Governo dos professores, governo das escolas: elementos para a história da institucionalização de mestres e alunos / Revista História da Educação / 2012

Neste dossiê procuramos observar ações voltadas para a constituição do aparato escolar, com uma dupla focalização. A primeira incide na análise do processo de normalização de professores [1], considerando a adoção de medidas destinadas ao preparo prévio, condição tida como necessária para uma formação científica dos futuros docentes e, por conseguinte, para uma atividade mais racionalizada no interior do aparato escolar.

No entanto, esta solução se processou em meio a um campo em organização no qual a forma escolarizada de preparo docente concorreu com a tradição do ofício, de aprendizagem pela prática, enfrentando, igualmente, resistências oferecidas pela população [2] em relação à própria forma escolar, o que pode ser evidenciável no número de matriculados, no problema da freqüência e na questão do aproveitamento dos alunos, por exemplo.

Nesse sentido, associado à imposição da normalização dos professores, medidas complementares foram produzidas para afirmar o modelo de educação escolar, como o serviço de inspeção e a consolidação dos institutos da obrigatoriedade e da liberdade de ensino. Esse conjunto de medidas difusas favoreceu ao aparecimento de formas escolares heterogêneas, como aquelas voltadas para os pobres e desvalidos, bem como para o conjunto da população que se pretendia educar.

Para proceder ao exame das tecnologias de afirmação e legitimação da escola reunimos, neste dossiê, um conjunto de dez artigos que tematizam os investimentos desenvolvidos no sentido de produzir certa padronização da escola.

Inicialmente, a título de oferecer um quadro geral como ferramenta de enquadramento do debate, Alberto Martínez Boom analisa o processo de escolarização ocorrido na Colômbia e postula que a formação escolar dispõe, prepara, antecipa e procura dirigir corpos, gestos e ações possíveis. Para tanto, recorre a um complexo institucional, programas e planos de modo a produzir e legitimar uma idéia de escolarização científica e moderna.

Tal processo pretende agir sobre os diferentes sujeitos que integram e compõem esse projeto, partindo do pressuposto da plasticidade humana. Menos que substância, no interior dessa representação, o homem é descrito como forma passível de ser objeto de sucessivas transformações. Deste modo, o sujeito ou a forma-sujeito é produto de um conjunto mais ou menos regular de exercícios, baseado em saberes, desenvolvido em instituições que terminam por constituir determinadas sujeições e formas de subjetivação correlatas.

No entanto, para Boom, considerando a Colômbia como seu observatório, esse processo não aconteceu de modo maciço, unitário e sem variações. Tendo em vista o estado fragmentário da escolarização na segunda metade do século 18, o autor procurou observar os investimentos voltados para padronização do modelo escolar como, por exemplo, a generalização e controle exercido sobre a produção, circulação e uso de manuais, métodos, programas, catecismos e obras exemplares, articulados aos saberes e instituições que, no conjunto, teceram procedimentos regulatórios no que se refere ao corpo docente, corpo infantil e famílias. Tudo isso a partir da escola que, paulatinamente, se afirmou como um lugar sitiado, protegido e tutelado por meio de práticas contingentes.

O tema da regulação do ofício, articulado a outros dispositivos associados ao processo de escolarização, é tratado em três artigos que procuram estudar quatro experiências específicas. O primeiro, de autoria de Luz Elena Galván, procura observar a emergência e o longo caminho da profissionalização docente no México. Para operar o deslocamento de uma prática comum, ordinária e conquistar o estatuto de profissão, houve necessidade de se interferir em saberes e costumes. No México, os saberes se transformaram em direção a uma pedagogia considerada nova e científica, afastando-se da pedagogia caracterizada pela cópia, repetição e memorização.

No que se refere aos costumes, cada Estado mexicano gozou de liberdade para organizar as escolas normais de acordo com suas necessidades e tradições. Portanto, menos que homogeneidade, o que se observa na experiência mexicana se caracterizou pela heterogeneidade das políticas de formação docente.

De acordo com a autora, o processo de profissionalização docente no México aconteceu de modo irregular, pois existiram modalidades de instituições que responderam aos costumes de cada Estado como, por exemplo, os institutos para meninas, liceus, academias e institutos literários, dentre outros. Trata-se de uma série de instituições que, em algumas ocasiões, serviram de base para a criação das escolas normais.

