores enunciava uma interdição, o da sedução da ficção literária, e as novas gerações deveriam inverter a máxima aristotélica que, lembremos, postulava a superioridade da poesia sobre a história, considerada o reino do particular, enquanto a primeira poderia se gabar de aceder ao universal. Sob a modernidade, impregnada de progresso e de futurismo, o século XIX era o da história. Reconhecida como uma especialização, a prática historiadora poderia até valer-se da literatura como fonte para o conhecimento do mundo real, mas sem confundir-se com ela. A história-ciência, com sua temporalidade homogênea e irreversível, tinha pouco a aprender com os modos literários de figuração do tempo, caracterizados, sobretudo, pela convivência entre passado e presente sob a forma da memória ou dos “passados que não passam”.

Do outro lado da trincheira, os literatos reagiam ao que viam como uma ciência pouco atenta ao presente e cheia de insignificâncias. Uma das maneiras de expressão dessa reação era a representação nada honrosa dos historiadores em diversos romances. Nestes textos, eles eram mostrados como indivíduos desprovidos de vida, alheios ao que se passava ao seu redor. A história também era acusada de ferir a universalidade da literatura, uma vez que, para os historiadores, um objeto só poderia ser corretamente explicado se localizado no tempo. O diálogo se reduzia e apenas as apropriações instrumentais eram aceitas: aos ficcionistas interessavam as observações particulares dos historiadores; para estes, os romances poderiam ser registros de representações dos passados que desejavam compreender. Leia Mais

História e Literatura: ficção e verdade (I) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016

“O que me interessa não é tanto a relação do texto com a sociedade, é a transformação da sociedade em texto.” [1]

Faz décadas que críticos literários, historiadores, antropólogos, filósofos e sociólogos participam, juntos, do debate interdisciplinar sobre as relações entre história e ficção. Essa discussão assumiu diversas formas: sondou as aproximações da história com a(s) verdade(s); explorou as textualizações da vida social; refletiu sobre mecanismos de construção e invenção de contextos; reconheceu diferenças e semelhanças nos procedimentos narrativos; percebeu a contaminação que todo diálogo implica; reiterou a autonomia conceitual e estética das representações ficcionais e historiográficas.

Intelligere propõe-se a contribuir para esse debate: neste número e no próximo – dois dossiês – a revista apresenta textos que percorrem obras ficcionais e historiográficas, que partilham a inquietação, a angústia e o fascínio de contrastar perspectivas diferentes, perceber como elas se encontram e divergem, do mesmo modo que se constroem reciprocamente.

O primeiro dossiê é composto por sete textos e uma entrevista. Na entrevista (inédita), o escritor Milton Hatoum discute aspectos da construção literária, seus vínculos com a memória e a história e o lugar da ficção no mundo, seus esforços e compromissos. Júlio Pimentel Pinto reflete sobre os signos da arte e o trabalho da memória num romance de Milton Hatoum. Francine Iegelski interpreta as diversas faces do tempo, particularmente a trágica e a melancólica, a partir da literatura de Raduan Nassar e de Milton Hatoum. Stefania Chiarelli propõe uma visão da presença dos emigrantes em determinadas obras da literatura brasileira, percebendo como estas narrativas contribuem para promover um ponto de vista específico sobre o próprio conceito de nação. Ingrid Robyn analisa barroquismo e maravilha na obra do cubano Alejo Carpentier e do brasileiro Euclides da Cunha. Alberto Schneider apresenta um estudo sobre as polêmicas entre Silvio Romero e Machado de Assis, lançando luz sobre o ambiente intelectual brasileiro do fim do século XIX. Daniel Puglia e Débora Reis Tavares tratam de textos de George Orwell que estabelecem nexos entre história, socialismo e literatura no entre-guerras. Eduardo Ferraz Felippe explora as relações entre futuro, experiência e sentido na obra do argentino Ricardo Piglia.

No próximo número, a discussão continua. Inclusive porque Intelligere sabe que ela é longa, necessária e prazerosamente infinita.

Nota

1. Antonio Candido. Entrevista 30 / 09 / 1996. In: Luiz Carlos Jackson. A tradição esquecida: Os parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002. p. 170.

Julio Pimentel Pinto (USP)

Francine Iegelski (UFF)

Stefania Chiarelli (UFF)

Comitê organizador


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 2, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Escritas de si, literatura e cinema: diálogos (auto)biográficos | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2016

[A narrativa] está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura […], no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas […]

Roland Barthes1

Na epígrafe, Roland Barthes nos diz que as narrativas, por sua quase infinita diversidade (histórica, literária, biográfica, autobiográfica, cinematográfica…), e por sua onipresença na história da humanidade, representam formas de manifestação inalienáveis do ser humano, onde quer que ele se encontre, não importando o momento de sua vida, e em qualquer tempo histórico. Nessa quase infinita diversidade, os seres humanos encontram nas narrativas biográficas e autobiográficas um modo próprio de ser e de contar a história de vida de outrem (biografia) e a história de sua própria vida (autobiografia), constituindo e constituindo-se enquanto seres sociais, racionais, líricos, históricos, místicos, políticos, artísticos, míticos… Leia Mais

Áfricas: história, literatura e pensamento social / Revista Transversos / 2016

História, Literatura e Pensamento Social

Esse número da Revista Transversos, além da costumeira seção de artigos livres, vinculada, em sua maior parte, às discussões problematizadas no Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades (LEDDES), responsável por esse periódico, oferece-nos dossiê intitulado Áfricas: história, literatura e pensamento social, com destaque para a seção Notas de Pesquisa. Essa duas partes do periódico são fruto de desdobramentos das atividades do grupo de pesquisa Áfricas – LEDDES (UERJ), vinculado a esse laboratório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bem como de parcerias com outros núcleos de estudos, pesquisa e extensão, tais como o Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assim, como o tecido africano estampado na capa deste número da Transversos, o seu dossiê e notas de pesquisa tecem tramas com fios policromáticos: há uma diversidade de objetos e abordagens relativos à multifacetada África, mas que de certa forma, giram em torno do trinômio história, literatura e pensamento social africano, tema deste dossiê.

A trama inicia-se com o debate sobre a importância do documentário como fonte para a história angolana a partir da análise de Oxalá cresçam pitangas! Numa implícita formação discursiva fundamentada por Robert Rosenstone, que assinala que o cinema pode “transmitir um tipo de História séria (com H maiúsculo)”, a historiadora Paula Faccini de Bastos Cruz, pesquisadora do LEÁFRICA, ilumina como a aludida película cinematográfica explicita as resilientes identidades de luandenses após as guerras infindáveis, entre 1961 a 2002. O filme permite nos tornarmos testemunhas oculares de vidas vulnerabilizadas pelas sequelas persistentes dos conflitos e da desigualdade social.

Mas, os africanos não são só assujeitados pelas estruturas, pois geraram eloquentes lideranças na luta pelas transformações sociais. Seguindo essa motivação a historiadora Raquel Gomes, doutora pela UNICAMP, recorre a um romance histórico sul-africano Mhudi, An Epic of South African Native Life a Hundred Years Ago para urdir o pensamento e a práxis social do político, literato e jornalista sulafricano Sol Plaatje durante as décadas de 1910 e 1920, logo após o surgimento do domínio inglês da União Sul-Africana. É o único artigo do dossiê que se desvia da tendência predominante na historiografia brasileira sobre o continente: os estudos sobre as regiões africanas tocadas ou colonizadas pelos portugueses.

Por outro lado, Jane Rodrigues dos Santos, pós-doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e uma das participantes da Oficina “Literatura, História em contextos africanos” oferecido pela linha “Áfricas” em 2015, abre uma nova tonalidade na trama, articulando as possibilidades dialógicas entre história e literatura, por meio da discussão comparativa entre as obras Becos da Memória da brasileira Conceição Evaristo com Amkoullel, o menino fula do africano Amadou Hampâte Bã.

Os três artigos que se seguem discutem diferentes dimensões de aspectos ligados à história e à literatura angolana, bem como ao pensamento social do escritor Uanhenga Xitu, um dos autores abordados naquela oficina. Assim sendo, Letícia Villela Lima da Costa, doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), analisa as distintas formas de se contar a história por meio da tradição oral, fazendo por isso uma análise sobre um conto de Xitu.

Já o pensamento social deste autor é analisado de forma comparativa ao do também angolano Luandino Vieira por Maria Cristina Chaves de Carvalho, pós-doutoranda pela Universidade Federal do Espirito Santos (UFES). Em seu artigo, ela analisa o quanto os dois apresentam, de forma ambivalente, o colonialismo no qual estavam inseridos.

A seção termina com o artigo de Itamar Pereira de Aguiar, pós-doutor pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor Titular da Universidade do Estado da Bahia (UESB), juntamente com Nathalia Rocha Siqueira, pesquisadora do grupo Áfricas do LEDDES e Washington Santos Nascimento, doutor em História Social (USP) e professor da UERJ. Nesse artigo, os autores verticalizam a análise do pensamento social de Xitu, acerca das suas leituras sobre o universo kimbundu e as simbologias religiosas esquadrinhadas de maneira comparativa com o Brasil.

O primeiro artigo livre é um ensaio de Egbert Alejandro Martina, um intelectual elaborador do blog Processed Life e de Patricia Schor, pesquisadora afiliada à Universidade de Utrecht, Holanda, traduzido por Daniel Mandur Thomaz, pesquisador vinculado à Universidade de Oxford. Os autores trabalham com populações racial e etnicamente segregadas pelo planejamento urbano e gestão espacial holandeses. Um ensaio rico que certamente incitará ao leitor brasileiro comparações com os processos de vulnerabilização alicerçados em raça e classe existentes em nosso país e como eles também se espacializam em nossas cidades.

A História Econômica, campo que sofreu uma certa retração na produção recente da historiografia brasileira, diferencia-se neste número mais preocupado com questões culturais e sociais, com o artigo de Daniel Henrique Rocha de Sousa, Professor de Economia do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), sobre os Monetaristas X Papelistas: Modelos Econômicos Importados e Inaplicáveis ao Brasil da Transição Republicana. Parafraseando o título do fundante artigo de Robert Schwarz, podemos dizer que Daniel de Souza aponta como vários modelos econômicos que se tentaram então aplicar no Brasil eram políticas econômicas “fora de lugar”.

Fechando a sessão de artigos livres, volta-se a abordagens caras à linha de pesquisa “Vulnerabilidades e Controle Social” também do LEDDES como a dos filósofos Nietzsche, Foucault e Deleuze. Esses autores são operados por Kássia de Oliveira Martins Siqueira, assistente social, doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), para contraditar as práticas de atendimento a adolescentes portadores de câncer em um hospital público do Rio de Janeiro.

Retomando o entrançar com as temáticas de nosso dossiê, a seção Notas de Pesquisa abre-se com o projeto de pesquisa de Angélica Ferrarez de Almeida, doutoranda (UERJ), assentado na literatura oral dos griôs senegaleses, recolhida entre 1960 e 1980, momento em que se está estruturando o Estado senegalês. Inquietado com as relações entre a linguagem, a memória e o poder, o projeto põe em alto relevo uma série de questões para solucionar.

Enlaçando a nossa africana teia, Carolina Bezerra Machado, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), propõe-se sondar as relações de poder na sociedade angolana, tais como são imbricadas em quatro romances de um dos maiores escritores de Angola, Pepetela. Os textos desse intelectual revelam que a literatura não é apenas “ficção”, mas pode nos oferecer os enredos que transpassam das macroestruturas do Estado à porosidade das micro- relações de poder que se entrelaçam na sociedade civil angolana.

Por fim, Marilda dos Santos Monteiro das Flores, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), propõe analisar Uma Cena: O uso do filme como estratégia para (re) construção da identidade dos Retornados de Angola (2005-2010). Sua pesquisa versa sobre como um filme e um livro, esse último, fruto de entrevistas jornalísticas, de investigação em arquivos e em jornais portugueses, são utilizados como dispositivos da preservação da memória e da ideação identitária dos retornados de Angola a partir do estertor do processo de descolonização.

Esperando termos entretecido belas e policrômicas narrativas como as texturas estampadas em nossa capa, desejamos uma saborosa leitura a todos, despertando novas reflexões e inauditos debates.

Silvio de Almeida Carvalho Filho – Professor Doutor (LEÁFRICA / UFRJ)

Washington Santos Nascimento – Professor Doutor (AFRICAS – LEDDES / UERJ)

Rio de Janeiro 22 de março de 2016.


CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 6, n.6, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Crítica Histórica / 2015

No livro intitulado Seis passeios pelos bosques da ficção, que reúne a famosa série de seis conferências ministradas em 1993 na Universidade de Harvard, o escritor e teórico italiano Umberto Eco nos fornece inúmeras pistas de como, no papel de leitores, entrarmos, percorrermos e sairmos dos bosques da ficção. Entre elas, preconiza o princípio da suspensão da descrença: o leitor, mesmo sabendo que aquilo que se narra parte do imaginário, nem por isso deve pensar que o escritor conta mentiras. Afinal, todo autor literário, mesmo quando atua no campo mais radical de evasão da realidade (a literatura fantástica, por exemplo), delimita seu “pequeno mundo” a partir da experiência numa realidade cuja estrutura total não lhe é possível descrever. Ler a obra literária teria, portanto, a mesma função lúdica do brinquedo ou do jogo infantil – dar sentido a um mundo cujos meandros e trajetória ainda não mapeamos inteiramente, e cujo processo de formação é demasiadamente extenso e complexo -, sendo as possibilidades de decodificação do texto condicionadas, entre outras coisas, pela “enciclopédia” ou pelas “lentes” que cada leitor traz consigo ao adentrar o bosque: sua experiência pessoal, mas também sua relação prévia com outros textos (ficcionais ou não), sua trajetória educacional e profissional, suas competências e habilidades.

E o que ocorre quando os bosques da ficção são trilhados com as lentes da história? Este Dossiê História e Literatura visa, justamente, discutir as interrelações entre o fazer histórico e o literário, as quais se constituem propriamente em “vias de mão dupla” no bosque de múltiplas possibilidades: isto é, tanto a dinâmica que se estabelece entre a criação ficcional e seus quadros históricos de referência, quanto o uso de ficções, modelos heurísticos e estratégias da construção literária pelos historiadores na constituição de suas narrativas. Assim, devido a esse recorte que possibilita, de forma abrangente, os intercâmbios e cruzamentos entre os dois campos expressos no título – história e literatura / literatura e história – as questões abordadas neste dossiê caracterizaram-se pela variedade de temas, autores, contextos e aportes teóricos.

O volume inicia-se com “Versos do Cativeiro: um olhar sobre a imposição do nacionalismo chileno em Tacna e a resistência peruana na obra de Federico Barreto”, de Maurício Marques Brum, que problematiza o tema da formação das identidades nacionais na América Latina, tendo como objeto a poesia do peruano Federico Barreto, e sua função de resistência à chilenização da província de Tacna. A temática da formação identitária, dessa vez no Brasil, é também o ponto de partida do artigo de Luiza Rosiete Gondin Cavalcante (“Entre ‘registro’ e poesia: história e construção literária em Iracema, de José de Alencar”), no qual diversos elementos da composição do célebre romance indianista alencariano, presentes, por exemplo, na construção dos protagonistas, são explorados em sua relação com a história, de modo a demonstrar algumas das formas através das quais Iracema ressemantiza, através da transfiguração literária, o processo de colonização brasileira marcado pelo hibridismo.

Se a formação da identidade nacional brasileira está marcado por semelhante processo de hibridização cultural de que nos falam autores como Beatriz Sarlo e Nestor García Canclini acerca de outros países latino-americanos, a crônica, gênero híbrido por excelência, a meio caminho entre a história, a literatura e o jornalismo, torna-se, sem sombra de dúvida, um dos objetos fundamentais para a análise das interseções entre o histórico e o literário. Em “O tempo escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, Ana Lady da Silva debruça-se sobre duas das crônicas de Machado de Assis, de modo a observar a atitude cética e crítica do autor frente ao horizonte de expectativas (para utilizar a categoria de Jauss) das elites brasileiras do final do século XIX diante de questões como a Abolição e a República. Também Poliana dos Santos, no artigo intitulado “História, subjetividade e especulação nas personagens machadianas”, vem contribuir com a inesgotável fortuna crítica sobre Machado, examinando indícios significativos na construção das personagens de contos machadianos, e sua relação com o contexto de alargamento e exploração das forças econômicas, na passagem do Império à República, que desemboca na especulação financeira.

Em “Histórias de Ricardo Reis”, Priscila Tenório Santana Nicácio, tendo como objeto de análise o romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, investiga alguns dos procedimentos pós-modernos de referenciação do histórico na literatura, como na chamada metaficção historiográfica, no qual os aspectos históricos não são documentais em seu sentido tradicional, mas elementos intra e / ou paratextuais que refletem sobre sua própria forma de produção. Já no artigo “A Pedra do Reino e a carnavalização”, que encerra o Dossiê História e Literatura, José Nogueira da Silva utiliza a categoria bakhtiniana da carnavalização para analisar, no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, o apagamento da dicotomia erudito / popular.

Nesse sentido, o dossiê, além de possibilitar mais uma vez o debate intelectual acerca do tema, tem como objetivo criar uma rede de intelectuais preocupados com as conexões entre o histórico e o literário, de modo a criar as necessárias pontes para o desenvolvimento do campo historiográfico da História Cultural.

Na Seção de Artigos, Dagmar Manieri abre com um estudo do conceito de virtù em Nicolau Maquiavel. A partir do Renascimento italiano, o autor adentra o campo da política, a um novo pensamento sobre a história, assim como da prática política. E é nesse quadro histórico que o pragmatismo de Maquiavel aparece e está inserido. Assim, “O conceito de virtù em Maquiavel” apresenta a importância da ética na eficácia da prática política, sem a qual funda-se o que se denomina de ciência política moderna.

O segundo artigo, “Cristãos-novos, inquisição e escravidão: Ensaio sobre inclusão e exclusão social (Alagoas Colonial, 1575 – 1821)”, de Alex Rolim Machado, trabalha a “Alagoas Colonial” e os assuntos relacionados aos cristãos-novos, ainda lacunares. Os argumentos do autor tendem a trazer os personagens às novas interpretações, inserindo-os em um mundo multifacetado, de intensa comunicação com outras categorias sociais das Vilas, procurando observar os polos de inclusão e exclusão aos quais estavam sujeitos e, por decorrência da vivência americana, também atuavam na estratificação da sociedade.

Em “A imigração subsidiada: os contratos para introdução de espanhóis no Pará”, Francisco Pereira Smith Júnior e Rodrigo Fraga Garvão destacam que entre os anos de 1890 e 1920, a história das migrações internacionais causou impacto no Pará, já que houve, neste período, uma eficaz propaganda migratória na Europa fazendo com que o Estado paraense recebesse um significativo número de imigrantes europeus. Argumenta que os recém chegados fizeram parte de um exército de estrangeiros que tinha o papel de povoar e trabalhar na Amazônia e que, neste cenário, destacaram-se muitos espanhóis que vieram viver o sonho do “eldorado amazônico”, juntos com suas famílias e recomeçaram sua história de vida. Assim, o artigo traça um perfil desse imigrante espanhol e analisa o processo de constituição dos núcleos populacionais em que estes espanhóis estavam inseridos.

Já o quarto artigo que compõe a seção, de Augusto Neves da Silva, intitulado “Metamorfoses de uma festa: Histórias do carnaval em Recife (1955-1972)”, discute as transformações dos carnavais brincados na cidade do Recife entre os anos de 1955 e 1972, voltando-se à compreensão das relações estabelecidas entre o poder público municipal, os foliões e alguns intelectuais. Essas relações geraram conflitos que, por sua vez, deram o tom da identidade que se buscava construir nesta festa. A reflexão aqui foi tentar entender quais os espaços criados na cidade para os dias de Momo e os sentidos dessa tradição.

Fechando a Seção Artigos, Wanderson Chaves nos apresenta “A Fundação Ford e o Departamento de Estado Norte-Americano: a montagem de um modelo de operações no pós-guerra”, no qual brilhantemente demonstra que o relacionamento estabelecido entre a Fundação Ford e o Departamento de Estado, bem como com a Agência Central de Inteligência (CIA), constituiu-se em aspecto definidor e estruturante, ainda que secreto ou sigiloso, da atuação dessa organização filantrópica e destes órgãos de governo quanto às políticas de inteligência e propaganda. Reconstruindo documentalmente os acordos tal como se deram no momento de seu estabelecimento, ilumina a história da Guerra Fria.

E, finalmente, o número 11 da Revista Crítica Histórica encerra-se com a contribuição de uma das organizadoras do dossiê, na Seção Ensaios, que articula-se profundamente com o debate apresentado no volume. Ana Claudia Aymoré Martins, em “Cartografias imaginadas: Brasil e Cabo Verde na rota dos signos”, faz uma reflexão sobre a construção simbólica da insularidade na formação nacional do Brasil e de Cabo Verde, suas consonâncias e diálogos.

