Inquisição, Poder e Sociedade / Politeia: História e Sociedade / 2011

Por 285 anos, entre 1536 e 1821, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal foi responsável pela perseguição a mais de 40 mil pessoas em todo o império luso, que compreendia terras da metrópole, ilhas do Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé), várias regiões da África (a costa ocidental, do Marrocos ao Cabo da Boa Esperança, além de Angola e Moçambique), o Brasil, localidades na Índia (Goa, Cochim) e no extremo Oriente (Macau, Malaca, Nagasaki). Homens e mulheres foram investigados e condenados por crimes contra a fé (judaísmo, maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, libertinismo, críticas aos dogmas etc.) ou contra os costumes e a moral cristã (bigamia, sodomia, feitiçaria, solicitação). As sentenças, em sua maioria lidas publicamente em autos-de-fé, variavam de acordo com o grau de gravidade imputado pelos juízes inquisidores aos delitos cometidos. Cerca de dois mil indivíduos foram condenados à morte na fogueira e a um número muito maior foram impostas penas como a obrigação de ouvir missas, o açoite, o degredo, o confisco dos bens, o uso de hábito penitencial, a prisão perpétua, dentre outras. A documentação resultante desses procedimentos adotados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa – processos inquisitoriais e de habilitações, correspondências enviadas e recebidas, denúncias e confissões, cadernos do promotor, de nefandos e de solicitantes etc. – se constitui em registros valiosos para pesquisadores de diversas áreas das ciências humanas pois, a partir dela, é possível, como nos lembra Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, estudar temas relacionados a conflitos sociais, dificuldades econômicas, movimento marítimos, produção literária, censura, arquitetura urbana, toponímia, dentre outros aspectos da vida social dos territórios submetidos ao domínio lusitano.

Apresentamos ao público da Revista Politeia o dossiê Inquisição, poder e sociedade, composto por seis artigos de pesquisadores brasileiros que, a partir da investigação do acervo documental dos cartórios inquisitoriais, se ocupam da história do Santo Ofício português e, especificamente, das ações desta instituição no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. O conjunto de textos apresentado é uma importante contribuição para a compreensão da Inquisição portuguesa, de sua dinâmica, funcionamento e historiografia. Reunimos aqui episódios que contam um pouco da história da América portuguesa: alguns trabalhos exploram aspectos relacionados ao cotidiano, às práticas e ideias de coletividades, como os judeus e cristãos-novos que se deslocaram para terras brasileiras; outros se dedicam a acompanhar a trajetória de indivíduos singulares que foram, de algum modo, atingidos pela Inquisição – homens célebres, como Antônio Vieira, ou obscuros, como um certo João de Moraes Montesinhos ou, outro, Alexandre Henriques, moradores da Bahia e das Minas Gerais – que, denunciados, atravessaram o Atlântico, se apresentaram ao Tribunal do Santo Ofício e conheceram os cárceres de Lisboa. Alguns artigos se concentram nas relações de poder que se afirmavam por meio das ações relacionadas à Inquisição – o papel de visitadores e familiares, os denunciantes que agiam motivados pelo desejo de atingir adversários políticos –; outros focam as tentativas do Santo Ofício em controlar a conduta moral e as práticas culturais de homens e mulheres submetidos à Coroa portuguesa.

O primeiro artigo, escrito por Angelo Adriano Faria de Assis, professor de História do Brasil Colonial da Universidade Federal de Viçosa, intitulado “Menorá de mil braços: variações do criptojudaísmo no mundo português” discute a sobrevivência da fé judaica após o decreto real que, em 1497, determinou a expulsão dos judeus de Portugal e, a seguir, a conversão compulsória ao cristianismo daqueles que permaneceram nas terras do reino. Angelo Assis destaca alguns processos inquisitoriais que tiveram por motivação denúncias contra pessoas acusadas de práticas identificadas com a crença judaica, como o respeito ao shabat, as restrições alimentares, o jejum em datas significativas do calendário judeu, as bênçãos e orações etc. O texto adota como ponto de partida a importância da menorá – um candelabro de vários braços, que ostentavam velas que deveriam ficar permanentemente acesas – no mobiliário dos templos judaicos para ressaltar as estratégias adotadas por várias famílias de cristãos novos com o intuito de assegurar a continuidade das práticas religiosas e culturais que lhes conferiam identidade. Assim como as chamas da menorá deveriam se mostrar sempre acesas, também estes cristãos novos se imbuíram da missão de manter permanentemente acesa a chama da fé, mesmo nos momentos em que esta crença foi transformada em ato herético e passível de perseguição e condenação pelos inquisidores do Santo Ofício.

“Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628” é o segundo artigo desse dossiê, de autoria de Ana Margarida Santos Pereira, doutoranda da Universidade de Amsterdã. O texto aborda um dos mecanismos pelos quais a Inquisição se fazia presente nos diferentes territórios, mesmo os mais distantes, do império português: a visitação. O Brasil foi alvo de uma primeira visitação em fins do século XVI, ocasião em que o visitador percorreu cidades da Bahia e de Pernambuco. Uma segunda visitação do Santo Ofício se faria presente em terras da Bahia em 1618. A terceira visitação, que se efetiva nos anos de 1627 e 1628, foi a primeira que alcançou as “partes” do Sul, atingindo localidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, São Vicente, Santos e Vitória. Essa visitação, embora tenha se constituído em objeto de estudos por José Gonçalves Salvador e Lina Gorenstein, ainda é pouco conhecida e divulgada pelos pesquisadores da Inquisição. A abordagem de Ana Margarida Pereira, tomando como exemplo paradigmático a figura de Luís Pires da Veiga, o personagem principal da terceira Visitação, trata de diferentes aspectos relacionados à atuação dos visitadores: as pompas e solenidades que, em cada localidade, deveriam ser oferecidas ao visitador, os procedimentos adotados para o recebimento de denúncias e confissões, as penalidades impostas aos acusados, dentre outros. A autora enfatiza certa ambiguidade inerente à figura do visitador: pelas pompas que o acompanham e pela autoridade para ditar sentenças, ele é, indiscutivelmente, uma figura de poder; porém, é uma figura que pode ter este poder questionado pelas elites locais – moradores transformados em alvos da ação do visitador poderiam encaminhar à Inquisição denúncias contra o que fosse julgado como “abusos” do agente inquisitorial; em sentido contrário, o visitador também poderia ser alvo de denúncias por “complacência” (permitir que seus acompanhantes viajassem em companhia de “mancebas”, manter contatos demasiado amistosos com cristãos-novos, travar conversações com mulheres mundanas etc.). A autora destaca ainda que a visitação também oferecia, a seus agentes, a oportunidade de realização de negócios privados: visitadores aproveitavam as viagens a diferentes partes do reino luso para adquirir escravos, ouro e outras mercadorias de valor, o que implicava o aprofundamento dos contatos com mercadores que, não raro, eram cristãos-novos.

“Bernardo Vieira Ravasco e a Inquisição de Lisboa”, de autoria de Marco Antônio Nunes da Silva, professor de História Moderna da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, é um artigo construído a partir dos “cadernos do Promotor” da Inquisição portuguesa do século XVII. Na hierarquia burocrática inquisitorial, o promotor era o responsável pela apresentação das acusações contra os denunciados por práticas contra a fé e contra a Igreja. Em seus cadernos eram reunidas denúncias oriundas tanto das visitações como de denúncias formais apresentadas por diferentes agentes do poder até delações apresentadas por correspondências simples, encaminhadas por pessoas de condição obscura. A maioria destas denúncias jamais se transformou em processo inquisitorial; algumas foram objeto de investigações que não acarretaram a constituição de processo, outras sequer foram investigadas, delas restando apenas os registros no “caderno do Promotor”. Dentre as várias denúncias que figuram nestes cadernos, Marco Antônio da Silva se detém na análise daquelas que mencionam um personagem relevante na cena política da Bahia – e do Brasil – colonial: Bernardo Vieira Ravasco, que, durante 57 anos, ao longo do século XVII, ocupou o cargo de secretário do Estado do Brasil, imediatamente abaixo do Governador Geral. O autor, a partir destas anotações dos “cadernos”, analisa o papel desempenhado pela Inquisição em meio às intensas disputas pelos postos de prestígio e poder no Estado colonial. Bernardo Vieira Ravasco, além de ter sido secretário do Estado e ter se tornado alvo de investigações por parte da Inquisição, teve o seu nome envolvido em episódios relacionados a uma conspiração contra o próprio Governador Geral e ao assassinato do alcaide de Salvador; Bernardo Ravasco era, ainda, irmão do célebre Antônio Vieira, personagem também citado nos “cadernos do Promotor”, de intensos e conhecidos conflitos com a Inquisição de Lisboa.