A irregularidade do processo de formação prévia também se verifica no Brasil, objeto dos artigos que examinam o processo de normalização dos professores em duas cidades-capitais e numa pequena cidade de Minas Gerais, isto é, nas cidades do Rio de Janeiro, Niterói e São João del-Rey.

No caso da regulação do ofício no Rio de Janeiro, Ariadne Ecar e Marina Uekane desenvolvem um estudo sobre a experiência de duas escolas normais no final do século 19, uma situada na capital do Império e, outra, na capital da Província do Rio de Janeiro, Niterói. Consideradas como indispensáveis para formar os quadros docentes que atenderiam as escolas primárias, as instituições em questão passaram por diversas reformas pelas quais se procurou alargar os programas em prol de um ensino descrito como mais científico. Os deslocamentos institucionais observados indiciam investimentos no sentido de formar o futuro professor com mais robustez. Sugerem, igualmente, a existência de tensões em torno do conteúdo e forma dessas medidas.

Como se pode perceber ao longo do artigo, as políticas de formação de professores postas em prática nas duas capitais estiveram atreladas ao papel atribuído à instrução e aos seus professores. Logo, não podem ser compreendidas apenas na dimensão técnica. A racionalização do ofício consiste em uma face da questão, pois as reconfigurações programáticas e metodológicas observadas se constituem em expressão dos debates e dos equilíbrios entre as forças envolvidas em torno da definição do melhor modelo de preparo prévio para ser professor primário.

A composição das forças políticas também se constitui em chave para compreender a configuração do processo de normalização do trabalho docente no interior de Minas Gerais. Na tentativa de compreender o mecanismo da formação de professores, seu aparecimento, funcionamento, transformações e efeitos, Maria Aparecida Arruda examina as tradições forjadas ou inventadas no campo da docência e de sua formação prévia, a partir do estudo relativo ao Colégio Normal Nossa Senhora das Dores – CNSD -, instalado na cidade de São João Del Rei no ano de 1898. Observa-se, neste caso, a presença da Igreja Católica e seu investimento no espaço de formação docente, tendo como alvo o público feminino.

Em São João del-Rei a possibilidade da profissionalização do magistério primário para as mulheres começou a ser pensada a partir da instalação da primeira Escola Normal na cidade, em 1883. Tratava-se de uma instituição pública voltada para ambos os sexos. No entanto, de modo semelhante ao que se processou em outras escolas normais brasileiras, a escola normal mista também foi objeto de ingerência administrativa, fato observável pela ausência de investimentos financeiros para sua consolidação e continuidade, o que fez com que fosse extinta em 1906.

Essa extinção aconteceu paralelamente à obtenção de maior legitimidade da escola normal católica mantida pelas Filhas da Caridade da Sociedade São Vicente de Paulo. A equiparação com as escolas normais oficiais, novo estatuto jurídico adquirido em 1905, ampliou a força do Colégio Nossa Senhora das Dores, o que pode ser lido como sinal da eficiência das estratégias empregadas e da efetividade da ação educativa protagonizada pelas irmãs vicentinas em São João del-Rei.

Os três artigos apresentam contornos assumidos no processo de profissionalização ao focalizar a questão do preparo prévio. No entanto, esse não se constitui em dispositivo único voltado para a regulação do ofício.

Dada a multiplicidade do corpo docente, o fato de muitos não terem passado pelas escolas normais e a heterogeneidade da formação escolar dos professores, observamos ações complementares voltadas para regular e harmonizar a corporação, como a constituição de uma aparelhagem de inspeção na capital do Império, chamando atenção para procedimentos homólogos processados em muitas cidades brasileiras.

Esta se constitui na problemática estudada no artigo de Angélica Borges, em que procura discutir como a visibilidade dada à escola e aos seus atores, via inspeção, permitiram inseri-los em um esquema disciplinar, cujos efeitos encontram-se articulados e justificados em nome de um projeto de ordenação e civilização da capital do Império brasileiro.

Com foco na análise dos procedimentos de fiscalização de professores primários, a autora reflete sobre o funcionamento do serviço de inspeção da instrução na Corte Imperial, a partir de 1854, ano de sua institucionalização pelo Regulamento da Instrução Primária e Secundária da Corte.

Apesar da existência de uma orientação geral, o estudo demonstra que a inspeção sobre o exercício do magistério não se processou de forma plena em todas as entradas e campos previstos em lei. Foi possível perceber que, ainda assim, conseguiu gerar uma série de dados, condição para se exercer o governo dos professores das escolas. Os registros gerados a respeito da distribuição dos professores e de suas práticas foram adotados como forma de tornar mais eficaz a disciplina exercida.