Agora, só nos resta convidá-los à leitura, certas de que as contribuições aqui publicadas dialogam diretamente com a história e a historiografia regional e nacional.

Ana Claudia Aymoré Martins

Ana Paula Palamartchuk

Maceió, julho de 2015


MARTINS, Ana Claudia Aymoré; PALAMARTCHUK, Ana Paula. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 6, n. 11, julho, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e literatura / Historiae / 2015

As inter-relações entre História e Literatura constituem um processo inexorável no âmbito das diversas áreas do conhecimento humano. Suas origens são praticamente comuns, quando os representantes da intelectualidade açambarcavam em suas práticas os mais variados conteúdos do saber, de modo que, para tais “homens de letras”, os elementos constitutivos históricos e literários eram praticamente sinônimos. Com o passar do tempo, e a consolidação dos “territórios” de atuação de cada uma das ciências, ficando estes bem melhor definidos, História e Literatura firmaram-se como áreas independentes entre si. Entretanto, ainda que reconhecidos como conhecimentos científicos específicos, com pressupostos teórico-metodológicos próprios, os estudos históricos e literários continuaram guardando entre si diversas similaridades e, mesmo quando discrepantes, deixavam em aberto uma extensa possibilidade de análises interdisciplinares.

De acordo com tal perspectiva a Revista Historiae organizou o Dossiê “História e Literatura”, reunindo diversos especialistas que promovem diálogos entre as duas áreas do saber humano. Esta coletânea foi extremamente profícua, trazendo escritos de vários estudiosos europeus e oriundos de diferentes instituições nacionais, os quais uniram esforços para construir esta edição. Fica o sincero agradecimento, à Profa. Dra. Vania Pinheiro Chaves, sem a qual seria inviável este número especial.

Ao lado dos artigos que apresentam estudos de caso específicos das tantas interações entre História e Literatura, o Dossiê também se compõe de uma seção destinada a Documentos e Recensões que trilham pela temática escolhida para compor a edição. Assim, a Historiae dá continuidade a sua caminhada de mais de três décadas em direção à divulgação da pesquisa acadêmico-científica.

Francisco das Neves Alves – Presidente do Corpo Editorial


ALVES, Francisco das Neves. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 6, n. 1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura abordagens e diálogos/ Fênix – Revista de História e Estudos Culturais/2015

O dossiê História e Literatura abordagens e diálogos que tivemos o prazer de organizar, e a responsabilidade de apresentar aos leitores da Fênix – Revista de História e Estudos Culturais – reúne escritos de pesquisadores que atuam nas regiões norte e sudeste do Brasil e que tem realizado esforços em um campo muito debatido no interior do campo acadêmico, mas, relativamente ainda pouco praticado: a interlocução interdisciplinar. O elemento aglutinador dos trabalhos que ora apresentamos é a relação entre História e Literatura e os artigos revelam uma preocupação dos autores com os elementos estéticos do campo literário enquanto dispositivos mediadores de tal relação, o que, em última instância, revela os intrincados caminhos entre “realidade e ficção”. Contemporaneamente, a narrativa histórica como parte de um mundo imaginado não é uma concepção que cause estranheza à maioria dos historiadores. Um diálogo profícuo vem sendo realizado entre historiadores e especialistas em Literatura de diversas abordagens, o que tem ampliado a segurança dos primeiros para trabalhar com o material literário. Paralela e concomitantemente vários desses estudiosos do campo literário tem se deslocado de uma concepção de arte autonomizada em direção de uma concepção que re-considera que os fenômenos estéticos podem também serem historicizados. Leia Mais

Historicidade e literatura / História da Historiografia / 2014

Este dossiê tem como objetivo pensar a historicidade a partir de sua complexa e por vezes conflitiva relação com a literatura. Com “literatura”, algumas vezes, os acadêmicos se referem a escritos literários geralmente ficcionais, como os romances, e centram suas análises na questão da demarcação entre a disciplina historiográfica e o trabalho criativo de escritores não constrangidos pelas fontes documentais nem pelo que realmente ocorreu. No contexto dessa discussão, surgem os sempre vigentes debates filosóficos em torno da possibilidade de conhecer o passado, da questão do ceticismo, do realismo, do relativismo histórico e, é claro, da relação entre história e ciência. Todas essas questões conformam um corpus de problemas subsumidos sob a denominação filosofia crítica da história, criada para distingui- -la da filosofia substantiva da história. Esta última, também denominada filosofia especulativa da história, busca desvelar o sentido ou finalidade do devir humano, lendo no teatro de horrores que a humanidade atravessou e atravessa a presença de etapas no caminho progressivo até a realização de uma sociedade moralmente melhor. Os historiadores acadêmicos e os filósofos críticos da história têm se afastado da especulação sobre o sentido da marcha da história, mas por diferentes razões pelas quais se distinguiram da literatura. A diferença entre as referidas áreas de conhecimento e a literatura residia no propósito de contar ou não o que realmente havia acontecido e na necessidade ou não de constrangimento em vista das evidências. Por sua vez, o rechaço da filosofia substantiva da história adveio de sua pretensão de referir-se ao passado em si para emitir juízos avaliadores acerca do futuro sem ater-se às fontes documentais. A filosofia especulativa, a bem da verdade, aproximava-se mais da literatura que a investigação científica, ainda que de maneira não intencional. Leia Mais

História, ensaio e literatura nas Américas no século XX | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2014

A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC traz o dossiê “História, ensaio e literatura nas Américas no século XX”, com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história, o ensaio e a literatura. O objetivo do dossiê é apresentar um espaço plural de debate, com enfoques e perspectivas diferenciadas acerca do tema, e colocar em destaque propostas metodológicas e reflexões críticas que se traduzem em paisagens e cenários instigantes para as Ciências Humanas.

O conjunto de artigos que compõem o dossiê aborda temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários e do ensaio em suas relações com a história; as conexões texto-contexto; a interação entre discurso e prática; os vínculos com a cultura e a política; as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais nas Américas. O resultado é a constituição de um dossiê formado por doze artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes poéticas, ensaísticas, literárias e políticas produzidas no século XX por intelectuais, em sua maioria, latino-americanos. A 17ª edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC recebe ainda, com grande satisfação, uma conferência, um artigo livre e três resenhas. Leia Mais

História e Literatura no Século XIX / História e Cultura / 2014

Foi com muito prazer que recebi o convite para organizar um dossiê para a revista História e Cultura, publicação eletrônica discente do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP (Franca). Propus o tema ‘História e Literatura no Século XIX’, levando em conta meus trabalhos de pesquisa sobre o período e o eixo principal de meus escritos desde o Mestrado: as relações entre os discursos sobre a nação, a formação da identidade nacional e as relações entre produção literária e contexto histórico numa perspectiva que sempre prioriza os processos de transferência e de circulação de códigos culturais entre a Europa e o Brasil.

Nestes estudos, protagonizam a elaboração discursiva – tanto da historiografia literária quanto da histórica – os personagens históricos das elites francesas e brasileiras que encetaram um projeto bilateral de construção da jovem nação independente. Ferdinand Denis, Eugène de Monglave, a família Taunay, Plasson, Hercule Florence, Pedro II, Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre têm lugar de honra na construção de um Brasil que nasce no papel – na Revista Nitheroy (1836), na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839) e na imprensa – mas também no protocolo diplomático dos jovens do Grupo de Paris, na delegação diplomática brasileira que anuncia a boa-nova transatlântica do nascimento de uma nação civilizada nos trópicos, sob a égide da França, sua guia. Nas últimas décadas do século, na tribuna, travam-se duelos verbais afiados entre os baluartes dos valores republicanos e que, simultaneamente, esgrimam suas penas ácidas nos romances-folhetins cariocas e nas charges que vão construindo um Brasil que ri de si mesmo, criticando.

Foi, também, por isso, com o mesmo prazer, que constatei, no recebimento dos artigos, trabalhos de pesquisadores que, atraídos pelo generoso da temática do dossiê, viram suas inquietações teóricas acolhidas nos eixos de discussão propostos. Com prazer igual, pude ler a produção de jovens pesquisadores que concebem, no lavor intelectual, a missão de serem os indivíduos cuja preocupação maior é a de refletir sobre o processo histórico e o fazer estético literário, oferecendo interpretações para eles.

Este dossiê ‘História e Literatura no Século XIX’ alegra-se por ser um êxito, tendo recebido um número importante de textos de pesquisadores que iniciam seu caminho de investigar, desvendar, desvelar, informar, e vêm de áreas de conhecimento e de instituições as mais díspares e de continentes diferentes, América do Sul, América do Norte, Europa.

Este dossiê reconhece o valor dos artigos aqui apresentados, escritos com análise fina e observação criteriosa. Estudiosos que revelam olhar preciso e rigor teórico. Tudo ensina que será cada vez mais profícua a colheita, prometendo, os jovens acadêmicos aqui reunidos, talentos para uma nova geração de pensadores, amantes do século XIX.

Sejam bem-vindos.

Segunda apresentação

Marcado pelo processo de criação dos Estados nacionais na Europa, pela definição de suas fronteiras e pela invenção de suas identidades, o século XIX ficou conhecido como “o século da história”. Conforme observa François Dosse (2010, p. 15-16), o processo de construção de tal expressão encobre duas realidades diferentes e complementares. De um lado, o Oitocentos foi o século da história porque a sociedade da época passou a esperar que a história enunciasse um tempo laicizado e que afirmasse para qual direção se dirigia a humanidade, atribuindo à história a função de um magistério do futuro em missão profética, e deslocando à disciplina histórica uma expectativa que tradicionalmente fora destinada à religião. Por outro lado, o século da história foi o XIX porque nesse período buscou-se uma profissionalização da prática histórica, que por toda a Europa foi dotada de um programa para seu ensino, com regras metodológicas e imbuído de uma preocupação para diferenciá-lo da literatura.

O nascimento da história como disciplina confundia-se com a imensa confiança na marcha progressiva das ciências. De acordo com José Carlos Reis (2003, p. 38), a busca por integrar a história aos padrões de cientificidade não impediu que os historiadorescientistas continuassem a considerar a história como o desenvolvimento progressivo, racional e contínuo do Espírito ou do Estado-nação, do povo, em direção à liberdade. “Para a história científica”, argumenta Reis (2003, p. 39), “a Europa continua sendo o centro e a vanguarda da história universal. Ela é guardiã e executora do ‘sentido histórico científico’, contra o qual não há apelação nem religiosa, nem especulativa”. Dito de outro modo, o olhar científico do século XIX significou a radicalização da confiança no projeto moderno, estruturado pela conquista europeia da história universal e pelo controle do sentido histórico.

Nesse contexto da afirmação do Estado-nação, das nacionalidades, enquanto o advento da razão moderna construiu um discurso teológico e / ou filosófico no qual chamou para si o privilégio de ser detentor da verdade, houve uma progressiva ascensão do discurso histórico sobre o discurso ficcional. Associada ao Estado-nação, a História havia se tornado centralmente uma história política em que a coletividade era substituída pelo relato dos fatos e pela biografia das grandes personalidades. Conforme explica Luiz Costa Lima (1989, p. 113-114), o domínio burguês em processo de expansão havia se associado “à ciência, ao desenvolvimento tecnológico e concedia à humanidade (europeia)” conceber-se enquanto uma espécie superior, cujo caminho se tornava sempre mais largo e promissor: “o fato histórico podia então ser tido como natural, autoevidenciador do domínio da vida pela espécie humana”.

Se a concepção da representação histórica verdadeira, positiva e científica tem sua origem no século XIX, antes dos Oitocentos, contudo, a historiografia era considerada como um assunto próprio da teoria retórica, como um ramo do discurso oratório. Tal qual Lima, Hayden White (1991, p. 24-25) também observa que a separação da historiografia da retórica teria se dado ao longo do século XIX, notadamente com o movimento cientificista, através de um “duplo ataque à retórica, dos poetas românticos, de um lado, e da filosofia positivista, de outro”, o qual teria levado “ao desprezo geral da retórica por toda a alta cultura ocidental”. Nesse movimento, argumenta White, a “literatura” teria suplantado o discurso oratório, da mesma forma que a prática da “escrita” e da “filologia” teriam suplantado a retórica como ciência geral da linguagem. A partir daí, a questão teórica da escrita da história passou pela especificação da relação da história com a “literatura”, o que, no entanto, teria criado um problema insolúvel, dado que a literatura era normalmente pensada como produto misterioso de uma “criatividade poética”.

Entretanto, para White, o fato das obras clássicas da historiografia continuarem a ser valorizadas por suas qualidades “literárias”, mesmo depois de seu conteúdo informativo ter sido considerado ultrapassado e lhe ter sido atribuída a característica de lugares-comuns do momento cultural em que foram escritas, confirma que o conteúdo do discurso historiográfico é indistinguível de sua forma discursiva:

É verdade que, ao falarmos da natureza “literária” de clássicos da historiografia como os escritos por Heródoto, Tácito, Guicciardini, Gibbon, Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Mommsen, Huizinga, Febvre ou Tawney, podemos muitas vezes estar pensando em seu status como exemplares de um estilo bem-sucedido de escrita. Mas ao designarmos sua obra como “literária” não a estamos exatamente removendo do domínio da produção de conhecimento, e sim indicando, simplesmente, até que ponto se pode considerar que a própria literatura habita esse domínio, na medida em que ela também nos fornece modelos semelhantes de pensamento interpretativo (WHITE, 1991, p. 25).

Assim, os dois tipos de discurso, o literário e o historiográfico, mais se aproximariam que se distanciariam, pois, como ambos operam a linguagem, seria impossível traçar uma distinção clara entre a forma discursiva e o conteúdo interpretativo. Imprecisa, a diferença entre os discursos literário e histórico dever-se-ia ao fato de que seus referentes básicos são concebidos, respectivamente, mais como eventos “imaginários” que “reais”.

Não é aleatório que, já no século XX, precisamente no final dos anos 1970, um estudo de Lawrence Stone (1979) detectava uma espécie de retorno à retórica da prosa elegante do contar histórias (story-telling) “de Tucídides e Tácito à Gibbon e Macaulay”. Diante de um desgaste da explicação monocausal da mudança histórica amparada em determinismos econômicos, e com o reconhecimento da iniciativa do indivíduo no curso dos acontecimentos, em suas esferas cultural e emocional, de acordo com Stone, cada vez mais os historiadores passavam a trabalhar com seu objeto privilegiando uma perspectiva descritiva, através da qual a narrativa histórica organiza o material de pesquisa em uma sequência cronológica e o apresenta como conteúdo em uma única trama, ao invés – e cada vez menos – de dispô-lo em um arranjo analítico, de perspectiva estrutural, em cujo foco está a circunstância e não o sujeito. A história em questão era: haveria um “retorno da narrativa”, o surgimento de uma “nova velha história”, ligada à literatura que fora rejeitada pelo cientificismo do século XIX?

A partir disso, ao se pensar a história a partir de suas afinidades com a literatura, criou-se um conflito entre os historiadores com os pressupostos de cientificidade que haviam estabelecido a história como disciplina do conhecimento no século XIX, distanciando o historiador do cientista e aproximando-o do literato. Entretanto, se por um lado, as propriedades literárias da escrita da história, principalmente a narrativa, suscitaram questionamentos sobre a subjetividade e o caráter interpretativo do conhecimento histórico, evidenciando a relação complexa entre as fontes e a produção do discurso do historiador com uma incômoda interrogação sobre as garantias de objetividade científica na análise dos fatos do passado, por outro, a concepção da história, sobretudo enquanto narrativa, como um constructo linguístico intertextual, ofereceu elementos para que o historiador refletisse sobre seu ofício e para que buscasse um refinamento do seu trabalho de pesquisa e de escrita da história.

De fato, a julgar pelo imenso volume de contribuições que este dossiê recebeu, a compreensão interdisciplinar entre a história e a literatura deixou há muito de ser um assunto em litígio para se tornar um recurso valioso. É sintomático que, entre os artigos selecionados para o dossiê que se apresenta, há trabalhos nascidos no berço da literatura que se voltam com naturalidade à história e trabalhos provenientes do berço da história cujas reflexões encontram confortável amparo na literatura.

Assim, este dossiê é motivo de grande satisfação não apenas devido à qualidade de cada um dos trabalhos aqui publicados, um mérito indiscutível dos autores, mas também devido ao que ele próprio representa: é um sinal eloquente de uma tamanha afinidade da história e da literatura que torna indistinta a separação disciplinar tradicional dos ramos do saber.

Que este dossiê seja uma inspiradora semente de outras possibilidades.

Referências

DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. pp. 15-31.

LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

STONE, Lawrence. The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History. Past & Present, Oxford – UK, v. 4, n. 85, p. 3-24, nov. 1979.

WHITE, H. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 21-48, 1991.

Ana Beatriz Demarchi Barel – Doutora em Literatura Brasileira – Université Paris III Sorbonne Nouvelle Pesquisadora Pós-Doutorado em História – FCRB (Bolsista FAPERJ).

Sérgio Campos Gonçalves – Doutorando em História – UNESP / Franca.

Organizadores do Dossiê História e Literatura no século XIX.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original; GONÇALVES, Sérgio Campos. Segunda Apresentação. Acessar publicação original [DR]

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História, Arqueologia e Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

História – Arqueologia – Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

Este volume se dedica aos estudos do diálogo entre História, Arqueologia e Literatura. De acordo com Schiffer (2010), a Arqueologia estuda o comportamento humano no tempo e no espaço através da cultura material, ou da relação das pessoas com a cultura material (SCHIFFER apud BARRETO, 2013, p. 272). Segundo Vítor Oliveira Jorge (1990, p. 24) a Arqueologia é uma forma própria de estudar o mundo material, as relações do homem com a realidade física que o rodeia e da qual ele mesmo faz parte. Diversas são as abordagens que hoje analisam os artefatos como vestígios do comportamento social e humano. Em particular, os estudos de Arqueologia da Paisagem (nas suas mais diversas vertentes) têm procurado aprofundar a análise desses vestígios, entendendo as modificações feitas pelo homem na paisagem. Os trabalhos desenvolvidos neste campo procuram dar conta dos assentamentos, das estruturas e artefatos, tendo em mente a relação entre cultura e ambiente. Analisam, assim, de forma holística a relação entre o homem, o que ele necessita, os artefatos e estruturas por ele produzidos e o espaço onde viveu (ROBRAHN-GONZÁLEZ, 1999-2000, p. 18).

Nesta edição duas resenhas discutem a relação entre História e Arqueologia. A primeira, de Ana Carolina Moliterno Lopes de Oliveira (PPGH-UFF) discute o livro de Richard Bradley, professor de Arqueologia da Universidade de Reading, sobre o arquétipo circular nos antigos monumentos europeus desde o neolítico em estudo comparativo com as sociedades europeias atlânticas. O livro é dividido em 10 capítulos. O trabalho se insere na Arqueologia da Paisagem, integrando o estudo de monumentos e assentamentos aos espaços, partindo a análise do aspecto socioeconômico para o cultural.

A segunda resenha, de Benito Márquez Castro, da Universidade de Vigo apresenta o livro escrito em galego em 2013 por Adolfo Fernández Fernández, fruto de sua tese de doutorado, sobre o comércio no noroeste peninsular – Galícia Sueva e Visigoda, com base em registros arqueológicos. Fernández Fernández analisa as relações comerciais entre galo-romanos e povos germânicos nessa região, mostrando a riqueza dessas relações, não apenas violentas, mas também pacíficas, através do comércio. A análise vai do século IV ao século VII, constituindo uma importante contribuição aos estudos sobre essa região europeia.

Quanto aos artigos do dossiê, discutem a relação entre História e fontes literárias. Proeminentes historiadores tem destacado a importância dos estudos dessas obras para a compreensão do imaginário de uma determinada época. De acordo com Patlagean (1993, p. 201), o imaginário abrange todo o campo da experiência humana e nos auxilia a decifrar elementos simbólicos de outros momentos históricos. Para Pesavento o imaginário pode ser entendido como um “sistema de imagens e ideias de representação coletiva que os homens, em todas as épocas construíram, dando um sentido para si e para o mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43). Esse imaginário é construído e deve ser lido historicamente.

As fontes literárias e todos os registros históricos produzidos pelos humanos não são neutros, motivo pelo qual devemos ter um olhar questionador sobre qual o motivo da produção de um documento numa determinada época, por quem foi encomendado, a quem ele era destinado e com qual finalidade.

No caso do período Antigo e Medieval também temos a riqueza de perceber que as relações entre produção, circulação e recepção de muitos documentos estão associadas à inter-relação entre as culturas erudita e popular e também à oralidade, uma vez que muitos registros circulavam oralmente e demonstravam absorver elementos de uma cultura não letrada.

