História e relações internacionais na Região das Guianas / Diálogos / 2020    

Entre as diversas regiões que compõem o subcontinente da América do Sul, as Guianas [1] é a menos estudada na composição da Amazônia Transnacional e do continente americano de forma geral. Assim, este conjunto de trabalhos compõem uma importante peça de pesquisa para melhor compreendermos um local habitado por grande biodiversidade, culturas, povos, línguas, fluxos de pessoas e uma rica história.

A região está inserida dentro da Amazônia Transnacional e representa cinco dos nove países que compartilham o espaço amazônico. Povos originários, colonização, estabelecimento de fronteiras, fluxos migratórios são alguns dos elementos que compõem alta potencialidade a ser mais explorada nos estudos da História e relações internacionais.

A delimitação da Amazônia pode estabelecer diferentes critérios e dessa forma apresentar diferentes composições. É comum a referência em textos sobre a Amazônia Transnacional. Esta é uma definição geral que inclui critérios físicos, ecológicos e político-administrativos abrangendo Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa (França), Peru, Suriname e Venezuela.

A juventude institucional presente nos territórios que compõem as Guianas explica um pouco do baixo volume de estudos sobre a região. A República Cooperativa da Guiana e Suriname são os mais jovens países da América do Sul, independentes em 1966 e 1975 respectivamente. Os estados brasileiros Roraima e Amapá somente se elevaram ao status de estado da Federação do Brasil em 1988. A Guiana Francesa, por sua vez, não é um país independente e responde diretamente como território a França continental. Isso significou que as instituições de pesquisa da região foram de forma geral estruturadas apenas nas últimas décadas e muitas vezes de forma precária.

A Université de Guyane em Caiena só passou a ter um status de Universidade em 2015. Até então sua vinculação era como polo educacional ligado às Antilhas, notadamente Martinica e Guadalupe. Desde seu novo momento, a contratação de professores e estabelecimentos de projetos de pesquisa e ensino trouxeram maior foco para os estudos sobre o território e para seu entorno geográfico.

Na República Cooperativa da Guiana e Suriname existe, as duas únicas universidades presentes, “Anton de Kom” e “University of Guyana”, respectivamente, enfrentam baixos investimentos e uma fuga de mão de obra especializada (mestres e doutores) para outros países. Todavia, algumas iniciativas foram feitas na busca de aproximar os estudos regionais na área das humanidades.

Na Universidade Federal de Roraima (UFRR) nos anos 2000 buscou-se abordar as Guinas como objeto da História e relações internacionais. Reginaldo Gomes de Oliveira é um dos acadêmicos pioneiros nesses estudos e vai apontar a ideia de uma “Amazônia Caribenha” como diferencial no olhar sobre a região. Entre seus trabalhos, destacamos “AMAZÔNIA CARIBENHA: a regionalização, os caminhos históricos e culturais” onde é situado historicamente o conceito de Amazônia Caribenha. O historiador aponta que o conceito em foco é “vinculado ao caráter relacional do território Caribe como região cultural, marcada por um processo etno-histórico diferenciada das outras regiões da América do Sul, que aparentemente se define como singular processo cultural ibérico (português e espanhol)” [2 ]. Mais recentemente programas de pós graduação nessa instituição foram estabelecidos e entre os diversos temas apontaram a região das Guianas como interesse.

No Amapá a universidade Federal do Amapá (UNIFAP) também teve incursões acadêmicas individuais nas Guianas, mais especificamente na relação do estado com a Guiana Francesa, desde os anos 2000. O processo de expansão no Brasil do ensino superior que esteve presente de meados dos anos 2000 até 2016 proporcionou uma quantidade substantiva de pesquisadores em instituições como a UNIFAP. Nesse processo, as iniciativas individuais ganham institucionalidades traduzidas em programas de pós graduação.

Nessa esteira da construção científica no Amapá o Programa de Pós Graduação em Estudos de Fronteira (PPGEF) está desde 2017 estabelecendo a região das Guianas e Caribe como recorte geográfico de pesquisa. Projetos e intercâmbios se fortaleceram institucionalmente com a região e possibilitaram a produção acadêmica brasileira sistemática sobre o Norte da América do Sul.

