Questões Metodológicas / História Oral / 2004

Neste ano de 2004 comemoramos os 10 anos da Associação Brasileira de História Oral, criada e conduzida em meio a tantas esperanças, com o intuito de desenvolver meios e agregar pessoas que têm em comum o interesse pela pesquisa, pelo conhecer e compreender a realidade social. No bojo deste grande empenho foi criada a revista História Oral para divulgar e dar a conhecer trabalhos de interesse geral, realizados dentro dessa metodologia.

Iniciada em 1998, a revista História Oral chega hoje a seu sétimo número, que em notas iniciais apresenta o delinear de sua própria história, notas escritas pelo primeiro editor, José Carlos Sebe Bom Meihy e por mim, atual editora.

A entrevista configura a forma mais usual de obtenção de dados na metodologia de História Oral, dados provenientes do diálogo entre o pesquisador e o entrevistado. Há aquelas entrevistas orientadas para responder a objetivos e interesses específicos de uma pesquisa, mas há aquelas que despertam um interesse geral pela importância da atuação do entrevistado, de sua experiência e da narrativa então obtida. É o caso da entrevista com o renomado economista Celso Furtado feita por Rosa Maria Vieira. Em uma bem elaborada apresentação, a entrevistadora delineia os principais traços biográficos de Celso Furtado e mostra sua importante contribuição para o pensamento econômico contemporâneo, através de uma visão que parte do subdesenvolvimento.

Uma forte preocupação, objeto de constantes discussões entre pesquisadores, diz respeito à metodologia da História Oral. O tema constitui o Dossiê deste número da revista, apresentando trabalhos que focalizam questões referentes ao processo da pesquisa. Muito se tem discutido sobre o delineamento do projeto de pesquisa, a elaboração do referencial teórico, a construção do quadro de entrevistados, os contatos e a realização das entrevistas gravadas. Trazemos à discussão outros aspectos que configuram diferentes passos na realização da pesquisa. Percebendo a ausência de consenso quanto aos métodos na arte de interpretar os documentos construídos campo da história oral, buscamos contribuições para a reflexão sobre esta importante etapa da pesquisa. Pensando ainda na subjetividade e na relação com o outro, consideramos pertinente buscar elementos constitutivos à fundamentação no campo da interpretação.

Nesta ordem de reflexão, Amauri Carlos Ferreira e Yonne de Souza Grossi trazem elementos para a discussão da questão da interpretação das narrativas e do desafio que significa a construção do coletivo a partir de relatos individuais e singulares. Destacam a subjetividade, não individual mas em dimensão que aponta para o coletivo, considerando que para lembrar é preciso não só vivenciar, como tornar os conteúdos significativos. Tratam da alteridade, mostrando a entrevista como uma relação entre iguais – pesquisador e narrador –, um encontro entre sujeitos, mantendo a autonomia das partes envolvidas no processo de construção de narrativas e, ainda, da questão ética que envolve o trabalho de pesquisa.

O consenso já existente quanto às primeiras etapas do projeto de pesquisa que levam à obtenção da entrevista, torna-se menor quanto às etapas que se seguem, que configuram o trabalho com as narrativas obtidas. Nesse sentido, o artigo de Shannon Page traz uma contribuição significativa ao discutir a etapa da transcrição, que deverá ser o mais fiel à entrevista, mas também torná-la inteligível. Relata uma experiência feita com quatro transcritores que trabalharam com a mesma entrevista, mostrando os resultados das opções que são feitas durante o processo de realização do trabalho e a necessidade do pesquisador voltar às fitas gravadas.

Outro passo do processo de pesquisa em História Oral refere-se ao arquivamento das fontes coletadas. Sobre este tópico, uma colaboração importante e que trazemos aos leitores da revista História Oral, é o artigo de Lluís Ubeda Queralt da Universidade de Barcelona, com o título “El tratamiento archivístico y documental de las fuentes orales”, importante pela descrição didática do trabalho e pelas distinções conceituais que apresenta. Descreve o tratamento arquivístico e o tratamento documental das fontes, reportando-se também à etapa da transcrição.