Neste sentido, a Profª. Marie Anne Polo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e do Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM) analisa os exempla, narrativas curtas com o objetivo da evangelização da população e o papel dos pregadores, como Jacques de Vitry, Cesário de Heisterbach e Bernardino de Siena que, através da oralidade, buscavam estratégias para atingir o seu público. Desta forma, absorviam narrativas da cultura popular, misturando o vernáculo com o latim e fazendo uso do apelo teatral para passar a mensagem cristã ao público. Vale destacar que como forma de convencimento da sua mensagem era muito importante a performance dos pregadores e a empatia que conseguiam causar nos seus ouvintes. O GAHOM possui em sua homepage vários exempla disponíveis para auxiliar e ampliar os estudos deste tipo de narrativa.

O Prof. Ruy Oliveira Andrade Filho e o Doutorando Germano Favaro Esteves (UNESP-Assis) investigam os sentidos da Vita Desiderii, obra do século VII, escrita pelo monarca Sisebuto, através da análise crítica do discurso. O documento constitui-se na única hagiografia escrita por um rei visigodo e os autores buscam identificar os motivos disso, identificando através do estudo da obra, as relações de poder que são construídas entre rei e seus súditos. Destaque para os elementos negativos dos reis burgúndios que aparecem no relato de Sisebuto.

Ainda enfocando a Hispânia Visigótica, precisamente na transição entre os séculos VI e VII, sob o prisma de uma História do imaginário político, o artigo da Profª Pâmela Torres Michelette (UFPI / UNESP) trata da gesta do conceito de realeza cristã nos escritos de um clérigo destacado da Patrística Primeira Idade Média, Isidoro de Sevilha (560-636). Com efeito, como os leitores poderão perceber ao longo da exposição, este pensador clerical foi um verdadeiro ideólogo orgânico da legitimação cristológica e agregadora entre hispano-romanos católicos e visigodos arianos, quando da conversão do Regnum ao Catolicismo, no III Concílio de Toledo (589), sob o reinado de Recaredo (587- 601).

João Paulo Charrone, docente da UFPI, analisa a figura de um erudito, Venâncio Fortunato, proveniente de Ravena, na Itália, que viveu no século VI, fez estudos voltados para a área do Direito e de Letras e dedicou-se a produzir poesia latina, fazendo referência aos autores clássicos em suas obras. Em virtude de seus poemas, alcançou grande reputação na Gália Merovíngia. Ele estaria entre os dois mundos, segundo o autor, em virtude de ser um representante da época clássica tardia e de uma nova era que se iniciava, a Idade Média. De acordo com esse estudo, é importante um maior aprofundamento de suas obras para o entendimento da cultura erudita nesse momento de passagem entre Antiguidade e Idade Média.

Nossa atual edição conta ainda com um provocante estudo poético-identitário acerca do hino nacional alemão (Deutschlandlied), efetuado por uma pesquisadora alemã, Profª. Andrea Grafetstätter, que desenvolve hoje seus trabalhos na França, na Université du littoral côte d’opale. Longe de se constituir em um manifesto nacionalista ou insistente na originalidade da letra do ilustrado filólogo e poeta romântico alemão August Heinrich Hoffmann von Fallersleben (1798-1874), a autora investiga as origens dos versos nas disputas retóricas entre trovadores franceses e alemães dos séculos XII e XIII. Eis mais um brilhante exercício presente-passado-presente, que confronta e desnaturaliza – como deve ser, efetivamente, o intuito da História – as construções nacionalistas do Romantismo oitocentista e seus corolários no século XX.

A contribuição dos emergentes estudos da Germanística medieval brasileira vem complementar o ensaio anterior, no presente volume, sob a pena de um de seus mais destacados pesquisadores, o Prof. Álvaro Bragança Júnior (UFRJ). A partir de um exercício não menos instigante passado-passado, o artigo apresenta os (des)caminhos ideológicos e os circuitos de apropriação e ressignificação político-ideológica do ideal de cavaleiro (o Ritter) das narrativas alemãs centro e tardo-medievais pelo discurso e, sobretudo, pela indústria de propaganda e doutrinação do III Reich, sob o totalitarismo nacional-socialista.

Já o texto da promisora doutoranda Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato (UFRJ), valendo-se da análise comparativa entre a História da Cultura e a Teoria Literária, problematiza os aspectos ideológico e político das relações feudo-vassálicas presentes em uma narrativa inglesa do século XII, intitulada Esope. Conjunto de apólogos cujos enredos mimetizam as relações sociais estruturantes do contrato feudal, Esope ainda importa para a análise medievalística, como se evidencia ao longo deste alentado estudo, por denotar outro processo social. Trata-se aqui de um expediente retórico tipológico nos escritos medievais: a atribuição da composição do texto à auctoritas de um autor ou rhetor clásico, neste caso Esopo, como forma de atrair fortuna crítica e capilaridade social ao escrito.

No mesmo escopo e nas mesmas Ilhas Britânicas, mas a oeste da antiga Albion, finalizamos este Volume da Revista Brathair com um precioso ensaio filológico da Profª. Luciana Cordo Russo (IMHICIHU-CONICET / UBA), recordando-nos de que também é tarefa dos historiadores capturar as permanências e mudanças nos campos semântico e morfológico dos idiomas. São aqui tratadas, em cotejo com as narrativas celtas arturianas contidas nos Mabinogion, as venturas da adaptação galesa – mais que mera “tradução” – da Chanson de Roland (a Canção de Rolando), comumente associada à data aproximada de 1084. Além do interesse despertado pela análise filológica, este artigo aborda o exemplo inaugural do primeiro gênero retórico-poético propriamente medieval, a canção de gesta, sucessora das grandes epopeias do Mundo Clássico e lugar da memória estilizada dos feitos de cavalaria do Ciclo Carolíngio, que tanto influenciou a prtodução escrita popular no Brasil, com destaque para a região nordeste.

Convidamos nossos leitores a apreciar este conjunto de textos instrutivos, cativantes e que unem, com singular habilidade, um amplo recorte temático e preleções de método literário e historiográfico.

Boa leitura!

Referências

BARRETO, Bruno de Souza. Historiografia e Interfaces: um diálogo entre História, Antropologia e Arqueologia, Revista de Teoria da História (UFG). Ano 5, nº 9, jul 2013, p. 247-279.

JORGE, Vítor Oliveira. Arqueologia e História: algumas reflexões prévias. Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Borges de Macedo, 1990. Disponível em: http: / / ler.letras.up.pt / uploads / ficheiros / 2210.pdf . Acesso em 20 / 05 / 2015.

PATLAGEAN, Evelyne. História do Imaginário. In: LE GOFF (Dir.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 291-318.

PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. Arqueologia em Perspectiva: 150 anos de prática e reflexão no estudo de nosso passado, Revista USP, São Paulo, n. 44, dez-fev 1999-2000, p. 10-31.

Adriana Zierer – UEMA. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: [email protected]

Marcus Baccega – UFMA. Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.14, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais, Literatura e Historiografia / Vozes Pretérito & Devir / 2014

No quadro acima do pintor francês Henri Matisse, denominado “Mulher Lendo”, vê-se uma mulher sentada de costas para o olhar curioso do seu observador. À sua frente, vestígios de um tempo esquecido, mas iluminado pela luz que parte de uma tímida luminária, permitindo ver a existência de um pequeno lugar excedido por um móvel que guarda sob sua superfície alguns objetos (quadros, vasos, objetos decorativos).

O pequeno móvel encontra-se ligeiramente aberto, dando mostras da existência de alguns papeis, provavelmente o lugar onde a mulher abriga o livro que lê de maneira silenciosa e indiferente à presença do seu observador.

A cena retratada pela imaginação e pelos pinceis de Matisse faz parte do acervo sensível do imaginário sobre leitores e leituras, desde o tempo que a Literatura se avizinha ao gosto humano de criar outras dimensões ficcionais; de abrir novas expectativas temporais e desenhar outras virtualidades ligadas ao espaço, aos sonhos, às necessidades e expectativas.

A leitora de Matisse representa o nosso desejo inconsciente de escapar do tempo comum, do tempo calendário e tornar-se andarilho no tempo da leitura. O tempo da leitura é o tempo do agora que presentifica o texto. Ele dissolve o passado, dando a esse novo formato, possibilidade e historicidade, pois o tempo se renova a partir do olhar de cada leitor(a) e de cada flâneur.

Não olhamos as coisas e as pessoas da mesma forma, mas sob nossa perspectiva. Nosso olhar é de perspectiva, referencial e moldado pela nossa experiência de leitores. É a nossa experiência que atualiza sujeitos, objetos, problemas, que nos chegam desfocados do passado. É o presente que amplia as formas do passado. Não somos presidiários do passado. Aquilo que nos chega amorfo, empoeirado, desgastado pelo tempo é atualizado pela leitura, pelo tempo sempre inebriante do presente. Somente o presente atualiza o passado. No presente de cada passado existe uma leitora de Matisse atualizando o tempo, os sentidos e as passagens.

Em nosso Dossiê, Intelectuais, Historiografia e Literatura, existem várias passagens atualizadas pela artimanha dos nossos leitores privilegiados: os autores e autoras. Há passagens com relação ao Arquivo de si: as implicações entre testemunho, escrita literária e escrita de si, escrito por Ana Cristina Meneses de Sousa; Sociabilidade intelectual na imprensa natalense na Primeira República (1889-1930), de Maiara Juliana Gonçalves da Silva; O que há de impessoal em arquivos pessoais: considerações a partir de uma experiência de pesquisa na França de Rafael Faraco Benthien; Poema erguido na rua: usos e sensibilidades de uma Teresina em dois tempos (57 / 77) de Renata Flávia de Oliveira Sousa;A cronologia das bestas e o cumprimento das profecias: o conhecimento histórico nas obras pentamonarquistas de William Aspinwall (1653-1657), de Verônica Calsoni Lima; Roberto Piva, periferia-rebelde e estética da existência: subjetividades urbanas desviantes e manifestos literários no Brasil (1958-1967), de Reginaldo Sousa Chaves; Sobre a cultura política de esquerda na França e suas reconfigurações na revista Socialisme ou Barbarie (1946-1968) de Guilherme Bianchi Moreira; Homens de cultura na Baixa Idade Média ocidental: aspectos da formação erudita de Eliane Santana Veríssimo; Carlos Eduardo Zlatic; Oswald de Andrade e a experiências de modernidade em São Paulo: identidade, sociabilidade e política, de Marcio Luiz Carreri; Luiz Costa Lima: afinidades e linha de força de uma obra de Raphael Guilherme de Carvalho; Representações da Nação: a apresentação de Alceu Amoroso Lima no álbum fotográfico Brésil de Rafael Luis dos Santos Dall’olio. Além dos textos de Ronaldo Zatta, em tributo a Helenice R. da Silva e André Feixo que discute a série de documentos históricos editados sobre a direção de José Honório Rodrigues quando este esteve à frente da biblioteca nacional.

Os artigos favorecem pensar outras virtualidades sobre a relação história e literatura, como: A cidade e a música popular: Teresina e os espaços de prática musical nos anos 1980, de Hermano Carvalho Medeiros; Euclides da Cunha, Rodolfo Teófilo e o debate sobre a migração cearense para a Amazônia, de Bruno de Brito Damasceno; Instituto do Museu Jaguaribano: discurso e cidade, de Alex da Silva Farias.

Além dos artigos, a nossa 3º edição conta ainda com uma homenagem à professora Helenice Rodrigues da Silva, ex-conselheira da revista, falecida ano passado, grande estudiosa da história intelectual, e uma resenha sobre Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de IbnKhaldun, publicado em 2012 por, Elaine Cristina Senko, analisada pelas pesquisadores Ana Luiza Mendes, Bel Drabik.

Todos esses escritos desalojam a leitura, abrem novas virtualidades e passagens no tempo. As configurações elaboradas por nossos autores e autoras provocam por parte de nós, seus leitores, novas refigurações, ou seja, a transformação das nossas experiências vividas sob o efeito da narração.

A partir da remodelação de nossas experiências de leitor reconstruímos historicamente o passado baseados nos rastros deixados pela ausência desse. É a partir da ficcionalidade de nossa leitura que transformamos a nossa experiência temporal.

Nesse sentido fica o convite para os nossos leitores virtuais e atemporais refigurarem seu mundo de forma diferente, a partir da apreciação de nossos escritos; pois a leitura é uma atividade de recepção e de reapropriação transformadora dos nossos sentidos e percepções.

Somos todos como um quadro de Matisse, pintados pelo tempo, refigurados pelos novos sentidos que damos ao mundo. Assim como a leitora de Matisse, também subtraímos do tempo suas inquietações, pois ele passa, mas cabe a nós preenchê-lo de sentidos, remodelarmos seus rastros e permitirmos que o passado seja uma tela sempre pronta para novas refigurações e atualizações.

Boa leitura!!!

Ana Cristina Meneses de Sousa


SOUSA, Ana Cristina Meneses de. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Literatura e Memória / História.com / 2013

Não seria justo pensarmos no Dossiê Temático Literatura e Memória e não nos reportarmos a Jorge Amado, um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX que tanto contribuiu com o cenário intelectual com seus romances largamente publicados e traduzidos em diversas línguas. A intenção é homenagear o escritor baiano, porque as contribuições dos autores às nossas seções discutirem alguns dos temas preferidos do intelectual como o negro, as questões raciais, o cenário baiano, a literatura, a cultura regional. Devido a isso, escolhemos como imagem da capa uma caricatura do escritor.

Esperamos que esta edição estimule o labor intelectual dos estudantes e professores que leem nossa revista, e continue cumprindo o papel de espaço de sociabilidade. Na seção Dossiê Temático, estudos interessantes sobre a memória e a literatura foram primados com o intuito de compreender os eventos que condicionaram épocas diferentes na história da humanidade, em especial do Brasil e suas regiões. Grandes esforços têm feito os historiadores para conseguir a renovação do campo da História, levando-nos a pensar, crer e elaborar propostas que tragam para esta área do conhecimento novos temas e objetos. Lourenço Resende da Costa em História e gênero: A condição feminina no século XIX a partir dos romances de Machado de Assis, analisa quatro livros de Machado de Assis discutindo e comparando como a mulher é recepcionada em seus escritos. É uma proposta que considera a produção literária como uma das possibilidades de entender a mentalidade de uma época, colocando o autor enquanto integrante e resultado de uma determinada realidade social. Estudo semelhante foi realizado por Loiva Canova, Hugo Aguiar Teixeira Leite, Jhuan Cláudio Matos de Oliveira e Sander Souza Rodrigues Cintra em O discurso eugenista de um intelectual cuiabano, que analisa o discurso eugenista do intelectual mato-grossense José Barnabé de Mesquita. Conforme expressaram os autores, “a obra escrita em finais do século XIX trata de questões sobre as causas da degenerescência das raças no contexto da República” apontado um tipo de comportamento e mentalidade que o intelectual cuiabano queria implementar em Mato Grosso, pensamento muito afim às políticas de governo do final do Oitocentista.

Martha Maria Brito Nogueira nos excita a pensar e querer entender a mobilidade social da sociedade conquistense do final do século XIX e início do XX, em “Fulô do Panela”: Mobilidade social das mulheres negras na sociedade conquistense (1850-1930). A autora analisa a trajetória da mulata Eufrosina Maria de Oliveira Freitas, conhecida como “Fulô de Panela”, filha de uma escrava alforriada do século XIX. Nesse cenário, apresenta não apenas a personagem central de sua investigação, como também outros sujeitos, a exemplo dos mestiços da Cidade de Conquista, na Bahia. A negação do africano nas letras de Xavier Marques de Rafael Rosa da Rocha é um reforço às pesquisas da História Regional, e “[…]objetiva discutir algumas das representações sobre a cultura negra presentes no romance O Feiticeiro (1914 / 1922), escrito pelo literato Francisco Xavier Ferreira Marques (1861-1942) […]”, que foi um intelectual “[…] que utilizou da obra ficcional para delinear a Bahia no contexto das últimas décadas do século XIX e início do século XX a partir de uma perspectiva regionalista”. O trabalho apresenta uma análise interessante a respeito da imagem que o africano ocupa no romance, corroborando com a possibilidade de diálogo entre a História e a Literatura.

Comparado aos outros trabalhos da seção, A memória traumática da tortura: Contribuições do debate acadêmico para as possibilidades de reabilitação e esquecimento de Vivian Souza é um forte aporte para pensarmos no campo da memória e sua utilização como fonte para entendermos momentos importantes da história recente como a Ditadura Militar (1964-85). Ela analisa a memória dos torturados pela ditadura e o processo de anistia, enviesando sua leitura para a perspectiva e problemática relação entre a memória, o esquecimento e o silêncio, conforme as indicações teóricas do historiador francês Michael Pollak.

Na seção Artigo Livre, Geferson Santana nos convida para a leitura de Notas sobre os esforços de guerra na Bahia, que versa sobre a contribuição da produção acadêmica originalmente baiana empenhada em pensar o contexto da Segunda Guerra Mundial e sua repercussão na Bahia. É uma reflexão que nos alerta sobre a necessidade de investigarmos a guerra em suas instâncias regionais, descentralizando uma historiografia paulistocentrista [2] e sua visão unilateral sobre a guerra. Reforçando os estudos sobre a História da Bahia, Fábio Falcão Oliveira em Alexandre de Gusmão: Breves considerações de um projeto no recôncavo baiano no século XVII, convida-nos a entender a proposta do projeto pedagógico promovido pelo religioso no Seminário de Belém – primeiro do Brasil – e que seria importantíssimo na história do Recôncavo baiano no período colonial.

Os estudos sobre o mundo do trabalho e de seus principais sujeitos, os trabalhadores, têm crescido nas universidades permitindo o surgimento de novas perspectivas e fontes de investigação histórica. Guilherme I. Franco de Andrade em A crise política do proletariado: O crescimento de popularidade da Frente Nacional Francesa entre os trabalhadores, centra-se em “[…] investigar o aumento significativo do número de votos provenientes dos trabalhadores franceses em partidos de extrema direita” simbolizando o aumento das pesquisas referentes a atuação política da extrema direita, assim como da relação dos trabalhadores com o mundo não apenas do trabalho, mas igualmente da política. A perspectiva de Kauan Willian Dos Santos apresentada em Anticlericalismo e militância sindical: o periódico anarquista A Lanterna e sua ação entre os trabalhadores em São Paulo (1901-1914), é um pouco parecida, pois objetiva investigar a atuação política e anticlericalismo do periódico anarquista A Lanterna e sua repercussão entre os trabalhadores paulistas.

Na seção Resenha, Geraldo Magella de Menezes Neto em Sugestões para o trabalho com o cordel na sala de aula, aponta a importância de pensarmos no cordel como método pedagógico nas aulas pelo seu caráter poético. Como temos buscado novos rumos para o processo de ensino e aprendizagem dos educandos e suas relações com a comunidade escolar, acredito que estas reflexões do autor seguramente representa uma boa dica do mestre. Este trabalho finaliza a nossa edição constituindo uma contribuição importante para os professores que queiram usar a referida literatura em suas aulas.

Ao leitor, deixamos nossa segunda edição que caracteriza um grande esforço de nossa equipe, levando em consideração que manter um periódico no Brasil, não é fácil. Este nos representa, à medida que se propõe a construir edições com muito empenho, disciplina, dedicação e fidelidade a nossa proposta de divulgação do conhecimento acadêmico formulado e pensado no âmbito nas universidades e escolas da educação básica. Lançamos nossa convocação aos professores da escola pública e privada, pois acreditamos que os educadores destas instituições também podem contribuir com este periódico, considerando que escola também é produtora de conhecimento, espaço de sociabilidade e reduto aglutinador de experiências.

Desejamos uma boa leitura!

Notas

2. Termo usado pela historiadora Sonia Regina de Mendonça integrante do corpo docente do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Geferson Santana – Editor Gerente do periódico desde 2012. Mestrando em Historia e Historiografia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e graduado em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).


SANTANA, Geferson. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.1, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Politeia: História e Sociedade / 2013

Para os historiadores, e não apenas para os historiadores da literatura, pelo menos desde meados do século XX, a obra literária foi alçada, assim como a obra de arte, os falares, os gestos e outros fenômenos e objetos culturais, à condição de fonte para a construção do conhecimento histórico. É certo que a presença da literatura na escrita historiográfica antecede ao grande movimento de renovação da História iniciado por essa época. Não há de se estranhar a presença da literatura em textos de orientação marxista e mesmo em clássicos do positivismo. Mas, da observação dos trabalhos publicados ao longo das últimas cinco décadas, depreende-se não apenas o crescimento em importância do uso da literatura como fonte histórica mas, também, mudanças significativas no tratamento dessas fontes e na definição das matérias que, por meio delas, se anunciam como objetos de investigação.

A literatura fez-se fonte privilegiada de um amplo campo de saber em favor do qual militam – e compartilham fontes e métodos de abordagem – historiadores, filólogos e outros pesquisadores do campo das letras, em um esforço conjugado, voltado para a descrição das obras literárias, para a enunciação de seus caracteres linguísticos e valores estéticos, para a identificação de fórmulas literárias que se mantêm no tempo, para o enfrentamento das questões pertinentes ao fenômeno da autoria e das representações sociais.

