História, Memória e Natureza / História & Perspectivas / 2009

Esta edição de História & Perspectivas nos convida a refletir sobre os temas História, Memória e Natureza, nas suas vinculações e retro-alimentações que podem ajudar a percebê-los como elementos chaves nas transformações requeridas nas sociedades contemporâneas, quando a própria natureza está a mostrar a necessidade da volta à história e à memória para nos posicionarmos sobre os erros e acertos incorridos pela humanidade, uma vez que parte dela já reconhece a urgência desta reflexão.

O dossiê que compõe o número 41 inicia uma reflexão sobre agricultura multifuncional e ruralidade. A autora vai a campo para estudar diferentes histórias de agricultores em uma área que está entre as mais produtivas da Itália central, numa época em que se passa de um modelo no qual a valorização econômica se baseava majoritariamente no aumento da produtividade da terra à piora das externalidades negativas da agricultura convencional. Situação que requer um novo pacto social entre os agricultores e seus concidadãos do resto da sociedade, pois as mudanças necessárias requerem a contribuição de todos os seus membros. Dentre elas, pode-se mencionar as que ocorrem neste importante setor, a agricultura, por aqueles que nele atuam e são portadores de uma “racionalidade campesina”, que assume a reprodução dos recursos e a autonomia como pré-requisitos da administração empresarial. Racionalidade que se explicita na capacidade de trabalhar com cuidado os recursos naturais do setor; e que permite e impõe um modo de viver a própria atividade em uma relação estreita com a natureza e a sociedade (VAN DER PLOEG, 2006). Examina histórias que falam de compromisso, e do que Van der Ploeg chama de cura (cuidado), como elemento que caracteriza quem não tem só o dinheiro como objetivo e motor da ação.

Os três artigos seguintes tratam, primeiramente, de alternativas tais como os sistemas agro-florestais e o desenvolvimento local sustentável para este e outro importante setor, o florestal, que permitem aquele tipo de relação com a natureza ao tempo que fornecem à sociedade alimentos e produtos florestais na perspectiva agro-ecológica. O segundo chama a atenção para a cautela que se deve ter ao discutir um dos problemas ambientais mais sérios da atualidade, as mudanças climáticas – que podem trazer consequências graves para os setores mencionados – e que é também uma questão global, a Amazônia. Considera que o meio ambiente é único, desde a esfera subatômica até a dimensão universal, com resultados entre estes extremos: indivíduo, espécie humana, reino animal e organismos vivos. E baseando-se em pesquisa sobre a Iniciativa MAP (Madre de Dios / Peru, Acre / Brasil e Pando / Bolívia), considerada uma das dez regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, os autores do texto seguinte buscam problematizar a luta pela dominação da terra na Amazônia, sob condições de aprofundamento da mercantilização da natureza e perda de controle das populações locais sobre seus territórios / recursos, num processo de “desterritorialização”.

Dentre os três artigos finais do dossiê, o primeiro analisa o modo de vida dos beraderos sanfranciscanos antes da construção da represa de Sobradinho, evidenciando que, além de propiciar a eles meios de vida, o Rio São Francisco era a sua principal referência espacial, temporal, cultural. No segundo se discute as modificações ocorridas na vida do homem do campo do distrito de Martinésia, Uberlândia-MG, a partir da década de 1970, com relação às atividades agrícola e pecuária e às formas de viver, trabalhar, se relacionar, nos sentidos e maneiras de vivenciar a terra e a relação com a natureza. O terceiro artigo aponta para uma dimensão central quando se trata da natureza, a cultura, que a autora relaciona à produção intelectual ou artística, e ao modo de vida de uma sociedade, possuindo ainda, o sentido de cultivar, diretamente vinculado aos temas centrais do dossiê: o cultivo dos meios de vida para as sociedades. Relaciona-o também com o cuidado que este cultivo precisa ter com os recursos naturais. Que sejam usados de acordo com os objetivos de uma sociedade que busque se reconciliar consigo mesma, numa época de tantas contradições, conflitos e possibilidades de reconstruções, os quais permitem esta conciliação consigo e com a natureza da qual faz parte, e sobre a qual atua de formas insustentáveis, como a realidade nos mostra e a memória pode revelar.