Denominamos “Região das Guianas” a localização do extremo norte Sulamericano composto pelo Brasil, França, Suriname, República Cooperativa da Guiana e Venezuela. Do Brasil os estados do Amapá, Roraima, partes do Pará e Amazonas estão dentro da Região. O território Europeu dentro da Amazônia é representado pela Coletividade Territorial da Guiana Francesa.

Nesse território, encontraremos a história de etnias amazônicas e sua luta para a sobrevivência de suas culturas. É também aqui que as línguas dos antigos colonizadores- espanhol, português, francês, holandês e inglês- se encontram rodeadas por falantes do espanhol. O período colonial trouxe para essa região povos europeus, africanos, indianos, javaneses, chineses; um passado recente, por sua vez, promoveu um intenso fluxo migratório do Brasil e Caribe na composição das sociedades das Guianas.

É com satisfação que apresentamos o Dossiê “História e relações internacionais na Região das Guianas”: fruto de esforço coletivo e de um longo processo de trabalho que culmina com o lançamento desta edição, composta por um total de oito artigos e uma entrevista que trazem vultosas contribuições sobre a região das Guianas. A pluralidade e complexidade histórica da região são, neste Dossiê, abordadas por acadêmicos da História, Antropologia, Ciência Política, Literatura e Geografia.

Nosso Dossiê inicia com a entrevista a uma das maiores escritoras do Suriname, Cynthia McLeod. Sua biografia confunde-se com a história do Suriname, o mais jovem país independente da América do Sul. Sua obra é representativa da importância da construção de identidade surinamesa, pois seus romances históricos são feitos a partir da perspectiva de mulheres, geralmente negras nascidas na colônia ou trazidas por meio da imigração forçada que caracterizou o tráfico de pessoas escravizadas. Suas personagens contrapõem-se à narrativa branca, colonizadora e hegemônica que prevaleceu na história dos países colonizados.

O trabalho “Threads of memory: the historical novel in Suriname as a writing of resistance” segue o caminho apontado na entrevista de Cynthia McLeod ao buscar dar a palavraa vozes silenciadas historicamente. Natali F. Costa e Silva analisa o romance histórico “The free negress Elisabeth: prisioner of color” (2004) escrito por McLeod contribuindo para o debate sobre a desigualdade racial e de gênero que está na base das sociedades coloniais que caracterizam a região em foco.

Em seguida, o trabalho de Samuel Tracol e Arnaud-Dominique Houte “Aqui comece o Brasil: colonização penal, territorialização e fronteirização do rio Oiapoque. 1853-1927” se debruça sobre a região fronteiriça entre Brasil e França (Guiana Francesa) e seu processo de povoamento a partir da colonização penal como mecanismo de ocupação da região.

Ainda sobre a região fronteiriça entre Brasil e França a partir do Amapá e Guiana Francesa, o artigo de Carmentilla das Chagas Martins e Iuri Cavlak“O dilema da participação local na cooperação transfronteiriça Brasil-França (1990-2015)” discute a aproximação, a partir dos anos 1990, entre Brasil e França com acordos celebrados e as sistemáticas reuniões da Comissão Mista Transfronteiriça-CTM. A pesquisa problematiza a falta de participação local e o desenvolvimento das cooperações.

A pesquisa de Rosuel Lima Pereira traz reflexões acerca do território denominado ultraperiférico da União Europeia e que está presente na região das Guianas. O artigo intitulado “Guiana Francesa, uma região ultraperiférica da União europeia: Questões e desafios no século XXI” busca traçar uma análise da Guiana Francesa sob o aspecto jurídico e econômico, além de problematizar questões de segurança nacional ede integração do território francês na região.