Do ponto de vista metodológico, a utilização da literatura como fonte demanda o discernimento sobre os conceitos e métodos de abordagem ofertados pela filologia, pela antropologia, pela sociologia, às vezes pela psicologia, pela história da arte, da literatura, da filosofia, da música e de outros campos da história, a partir dos quais a história social e cultural desenvolve os seus próprios instrumentos de análise. Por outro lado, aos pesquisadores impõe-se situar frente aos inúmeros conceitos de uso corrente, como ideologia, mentalidades, representações, imaginário etc.

O conhecimento histórico acumulado sobre épocas e lugares precisos, ou abarcando grandes regiões e períodos, tem se revelado indispensável aos estudiosos da literatura, mesmo àqueles que buscam desvelar caracteres próprios a autores, obras e movimentos literários. E, mais recentemente, tem se revelado imprescindível para aqueles que se debruçam sobre a tarefa de desvendar os modos individuais e coletivos de recepção das obras literárias.

Ao historiador, especificamente, a pesquisa deve conduzir à construção – e transposição para a escrita historiográfica– de discursos sobre realidades históricas, nas quais as obras literárias e as tendências classificadas como movimentos literários têm origem e nas quais se difundem.

Dois problemas se apresentam, entretanto, para os historiadores da literatura: o primeiro refere-se à própria noção de realidade histórica que se busca elucidar; o segundo diz respeito à relação entre a literatura e essa suposta realidade histórica, à qual se pretendeu, durante muito tempo, atribuir uma concretude ou subordinar aos esforços de reflexão teórico-abstrata, mas que, hoje, se revela multifacetada, cambiante conforme os determinantes espaço-temporais e as leituras que dela fazem os agentes do fazer historiográfico.

É indiscutível que a literatura traz importantes informações sobre essa suposta realidade histórica, não como um espelho a refletir as estruturas e movimentos da sociedade, mas como um dos seus elementos constitutivos. Como representação social, a produção literária permite elucidar aspectos importantes da vida material, dos conflitos e formas de sociabilidade, das formas de pensamento, dos valores e padrões de conduta de uma determinada configuração histórico-geográfica.

Outros problemas são reportados por aqueles que têm se debruçado sobre a tarefa de escrita da história a partir das fontes literárias: as dificuldades de acesso às fontes; as barreiras à interlocução face às eventuais diferenças de língua e de linguagens; as alterações estéticas e ideológicas e, também, materiais, que afetam os documentos e que se refletem nos modos de recepção individuais e coletivos dos textos. Outrossim, é imprescindível reconhecer que sobre a produção literária pesam a origem, formação e linguagem individual do autor; as convenções estéticas do seu tempo, às quais ele está mais ou menos subordinado; também, os valores sociais e culturais próprios aos grupos que lhe patrocinam e aos que lhe servem de audiência. São inúmeras as possibilidades de abordagem que estão a exigir teorias e métodos distintos. Enfim, faz-se necessário refletir sobre a especificidade da literatura entre as diversas formas de expressão cultural, particularmente nas sociedades em que o acesso à leitura de textos escritos, predominantes nos estudos de história literária, está restrito a uma ínfima parcela da população.

É sobre esse complexo conjunto de problemas que se estrutura o presente dossiê temático, dedicado às relações entre literatura e história. Abre a sessão o artigo intitulado “Sacrifício e lealdade no campo de batalha”, de autoria do Prof. Elton Oliveira Souza de Medeiros, coordenador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares das Ilhas Britânicas: Antiguidade e Medievo. A partir do conceito de mito-história, o autor analisa as apropriações, no século XIX, do poema A Batalha de Maldon, que tem por tema a batalha, ocorrida em 991, entre anglo-saxões e vikings e que foi difundido, à época de sua elaboração, como instrumento de afirmação dos modelos heroicos e de organização da vida social anglo-saxônicos.

O artigo de Adriana Zierer, professora de História Medieval da Universidade Estadual do Maranhão, tem por título “Entre o Paraíso e o Inferno: os sonhos n’A Demanda do Santo Graal” e versa sobre as representações dos espaços do além-túmulo na versão portuguesa da Queste del Saint Graal, novela de inspiração bretã. Difundida em Portugal, no século XIII, com o título A Demanda do Santo Graal, a história individualiza os personagens em conformidade com seus vícios e virtudes e faz ver, por meio deles, dos relatos dos seus sonhos, as características dos espaços extraterrenos, em consonância com os ensinamentos da Igreja.

É também da literatura de cavalaria de expressão portuguesa que trata o artigo de Ana Márcia Alves Siqueira, professora da Universidade Federal do Ceará, “O simbolismo do cavaleiro andante entre Literatura e História”. Em uma perspectiva temporal mais ampla, que remonta ao século XIII e se estende ao século XX, a autora propõe analisar a imagem do cavaleiro andante, de viés salvacionista, como paradigma da identidade nacional portuguesa.

O artigo seguinte, de autoria de Roberto Silva de Oliveira, professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, tem por título “A vida e a obra de Dante Alighieri na perspectiva de Giovanni Boccaccio e Leonardo Bruni”. O texto tem por proposta fazer um estudo comparativo das abordagens de Boccaccio e Bruni sobre os fatos que marcaram a vida e a obra do poeta, de modo a destacar os interesses e condicionantes sociais e pessoais que, em contextos distintos, resultaram na elaboração do Trattatello in laude di Dante e do Della vita, studi i costumi di Dante.

De autoria do professor Geraldo Augusto Fernandes, da Universidade Federal do Ceará, é o texto “Uma leitura controversa de texto antigo no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende”. O artigo versa sobre os critérios de escolha e utilização de versões de uma mesma fonte e sobre as leituras possíveis que resultam dessas escolhas.

O dossiê se encerra com o texto “Escrita e infância nas estórias de Luandino Vieira: uma leitura de Luuanda”, de Zoraide Portela Silva, professora da Universidade do Estado da Bahia. O artigo trata do hibridismo linguístico e cultural de Luandino Vieira, especialmente nos seus escritos em que figuram como personagens centrais as crianças dos musseques angolanos. A autora propõe refletir sobre as relações entre o bilinguismo e as configurações específicas da dominação colonial portuguesa em Angola.

Rita de Cássia Mendes Pereira – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: [email protected]


PEREIRA, Rita de Cássia Mendes. Apresentação. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista – BA, v. 13, n. 2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2013

A Cordis: Revista Eletrônica de História Social da Cidade apresenta em seu número 10, a temática História e Literatura, que conta com 10 artigos de pesquisadores de instituições universitárias brasileiras e internacionais. Estas produções científicas trazem à tona a literatura como objeto de estudo para o historiador, partindo de concepções da área História Cultural, de que as obras literárias são consideradas como produtos culturais e representações a serem decodificadas e descontruídas para os resgates de suas singularidades, propriedades determinadas, especificidades e intencionalidades subjacentes.

O historiador, por meio da literatura como documento histórico, a partir de questões vivenciadas em seu presente, retorna ao passado e lhe faz perguntas que lhe pareçam apropriadas no diálogo com esta fonte documental. As indagações do historiador denotam a própria subjetividade do pesquisador, que está emaranhado no tecido das tramas de seu objeto de estudo. O pesquisador ao “fazer história”, tece sua narrativa histórica, imbuído do olhar de suas práticas sociais, de suas experiências vividas e, a partir de uma relação dialógica com seus pressupostos teórico-metodológicos, deve estar sempre aberto para que estas concepções sejam modificadas no contato com a pesquisa empírica.

Os artigos do número 10 da Revista Cordis demonstram que, para que a literatura se constitua como fonte de estudo e interpretação histórica, é importante o entendimento de que, em cada discurso literário, há autores / autoras que apresentam determinados projetos e visões de mundo, e que traduzem a realidade a seu modo, deixando aflorar intermitentemente imaginação, medos, desejos, angústias, aspirações, paixões, emoções, possibilitando atribuir “vozes” a diferentes sujeitos sociais, inclusive os marginalizados e oprimidos da vida cotidiana.

Os textos literários contribuem para o desvendamento de representações da realidade e, como linguagens constitutivas do tecido social, apresentam homens e mulheres de diferentes tempos e lugares, bem como suas experiências, e podem transmitir os testemunhos históricos de tensões sociais da realidade vivida. Ao mesmo tempo, difundem, por meio de códigos culturais da narrativa literária, perfis sociais e sexuais e influenciam nas maneiras de pensar, na construção de valores, sentimentos e padrões de comportamentos de uma sociedade.

Nesta perspectiva, os documentos literários não são concebidos pelos artigos como instrumentos refletores de verdades acabadas ou que espelhem uma realidade objetiva. O trabalho dos historiadores com as tramas literárias, neste eixo temático da Revista Cordis, temática História e Literatura, permite resgatar como uma determinada sociedade se constrói historicamente no cotidiano e como colabora na edificação de práticas e projetos, bem como de valores culturais. De acordo com o estudioso Nicolau Sevcenko, em sua importante obra Literatura como missão, o corpus documental literário pode veicular, também, projetos vencidos e, nesse sentido, veiculam as histórias que não ocorreram, as possibilidades que não vingaram e os planos que não se concretizam historicamente.[1]

Os artigos desta temática demonstram também, por meio do diálogo com diversas fontes documentais literárias, que estas devem ser interrogadas pelo historiador, de modo a considerar os “ditos” e “não ditos” em suas práticas discursivas. Para que os discursos dos “não ditos” venham à tona, é importante interpretar o que está implícito nas entrelinhas do documento histórico. Desse modo, o objetivo é fazer aflorar o conteúdo latente dos silêncios presentes nos textos literários.

É importante ressaltar que os “ditos” e “não ditos” dos discursos literários não são neutros ou imparciais, à medida que, devidamente descontruídos pela explicação histórica, podem ser desfiados e desvelados pelo historiador – tal qual faz um detetive – que vai à busca de indícios, pistas e sinais de registros das expressões humanas e de seus significados culturais.

Os artigos dos historiadores Yvone Dias Avelino, denominado A construção de uma realidade: cidade, história e literatura, e de Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim e Shara Jane Holanda Costa Adad, que tem como título Literatura e História: Manuel de Barros e Mia Couto como instrumentos poéticos para pensar o ofício do historiador, desenvolvem significativas reflexões sobre a literatura como fonte documental na oficina do historiador. Avelino desenvolve uma reflexão sobre as relações entre História e Literatura, ao enfatizar que a obra literária não deve ser concebida apenas como veículo de conteúdo, mas principalmente nos modos como a realidade é abordada, questionada e recriada. Já Brandim e Adad refletem sobre a literatura como instrumento para o ofício do historiador e como, por meio do estudo dos poetas Manoel de Barros e Mia Couto, a literatura possibilita uma reflexão sobre conceitos pertinentes ao universo do discurso histórico: real, imaginação, sentimento, arte e produção metafórica da linguagem.

Os textos acadêmicos – de Paulo Armando Cristelli Teixeira, intitulado Tolkien: uma voz dissonante em meio à modernidade inglesa; de Gabriela Fernandes de Siqueira, denominado O homem que pintava a cidade por meio das palavras: cenas urbanas natalenses construídas a partir das crônicas de Henrique Castriciano e de Fernanda Reis, que tem como título Expressões do moderno na cidade de Campo Grande no antigo Estado de Mato Grosso: a arte de Lídia Baís como fonte de pesquisa histórica – refletem sobre as representações urbanas veiculadas em obras literárias e demonstram como o estudo da literatura faz emergir os sentimentos e valores de sujeitos sociais que sentem a cidade, por meio de seus textos, de modo a registrar imagens sensoriais sobre o viver urbano.

Há também artigos que refletem sobre os poderes visíveis e invisíveis na vida cotidiana e na literatura, sobre as relações entre discursos literários, revolução, sexualidade e política, como também fazem análises interpretativas sobre as recepções de obras literárias. Estas são as preocupações problematizadas pelas pesquisadoras Graça Videira Lopes, no artigo Poderes visíveis e invisíveis na Sátira Medieval, Veronica Giordano na produção acadêmica Revolución, sexo y política en Brasil em los años setenta. Un análisis desde las notas sobre comida em la Revista Homem (Playboy) e pelo historiador Valdeci Rezende Borges, no artigo História e Literatura nas cartas de Franklin Távora a José Feliciano de Castilho sobre Iracema.

As abordagens, que entrecruzam o documento literário com a oralidade e com as imagens cinematográficas, apresentam instigantes reflexões de como a interpretação de obras literárias podem ser articuladas com outros suportes documentais. Os textos de Josi de Sousa Oliveira, Juliana Lopes Aragão, Laura Ribeiro da Silveira e Thiago Coelho Silveira, intitulado A arte do demônio? O cinema e os literatos em Teresina (PI) no início do século XX, e de José Edimar de Souza e Luciane Sgarbi Santos Grazziotin, denominado Um modo de ser professora primária: notas de trajetória docente de Telga Bohrer, demonstram que o entrecruzamento entre diversas tipologias documentais trilham o caminho da interdisciplinaridade, à medida que não têm como objetivo preencher lacunas do conhecimento histórico e, sim, resgatar o objeto de estudo para além das trincheiras e limites colocados pelas disciplinas acadêmicas.

Convidamos a todos a trilharem esta viagem pelos meandros poéticos e históricos das narrativas dos artigos do número 10 da Revista Cordis, que é o mesmo que traçar cartograficamente os registros dos mergulhos de pesquisadores e historiadores que, ao adentrarem a galáxia da literatura, se abrem para o estudo de caleidoscópios de interpretações e apontam para novas abordagens e desafios em torno das produções e narrativas históricas.

Nota

1. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

São Paulo (SP), junho de 2013

Marcelo Flório

Nataniél Dal Moro

Editores Científicos


FLÓRIO, Marcelo; MORO, Nataniél Dal. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 10, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura  / Escritas / 2013

Na presente edição, disponibilizamos aos leitores (as) da Revista Escritas um dossiê sobre História e Literatura, que reúne seis textos de diversos pesquisadores que abordam essa temática em foco sob diferentes perspectivas teóricas e metodológicas. O artigo de Poliana dos Santos, A des(ordem) na ficção clariceana: Rodrigo S.M. na contramão da história, analisa o romance A hora da estrela como uma representação simbólica do regime militar brasileiro. Em Jogos de espaços: produção de alteridade e identidades espaciais no discurso literário de José Lins do Rego, Diego J.F. Freire discute a forma como a representação da cidade do Recife contribuiu para a descrição do engenho Santa Rosa presente no romance O moleque Ricardo (1935), escrito pelo paraibano José Lins do Rego. No texto Histórias de Manaus: entre memórias e literatura, Leno J. B. Souza investiga a relação entre história, memória e literatura ressaltando a importância da fonte literária para a compreensão da realidade social. A autora Melissa R. T. Mendes, em História, literatura e gênero: possíveis usos a partir de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis trata das relações de gênero na primeira metade do século XIX, apontado como essa questão está presente nas representações literárias dessa época. O artigo de Maurício F. dos Santos, Um olhar sobre a pobreza de Teresina a partir do romance “Palha de arroz”, de Fontes Ibiapina, investiga a narrativa literária do escritor piauiense João Nonon de Moura Fontes Ibiapina, com a finalidade de refletir sobre as relações sociais e o cotidiano nos bairros periféricos da capital do Piauí, nas décadas de 1940 e 1950. Finalizando o dossiê, Valéria da S. Medeiros em História e literatura: o assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie na representação sincrônica de 1926 de Hans Ulrich Gumbrecht discute o critério de verdade, a partir da mudança de foco narrativo operada no romance de enigma da escritora britânica Agatha Christie.

Na seção de artigos livres, reunimos quatro textos. O artigo de César H. G. e Sousa, A narrativa histórica: revelação e engano, utiliza-se da teoria do conhecimento de Johannes Hessen para delimitar o lugar epistemológico em que se inserem as abordagens historiográficas de autores clássicos como Leopold Von Ranke, Hayden White, Roland Barthes, Paul Ricoeur, Michel de Certeau e Michel Foucault. Já Leandro J. C. Gonçalves em Uma apresentação sobre os conceitos de revolução militar e revolução em assuntos militares faz uma análise conceitual, contextualiza a origem dos termos Military Revolution e Revolution in Military Affairs utilizados pelos especialistas nessa temática. O texto de Felipe A. Cazetta, O passado liberal de um chefe de milícias: a trajetória intelectual de Gustavo Barros, traz a lume um pouco da biografia e o pensamento desse membro da Ação Integralista Brasileira. Finalizando a Seção Livre, Raylinnn B. da Silva em Os santos da igreja e os santos do povo – uma perspectiva histórica sobre como eles “nascem”: estudo de alguns casos aborda o processo de constituição dos santos na sociedade ocidental católica, tendo em vista a forma como o imaginário religioso popular contribui para o reconhecimento da ideia de santidade.

Na seção de resenhas, divulgamos para o público leitor a análise de Ivia Minelli da obra do escritor argentino Dardo Scavino, Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina (2012). Também a apresentação da obra do cientista político brasileiro Jairo Nicolau, intitulado Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais (2012), por Martha Victor Vieira.

Contamos ainda nesta edição com uma interessante entrevista com o renomado historiador e filósofo José Carlos Reis (UFMG).

Esperamos que todos (as) apreciem os artigos e tenham uma produtiva leitura.

Os Editores

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[DR]

História, Literatura e Mito: viajantes europeus na América do Sul / Estudos Ibero-Americanos / 2012

Essa coletânea começou na cidade de Nantes, em 2009, quando surgiu a ideia de formar um grupo internacional, de caráter interdisciplinar, constituído por italianistas. A ideia foi levada adiante na Europa a partir das Universidades de Nantes e Groningen e, na América do Sul, através da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, em Nantes, realizava-se um primeiro Colóquio que discutia processos de emigração italiana. Era uma maneira formal para que estudiosos de vários países apresentassem e discutissem determinado tema. A troca de ideias entre os participantes do grupo foi sendo ampliada nos anos sucessivos e, em 2011, outro colóquio foi realizado, desta vez em Porto Alegre, quando os estudos estiveram concentrados em torno de relatos de viajantes como fontes à historiografia. Desde então, o contato permanente entre colegas de diferentes continentes permitiu que o presente livro fosse organizado com textos inéditos que também revelam, no Brasil, autores que se destacam em universidades estrangeiras. São textos que analisam diferentes olhares de viajantes, em narrativas que podem se transformar em fontes à História.

Não se trata de uma novidade temática, porque é muito antigo o uso de relatos de viajem como fontes à História. Mas a discussão sobre este uso da viagem como fonte passava por fase recessiva. Estava na hora de revisitar o assunto com outros olhos, ou seja, com os olhos do nosso presente, quando houve avanços metodológicos importantes.

Leed sublinha a importância da viagem lembrando as metáforas que suscita; em todas as latitudes essa viagem é um manancial de símbolos que podem exprimir a vida e a morte. Morte é passagem, passamento, enfim, mobilidade ou deslocamento para regiões desconhecidas. Vida é trajetória, caminho, peregrinação. Viagem, vida e morte são deslocamentos.[1]

Outro aspecto a justificar uma revisita ao tema tem a ver com o estranhamento ou distanciamento como forma de conhecer, questão que entra em debate na década de 1990, tendo como aporte fundamental o pensamento de Ginzburg. [2] O viajante, que é um estrangeiro, fornece inícios que fortalecem o paradigma ginzburguiano: tais indícios funcionam como chaves para o conhecimento de realidades. Leituras mais antigas de determinados relatos desprezaram, com frequência, minúsculas partes, por preservação de hábitos.

Ainda justificando esse retorno ao tema, lembra-se que metodologias de análise têm sido aperfeiçoadas em tempos recentes, sobretudo no âmbito da Comunicação, facilitando o trabalho de historiadores, sobretudo quando não desenvolvem formação em linguística, como é o caso dos profissionais sul-americanos. Dentre tais metodologias, destaca-se a Análise Textual Discursiva, definida como metodologia que envolve conjunto de técnicas de pesquisa, em abordagem interdisciplinar, tendo como primeiro objetivo buscar sentido ou sentidos no texto, produzir inferências.[3]

Portanto, a leitura proposta no presente volume é um convite para percorrer trajetórias de viajantes muitas vezes desconhecidos ou pouco conhecidos, à luz de novas interpretações, isto é, buscando outros significados na velha literatura de viagem, nos relatos daqueles que estranharam e que apontaram para o exótico. Essa leitura ajudará principalmente a estranhar. Trata-se de uma publicação que se tornou possível graças aos esforços realizados por dois sucessivos coordenadores do Programa de pós-graduação em História da PUCRS, Professores Doutores Helder Gordim da Silveira e Charles Monteiro, assim como pela permanente ajuda imprescindível de assessoria de Maria Cristina Fazzi Bortolini.