Ainda numa incursão pelo século XVII e tendo como personagem central um membro do clero luso-brasileiro, “Ventura e desventuras de um mercedário sodomita em Belém do Pará pós-Filipino”, do professor Luiz Mott da Universidade Federal da Bahia, trata da vida material e do cotidiano de um convento na Amazônia portuguesa. Dentre os milhares de processos inquisitoriais que ajudam a compor o formidável acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Luiz Mott concentra sua atenção em um, constituído contra o prelado e comendador do convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês (Real, Celestial e Militar Ordem de Nossa Senhora das Mercês e Redenção dos Cativos) em Belém, no ano de 1656. Denunciado por praticar o “abominável” crime de sodomia, Frei Lucas de Souza seria preso, interrogado, encaminhado para o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, amargaria 14 meses no cárcere e seria, finalmente, condenado a dez anos de degredo nas galés de Sua Majestade. Este processo – além de outros analisados, que envolvem acusações contra os supostos amantes de Frei Lucas de Souza – serve para o autor analisar a trajetória da Ordem de Nossa Senhora das Mercês em territórios da América portuguesa, as disputas pelos postos superiores no interior das ordens religiosas, além dos elementos que caracterizavam a vida cotidiana e os códigos de comportamento e conduta dos homens e mulheres aos quais a Igreja ambicionava orientar e vigiar.

O quinto artigo, intitulado “‘Sapatos ao mato’: o sentimento de ‘um triste homem que vem preso’ pelo Santo Ofício” é resultado de uma pesquisa desenvolvida por Suzana Maria de Sousa Santos Severs, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Suzana Severs também se dedica a um processo particular para, a partir dele, lançar novas luzes sobre o funcionamento da Inquisição portuguesa em terras coloniais. A autora destaca a trajetória de um indivíduo destituído de qualquer notoriedade, morador da capitania de Minas Gerais, negociante e cristão novo, filho, irmão e cunhado de negociantes e cristãos novos que, acusado de criptojudaísmo, seria preso e encaminhado aos cárceres da Inquisição em Lisboa, onde permaneceria por nove meses até a definição de sua pena. Suzana Severs concentra sua atenção em um documento, escrito pelo próprio punho do denunciado, no qual este apresenta detalhes de sua viagem, sob a custódia de um Familiar do Santo Ofício, desde as Minas de Ribeira do Carmo – atual cidade mineira de Mariana –, onde morava, até o porto do Rio de Janeiro, quando seria embarcado nas galés rumo a Lisboa. O objetivo do acusado, ao redigir tal documento, era, claramente, o de denunciar os abusos, os maus-tratos e os sofrimentos de que foi vítima enquanto sob a guarda do Familiar designado para escoltá-lo até o Rio de Janeiro; para a autora, tal documento cumpre o relevante papel de resgatar os sentimentos e a subjetividade de um prisioneiro e, ao mesmo tempo, revela detalhes que conferem uma dimensão profundamente humana às ações e expectativas dos homens – agentes do Santo Ofício ou personagens a ele submetidos – que viveram em épocas e territórios controlados pela Inquisição.

O último texto que compõe este dossiê, “Movido pela loucura ou pela fé: trajetória de Alexandre Henriques”, de autoria dessa organizadora, apresenta a saga de um cristão novo, português, que chega ao Brasil no início do século XVIII com destino a Minas Gerais, com pretensões de enriquecer por meio da mineração, e retorna a Portugal como prisioneiro do Santo Ofício, dando entrada no Palácio dos Estaus em março de 1735. Antes de ser encaminhado à prisão de Lisboa, porém, Alexandre foi recolhido e permaneceu internado, considerado louco, no Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Salvador. Os documentos inquisitoriais relativos a este personagem mostram a sua condição principal: tratava-se de um desviante, de um indivíduo que manifestava enunciados incompatíveis com a ordem afirmada pela hierarquia eclesiástica. E as hesitações das autoridades inquisitoriais face às tentativas de classificação deste indivíduo – louco ou herético? – revelam um dos traços essenciais da Inquisição: a busca pela afirmação da ordem mediante a perseguição, o banimento e a aniquilação do outro, do diferente.

O presente dossiê reúne, portanto, diferentes trabalhos relativos à presença e atuação dos agentes do Santo Ofício português, sobretudo suas ações em diversas partes da América portuguesa, em especial na Bahia. Não pretende exaurir qualquer um dos aspectos abordados ao longo dos ensaios, mas simplesmente contribuir para um melhor entendimento dessa instituição e, acima de tudo, colaborar e incentivar novas pesquisas nesta área.

Agradeço à Diretoria Executiva da Revista Politeia pela oportunidade e possibilidade de reunião desses ensaios. E agradeço, especialmente, os / as articulistas que, generosamente, concordaram em divulgar seus relevantes trabalhos de pesquisa por meio deste dossiê o qual tive a honra de coordenar.

Grayce Mayre Bonfim Souza – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) E-mail: [email protected]


SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista , v.11, n. 1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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