Historiografia e História Intelectual Ibero-Americana / Projeto História / 2019

A Projeto História, revista do Programa de Estudo Pós-Graduados em História da PUC / SP, chega ao volume 64, cujo dossiê intitula-se “Historiografia e História Intelectual Ibero Americana”. Desde agosto de 1980 a revista tem contribuído com a difusão do conhecimento histórico no Brasil, por meio de um longevo programa de pós-graduação. No atual momento, quando a universidade está sob ataque de forças obscurantistas, nosso programa renova seu compromisso com a democracia, a pluralidade e o conhecimento, antídotos contra o autoritarismo que nos rodeia.

O debate sobre a historiografia e a produção intelectual em perspectiva representa uma importante dimensão dos estudos históricos, já consagrados como via de acesso aos diversos regimes de historicidade e ao repertório de interpretações do passado. A consciência histórica de uma época, bem como as forças em disputas e a própria dimensão política e cultural do saber manifestam-se nos testemunhos literários, ensaios acadêmicos e na memória visual e escrita de forma geral.

Por essa razão optou-se por abrir o dossiê com o artigo de Fernando Torres Londoño, professor dos Programas de Pós-graduação em História e em Ciência da Religião, ambos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O professor assina o artigo “A historiografia dos séculos XX e XXI sobre os jesuítas no período colonial conferindo sentidos a uma presença: do nascimento do Brasil à globalização”, que tem como objeto de análise a historiografia produzida nos séculos XX e XXI sobre a atuação da Companhia de Jesus no período colonial. No texto, Londoño mostra que, nos últimos quarenta anos, os historiadores têm buscado superar paradigmas apriorísticos, ou seja, a favor ou contra os jesuítas. Tem sido buscada, em seu lugar, uma abordagem capaz de abarcar a complexidade desta importante ordem religiosa, desde o seu estabelecimento e atuação, ao longo de sua existência secular, mas também a partir da imagem que se formou e transfigurou nos discursos que repercutiram.

O segundo artigo, assinado por Fernando Vale Castro, professor de História da América do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “Os americanismos nas páginas da Revista de Derecho História Y Letras e da Revista Americana”, realiza uma análise comparada de dois periódicos latino-americanos das primeiras décadas do século XX: a Revista de Derecho, Historia y Letras (1898-1924), fundada e dirigida em Buenos Aires pelo diplomata, intelectual e político argentino Estanislao Severo Zeballos, e a Revista Americana (1909-1919), editada no Rio de Janeiro e publicada pelo Ministério das Relações Exteriores, que teve no Barão do Rio Branco importante incentivador. Sabendo que estes tipos de periódicos eram uma espécie de estrutura elementar da sociabilidade intelectual — como afirma Jean-François Sirinelli — o texto busca elucidar como certas concepções de Americanismo circulavam naquelas páginas, a fim de apontar sua relevância no debate intelectual e diplomático sul-americano do período. Conferindo destaque para a contemporaneidade das preocupações que as nortearam, o estudo destaca o pioneirismo que as orientaram na formulação de um novo vocabulário político e a formação de novos circuitos intelectuais.

O professor da Universidade Federal de São Paulo, Leonardo Carnut, juntamente com a professora Áurea Maria Zöllner Ianni, da Faculdade de Saúde Pública da USP, assinam o texto “O pensamento político em saúde Latinoamericano: Floreal Antonio Ferrara e seus primeiros passos para repensar os caminhos da saúde coletiva”. Neste artigo, os professores reconstituem a biografia de Floreal Antonio Ferrara a partir do primeiro tomo de sua obra intitulada Teoria Política e Saúde. A partir de uma abordagem qualitativa mista, na qual se fez uso do levantamento históricobiográfico em conjunto com a análise do conteúdo da obra do autor biografado. Numa perspectiva bastante original, que procura somar diversos traços de sua personalidade pública e intelectual, os autores ressaltam a visão que Ferrara tinha sobre a vida política do país e do continente, sugerindo a importância em reler sua experiência no debate contemporâneo sobre o assunto.

Diogo da Silva Roiz, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, estuda uma importante mutação na construção institucional da História como disciplina em seu artigo “Ser historiador no século XX: Alfredo Ellis Júnior entre o “autodidatismo” e a “profissionalização” do trabalho intelectual de História (1938-1956)”. Nele, o autor investiga a transição entre o autodidatismo e a profissionalização do trabalho intelectual do historiador no Brasil. Para isso, Roiz analisa a obra e a trajetória do paulista Alfredo Ellis Júnior, entre os anos de 1938 e 1956, e o ativo posicionamento político daquele autor com ênfase na chamada Revolução Constitucionalista de 1932, que resultou em duras críticas, esquecimentos e desinteresse de sua obra por boa parte da historiografia brasileira produzida após a década de 1980. O texto de Roiz busca compreender o modo como Ellis Junior incorporou as discussões sobre o estabelecimento da história enquanto campo disciplinar e a profissionalização do ofício do historiador, privilegiando o período em que ele lecionava no curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo.