Os textos que compõem o volume foram analisados em termos de conteúdo e categorizados sob subtítulos que pressupõe algo em comum. No seu conjunto abordam, portanto, diferentes latitudes por diferentes ângulos, através das percepções de diferentes autores.

Assim, sob o título Olhares de Especialistas, Carla Monteiro de Souza aborda a narrativa do geógrafo norte-americano Alexander Hamilton Rice Jr (1875-1956) sobre a região do Rio Branco, descrevendo o território que viria a ser o estado brasileiro de Roraima, que visitou entre 1924 e 1925. Descrições do geógrafo italiano Agostino Codazzi sobre a Venezuela, publicadas entre 1840 e 1841, são assuntos de que tratará Maria Carmela D´Angelo. Os relatos do mineralogista e geólogo suíço Johann Von Tschudi sobre o Rio Grande do Sul, publicados em 1868, foram analisados por Martin Dreher.

A segunda parte trata das Palavras de Escritores e Jornalistas. Gabriella Romani analisa Edmondo De Amicis em Sull’Oceano (1889), livro de viagem que o autor dedicou ao tema da emigração italiana. Walter Zidarik detém-se nas cartas de Ercole Luigi Morselli à sua mãe, enviadas durante a longa viagem transoceânica que realizou, entre 1903 e 1904, quando ainda não era o escritor e dramaturgo de sucesso que viria a ser. Livros referentes a diversas viagens realizadas por SaintExupèry são analisados por Cláudia Musa Fay, na perspectiva da incipiente aviação nas décadas de 1920 e 1930. Autores-viajantes que escreveram sobre o Brasil em geral, em tempos bem diferentes, foram Friedrich Gerstäcker e Max Leclerc. A obra do primeiro, correspondente às primeiras décadas do século XIX, foi analisada por Gerson Roberto Neumann, enquanto Janete Silveira Abrão detém-se na obra de Leclerc, que corresponde aos primeiros anos do Brasil republicano.

Outra categoria estabelecida intitula-se Percepções de Músicos e Poetas. É iniciada por ensaio de Adriana Guarnieri Corazzol, trazendo ao texto memórias de músicos italianos sobre a América do Sul entre 1880 e 1920. Maria Lúcia Bastos Kern, concentra-se em dois livros do artista de vanguarda Joaquín Torres-García, escritos em 1939 e 1941, analisando percursos e particularidades dos lugares visitados entre o Velho e o Novo Mundo. Rosemary Fritsch Brum aborda “reverberações” da viagem que o futurista italiano Marinetti realizou à América Latina em 1926. Encerrando a terceira parte, Robert Ponge escreve sobre o poeta surrealista francês Benjamin Péret, que narrou o Brasil entre 1955 e 1956.

A quarta parte desse volume consiste Em Tempos de Colônia e de Reino Unido. Maria Izilda Matos analisa textos de cronistas de expedições que estiveram na Amazônia, recuperando as representações das Amazonas e do El Dorado. Paulo César Possamai analisa obras de viajantes sobre a Colônia do Sacramento, confluência entre os domínios portugueses no Brasil e os territórios espanhóis na região platina. Véra Lúcia Maciel Barroso analisa a crônica de Domingos José Marques Fernandes, enviada ao Príncipe Regente D. João, em 1804, onde expõe características do Rio Grande do Sul e propõe medidas a serem tomadas com relação ao território.

Uma quinta parte é constituída por Visões do Rio Grande do Sul. Valter Antonio Noal Filho disserta sobre os relatos do viajante milanês Enrico Ambauer, que visitou a Província em 1858. Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos detém-se na colônia, depois município de São Leopoldo, visitada e narrada por vários viajantes, entre1834 e 1906. Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, é um dos objetos de escritos do missionário belga Thomas Aquinas Schoenaers, relacionados ao período em que esteve no Rio Grande do Sul, entre 1901 e 1904; nessas terras de fronteira concentrou-se a análise de Beatriz Ana Loner e Lorena Almeida Gill. No litoral do Rio Grande do Sul está o foco do ensaio desenvolvido por Marcos Antônio Witt, que aprofunda o estudo dos textos de três viajantes que, em tempos diferentes, transitaram pela região costeira do Oceano Atlântico no extremo sul do Brasil. Vania Beatriz Merlotti Herédia analisou cartas do Frei Bruno de Gillonay, escritas quando visitava as colônias italianas no Rio Grande do Sul, com a finalidade de verificar as condições de espiritualidade nessas colônias.

Trata-se De Palavras e de Viajantes Italianos na última parte do presente volume. Tais viajantes são pouco conhecidos no Brasil e uma das intenções dos autores foi divulgar-lhes. Carla Brandalise disserta sobre a reescrita de uma história latino-americana, no período fascista, onde deveria ser reconhecido o papel imprescindível do povo italiano na formação da América Latina e a autora demonstra que, para tanto, viajantes são enviados para conhecer e relatar o continente. Núncia Santoro de Constantino analisa escritos de alguns viajantes italianos sobre o Brasil, destacando suas opiniões a respeito da imigração no país. Rejane da Silva Penna recolhe impressões de viajantes italianos sobre mulheres brasileiras, demonstrando como tais impressões auxiliam na percepção do papel feminino na sociedade. Os relatos do antropólogo Stradelli e do oficial da marinha italiana Gregório Ronca, que visitaram a Amazônia, são objeto da análise de Vittorio Cappelli. Por fim, encerrando a coletânea, apresenta-se um ensaio de Bob de Jonge, a tratar das viagens de palavras italianas para o Brasil, trazidas na bagagem de viajantes, especialmente quando são imigrantes.

Acredita-se que, com essa publicação, tenha sido possível ir além de uma re-leitura de livros de viagem, gênero extremamente difuso durante o século XIX, para realizar a divulgação de obras de viajantes pouco conhecidos e até mesmo desconhecidos. Espera-se que o dossiê seja de agradável leitura e que acrescente ao conhecimento dos leitores.

Notas

1. Richard Leed. La mente del viaggiatore: Dall´Odissea al turismo globale. Bolonha: Il Mulino, 1992. p. 36

2. GINZBURG, Carlo. Occhiacci di legno: nove riflessioni sulla distanza. Milano: Feltrinelli, 1998.

3. Leia-se MORAES, Roque e GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.

Núncia Santoro de Constantino – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Walter Zidaric – Université de Nantes – França

Organizadores


CONSTANTINO, Núncia Santoro de; ZIDARIC, Walter. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 38, supl., nove., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Diáspora, literatura e arte / Revista Brasileira do Caribe / 2012

Como afirma Brah (1996) na diáspora múltiplas posições de sujeitos se justapõem, se questionam, se proclamam, negam e se narram. A região do grande Caribe tem na diáspora experiências fundamentais para entendermos a história de sua sociedade e sua cultura. Seja no que diz respeito às emigrações de caribenhos para a Europa, América do Norte ou do Sul no século XXI, seja no que concerne à diáspora africana, do período moderno, ou as diásporas europeias mais recentes como aquela vivenciada pela comunidade de espanhóis fugidos da queda da República. Isso sem contarmos a diáspora síria, libanesa e chinesa do começo do século XX. Outrossim, a migração de trabalhadores indianos contratados deve ser lembrada.

A diáspora tem sido pensada como intersecção da errância com a fronteira, da localização com o deslocamento; é ponto confluência de processos econômicos, sociais, políticos, culturais ocasionados no trânsito, no deslocar-se. Nesse sentido, como parte da história caribenha, ela marcou as experiências e se constituiu em contextos fundamentais de produção artística e literária caribenha, quando não tema para artistas e escritores caribenhos diaspóricos ou não. Não poucas vezes, para retomar a expressão de Hall (2003) eles foram obrigados a pensar as suas sociedades na diáspora.

Esse número da Revista Brasileira do Caribe reúne textos sobre a relação entre Diáspora, Literatura e Arte no Caribe, fruto do trabalho de cooperação em rede entre grupos de pesquisa das Universidades de Granada, Carlos III y Autônoma de Barcelona, a Filmoteca de Madri, na Espanha, a Universidade Federal do Tocantins, Universidade Federal de Goiás e Universidade Federal de Maranhão, no Brasil e a Universidade do Atlântico, na Colômbia. Abre o Dossiê o artigo “Anecdotario de una visa imaginaria. Diáspora y activismo en la obra de Jean-François Boclé,” que analisa a produção artística da diáspora caribenha a partir da trajetória e do ativismo do artística plástico Jean-François Boclé. Na sequência, Jordi Lladó, “Literatura catalana en la prensa latinoamericana: una nación en la diáspora” trata da relação estabelecida no século XX entre a literatura catalã e o mundo cultural latino-americano, mostrando, por um lado, o enriquecimento da produção cultural na América Latina e Caribe, e, por outro, como as revistas catalãs na América se constituíram como lugar de fortalecimento cultural da língua catalã quando ela era perseguida na Espanha.

O artigo “La ‘primera piedra’: José Gómez Sicre y la fundación de los museos interamericanos de arte moderno de Cartagena y Barranquilla” de Alessandro Armato, reconstrói a história do primeiro lançamento do museu interamericano de arte moderna em Cartagena de Índias e Barranquilla e o envolvimento de personagens diáporicas, como o cubano José Gómez Sicre e a Martha Traba nesse projeto, mostrando o papel de migrantes no desenvolvimento do modernismo artístico na Colômbia. Seguindo uma mesma perspectiva, Danny González Cueto en “Arte, literatura, prensa e intelectualidad en el Caribe colombiano (1917-1980)” escreve sobre a produção cultural na cidade de Barranquilla, focando, entre outros aspectos, a importância de personagens diáporicos como o judeu David Zacarías López (Penha) e o catalão Ramon Vinyes. Ainda no que diz respeito á produção cultural, Alexa Cuesta Flórez apresenta o artigo “Feminismo, género o reivindicación en el arte del Caribe colombiano: Colectivo La REDHADA” no qual se problematiza a produção artística feminina do Caribe Colombiano, fazendo ênfase nas trajetórias diaspóricas de muitas dessas artistas.

Os estudos que seguem tratam de personalidades inquietas e errantes como o crítico Juan Acha, o escritor Alejo Carpentier e o artista Jaime Suárez. No primeiro caso, aparece o artigo de Dagmary Olívar Graterol “Revisión del latinoamericanismo en la propuesta teórica y crítica de Juan Acha”, nesse propõe estudar a obra desse importante crítico de arte em torno da questão do latino-americanismo. Dernival Venâncio Ramos e Marina Haizenreder Ertzogue em “Performance biográfica e narrativa no Caribe: um estudo de La consagración de la primavera, de Alejo Carpentier” problematizam o lugar da biografia como discurso legitimador na narrativa de um dos maiores escritores cubanos. Por fim, Daniel Expósito Sánchez em “Jaime Suárez ante la crítica de arte puertorriqueña. Impresiones de una década (1975-1985)” problematiza o lugar da crítica de arte na projeção do artista porto-riquenho como um dos mais importantes criadores de seu país.

Este dossiê, tenta contribuir para o aprofundamento da discussão sobre o lugar da diáspora na experiência histórica cultural caribenha. Como se pode perceber, o trânsito de gentes do e pelo Caribe foi um contexto importantíssimo para a produção artística regional; no entanto, a experiência da diáspora tem sido também o contexto no qual muitos escritores, artísticas, críticos têm localizado sua produção artística e literária.

Na sequência aparece o artigo “En torno a la Ciénaga de García Márquez: El proyecto de adaptación de La Casa Grande de Álvaro Cepeda Samudio por Luis Alcoriza” de Javier Herrera. Neste se descreve o projeto de filmar a obra La casa grande de Álvaro Cepeda Samudio. Simultaneamente, mostra a faceta cinematográfica do autor de Cien años de soledad. Fecha essa edição o artigo “Filosofía de la Historia y Teoría de la Frontera en el Ensayo Americano” de Luiz Sérgio Duarte da Silva que, centrado na produção literária e ensaísta, chega a insights que podem ser aplicados a outros campos, como as artes plásticas. Para Silva, a arte é produção de sentido, tentativa de dar conta das demandas sociais e, por isso, tenta orientar à sociedades no modo como ela compreende seu passado e futuro.

Referencias

BRAH, Arthur. Cartographies of Diaspora: Contesting identities. New York: Routledge, 1996.

HALL, Stuart. Da diaspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.


CUETO, Danny González; RAMOS, Dernival Venâncio; LLADÓ, Jordi. Diáspora, literatura e arte. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.12, n.24, jan./jun., 2012. Acessar publicação original. [IF].

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Literatura nos Arquivos / História Social / 2012

O conhecimento histórico contemporâneo continua a purgar o pecado da ingenuidade narrativa nele predominante até o passado recente. O cuidado agora devido às dimensões retóricas da disciplina produz amiúde certa instabilidade no que tange a seus modos realistas tradicionais. Ademais, a crítica a concepções ditas “historicistas” do ofício leva a reconfigurações significativas de noções tais como temporalidade, agência, determinação e outras concernentes à prática dos historiadores. Much ado about nothing , quem sabe, ou assim me parece, pois a história pode, ou deve, ser em igual medida arte narrativa e discurso de demonstração e prova, como Carlo Ginzburg tem argumentado incansavelmente, às vezes com alguma dose de impaciência, faz tempo.

Digamos que boa parte da culpa caiba a Hayden White, ou quiçá que muito do mérito seja dele, a depender do ponto de vista. White expulsou os historiadores do paraíso da suposta abstenção retórica em nome do idioma empírico pertinente à disciplina. Ao fazê-lo, contudo, enamorou-se da própria escultura, esgarçou o argumento ao ponto de professar a descrença na possibilidade do discurso referencial em história. A hipótese idealista da redução do mundo a redes de textos, tornando impossível qualquer teoria do conhecimento baseada em pressupostos referenciais, permanece indemonstrável, opção que conduz ao colapso de texto e contexto no mesmo abismo reducionista da experiência exclusivamente estética da historiografia, da literatura, da cultura. Em assuntos que tais, melhor evitar alternativas falsas, “o texto ou o autor”, pois “nenhum método exclusivo é suficiente” (Compagnon, 2010, p.94).

História e literatura. Ao dizer literatura pode-se pensar em obras de ficção propriamente ditas; ou na disciplina dedicada a interpretá-las, a crítica literária. No primeiro caso, literatura igual a obras de ficção, a questão é refletir sobre metodologias de abordagem delas a partir de uma perspectiva histórica. No segundo caso, literatura igual a crítica literária, o que interessa é comparar epistemologias ou modos de saber – jeitos de construir objetos de pesquisa, de conceber a perspectiva do sujeito do conhecimento, de constituir o legado do conhecimento, suas tradições e assim por diante. Em suma, comparar história e crítica literária no que concerne à maneira como lidam com o seu mistério central: isto é, como se chega a saber, em cada disciplina, aquilo que seus praticantes alegam saber.

Apresso-me, pois, em definir “literatura”no sentido de obra de ficção, para evitar discussões intermináveis em torno de palavra sobre a qual não há muito acordo sobre o que significa, mas também porque chegar a uma tal definição permite passar logo em seguida ao labor de qualificá-la ou relativizá-la, o que ajuda a pensar. Ao que parece, não obstante a diversidade de visada entre eles, críticos literários comumente concebem obra de ficção como texto narrativo não-referencial (Candido, Cohn, Gallagher). Ademais, tendem a adotar como parâmetro um acontecimento histórico específico, a saber, a emergência do romance e o modo de ser dele no Oitocentos ocidental. “Não-referencial” no sentido de que esse tipo de texto se emancipa de qualquer base de dados específica, cria o mundo ao qual se refere ao se referir (sic) às personagens e acontecimentos que o constituem. Textos que não operam por meio da oposição entre verdade e mentira, verdadeiro e falso, eles pressupõem um leitor que aceite o jogo no terreno da verossimilhança, que adote a atitude de suspender o juízo realista para adentrar outro nível de discurso, inteiramente inventado no detalhe, constituído por enquadramentos imaginários, não-referenciais, ainda que jamais independente da circunstância histórica na qual vem a ser. Textos de ficção são narrativos porque neles as vozes são instáveis, podem ser dissociadas de sua origem autoral, daí decorrendo que muito da tradição da crítica literária se constitua em torno da interpretação de narradores e seu significado na fatura das histórias contadas. Autores supostos ou narradores imaginários produzem situações nas quais dão a ver, por assim dizer, o que há nas mentes das personagens do mundo que criam.

Desnecessário dizer que nesses procedimentos de escrita não há nada que se assemelhe ao que fazem os historiadores, cuja retórica leva outro barro. O melhor então é mudar de roupa sem trocar de pele, observar de novo que as linhas gerais desse jeito de definir ficção remetem a um processo histórico específico, isto é, à maneira de ser de muito da literatura ocidental no século XIX, a era de ouro do romance. Ao dizer história e literatura, nós, historiadores, ou ao menos este historiador, quer refletir sobre procedimentos de interrogação de uma série específica de, a saber, a ficção ocidental oitocentista, em especial o romance, mas não só ele.

História e literatura, conhecimento histórico e crítica literária, quiçá história social e crítica literária. Há entre essas duas disciplinas diferenças importantes na abordagem da literatura. As tradições disciplinares criam matrizes, grades de visão, que não precisam ser excludentes e que parece ridículo conceber em estado de competição entre elas. Gabrielle Spiegel refletiu sobre essas diferentes perspectivas de interpretação. Ao se voltar a um texto literário específico como objeto de estudo, o crítico literário o transforma numa realidade constituída, delimitada em sua essência, por mais que permaneça aberto a leituras diversas, a interpretações conflitantes. A literatura parece especialmente capaz de produzir “objetos” desse tipo, cousas quase mágicas em sua suposta desconexão coma história, com o lugar e tempo de seu vir-a-ser primário. Um volume de Dom Casmurro, qualquer volume, qualquer impressão dele, será sempre Dom Casmurro, parecerá haver nele o sopro de uma alma capaz de se subdividir infinitamente sem deixar de estar inteira em cada novo artefato dela. Esse tipo de perspectiva tende a tornar o intérprete mais sensível ao que há de imaginário na literatura, aos procedimentos artísticos que fazem com que ela funcione enquanto literatura, pois criam eficazmente a fantasia (isto é, uma ilusão resultante do trabalho e da habilidade artísticas) de autonomização do mundo de personagens e acontecimentos que a constituem (Wood, Todorov).

O historiador, por seu turno, estuda contextos e processos históricos que não existem eles próprios, cujos contornos se definem no andamento da pesquisa. O historiador constói o seu objeto, e construí-lo é por sua vez interpretá-lo. Spiegel leva o paralelo entre a história e a crítica literária ao ponto de argumentar que o crítico é um leitor de seus objetos de investigação, enquanto o historiador se torna um escritor dos seus, já que ele mesmo os constitui por meio de procedimentos empíricos e conceituais específicos correntes no ofício. Decerto o contraste é esticado demais. Tanto críticos literários quanto historiadores sabem, por exemplo, que a literatura do século XIX acontecia na imprensa, era indissociável dela. Jornalismo e literatura eram ofícios quase intercambiáveis: as mesmas personagens praticavam regularmente os dois ofícios, e se exercitavam nas variadas formas de texto existentes em cada um deles. O dossiê que ora apresento é prova cabal disso. Ademais, a imprensa do século XIX estava permeada por procedimentos de ficcionalização nos vários tipos de textos que a constituíam (Thérenty), fosse noticiário, correspondência, anúncio, humor, até editorial, além de crônica, conto e romance-folhetim, gêneros os quais se suporia literários, apesar de sobre a crônica ainda pairar um preconceito documentário duro de matar. A separação entre os ofícios de literato e jornalista foi processo longo, doloroso quiçá em especial para os leitores de jornais e revistas, submetidos hoje ao protocolo difícil da escrita neutra, supostamente independente, que expulsa a imaginação para deixar entrar, sem peias, a ideologia.

Não importa o quão limitadas em sua abrangência, as observações de Spiegel permitem abordar outro problema, respeitante aos ruídos comumente havidos quanto a tentativas de teorizar uma perspectiva historicamente informada da literatura. História não é termo estável, passível de estabilizar e ancorar interpretações de alegorias mais ou menos complexas presentes em textos literários. Às vezes fica-se com a impressão, ao ler a crítica, de que ocorre uma estranha combinação entre o entendimento do caráter complexo, fraturado e heterogêneo do texto literário e a postulação de um processo histórico linear e incontroverso, como se o conhecimento histórico consistisse na elaboração de uma narrativa mestra da história nacional, ou ocidental, ou universal, ou o que seja, pois nada disso ele pode ser. A alternativa, pior ainda, é que o entendimento impressionista de que a história não pode ancorar cousa alguma, de que o conhecimento histórico se produz numa arena de luta, num campo de forças em disputa por sentidos e interpretações, resulte na adoção de um ponto de vista decididamente hostil à história, levando o reducionismo estético às fronteiras da insensatez crítica e do casuísmo político. Em suma, para resumir: se as obras literárias permitem deslocamentos discursivos diversos, autorizam interpretações variadas, às vezes divergentes, o mesmo é verdade quanto ao processo histórico; acontecimentos passados não são necessariamente mais lógicos, menos permeados por contradições e intenções não declaradas, do que qualquer texto ou discurso.