O documento seguinte já contribui, em sua interface entre a pesquisa e a extensão, com a investigação e coleta de dados sobre transformações sociais e ambientais na região do Triângulo Mineiro nas últimas décadas, ocorridas com a implantação da cana-de-açúcar e produção de álcool e açúcar. Tem como preocupação fundamental, não apenas recolher material, mas, sobretudo, estabelecer contato e discussões com certos grupos de trabalhadores sobre referências e sentidos dos impactos e transformações relacionados a esta atividade e em relação às experiências vividas.

Com relação aos artigos seguintes, o primeiro analisa a ONG Ação Moradia, que atua através de programas ligados à habitação em Uberlândia, construindo moradias ou fornecendo tijolos ecológicos, além de oferecer cursos profissionalizantes e outras atividades de cunho social. Busca compreender o problema da demanda de moradias nesta cidade e o significado da casa própria como representação de acesso à cidadania e conquista do espaço urbano, além de refletir sobre o papel do estado no planejamento do ambiente urbano. O segundo trata da escravidão em Belém, capital da província do Pará, durante a segunda metade do século XIX, nos variados aspectos de constituição e dinâmica da escravidão naquela cidade, tais como mercado, controle social e os conflitos sociais dentro do espaço urbano. O artigo seguinte mostra a mobilização diferenciada de profissionais médicos (civis e militares), professores catedráticos e estudantes de Medicina e Farmácia da Faculdade de Medicina da Bahia, para o importante apoio aos feridos durante a Guerra do Paraguai. E o quarto texto faz a análise de um artigo publicado na revista Veja acerca do Partido dos Trabalhadores em 12 / 09 / 2007. Se pauta no constructo teórico da análise do discurso de vertente francesa, voltando-se para as noções de sujeito e sentido discursivo propostos por Pêcheux (1997), de heterogeneidades segundo Authier-Revuz (2004), dos conceitos de memória e intericonicidade segundo Courtine (2006), e ainda os conceitos de polifonia e dialogismo, segundo Bakhtin.

As duas resenhas tratam primeiro do desenvolvimento territorial, de caráter multidisciplinar, como importante e vasta área de debate acadêmico, com transbordamentos para a prática de gestão de políticas públicas; por sua forma de percepção da realidade através do re-ordenamento espacial do território, entendido não só do ponto de vista geográfico, mas agregando dimensões econômico-sociais que conferem a algumas regiões características singulares. A partir destas, são analisadas as formas de intervenção estatal (modelo top-down) e o processo de gestão participativa, com demandas locais, coadunando as proposições top-down com as do tipo button-up, não em uma defesa do localismo, mas mostrando a importância do capital-social enquanto detonador de um processo de gestão participativa, alicerçado pelo aparato estatal, concatenando os interesses sub-nacionais com os de âmbito nacional. Na segunda resenha, o autor constrói sua narrativa destacando o lugar central que Otelo ocupa pela seletividade de seu passado, oferecido a ler em um movimento de heroicização, com o propósito de que os acontecimentos sobre o artista tenham o caráter de grandeza, transformando-o em herói do cinema e do teatro, e enfatizando a sua notoriedade, brilhantismo e genialidade, espinha dorsal da escrita do autor, pelo manuseio do passado na construção de uma memória sobre Grande Otelo. Uma referência à memória, destacada neste número da revista História & Perspectivas como central ao papel de todos nós na construção de sociedades historicamente referenciadas, socialmente justas e ambientalmente sustentáveis, tarefa para a qual o brilhantismo de todos está sendo solicitado.

Conselho Editorial


História, Memória e Natureza. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.30, 2009. Acessar publicação original desta apresentação [DR].

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