Na esteira da discussão sobre integração fronteiriça, o artigode Paulo Gustavo Pellegrino Correa e Miguel Patrice Philippe Dhenin analisa a construção da Ponte Binacional que liga o Brasil e a França, além de tecer reflexões acerca da representação social dos grupos locais. Intitulada “Integração transfronteiriça e representação social: a ponte binacional e os catraieiros na fronteira Franco-Brasileira”, a pesquisateve como objeto de estudos os catraieiros, que são barqueiros responsáveis pela logística fluvial para demonstrar como a relação SujeitoRepresentação- Objeto construiu uma representação negativa e ameaçadora de um projeto integrador entre os dois países por parte da comunidade que, historicamente, esse mesmo projeto buscou aproximar.

Como mencionado acima, o fluxo migratório na região das Guians é intenso e se difere em alguns aspectos dos processos migratórios presentes em outros espaços da América do Sul. O trabalho de Handerson Joseph tem como objeto as trajetórias migratórias caribenhas, mais especificamente haitiana, e as Guianas como parte desse sistema. Em “O sistema migratório haitiano nas Guianas: para além das fronteiras” poderemos melhor entender as práticas e as trajetórias dos migrantes que entrecruzam as fronteiras nacionais nas Guianas, assim como ver uma análise do sistema migratório, seus documentos e papéis e as problemáticas que as diferentes gerações migratórias haitianas suscitam no espaço e no tempo.

A baixa densidade populacional que caracteriza a Amazônia Transnacional e, mais intensamente, a região das Guianas não significou ausência de uma rica história de diferentes povos que aqui habitam. Ao contrário, como podemos perceber nas abordagens desse conjunto de trabalhos, a diversidade cultural caracteriza as Guianas. Em “Perspectivismo Ameríndio nos Discursos Mitificados do Catolicismo Popular na Amazônia”, os autores Marcos Vinicius F. Reis e Marcus Paulo T. Pereira abordam, a partir de um olhar pós-colonial, o projeto colonizador da Igreja Católica em relação às expressões do catolicismo popular da Amazônia Amapaense. O artigo aponta as estratégias das comunidades afro-ameríndias na resistência à hegemonia eurocêntrica e judaico cristã diante das expressões de povos locais.

Finalmente, destacamos uma temática importante ao abordar a região Amazônica: a ecologia política. Em “A Ecologia Política nas fronteiras do saber e do poder em território tradicionalmente ocupado: o saber-fazer das chamadas quebradeiras de coco na Amazônia”, Jodival Maurício da Costa e Joaquim Shiraishi Neto levantam um debate sobre o papel da ecologia política na descolonialidade do saber e do poder na região Amazônica. Biodiversidade, riquezas naturais, modernidade e tradições compõem um cenário onde as cosmovisões de grupos locais principalmente no que tange aos olhares sobre a natureza e suas representações.são contrapostas aos interesses de mercado.

Este conjunto de trabalhos é lançado em um momento de uma pandemia global que vai ser apontada pela historiadora Lilia Schwarcz como o fim do século XX. Um turbulento momento em que olhares sobre as sociedades, as tecnologias, o consumo, os direitos e a própria história estão sendo revistos. Esperamos que os artigos que abordam uma região ainda pouco estudada na História e nas relações internacionais possam contribuir na expansão do conhecimento de tão múltipla região como as Guinas.

Paulo Gustavo Pellegrino Correa

Organizador

Notas

1. É possível por vezes encontrar a grafia da palavra Guiana com Y em textos em português.

2. OLIVEIRA, Reginaldo G. Amazônia Caribenha: a regionalização, os caminhos históricos e culturais. In: Reginaldo Gomes de Oliveira; Andrea Idelga Jubithana-Fernand. (Org.). Dos Caminhos Históricos aos Processos Culturais entre Brasil e Suriname. 1ªed.Boa Vista-RR: Editora da Universidade Federal de Roraima – EdUFRR, 2014, v. 1, p. 13-33

Paulo Gustavo Pellegrino Correa –  Universidade Federal do Amapá, Brasil. E-mail: [email protected]. https://orcid.org/0000-0002-2167-5969

Acessar publicação original desta apresentação

Acessar dossiê

[DR]