Em texto recente, Susan Buck-Morss apresentou o que talvez seja um exemplo extremo de o quanto a atenção à história pode contribuir para o entendimento mais complexo de obras “geniais”, intemporais ao menos enquanto continuam a ser lidas em determinados nichos do mundo acadêmico. No caso, a filosofia de Hegel, mais precisamente as páginas nela existentes dedicadas à análise dialética das relações entre senhores e escravos, decisivas até há bem pouco tempo nos estudos sobre a escravidão moderna, pois conducentes a interpretações definitivas sobre a reificação da experiência escrava, o arbítrio senhorial, as características específicas da alienação de senhores e escravos pertinentes a esse tipo de formação social. Pois Buck-Morss demonstra que Hegel filosofava a partir da leitura regular que fazia das notícias que lhe chegavam, em jornais e revistas, sobre a revoluçãodo Haiti, na virada dos séculos XVIII ao XIX, que resultou na formação do único país independente nas Américas originário duma insurreição de negros escravos, libertos e livres. A revolução do Haiti permaneceu um episódio inimaginável, às mentes europeias, mesmo enquanto acontecia; ler as mesmas páginas de Hegel com isto em mente as torna outras, quem sabe com repercussões quanto às injunções políticas contemporâneas de nossas opções a respeito do modo de recortar objetos e imaginar métodos de pesquisa.

A leitura dos artigos constantes de mais este dossiê da ousada e duradoura História Social: Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp é instrutiva e prazerosa. Uma ou duas palavras sobre cada um deles, à guisa de aperitivo. Jefferson Cano explora os primórdios da presença do romance na imprensa da Corte, em seu jeito folhetim de ser, seriado, mui comentado, central nos debates a respeito de que literatura convinha àquele país por fazer. Daniela Silveira aborda os contos de Machado de Assis publicados no Jornal das Famílias, descobre maneiras de o autor tirar proveito do que aprendia a respeito das expectativas de suas leitoras, suas artimanhas para driblar a aflição masculina em relação ao que se dava para ler às moças. Ana Flávia Ramos analisa as crônicas de Machado de Assis na série Balas de Estalo, descreve as características dessa série coletiva e a maneira de inserção nela de Lélio, a personagem inventada pelo autor para figurar como seu narrador. O texto mostra a densidade política e literária dessas crônicas ao acompanhar as mudanças de percepção e humor de Lélio diante da resistência escravocrata às leis de emancipação escrava. Leonardo Pereira escreve sobre “cousas do sertão” em Coelho Netto. Ao fazê-lo, oferece contribuição importante ao tema candente do pós-emancipação, mostra como o debate a respeito do caráter do sertanejo expõe as incertezas e ambiguidades inerentes ao processo de pensar o mundo sem escravidão e monarquia na ainda tão pouco conhecida década de 1890. Julia O’Donnell tira do esquecimento Benjamin Costallat, provoca reflexão a respeito dos mecanismos de atribuição de relevância pautados pelo mercado e pelos interesses políticos de momento, capazes de alçar uma obra à glória momentânea para reduzi-la em seguida ao silêncio mais cabal. Além disso, há na personagem uma preocupação constante com a referencialidade, o que torna a sua obra um jeito de imaginar em detalhe os cinematógrafos, automóveis, janotas e vaporosas de um outro tempo. Ana Porto nos diz de gente de papel assassinada, esquartejada, carregada em malas, ainda que muita vez o que aparecia nos livros e folhetins fosse recriação de crimes e esquartejamentos tidos e havidos. Conta-se pois uma história da popularização da literatura de crime no país, em diálogo com o que ocorria noutras paragens, sempre fascinante o problema de entender os motivos pelos quais essas histórias seduzem tantos leitores.

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Hegel, Haiti, and universal history. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2009.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 2ª. ed.

COHN, Dorrit. The distinction of fiction. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1999.

GALLAGHER, Catherine. “The rise of fictionality”. In: MORETTI, Franco. The novel. Volume 1: history, geography and culture. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2006, pp.336-363.

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SPIEGEL, Gabrielle M. The past as text: the theory and practice of medieval historiography. Baltimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1997.

THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature au quotidien: poétiques journalistiques au XIXe. Siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007.

TODOROV, Tzvetan. A literature em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

WHITE, Hayden. Como funciona a ficção. São Paulo: Edusp, 1992.

WHITE, Hayden. Meta – História: a imaginação histórica do século XIX. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1990 (edição original: 1978).

WOOD, James. Tropics of discourse: essays in cultural criticism. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

Sidney Chalhoub – Professor Titular, Departamento de História, UNICAMP.


CHALHOUB, Sidney. Apresentação. História Social. Campinas, n.22-23, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Bretanha-Britânia-Angelcynn Celto Germânica entre Literatura e História / Brathair / 2012

Os habitantes das Ilhas Britânicas, tema do dossiê Bretanha / Britânia / Angelcynn Celto Germânica entre Literatura e História englobam duas culturas principais, uma de origem céltica e outra de origem germânica.

Os anglo-saxões penetraram nas Ilhas Britânicas por volta do século V e logo depois dominaram boa parte do território que já era ocupado anteriormente por populações célticas, na atual Inglaterra, formando, a princípio, a Heptarquia Anglo-Saxônica, com sete reinos independentes. Ali estabeleceram um novo idioma, que deu origem ao atual inglês, falado e compreendido em boa parte do mundo contemporâneo, e uma rica cultura, da qual um dos exemplos mais marcantes no plano literário é o poema Beowulf, do século X. Esse povo também esteve em contato com os vikings que chegaram ali por volta do século IX e foram repelidos com sucesso por Alfred, o Grande (871-899), além de estar em contato com as populações celtas da região.

As relações entre a cultura celta e a anglo-saxã nos são mostradas no artigo de A. Joseph McMullen (Harvard University), através dos primeiros manuscritos de Echternach, que apresentam um aspecto trilíngue em latim, antigo irlandês e anglo-saxão, mostrando a influência das relações entre Irlanda e Inglaterra anglo-saxã no século VIII.

Vinicus Dreger (Centro Educacional Anhaguera) salienta aspectos da História do Poder ao analisar as alianças matrimoniais estabelecidas pelo rei Æthelstan que ampliaram os domínios anglo-saxões até a Germânia Otônida entre os anos 920 e 940.

Elton Medeiros destaca a importância dos temas anglo-germânicos na atualidade através de um histórico desses estudos na Inglaterra e Escandinávia e aponta as possibilidades de pesquisa através da análise de fontes, dentre as quais, além do já conhecido poema Beowulf, a coletânea The Anglo-Saxon Poetic Records, um importante depósito de tradições, que tem muito a ser explorado.

Ryan Lavelle, da Universidade de Winchester, apresenta em sua entrevista, concedida a Elton Medeiros, a relevância dos estudos anglo-saxões na atualidade e aponta alguns caminhos para a realização de novas pesquisas. Salienta como obra essencial e introdutória ao assunto, a de Campbell, The Anglo-Saxons, de 1982. O autor também sugere como leituras documentais importantes Beda, na sua Historia Ecclesistica Gentis Anglorum e coleções de documentos anglo-saxões, que estão disponíveis on line, como a Crônica Anglo-saxã. A entrevista também esclarece visões maniqueístas sobre o contato entre anglo-saxões e vikings, auxiliando-nos a uma visão mais abrangente sobre o contato entre esses dois povos, bem como a importância do rei anglo-saxão Alfred, sobre quem o autor é especialista.

Por fim, temos um exemplo de documento anglo-saxão que dialoga com o Antigo Testamento, a tradução do poema Judite, provavelmente compilado no século X, que tem por base o relato bíblico contido no livro de Judith. Tem por base o manuscrito Cotton Vitelius A. XV, sendo um texto em verso, que se encontra no manuscrito junto com o poema Beowulf. A narrativa descreve como a personagem de Judite decapita o líder Holorfenes que sitiava a cidade de Betúlia. Ela o seduz e corta a sua cabeça enquanto ele dormia embriagado, ação que impede a ação do exército assírio. Medeiros salienta a importância de a personagem central ser, nesta narrativa, uma mulher, ao contrário do que ocorre em outros relatos anglo-saxões, quando estas aparecem como exemplos de nobreza e bons costumes, embora sejam figuras secundárias.

Sobre os germanos na Península Ibérica e as disputas religiosas, Jaqueline Calazans e Leila Rodrigues da Silva (PEM / UFRJ) analisam os cânones do Concílio de Zaragoza, no século IV e observam as influências do priscilianismo, que propagava ideias de austeridade e pobreza, calcadas no ascetismo, vigílias, jejuns e desapego aos bens materiais. O pensamento de Prisciliano gerou disputas eclesiásticas acerca do controle de práticas cristãs e posterior reforço da autoridade dos bispos e afirmação dos clérigos sobre a população laica.

Os povos de origem celta habitaram as Ilhas Britânicas desde antes da chegada dos anglo-saxões e também nos deixaram um rico legado de tradições. A contribuição das culturas celtas para a gesta da Matéria da Bretanha, em suas diversas versões regionais, expressas em distintos vernáculos, é inegável e já reconhecida e consagrada por todos os estudiosos arturianos. As formações sociais célticas engendraram mitemas arturianos nas Grandes Ilhas, sobretudo nas regiões do atual País de Gales e na Hibérnia (Irlanda), destacando-se os Mabinogion, contos para infância sob a forma de um manual de instruções rituais para a declamação dos bardos. Apesar de os Mabinogion terem sido compilados em kymrisch apenas na transição entre os séculos XIV e XV, seu lastro encontra-se em tradições celtas ancestrais, veiculadas pela oralidade. No que concerne ao continente, já na Idade Média Central (séculos XI a XIII), constituíram-se os Ciclos de Versificação, com Chrétien de Troyes (segunda metade do século XII), e os dois célebres Ciclos de Prosificação da Matéria da Bretanha, o Ciclo do Lancelot-Graal (Ciclo da Vulgata) e o Ciclo do Pseudo-Boron (Ciclo da PostVulgata), na primeira metade do século XIII. Os dois últimos, com destaque para o segundo, influenciaram a compilação de versões das aventuras arturianas em outros vernáculos, como o português, o castelhano, o alemão, o holandês e mesmo o checo.

A respeito das tradições e sagas ancestrais, Wolfgang Meid (Universidade de Innsbruck, Tirol) brinda-nos com um detalhado e erudito estudo, instigante e profundo, acerca das sagas irlandesas, sua tipologia e seus ciclos mais importantes. Destacam-se, em seu texto, o Ciclo de Ulster, o chamado Ciclo Mitológico, o Ciclo dos Reis e o Ciclo de Finn. A análise de Meid denota refinamento intelectual ao explicitar que esta maneira de elencar e classificar as narrativas da Hibérnia é, na verdade, uma hetero-representação, uma construção intelectual da Historiografia e da Teoria Literária contemporâneas. A esta classificação, Meid integra, discutindo suas confluências e dissintonias, o modo como as próprias sociedades celtas compreendiam e representavam as similitudes e diferenças entre suas narrativas. Por conseguinte, seu artigo apresenta a tipologia céltica dos contos, apontando para designações como Batalhas, Histórias de Amor, Cercos, Destruições, Mortes Heroicas, Cortejos Amorosos, Aventuras, Viagens pelo Mar, Roubos de Gado e, por fim, Fugas.

Também nesta senda caminha a bela resenha de Pedro Vieira da Silva Peixoto ao recente livro do consagrado estudioso Barry Cunliffe, The Druids: a very short introduction (2010). Dialogando com as proposições do autor, Peixoto traz a lume noções introdutórias e rudimentos sobre as práticas mágicas e rituais destes sacerdotes celtas, responsáveis, como shamans que eram, pela mediação entre o sagrado e o profano. A resenha vale-se de autores relevantes para os estudos celtas, como o austríaco Helmut Birkhan, autor do monumental Kelten (1997). Convém salientar que o Santo Graal, enquanto mitema fundamental para a construção da gramática do mito arturiano, derivou das copas mágicas célticas, bem como das copas análogas dos rituais alanos (com destaque para a Nartamongae), e da cornucópia celta da fartura, também ela um cálice. Portanto, entender o papel simbólico e social exercido pelos druidas é crucial para a melhor compreensão das aventuras arturianas e da simbologia híbrida do Santo Vaso.

Quanto aos ciclos de versificação e prosificação da Matéria Arturiana na Idade Média Central, a presente edição de Brathair apresenta dois artigos que analisam o papel da memória dos idosos e das tentações diabólicas no enredo da versão portuguesa de A Demanda do Santo Graal, cujo texto original dataria de 1248, atribuído ao cortesão Joam Vivas, conviva do rei Afonso III (1248-1279). Neste contexto, o artigo de Alessandra Conde (UFPA) resgata e inventaria os excertos da narrativa gralesca em que se consagram as recordações de dois anciãos, cujas identidades expressam uma importante clivagem social e religioso-ideológica.

Trata-se, por um lado, das reminiscências de um velho pescador, evidente figuração alegórica do Apóstolo Pedro, “Pescador de Homens”, bem como de seu sucessor mitológico, o Rei Pescador das narrativas do Santo Graal. O pescador exara palavras santas, ortodoxas, ensinamentos morais consentâneos ao ethos cristão, razão pela qual sua fala se constitui em vetor retórico de expressão da normativa clerical para as sociedades medievais. Este lugar canônico de sua fala vê-se ratificado pelo fato de que o pescador é eternamente alimentado pelo Santo Graal. Por outro lado, o velho judeu é retratado como eterno pecador, herdeiro do anátema de assassino de Cristo, de aparência repugnante, o que o torno lugar retórico em que se constroi o outro do poder clerical, o marginal a ser proscrito da unitas cristã.

Ainda no esteio de investigação de A Demanda do Santo Graal como formação discursiva, o artigo de Ana Márcia Alves Siqueira (UFC) estuda as artimanhas do Diabo para tentar e danar os homens, com ênfase nos pecados carnais, enquanto exempla, dentro da rede narrativa da aventura-peregrinação para encontrar o Cálice Crístico. Pela voz do Diabo e pela correlata preceptiva da Igreja sobre como combatê-lo e resistir à sua sedução, o texto projeta ainda mais luz sobre o ideal eclesial de disciplinarização da Cristandade Latina em seu sentido mais amplo.

Outro tema importante desta edição de Brathair é o processo de reapropriação e reorientação política e ideológica da memória recente a respeito de nosso passado céltico longínquo. Não apenas nos interessa esta discussão enquanto ocidentais, mas como estudiosos de Ciências Humanas, pois sua discussão implica problematizar a memória e a própria história como artefatos simbólicos dispostos ao manuseio político e identitário permanentemente ressignificado. Desta fora, o artigo de Juan Miguel Zarandona trabalha a reapropriação de uma pretensa identidade ancestral celta para a construção discursiva de uma narrativa de legitimação da singularidade e da especificidade da nação galega perante a investida centralizadora da cultura e do idioma de Castela sobre as particularidades culturais das etnias que formam a Espanha. No fundo, trata-se de uma instigante reflexão sobre a dialética entre passado e presente, ou passado-presente, para construção das narrativas identitárias, subsídios ideológicos para se tecer a auto-representação de uma comunidade e trazer à cena suas pretensões políticas.

Os estudos desta edição mostram a importância dos anglo-saxões e das heranças célticas nos tempos atuais, tanto através de tradições, como pela afirmação de identidades. As pesquisas aqui apresentadas auxiliam os leitores interessados no aprofundamento das culturas desenvolvidas mais especificamente nas Ilhas Britânicas, tema desse dossiê, e garantem à revista Brathair um papel ativo e de destaque na difusão dos estudos celtas e germânicos.

Adriana Zierer – Professora Doutora (UEMA). E-mail: [email protected]

Marcus Baccega – Doutor em História pela USP. Pós-Doutorando na Sorbonne, França. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.12, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Albuquerque: Revista de História / 2012

A revista Albuquerque cumpre mais uma vez o seu compromisso de divulgar a produção acadêmica de qualidade, representando a área de História e suas articulações com as demais Ciências Humanas. Nesta edição de número oito, em seu quarto ano de teimosa existência sob o seu formato em papel e a despeito das dificudades inerentes à publicação tradicional de artigos, a Albuquerque apresenta o dossiê História e Literatura.

Os trabalhos aqui publicados atenderam à chamada pública através de edital espefícico, submetidos à avaliação e aprovação de conformidde com os seus critérios e normas. Entretanto, neste caso, os responsáveis pela resvista se surpreenderam com o resultado desta chamada, prontamente atendida com a afluência de bons trabalhos e em quantidade que extapolou as expectativas desta edição.

Entende-se, dessa forma, que a Albuquerque se fortalece e se consolida, buscando sempre atrair os pesquisadores que elegeram a área da História para focar seus estudos e que escolheram também a forma convencional de revista acadêmica, editada como brochura. Isso não sinifica uma reação conservadora diante das ferramentas eletrônicas, das redes sociais e demais instrumentos de divulgação via internet que, sem dúvida nenhuma, socializam a produção científica de forma muito mais rápida e democrática. Muito ao contrário, acredita-se que em breve a Albuquerque será editada também em versão eletrônica, sem excluir a sua forma tradicional.

Como bem demonstram os artigos do dossiê que seguem publicados, a escrita, o texto e a literatura, expressada sob as suas mais diversas modalidades e através dos diálogos possíveis com a ciência da História, remetem à tradição da pena, do papel e da prensa que produziram epístolas, documentos, códices e livros. Essa tradição é ainda muito importante e o prazer que proporcionam aos leitores e pesquisadores jamais será superado pelas inovações tecnológicas por mais fantásticas que se apresentem.


Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.4, n.8, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Portugal, Brasil e África: história e literatura / História Revista / 2011

O dossiê Portugal, Brasil e África: história e literatura traz para o público uma série de artigos escritos por intelectuais que em suas pesquisas transitam entre dois campos de produção de saberes – a história e a literatura. Não se trata tão somente de buscar os relacionamentos entre países através desses dois campos, mas também de focar questões específicas circunscritas ao passado que unem as três realidades.

A existência de um padrão de língua e relações culturais comuns advindo da colonização e do pós-colonial entrecruzam-se, formando liames que os aproximam e ou afastam. A literatura, na construção de si, criou artefatos culturais, na forma de crônicas, poesias, romances, folhetins e outros, que trouxeram para o leitor suportes imaginários que problematizam sujeitos, nacionalidades, cidades e as condições políticas e sociais, em diferentes tempos e espaços. A nação, a cidade e o povo foram, na pena dos escritores românticos ou não, temáticas largamente trabalhadas pelos que, durante anos, foram habitantes da metrópole ou das ex-colônias. Cada autor esboçou e teceu uma nação ou cidade do tamanho de sua imaginação, impregnada de “realidades” tornadas visíveis através de diferentes suportes, matizados pela prática do “bem inventar”.

A história seguiu o mesmo percurso, mas, zelosa pela diferença e marcação de status no que concerne à produção de saber, lançou-se, então, à cata de fontes, estribada pela certeza de que falava da REALIDADE por intermédio de regras reconhecidas pela comunidade científica, afeta à área do conhecimento. Contudo, a invenção está presente, pois, como bem diz Durval Muniz de Albuquerque Júnior,

as invenções podem resultar no que não se planejou, podem surgir do encontro inesperado e acidental de elementos que jaziam separados. O momento de invenção, como de irrupção de qualquer evento histórico, é um momento de dispersão, que só ganha contornos definidos no trabalho de racionalização e ordenamento feito pelo historiador. Ordem que não está no próprio evento, articulações prováveis, possíveis, mas nunca indiscutíveis ou evidentes. Fato histórico, um misto de matéria e memória, de ação e representação, fruto de uma pragmática que articula a natureza, a sociedade e o discurso (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 35).