Os artigos apresentados no presente número tratam de educação e cultura. Em “Narrativas do tempo em enredos de professores / as”, Inês Assunção de Castro Teixeira aborda a questão da temporalidade, distinguindo os diferentes tempos que estruturam o cotidiano escolar: os tempos especiais, o tempo das aulas e o tempo dos interstícios. Analisa a experiência das diversas temporalidades, através da vivência de professores de duas escolas públicas de Belo Horizonte. Trata do tempo quantitativo – tempo-duração e do tempo qualitativo – tempo-significação e, especialmente, dos significados a eles atribuídos pelos professores. Considera ainda o tempo docente fora da escola e o tempo extra-escolar – tempo da vida familiar, dos amigos e do lazer, da vida pessoal. Aponta o caráter polissêmico do tempo dedicado à escola, tempo que cria a identidade do professor.

O texto de José Carlos Sebe Bom Meihy nos leva a um passeio pelo samba no artigo “O samba é Morena de Angola: oralidade e música”. As letras analisadas mostram nova forma de obter dados sobre a cultura popular, forma que foge ao esquema convencional das entrevistas. Através das letras de músicas, conjugadas com discursos literários e historiográficos, o autor examina as relações e diálogos entre a cultura brasileira e a angolana, buscando mostrar as influências mútuas entre essas duas culturas de fala portuguesa. Aponta a memória e a identidade culturais entre África e Brasil, popularmente aceitas, mas que tendem a encontrar resistências entre historiadores.

Zeila de Brito Fabri Demartini analisa aspectos da imigração japonesa para o Estado de São Paulo no texto “Marcas da guerra em terra distante: relatos de japoneses em São Paulo”. Trabalha com relatos orais de nipo-brasileiros sobre os períodos da Segunda Guerra Mundial e do traumático pós-guerra em São Paulo para as famílias da colônia japonesa, dado que o Japão fora um dos países do Eixo derrotado pelos Aliados. Procura entender as representações e interpretações contidas nos relatos orais dos que vivenciaram tais acontecimentos, a partir de questões que inquietam os historiadores orais, como os silêncios, conflitos e incoerências presentes nas memórias.

O artigo “Fala de índio, História do Brasil: o desafio da Etno-História indígena”, de Ednaldo Bezerra de Freitas, baseia-se em pesquisa realizada com índios Krahô, de aldeias situadas no Tocantins. Resultado de sua tese de doutoramento, focaliza a parte metodológica, tecendo inicialmente considerações sobre a História Oral na vertente que trabalha com a possibilidade de “dar voz” aos silenciados pela História. Apresenta reflexões sobre as especificidades que revestem a realização de entrevistas com povos indígenas, povos de outra cultura e outra língua. Trata mais especificamente da GRIN, a guarda indígena. A proposta foi se ater aos procedimentos metodológicos, mas o texto de Freitas suscita no leitor o interesse em conhecer o conteúdo dos resultados alcançados.

Dentro do tema amplo da cultura brasileira, Célia Toledo Lucena apresenta o texto “Imagens e significados do banquete na festa do Rosário”, em Silvianópolis, cidade do sul de Minas. Analisa a festa religiosa marcada pelo lúdico, com suas devoções, ritos e tradições. Mostra o significado atribuído ao banquete, como comer coletivo oferecido aos congadeiros e ao público, marcando a aproximação entre as pessoas, reforçando laços de sociabilidade.

Acreditando na prática de publicar resenhas de livros de interesse geral, contamos com a colaboração de Marco Aurélio Santana, que trabalhou com o livro Biographical Research, de Brian Robert (Buckingham: Open University Press, 2002), ainda não traduzido para o português. Marco Aurélio dá a seu trabalho o título “Vidas em questão: uma introdução à pesquisa biográfica”. Destaca as articulações e entrelaçamentos entre a vida individual e a social e mostra que Brian Roberts, de forma competente, traça a trajetória dos estudos biográficos, do ponto de vista histórico e conceitual.

Com a publicação deste número, termina o mandato desta editoria. Contei com a colaboração do Comitê Editorial composto por José Carlos Sebe Bom Meihy, Lucília Neves Salgado, Maria de Lourdes Monaco Janotti e Olga Rodrigues de Moraes von Simson, prontos para oferecer auxílio e boas sugestões. Contei também com o apoio do Conselho Editorial e de membros da diretoria da ABHO a quem pareceres foram solicitados. Contudo, a tarefa da publicação dos números 6 e 7 não teria sido possível sem a participação constante de Maria de Lourdes Mônaco Janotti, que se responsabilizou por incontáveis tarefas e pelo término do número 6, em ocasião em que me achava impossibilitada de fazê-lo. À amiga Dilu, um especial muito obrigada.

Alice Beatriz da Silva Gordo Lang


LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. Palavras da editora. História Oral. Rio de Janeiro, v.7, p.7-10, 2004. Acessar publicação original [DR]

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