Na sequência, Paulo Augusto Tamanini, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) – por meio do artigo “O Holodomor e a memória da fome dos ucranianos (1931-1933): os ressentimentos na História” – busca, a partir de registros mnemônicos sobre o Holodomor, em uma perspectiva da cultura dos sentimentos e da visualidade, apreender a memória dos ucranianos acerca da fome de 1931-33. O texto busca compreender como o Holodomor ainda é “(res)sentido” pelos ucranianos. O autor também inventaria os esforços institucionais pelo reconhecimento do Holodomor como um genocídio.

O artigo intitulado “Pela mais digna de todas as revoluções”: o conceito de revolução na crise do regime monárquico brasileiro – de Juliano Francesco Antoniolli, doutor em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – busca refletir sobre o conceito de revolução, derivado da Guerra dos Farrapos, durante a crise do Império e a consequente ascenção dos ideais republicanos propagados a partir de 1870. O artigo parte da História dos Conceitos (de Reinhart Koselleck) para analisar o livro Guerra civil do Rio Grande do Sul, de Tristão de Alencar Araripe, bem como a propaganda republicana levada a cabo pelos jovens estudantes de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo.

O dossiê se encerra com a contribuição do pós-doutorando do Laboratório de Estudo de História das Américas (LEHA-USP), Renato Martins, autor do artigo “Ficção, História e Relações Internacionais na comparação das Américas de Francisco García Calderón e Sérgio Buarque de Holanda (1912- 1959)”. No texto, propõe uma reflexão comparada sobre as Américas a partir da escrita da história, da ficção e das relações internacionais realizadas pelo ensaísta e diplomata peruano, Francisco García Calderón (1883-1953), e pelo crítico e historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902- 1982). As comparações entre esses autores foram realizadas a partir de uma problemática enfrentada por ambos durante a elaboração de suas obras: o arielismo. Nesse sentido, Martins aponta para a importância da geração intelectual de 1898, na América Latina, bem como para os regimes de historicidade que caracterizaram uma modernidade latino-americana, propriamente dita.

Esta edição conta ainda com três artigos livres. O primeiro deles, intitulado “A diversificação do complexo cafeeiro e a produção paulista de alimentos na primeira república: uma análise por meio das mensagens dos presidentes do Estado de São Paulo”, de autoria do professor Paulo Roberto de Oliveira, da Faculdade de Economia e Administração da USP, trata da diversificação na economia cafeeira e produção de alimentos durante a Primeira República. O estudo foi realizado, principalmente, a partir da análise do corpus documental constituído pelas mensagens dos Presidentes do Estado de São Paulo no período, 1889-1930, e busca compreender a diversificação da economia paulista e seus limites, sobretudo no que diz respeito aos gêneros alimentícios.

Por sua vez, Juliana Figueira da Hora, Wagner Magalhães e Elaine Alencastro assinam o segundo artigo livre: “Memórias do patrimônio colonial: arqueologia do sobrado dos Toledos, Iguape-SP”, em que apresentam um estudo arqueológico, ao analisar as diversas ocupações do sobrado dos Toledo, em Iguape, no estado de São Paulo. Em sua pesquisa, os autores valorizam os grupos sociais que vivem na cidade as memórias ali vividas, a fim de reconstituir a “biografia” do local através de uma arqueologia histórica.

Por fim, o terceiro artigo – “Simples e naturalmente bela: a coluna “Segredos de Beleza de Hollywood” no Anuário das Senhoras (1941-1949)” – assinado pelas professoras Jaci de Fátima Souza Candiotto e Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla, ambas da Universidade Federal do Paraná, toma como objeto de estudo a coluna Segredos de Beleza de Hollywood, de autoria de Max Factor Jr., publicada no Anuário das Senhoras entre 1941 e 1949. As duas autoras buscam evidenciar os padrões de beleza feminina do período e apontam para o fato de que conquistar a condição de ‘ser bela’, para algumas mulheres, balizava aquilo que se considerava como feminino e dos artifícios do “ser bela”, capazes de influenciar a relação entre o protótipo da “mulher moderna” e aquela outra, que é dona de si e suas escolhas.

Este número da revista traz ainda uma nota de pesquisa. Trata-se de “Silenciamentos e desvelamentos historiográficos sobre os Waimiri-Atroari e a FUNAI (1967-1985)”, de Henri Albert Yukio Nakashima, e ainda duas resenhas. Na primeira delas, chamada “Existem limites para a Biografia?”, Igor Lemos Moreira faz um balanço do livro O que pode a biografia, organizados por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt (São Paulo: Letra e Voz, 2018). Por fim, Ana Paula Nunes da Silva, em “Memórias soldadescas de um Brasil Holandês”, resenha o livro de Viagem ao Brasil (1644-1654): o diário de um soldado dinamarquês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, escrito por Peter Hansen Hajstrup no século XVII, cujo material foi organizado e preparado pelos historiadores Benjamin Nicolaas Teensma, Bruno Romero Ferreira Miranda e Lucia Furquim Werneck Xavier (Recife: Cepe, 2016). Assim, espera-se que os leitores possam apreciar os trabalhos selecionados para esse número da Projeto História. Os editores agradecem aos autores dos artigos e das resenhas pelo enorme esforço de pesquisa.

Alberto Luiz Schneider

Eduardo Holderle Peruzzo


SCHNEIDER, Alberto Luiz; PERUZZO, Eduardo Holderle. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.64, 2019. Acessar publicação original [DR]

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