Neste dossiê, Francisco Salinas Portugal trabalha com a pertença ambígua de obras literárias que não se encaixam numa literatura considerada como sistema. Entretanto, o afã de construção de processos identitários levou intelectuais a postularem sua integração a um sistema. Para tal intento, investiram na construção de um romance histórico, criando a imagem pública do literato ou personagens à espera de que o leitor contribua para a legitimação da (nova) tradição. Frank Marcon investiga a relação entre o escritor Pepetela, seus romances e a imaginação da nação em Angola. Demonstra como a trajetória de vida do escritor e sua relação com a União dos Escritores Angolanos fazem parte de um contexto de institucionalização da literatura naquele país, bem como analisa os romances e sua relação com a criação de uma narrativa histórica romanceada para a nação. Esta análise não se encerra numa percepção centrada em Angola, mas implica perceber a presença de Portugal e do Brasil nas narrativas de Pepetela, como contrapontos (próximos e distantes), presentes neste processo de efetivação da “nação imaginada”. Heloisa Paulo aborda o sequestro do paquete Santa Maria, uma embarcação de luxo e um dos orgulhos do regime de Salazar. A bibliografia em torno do episódio do Santa Maria alcança um número razoável de títulos, quer em português, quer em espanhol, galego ou catalão. No entanto, a grande maioria é composta por relatos de participantes. O objetivo da autora é analisar os relatos existentes, trazendo um novo ângulo de interpretação para o fato. Julio Sánchez Gómez discute a relação entre os índios do Brasil e o processo de independência do país, no período de 1821 a 1850. Os índios são vistos tanto como sujeito passivo da legislação – primeiro do rei de Portugal, a partir do período pombalino, passando pela etapa da Corte do Rio de Janeiro e da seguinte corte imperial, assim como das discussões parlamentárias em Lisboa e no Rio quanto como sujeito ativo nas lutas independentistas. Lucia Maria Paschoal Guimarães perscruta o papel desempenhado pela revista Atlantida, o mais expressivo veículo de divulgação de um projeto político-cultural voltado para a defesa da formação de uma comunidade luso-brasileira. Concomitante à permanente reflexão doutrinária acerca da conveniência do estreitamento das relações entre Brasil e Portugal, a revista ocupava-se de questões literárias, históricas e artísticas contemporâneas, o que lhe conferia um alcance político e ao mesmo tempo cultural. Manuel Ferro trabalha a imagem de Lisboa, colhida das vivências urbanas, objeto de tratamento literário nos folhetins do fim-de-século XIX, que desmontam tanto os códigos de valores dominantes, como a uma visão poética de uma cidade, capital e Reino e de Império, decadente, sem conseguir acompanhar o ritmo do progresso das grandes capitais europeias. Maria Aparecida Ribeiro mostra como José de Alencar, por meio de cartas dirigidas a Gonçalves de Magalhães, criou uma poética nacional, culminando com a produção de um romance no qual nação e raça brasileira foram o (o condutor da narrativa. Rafael Alves Pinto Júnior analisa a atuação do engenheiro português Ricardo Severo (1869-1940) a partir de sua conferência sobre a Arte Tradicional no Brasil, realizada na Sociedade de Cultura Artística em 1914, em São Paulo, catalisando o movimento neocolonial no Brasil. Destaca também que a in9uência intelectual de Severo foi maior que sua ação profissional, desencadeando um intenso debate em torno da questão da nacionalidade e do papel da obra de arte – notadamente a arquitetura – como um elemento civilizatório e identitário.

Na secção artigos, José María Aguilera Manzano analisa algumas das características do projeto de identidade construído por um grupo de liberais autonomistas cubanos durante o século XIX. Devido à censura, esse grupo não pode valer-se do discurso político para conseguir seus objetivos identitários. Tal situação os levou a fazer uso da literatura como meio privilegiado de expressão de suas ideias. Kátia Rodrigues Paranhos aborda as iniciativas dos grupos de teatro popular no Brasil, a partir da década de 1960, explorando experiências e representações do movimento operário, sobretudo ao interrogar os textos, as imagens e os sons como fontes. Por (m, duas resenhas que tratam de experiências autoritárias. A resenha produzida por Cláudia Graziela Ferreira Lemes que trata do livro de Carlos Fonseca, intitulado Trece Rosas Rojas: la Historia más conmovedora de la guerra civil. Elio Cantalício Serpa e Marcello Felisberto Morais de Assunção resenharam a obra do filólogo Victor Klemperer, intitulada LTI: a língua do IIIº Reich.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

Elio Cantalício Serpa

Organizador do Dossiê


SERPA, Elio Cantalício. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 16, n. 1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura – um diálogo em andamento / Locus – Revista de História / 2011

Os artigos agrupados neste dossiê corroboram o alerta de Hayden White de que não deveria haver embaraço entre a historiografia narrativa, a literatura e o mito, uma vez que tratam- se de sistemas de produção de significados destilados da experiência de um povo, de um grupo, de uma cultura. Ou, como dizia Richard Morse, as obras literárias são riquíssimos instrumentos para desvendar processos históricos mais ou menos complexos. De formas bastante variadas, tanto em termos de temática como de abordagens teóricas – bem como pela mistura de autores provenientes da literatura, história ou das ciências sociais -, os diversos ensaios que o leitor tem em mãos permitem uma viagem, seja ao universo mental de novelistas ou ensaístas que escreveram sobre mundos mais ou menos conhecidos, ou àquele de historiadores que se valeram de narrativas literárias – ficcionais ou de viagem – para suas interpretações de processos históricos. Aliás, este é precisamente o espírito que buscamos nesta coletânea: abordar a atual, instigante e problemática relação entre história e literatura tentando, tanto quanto possível, contrabalançar a presença de historiadores com a de críticos literários.

Optamos por organizar os ensaios em uma sequência que inicia-se com a discussão de algumas questões teóricas envolvendo história e literatura, e prossegue com ensaios mais específicos sobre movimentos autores e / ou obras: o romantismo brasileiro na figura de José de Alencar, o modernismo português (Fernando Pessoa), o ensaísmo brasileiro dos anos 1930 (Afonso Arino de Melo Franco) e a literatura brasileira dos anos 1950 (Guimarães Rosa). No bloco seguinte estão os estudos de narrativas literárias que, de uma forma ou outra, tratam de encontros interculturais: jesuítas no Brasil, franciscanos na Índia, Lamartine no Oriente ou os dilemas da libertação de Angola através da obra de Pepetela. Ou seja, o dossiê agrupa textos de cunho estritamente teórico com diversas abordagens de autores, obras ou narrativas de viagens (religiosas ou leigas), sempre por meio de um diálogo entre a literatura e a história.

Também gostaríamos de chamar a atenção para a presença de ensaios sobre temas mais conhecidos do público brasileiro como o romantismo e o modernismo e encontros entre europeus e nativos da América do que, por exemplo, a obra do moçambicano Pepetela ou os escritos de Jacinto de Deus e Lamartine sobre o Oriente. Isto é bastante enriquecedor na medida em que proporciona o aprofundamento, pelo leitor, de temas mais ou menos familiares e amplia os horizontes ao apresentar novos autores ou objetos.

As reflexões de cunho “estritamente teórico” sobre o diálogo entre história e literatura ficam aqui por conta dos críticos literários. Mas são bastante pertinentes para os historiadores. A socióloga e também crítica literária Silvana Seabra oferece uma visão histórico-panorâmica das idas e vindas, aproximações e afastamentos entre história e literatura, desde o século XVII até a atualidade, que pode ser um bom guia para leitor se localizar na problemática. Especialmente porque ela se detém não apenas em dois autores que, nos anos 1960 e 1970, escreveram textos polêmicos sobre as proximidades entre história e literatura. Ela se propõe a explicar o porquê da forte reação à Metahistória de Hayden White (1991) em contraste com os textos do também polêmico Roland Barthes que, em 1967, apontara para uma compreensão da história enquanto narrativa e, portanto, muito próxima da literatura.

Paulo César Oliveira analisa, do ponto de vista da literatura, as viagens reais e imaginárias da história e da ficção na literatura contemporânea através de uma análise comparativa entre o romance Nove noites (2002), de Bernardo Carvalho, autor brasileiro de reconhecida representatividade no cenário ficcional contemporâneo, com a obra do autor inglês Bruce Chatwin, falecido em 1989, com destaque para In Patagonia (2005), Th e Viceroy of Ouidah (1990) e Anatomy of restlessness (1996). Oliveira se propõe a demonstrar que a análise comparada das obras de Chartwin e Carvalho desafiam a teoria literária hodierna ao dar “respostas” às “provocações” das narrativas ficcionais através de uma interseção com a história. Considerando que a literatura comparada parece ser o campo mais atuante no panorama atual da teoria literária, ele compara autores que, em cenários bem diferentes, têm em comum o fato de flertarem mais com a etnografia pela via de deslocamentos espaciais, territoriais, geográficos e históricos com a elaboração de sua matéria literária.

O romantismo brasileiro é abordado na figura emblemática de José de Alencar pelo historiador Valdeci Borges e pelo crítico literário André Monteiro, que enfocam aspectos muito distintos da obra do autor. Valdeci nos mostra como Alencar, além de romancista, foi um teórico e polemista sobre as inovações necessárias na língua, linguagem e estilo americano de seu tempo, para dar conta de novas realidades. O texto detalha o debate entre ele e dois portugueses contrários a quaisquer “brasileirismos”, ou seja, alterações no idioma pátrio. O interessante é perceber a acuidade e familiaridade de Alencar com as discussões de seu tempo ao contrapor a estes críticos o mesmo autor tido por eles como exemplar da não corrupção da língua inglesa em território norte-americano: Fernimore Cooper. Conforme então assinalado por Alencar, e hoje plenamente reconhecido, a novela de Cooper, O último dos Moicanos, se tornou um clássico da fundação dos Estados Unidos exatamente por ter reproduzido na escrita a forma como o inglês era falado na colônia. O mesmo aconteceu com o espanhol nas colônias hispano-americanos, conforme também reconhecido por Alencar e utilizado por ele como reforço ao seu próprio projeto para o Brasil.

Já o crítico literário André Monteiro aborda um outro José de Alencar, ou melhor, ao invés de centrar-se no autor, opta pela personagem Iracema, mito de formação nacional. Mas, muito além disto, está interessado em demonstrar – talvez na linha sugerida por Ian Watts -, como o personagem se independizou de seu autor e conheceu significados e ressignificações desde o século XIX até o XXI [1]. Segundo Monteiro, Iracema é prova viva da “morte do autor”. Ela não pertence mais aos direitos autorais do Senhor José de Alencar. Dentre as demonstrações deste fato, ele opta por discutir Iracema em uma versão cinematográfica. Produzido em 1974, “Iracema, uma transa amazônica”, de Jorge Bodansky e Orlando Senna, nos oferece, segundo Monteiro, “de muitos modos, grandes possibilidades de realizar uma fricção com o mito alencarino.” A riqueza do filme está exatamente em não se constituir em uma adaptação direta do poema-romance para o cinema. Pelo contrário, vale-se do mito de Iracema para uma profunda crítica ao regime militar exemplificado na construção da Transamazônica. Ilustra bem as ponderações de Robert Stam sobre as amplas possibilidades de diálogo e interação entre literatura, cinema e história que, longe de supor que as versões cinematográficas constituam-se, via de regra, em deformações e / ou traições da novela em que se basearam, podem e devem ser vistas como outra linguagem, igualmente poética e instigante [2].

Embora não represente uma ruptura absoluta com o propósito romântico de descobrir ou redescobrir o Brasil, ou mesmo de buscar uma “língua nacional”, o modernismo opta por outra vertente. A presença do índio, por exemplo, e o apelo à noção de “primitivo”, tema caro ao romantismo, também foi uma bandeira levantada pelo modernismo. A ênfase, porém, não era mais no índio filho de Catarina de Médici, conforme nos lembra Oswald de Andrade no Manifesto Modernista de 1928, mas no índio antropófago, devorador, que sobreviveu ao choque com os brancos. O ensaísmo e as novelas brasileiras dos anos 1930 dão prosseguimento a alguns destes insights, conferindo-lhes contornos mais nítidos e atingem, nos anos 1950 caracterísiticas mais gerais e universalizantes.[3] A propriedade desta “tese” pode ser percebida nas análises da historiadora Libertad Bittencourt e dos críticos literários Franco Daniel Faria e Bruno Flávio Lontra Fagundes.

Franco Faria, através do “sensorismo” do poeta modernista português Fernando Pessoa, ilustra a importância dos insights, da crítica ao racionalismo e da valorização “freudiana e nietzschiana” contrárias à leitura de obras literárias como se fossem meros documentos. Através das “viagens” de Caeiro, ilustra como estes documentos deveriam ser relativizados inspirando-se na tese de Gumbrecht, que afirma que os códigos organizadores das experiências sociais de tempo e espaço no mundo moderno entraram em colapso no século XX. Centro e Periferia, Transcendência e Imanência, entre outros, teriam se fundido, mesclado, interpenetrado. Assim, o espaço, até então, ordenado no mundo ocidental de acordo com paradigmas estáveis, teria se estilhaçado. Se, por exemplo, um viajante europeu romântico que fosse em direção à América do Sul pudesse acreditar que partia do centro da civilização para a sua periferia. Mas isto não mais se aplicava aos anos 1920, tanto que tais distinções tenderiam a se confundir, conforme também explicitado pelos nossos modernistas.

A valorização da originalidade americana, na linha iniciada pelos modernistas dos anos 1920 recebe contornos mais definidos em obras como o pouco conhecido ensaio de Afonso Arino de Melo Franco, O índio brasileiro: da teoria da bondade natural à denegação, de 1937, analisado aqui por Livertad Bittencourt. Seu texto ilustra, através de Afonso Arinos, a importância do próprio estilo ensaístico enquanto uma forma privilegiada de interpretação da história e da cultura. No caso do índio, permite ao autor dar contornos mais nítidos ao desejo de identidade vindo do século XIX, que não havia conseguido definir o que fazer com a herança indígena. Conforme nos mostra Bittencourt, esta interpretação inovadora sobre o índio brasileiro, no sentido de este ter sido inspiração, ao longo de dois séculos, na consolidação da teoria da bondade natural, alimentando o ideário que levou à Revolução Francesa, foi retomada quando nos debates por ocasião das comemorações dos 200 anos da Revolução Francesa a partir de fins de 1979, bem como para repensar a questão do índio durante as comemorações do bicentenário das independências latino-americanas.

Já Bruno Flávio Lontra Fagundes compara as concepções de instrução, educação e sentimento nacionais nos Brasis imaginados de José Veríssimo e de Guimarães Rosa. Tratam-se não só de dois períodos históricos bastante distintos, mas de autores com formação diferenciada. O sociólogo José Veríssimo publicou A educação nacional em 1890, enquanto Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, data de 1956. O ensaio chama atenção para temáticas em comum, apesar da diferença temporal e de formação dos autores, demonstrando a riqueza da abordagem comparativa também nestes casos. Mesmo levando-se em conta que, no caso em questão, Rosa havia lido e anotado a obra de Veríssimo, o foco de Fagundes é na permanência, apesar das diferenças, da temática da instrução e da educação (diferentes para ambos) em sua relação com a criação de uma comunidade imaginada, de um Brasil. Em Grande Sertão, o velho Riobaldo conversa com um “doutor” da cidade que talvez venha a fazer algum sentido em sua história. Na conversa, fica claro o diálogo de Rosa com uma significativa parte do pensamento social brasileiro. Veríssimo, por sua vez, considera a literatura como a expressão mais geral e segura do sentimento de um povo. Ou seja, não existe pura ficção, assim como não existe pura “realidade”.

A relação da literatura com uma “nação imaginada” ou idealizada é também o tema central do ensaio do crítico literário Dernival Ramos. O autor mostra como a narrativa literária pode dar vazão a projetos de modificação do mundo real. Os romances do angolano Pepetela – considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos angolanos e da língua portuguesa -, são excelentes exemplares da importância das narrativas literárias no processo de construção das nações. O historiador e crítico literário Dernival Ramos nos mostra isto no caso de Angola através da análise de três romances de Pepetela: Mayombe (2004), Lueji: o nascimento de um Império (1997) e A geração da utopia (2000). Eles abordam o complexo processo de construção da identidade nacional no contexto da descolonização da África onde constituíram, após a independência, “Estados sem nações”. Segundo ele, os principais obstáculos seriam os tribalismos e a visão limitada das elites. A leitura da análise que ele faz dos romances e do contexto da independência angolana lembram problemas enfrentados pelos estados latino-americanos mais ou menos 130 anos antes.

Em “A imagética jesuítica em zona de contato” do historiador Leandro G. Pinho trata dos textos jesuíticos escritos quando das primeiras viagens ao Brasil no século XVI, chamando atenção para a forte presença de referências a aspectos naturais tais como fauna e flora, mas também para o estilo literário de suas cartas. Nestes primeiros encontros com homens e natureza são diferentes, teriam emergido situações similares ao que Mary L. Pratt denominou como / a / uma “zona de contato”, ou seja, locais de encontro / choque entre culturas diferentes. Leandro explora, inspirado em Chartier, a teia existente nos textos jesuíticos entre a “real” impressão do Novo Mundo e a tradição literária na qual foi formada, mostrando a necessidade de adaptações, ou seja, de releitura do referencial europeu em função da nova realidade circundante.

O artigo da historiadora Patrícia Souza de Faria sobre literatura espiritual e história dos franciscanos no Oriente lida, como o de Leandro Pinho, com uma literatura religiosa que se propunha a ser documental, ou seja, a retratar, da forma mais fiel possível, as realidades vistas e vivenciadas e, claro, os progressos (avanços) proselitistas alcançados. A autora atenua a tese de que no encontro com outros mundos, os jesuítas foram os monopolizadores da evangelização. Na Índia, por exemplo, os franciscanos foram os primeiros a chegar e tiveram forte atuação, da qual resultou uma importante produção literária. Mas, embora o número de jesuítas e franciscanos no Oriente fosse próximo, demorou bem mais para que as obras dos capuchinos fossem publicadas do que as dos jesuítas. Dentre esta literatura franciscana, ela destaca os escritos de frei Jacinto de Deus (1612-1681) que, na qualidade de representante da coroa portuguesa no Oriente, escreveu também sobre o que se convencionou chamar literatura de aconselhamento a príncipes, na qual se destacou, na mesma época, o jesuíta português Antonio Vieira.

Ainda falando de Oriente e do encontro com outros mundos, o ensaio da historiadora Vera Chacham nos faz pensar no quanto o exotismo do Levante, para nós ocidentais, pode e deve ser contextualizado. Ela nos introduz na visão de Alphonse de Lamartine que, no início da década de 1830, ilustra como se modificou o olhar exótico do europeu sobre a narrativa de viagens do começo do século XIX, vista como uma forma de expressão da cultura histórica do período, pois os valores – pictóricos e estéticos, mas também éticos – atribuídos ao Oriente muçulmano começam a ser vistos como aqueles que teriam sido perdidos pelo Ocidente. Na Idade Média, esclarece ela, o ódio ao muçulmano não era acompanhado por tal curiosidade por sua cultura. O texto de Lamartine pode então ser analisado como um novo tipo de narrativa de viagem que se vale muito mais do que as anteriores, especialmente a iluminista, do recurso à literatura. Ilustra uma forma de aproximação entre as duas formas de escrita na primeira metade do século XIX.

Uma instigante sugestão para os interessados pela abordagem histórica que se ampara na literatura é o recém lançado Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis (2009), de Mary Del Priori, no qual a historiadora reconstitui não somente a biografia de Euclides da Cunha, mas a da família Cunha, envolvendo várias passagens de traições e rearranjos matrimoniais. O resenhista Francisco das Chagas Silva Souza enfatiza o quão bem a autora consegue integrar a história das famílias de Euclides e de Dilermando com o tempo em que se passa, bem como dialogando intensamente com a literatura, especialmente com a literatura de gênero. Mas, no caso em questão, para chamar atenção para um aspecto polêmico e pouco tratado: o sofrimento que o machismo causa também nos homens, e não somente nas mulheres.

Entre os artigos de fluxo contínuo, o leitor encontra o da historiadora Fernanda Aparecida Domingos Pinheiro, que analisa o funcionamento da justiça colonial em Mariana nas contendas em torno da obtenção e do usufruto da liberdade, comparando dois períodos históricos: de 1750 a 1769 e de 1850 a 1869. Por fim, novamente um texto que aborda colônias africanas, mas no caso, o historiador Reinaldo Guilherme Bechler propõe-se a demonstrar, baseado em fontes primárias inéditas, como o III Reich alemão lidou com a epidemia de lepra que se alastrou pela região em fins do século XIX e início do XX.

Notas

1. watt, ian. mitos do individualismo moderno. fausto, don quixote, dom juan, robinson crusoe. rio de janeiro: zahar, 1997.

2. stam, robert. “teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade” in: ilha do desterro. florianópolis, n.51, pp. 19-53, junho-julho de 2006.

3. morse, richard m. “th e multiverse of latin america identity (1920-1970)” in: bethel, leslie. ideas and ideologies in twentieth century latin america. cambridge: cambridge university press, 1996.

Beatriz Helena Domingues – Professora do Departamento de História da UFJF e organizadora deste dossiê.


DOMINGUES, Beatriz Helena. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.17, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História, Literatura e Fronteiras / Revista Mosaico / 2010

O presente número da Revista Mosaico, do Programa de Mestrado em História, Cultura e Poder da PUC Goiás, tem como tema-chave História, Literatura e Fronteiras, tema sugestivo e atual, que releva as relações que a História e a Literatura vêm travando desde os anos 60 do século XX, especialmente no tratamento da Literatura como fonte da História e das sensibilidades. O número assinala com muita competência essa perspectiva, principalmente na dominante da formação dos estados nacionais da América Latina, dado que pelo menos três artigos assinalam essa dimensão: o de Cléria Botelho da Costa, professora do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, que aborda alguns aspectos da obra poética de Castro Alves dedicada aos escravos e à escravidão no Brasil do século XIX, a qual, segundo a autora, rompeu os cânones do imaginário da determinação biológica da cultura pertencente à elite imperial, ao cantar o negro escravo dentro de um projeto de formação de um estado nacional de homogeinização que o ignorava. Para ela, Castro Alves exerceu, na construção da identidade nacional, uma forma de se contrapor ao projeto colonialista, muito embora suas marcas românticas e nacionalistas; o de Horst Nitschack, coordenador do Centro de Estudios Culturais Latinoamericanos (Cecla) da Universidad del Chile, que discute a contribuição, durante o processo de formação dos Estado-Nações europeus, das literaturas emergentes nacionais à criação de um espaço público, indispensável para a integração de distintos atores e comunidades culturais dentro de suas fronteiras e para o diálogo com outros estados-nações, muito embora também a consolidação da instituição ‘literatura nacional’, literatura aqui como processo de semantização, tenha chegado a ser um instrumento de exclusão desde dentro e de separação desde fora; e, no mesmo sentido, o artigo de Horacio Miguel Hérnan Zapata, da Universidad Nacional de Rosário, Santa Fé, Argentina, que questiona a construção do estado-nação argentino desde a revolução de mayo de 1810, cuja pauta negou e lesionou a visibilidade do indígena dentro de um projeto nacional também de homogeinização, que buscava erguer um “país racial e culturalmente superior”. Descreve como a desaparição do indígena ficou clara e explícita dentro das políticas estatais que vigoraram entre o centenário e o bicentenário dessa que foi a revolução mais importante do estado argentino.

Na sequência dessa trilogia dedicada ao tema da formação de estados nacionais do Brasil e Latino-América, temos o artigo de Gercinair Silvério Gandara, pós-doutoranda do PND / Capes UFG, que discute dois temas que são caros ao brasileiro e, em especial, ao povo goiano: o sertão e a fronteira. O artigo aponta que, no Brasil, a fronteira aparece como o limite do humano. À primeira vista, é o lugar do encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como os proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres de outro. No seu modo de ver, no entanto, é o lugar do encontro de relações sociais, mentalidades, ou melhor, de relações diferentes. Daí estender seus argumentos à cidade de Uruaçu, Goiás, como cidade-fronteira, baseada especialmente no pensamento de José se Souza Martins sobre o tema.

Sobre Goiás, temos ainda o autor Bernardo Élis, cuja obra O Tronco, de 1956, é discutida por Albertina Vicentini, professora do Mestrado em História da PUC Goiás e bolsista-pesquisadora do Cnpq, que analisa a obra do ponto de vista da sua realização enquanto romance histórico tradicional, evidenciando nele as marcas da convenção realista exigida por G. Luckács e discutida, na literatura, por Roman Jakobson e Phillipe Hamon.

Outros autores analisados são o gaúcho Cyro Martins, na sua Trilogia do Gaúcho a pé, ou seja, o gaúcho marginalizado pela urbanização e mecanização do campo, que Carlos Roberto Rangel, professor do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria, RS, juntamente com as bolsistas PIBIC Simone Becker Ferreira e Fabiula dos Santos Martins analisam, demonstrando o realismo social do autor que denuncia a penúria do homem rural e as transformações das cidades interioranas do RS, o choque entre o tradicional e o moderno; e Alcindo Guanabara, cujas crônicas são avaliadas por Marina Haizenreder Ertzogue, professora da UFTocantins e pesquisadora do Cnpq, sob a perspectiva da melancolia e da angústia, do pessimismo de Schopenhauer, comparando-o ao Edgar Allan Poe contista do “Homem das Multidões”.

Há ainda o artigo de Claudio Carlan, professor da Universidade Federal de Alfenas-MG, sobre a moeda como documento, que pode informar sobre os mais variados aspectos de uma sociedade, tanto o político e estatal, como o jurídico, religioso, mitológico ou estético. As moedas como as medalhas são estudadas pela numismática e, no caso romano, esses símbolos monetários teriam tido, segundo o autor, também um papel de passar uma mensagem aos governados, uma espécie de propaganda política / imperial. A cunhagem monetária associada ao retrato e à propaganda configurava esses dois aspectos intimamente ligados. De outro lado, as moedas ainda são instrumentos importantes para estabelecer a datação de documentos e eventos que chegaram até nós sem seu contexto original, como são de grande valia na nossa compreensão das imagens que contêm. Ou seja, a numismática conserva um fragmento da história do homem que, segundo Frère, se coloca hoje como uma disciplina científica através da qual podem ser estudados muitos aspectos de uma determinada sociedade. É uma ciência que tira da aridez do seu estudo grandes subsídios históricos.

Esperamos que este número corresponda às expectativas de nossos leitores vez que trabalha a releitura da História oficial sob a perspectiva da exclusão e da marginalidade de atores sociais ativos, como o indígena ou o negro, e que correram por fora por conta de projetos elitizados e de construção política hegemônica de cada Estado-nação avaliado. E também porque chama alguns literatos e objetos concretos como as moedas como testemunhos de uma História que pode ser lida tanto a partir das convenções quanto das sensibilidades.

Albertina Vicentini

Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante

Editoras


VICENTINI, Albertina; CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.3, n.2, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Outros Tempos / 2010

História e Literatura: perspectiva de uma relação política e intelectual A Revista Outros Tempos neste número celebra a relação intelectual entre a História e a Literatura. Essa celebração desmitifica qualquer idéia de subalternidade entre essas áreas de estudo científico. Entre a História e a Literatura há uma cumplicidade intelectual. A História tem a intenção de refletir sobre os processos de transformações sociais entre o presente e o passado. A Literatura, entre outros interesses, expressa diferentes visões de mundo, oferecendo uma perspectiva coletiva para uma análise das mudanças ocorridas nas sociedades humanas, ao longo do tempo. Quando a relação entre História e Literatura é verificada, uma perspectiva simbólica de processos sociais pode ser construída. Contudo, não há simbolismo sem uma dimensão política. Nesse sentido, a escolha de um dossiê voltado para essa relação foi de fato uma escolha política do corpo editorial da revista.

A formação da identidade nacional brasileira foi forjada durante o século XIX. Em grande parte essa construção se deu através da produção historiográfica oitocentista e da literatura romântica do século XIX. Quando assumimos a posição política de celebrar a relação intelectual entre essas áreas de estudo, também, estamos afirmando que a sociedade brasileira precisa ser repensada. O Brasil resultou de um processo histórico que teve seus pilares nas transformações sociais oitocentista, desiguais, contraditórias e inacabadas. Essas realidades, muitas vezes, são justificadas por construções simbólicas forjadas por historiadores e literatos. Assim, repensar simbolismos literários e historiográficos do Brasil é, sem dúvida, fazer um exercício político sobre a realidade que desejamos transformar.

O Maranhão contou com produções historiográficas e literárias que justificavam interesses políticos voltados para a concentração do poder. Num olhar, mesmo que despretensioso, é possível perceber essas mesmas práticas políticas ainda hoje.

Entretanto, nem todos os intelectuais maranhenses se curvaram ao jogo da reprodução do poder. Já algum tempo, os orgulhos europeus maranhenses, elaborados pela literatura e pela historiografia anteriores, foram superados pelas novas concepções que vêm se apresentando em nossa universidade e em outras instituições. Isso é mais que uma esperança, um verdadeiro passo inaugural para continuar sonhando com uma sociedade diferente.

Esses estudos são agora prestigiados por esse número da Revista Outros Tempos, que se juntam aos esforços recentes de estudiosos da História e da Literatura no Maranhão e em outros lugares brasileiros, voltados para pensar a força política dessa relação. Desta forma, convidamos o leitor a desfrutar de uma prazerosa leitura e se engajar numa luta que é obrigação de todos nós.


Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 8, n. 11, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: a partilha do sensível / Revista Mosaico / 2010

Há um retrato de água e de quebranto

Que do fundo rompeu desta memória,

E tudo quanto é rio abre no canto

Que conta do retrato a velha história.

(Saramago, Lisboa, 1981)

A presente edição da Revista Mosaico apresenta artigos produzidos e apresentados no IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA: Cultura e Identidades (2009), cujas discussões foram encaminhadas no Simpósio Temático “História e Literatura: a partilha do sensível” (ST 23), que trazem para o público interessado, retratos que contam velhas e muitas histórias, vindas do fundo de muitas memórias reconstruídas, que se abrem em cantos e sonoridades pelas mãos daqueles que também narram experiências e estudos produzidos em diferentes contextos, tendo como referência criações literárias.

As propositoras do Simpósio Temático, as professoras Cléria Botelho da Costa (UnB) e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante (PUC GOIÁS), consideram que, a relação entre história e Literatura vem se configurando como um dos novos desafios propostos pela historiografia recente, em especial pela Nova História Cultural que está atenta para os significados atribuídos ás práticas sociais, enquanto representações do real, aos valores, as múltiplas linguagens, formas diversas de acesso ao vivido.

Esse movimento da historiografia em direção às questões culturais tem feito cair as muralhas rígidas que separavam a história da literatura, do cinema, da música, possibilitando que ficção e realidade se misturem, fazendo entender que a sensibilidade, a ficção não se configuram como o avesso do real, mas como uma outra forma de entendê-lo.

Se a literatura é apreendida como o reino de expressão das sensibilidades, das emoções humanas, a história também é hoje compreendida como uma construção de sujeitos sociais que têm sonhos a realizar e dores a mitigar, portanto, como uma narrativa que abriga sensibilidades, emoções humanas e as partilha com seus leitores. Por essa razão temas como: a saudade, o amor, a vingança, o desamor etc., antes tão renegados pelos seguidores de Ranke, hoje cintilam no palco iluminado da historiografia. Com essa compreensão, foi propósito do simpósio pensar o texto literário e o texto histórico enquanto artefatos culturais, ou seja, representações do real, construções identitárias considerando, sobretudo, que as sensibilidades e as emoções constituem os fios de suas narrativas. Sem, no entanto, deixarmos de realçar que se a História e a Literatura são narrativas que abrigam pontos de intercessão, elas, também, guardam diferenças que lhes são peculiares. Para essa intercessão convergem as reflexões dos autores dos artigos aqui apresentados. O artigo de Maria Célia da Silva Gonçalves, intitulado “Sensibilidades e Perfomances Femininas nas Folias de Reis de João Pinheiro (MG)”, trata da participação das mulheres nos rituais de Folias de Reis realizados no município de João Pinheiro, traz a sensibilidade da rainha da festa, da cozinheira, da florista, dentre outras.

No fio condutor das tessituras femininas, o texto de Vandeir José da Silva, refelete sobre “O papel da mulher na festa de Caretagem e a culinária”, na Festa de São João”, em Paracatu (MG). Embora, o foco central da festa de caratagem seja uma dança da qual participam somente os homens negros da comunidade, as mulheres, por outro lado, assumem a condição de protagonistas ao organizarem o “banquete” dos festejos; assim como ao exercerem a arte de confeccionar as máscaras e vestimentas dos caretas, para uma homenagem a São João.

Os “Benzedores e Raizeiros”[…], trazidos por Giselda Shirley da Silva, do mesmo lugar do noroeste mineiro, revelam os “saberes partilhados na comunidade remanescente de Quilombo de Santana da Caatinga(1940-2011)”, as práticas e artes dos fazeres que foram se institucionalizando na trajetória histórica daquela coletividade e nas suas relações com a religiosidade e as tradições orais e culturais.

Nos mesmos percursos do sertão mineiro, o artigo: “Memórias e Narrativas de Antigos Sertanejos: nas trilhas de Guimarães Rosa”, de Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida, sobre as memórias e narrativas de pessoas que ocuparam a região do Grande Sertão, nos tempos de outrora, reconstrói também as rotas por onde andou o escritor Guimarães Rosa. Os textos do noroeste mineiro, assim, parafraseando outro escritor, trazem: “[…] água de quebranto […] do fundo desta memória […], conta do retrato a velha história” (Saramago, 1981).

“Entre Anjos e Demônios Surgem as mulheres de Alencar” de autoria de Ana Carolina Eiras Coelho Soares, também conduz às sensibilidades femininas, relembra os dramas da sociedade carioca do século XIX, por meio das análises do romance “Lucíola” de José de Alencar e as polêmicas em torno da peça teatral “As Asas de um Anjo”, também, desse autor; ambas retratam com realismo os preconceitos e os modos de agir e pensar naquele momento histórico. Confirmando mais uma vez, que “a história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de representação histórica,” como lembra Haydem White, em Trópicos do Discurso (2001).

O artigo “Cora Coralina: A Voz Que se Pode Ouvir” de Eliz Braz da Silva Junior e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, recorre à voz de Cora Coralina, em sua obra: “Estórias da Casa Velha da Ponte”, para encontrar na poética da autora as sensibilidades de um tempo, em torno de um episódio de condenação à forca, que expressa a relação entre cidade e cadeia em Goiás, séc. XIX.

Lembrando as dores e instabilidades das guerras, os dois textos inspirados em romances de escritores tanto aqui como do além mar. Um deles, o texto “Jorge Iaiá de Machado de Assis na Guerra do Paraguai,” de Tiago Gomes de Araújo e outro de Maria do Carmo Ferraz Tedesco sobre a “Reconfiguração da moçambicanidade nos romances de Mia Couto e Paulina Chiziane”. O primeiro refere-se ao romance escrito por Machado de Assis, sobre os controvertidos “motivos que direcionaram o alistamento de alguns indivíduos para o mencionado embate”. O segundo, traz reflexões sobre as incertezas e instabilidades que marcaram o continente africano na transição do século XX ao XXI, tendo como palco os movimentos de independência política.

Das ruas e do flâneur, falam Cléria Botelho da Costa e Maria Helenice Barroso, das cidades e do Brasil que se desenhavam no inicio do século XX; com o artigo intitulado “Sedução das Ruas”, analisam o livro A alma encantadora das ruas, considerando a cidade imaginada pelo literato e as interfaces multidisciplinares entre literatura e o tempo histórico. Concordando com as autoras de que literatura quase sempre retrata o contexto social em que a narrativa transcorre. Autores de romances, de peças teatrais e das diferentes produções literárias, reconstroem suas visões de mundo e as suas experiências de vida por meio dos diálogos com o seu tempo e os lugares de onde miram as diferentes perspectivas sobre as quais desenham os seus enredos.

Por fim, os artigos Memórias de um “Tempo Brabo”: O cangaço na literatura de Francisco J. C. Dantas, de Antônio Fernando de Araújo Sá e Desconstruindo a História: Hayden White e a Escrita da Narrativa de Gabriella Lima de Assis e Marcus Silva da Cruz, inseridos na seção tema livre.

Assim, aqueles que narram, sejam os que se dedicam à literatura considerada erudita, sejam aqueles do cancioneiro popular, como cordelista, repentistas, e tantas outras manifestações artístico-culturais, que recorrem à linguagem escrita, falada ou à tradição oral ancoram na perspectiva de reconstrução do imaginário, das ideias, das representações.

Navegam orientados com os mastros do mundo que os circundam e bebem nas fontes e correntezas da vida, da experiência inscritas num espaço povoado por personagens fictícios (ou não) que encarnam as vissitudes de seres humanos reais ou imaginários. Assim, citando mais uma vez, o escritor lusitano, “estou onde versos faço” (Saramago, 1981), autores e escritores narram dos lugares, em tempos e espaços circunstanciais e subjetivos.

Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante

Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida

Cléria Botelho Costa

(Organizadoras)


CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa; ALMEIDA, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de; COSTA, Cléria Botelho. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.3, n.1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Sæculum / 2009

No distante ano de 1966 Hayden White cutucou a comunidade de historiadores com afiada aziaga de crítico da cultura no seu espetacular ensaio, “O Fardo da História”, onde afirmava a seguinte tese: “avulta em toda parte um ressentimento motivado pelo que parece ser a má fé do historiador em reivindicar os privilégios tanto do artista quanto do cientista, ao mesmo tempo em que recusa submeter-se aos modelos críticos que atualmente vão sendo estabelecidos na arte ou na ciência”. Tratava-se, segundo o autor, de uma “tática fabiana”, análoga a dos operários vitorianos que queriam ardorosamente o socialismo, mas não abriam mão do capitalismo e do imperialismo.

Depois de um silêncio sepulcral em torno dos “ataques de literatice” às consagradas epistemologias historiográficas oitocentistas grandes reações surgiram para defender o campo do historiador. Entre nós, brasileiros e intelectualmente híbridos, tomamos a literatura sem as reverências canônicas e buscamos dessacralizá-la, atirando-a ao rés do chão: como testemunho histórico e como representação. Muitos de nós seguimos o manifesto-apresentação dos organizadores de A História Contada (Capítulos de história social da literatura no Brasil), já então no final da década de 1990 e, portanto, no ocaso do século em que a comunidade viva de historiadores nasceu.

Esse fardo, ainda deveremos carregar por muitas gerações e, por isso mesmo, Saeculum também tenta alfinetá-lo para derrubar alguns grãos epistemológicos em nossa seara. O dossiê, História e Literatura, como um dos últimos da primeira década do século novo, apresenta uma variedade de concepções e postulações que firma o pluralismo acadêmico da revista em definitivo.

São treze artigos de autores das várias universidades brasileiras e do exterior que discutem as relações, nem sempre amistosas, entre história e literatura. Mais uma resenha é apresentada sobre livro recente em torno da temática da “arte de inventar o passado”. Finalmente, brindamos o leitor de Saeculum com entrevista inédita realizada com um dos historiadores brasileiros mais reconhecidos em torno das fontes literárias: Sidney Chalhoub.

História e Literatura: nada de boa leitura! Excelente reflexão!

Os Editores.


Equipe Editorial. Editorial. Sæculum, João Pessoa, n.20, 2009. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura | SÆCULUM – Revista de História | 2009

Prezado (a) Leitor (a),

No distante ano de 1966 Hayden White cutucou a comunidade de historiadores com afiada aziaga de crítico da cultura no seu espetacular ensaio, “O Fardo da História”, onde afirmava a seguinte tese: “avulta em toda parte um ressentimento motivado pelo que parece ser a má fé do historiador em reivindicar os privilégios tanto do artista quanto do cientista, ao mesmo tempo em que recusa submeter-se aos modelos críticos que atualmente vão sendo estabelecidos na arte ou na ciência”. Tratava-se, segundo o autor, de uma “tática fabiana”, análoga a dos operários vitorianos que queriam ardorosamente o socialismo, mas não abriam mão do capitalismo e do imperialismo.

Depois de um silêncio sepulcral em torno dos “ataques de literatice” às consagradas epistemologias historiográficas oitocentistas grandes reações surgiram para defender o campo do historiador. Entre nós, brasileiros e intelectualmente híbridos, tomamos a literatura sem as reverências canônicas e buscamos dessacralizá-la, atirando-a ao rés do chão: como testemunho histórico e como representação. Muitos de nós seguimos o manifesto-apresentação dos organizadores de A História Contada (Capítulos de história social da literatura no Brasil), já então no final da década de 1990 e, portanto, no ocaso do século em que a comunidade viva de historiadores nasceu. Leia Mais

Tempos de Vieira e de Machado | ArtCultura | 2008

Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.1

– Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

Ah! Indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Leia Mais

História & Literatura | ArtCultura | 2006

Para nossa alegria, que queremos compartilhar com nossos colaboradores, ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte vem colhendo, dia após dia, bons frutos. Nos últimos tempos, aumentou, sensivelmente, o rol de seus leitores e assinantes, fato que se traduziu, inclusive, no crescimento significativo das contribuições submetidas à apreciação do corpo de pareceristas da revista. Ao lado disso, conquistamos igualmente o reconhecimento institucional. Na mais recente avaliação do Qualis/Capes, ArtCultura foi classificada como publicação nível “A Nacional”, agora não apenas em sua área específica, História, mas também em Artes/ Música, que engloba a produção no campo de Artes Cênicas e Visuais. Para culminar, tanto o CNPq como a Capes resolveram aplicar uma injeção de recursos na revista, o que nos possibilitará, ainda em 2007, ajustar os passos com o calendário civil, lançando as edições n. 14 e 15 no seu ano de referência.

Com entusiasmo redobrado, portanto, oferecemos aos nossos leitores a ArtCultura n. 13, que leva adiante a proposta de valorizar as redes de interlocução entre História, Cultura e Artes em geral. Esta edição se abre com 8 textos que compõem o dossiê História & Literatura, a começar por um artigo inédito de Roger Chartier, na esteira de sua estada em Uberlândia durante seminário internacional promovido pela Linha História & Cultura do Programa de Pós-graduação em História da UFU. Outra novidade fica por conta da estréia da seção Polêmica, na qual Sidney Chalhoub põe em questão alguns aspectos da abordagem de John Gledson a respeito da fatura literária de Machado de Assis. Leia Mais