A aparelhagem da inspeção organizada na capital do Império permite observar as operações da arte de punir: comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar e excluir. Por meio de estratégias bem definidas, mesmo com seus efeitos lacunares, criou condições para comparar professores e diferenciá-los segundo a produtividade, gerar uma hierarquia definida por gratificações e prêmios concedidos aos serviços prestados com distinção, homogeneizá-los por meios de coerção e pelas conferências pedagógicas, bem como realocar ou excluir os que cometessem delitos.

O processo de fiscalização acontecia de modo articulado a outras instâncias de poder-saber, em graus e formas diferenciadas, a partir do que é possível observar o funcionamento dos dispositivos de controle e seus efeitos na conformação do exercício da profissão docente. Assim, o exercício da inspeção e da docência configuram um movimento no qual se pode evidenciar a existência de uma rede de relações de poder, marcada pelo registro da disciplina e gestos de anti-disciplina.

O estudo do problema do governo das escolas e dos professores, como tecnologia a serviço da gestão da população, pode trazer contribuições no sentido de ajudar a pensar a forma como vem sendo constituída a fiscalização do ensino e da profissão docente em vários presentes, destacando-se que tal prática não é fixa, tampouco se constitui em monopólio ou exclusividade de uma única agência, como se procura demonstrar neste artigo.

A legitimação da escola, contudo, advém da forte medida que procurou tornar a mesma compulsória, obrigando pais, tutores e outros responsáveis a enviarem crianças para serem submetidos à experiência escolar, fosse privada ou pública. No caso, com a adoção do instituto da obrigatoriedade, observamos a constituição de uma larga e importante rede de escolas públicas, subvencionadas e confessionais e de um cinturão de arsenais, rodas de expostos, asilos ou institutos profissionais, cujo fim seria o de tornar o indivíduo e seu corpo o mais rentável possível, útil a si, a igreja e a pátria.

A questão da escola compulsória é objeto de estudo do artigo assinado por Dimas Neves, Cintia Borges e José Gondra no qual procuram debater o tema da obrigatoriedade do ensino em Minas Gerais e Mato Grosso, províncias que procuraram normatizar esse instituto desde a segunda metade do século 19.

A pesquisa realizada procurou se ancorar nas contribuições dos estudos comparados e na análise dos discursos dos presidentes das províncias mineira e mato-grossense. Por se tratar do exame de uma medida global, a pesquisa buscou dialogar com a concepção de governamentalidade, considerando o tema da escola obrigatória como necessidade e urgência voltada para gestão das coletividades.

Deste modo, a instrução popular e o ensino compulsório passaram a ser pensados como ações de governo associadas à idéia de bom governo, porque implica em gerir as multiplicidades como forma de assegurar uma espécie de homeostase. Trata-se de uma tentativa de governar os corpos e os sujeitos, uma tentativa de moldar a conduta e o comportamento, de disciplinar a alma e inculcar determinados saberes e condutas de modo a evitar grandes conflagrações.

Nesse contexto, a obrigatoriedade do ensino pode ser pensada como uma tentativa de controle da população, aproximável da idéia de governamentalidade, na medida em que, com esse dispositivo, visava-se acautelar a vontade, o comportamento e as condutas das crianças e dos adultos por elas responsáveis.

As proposições e procedimentos relativos à obrigatoriedade escolar, identificados nas formações discursivas analisadas neste artigo, permitem observar a formação de um conjunto discursivo que se fortaleceu e ganhou adeptos com a finalidade de efetivar a construção do projeto civilizatório e de uma nação educada.

A aparelhagem escolar longe de ser a única forma educativa compartilhou essa função com outras instituições. Uma delas corresponde aos internatos para órfãos e pobres, pois essa população requeria, na ótica dos letrados, uma forma de governo ajustada a esse público.

Essa forma de governo é examinada no texto de Maria Zélia Maia de Souza, com base na análise das ações de governo de meninos realizadas no Instituto Profissional João Alfredo (1910 / 1933). O foco incide no campo dos saberes escolares, em especial no da ginástica escolar e do lugar do jogo de futebol no interior da instituição analisada.

O exame da documentação referente ao Instituto permitiu perceber que esse campo de saber foi parte integrante das táticas de governo executadas pelos gestores da instituição, as quais buscavam manter a regularidade da mesma, enquanto instituição pensada e implementada para abrigar, profissionalizar e instruir meninos pobres ou órfãos.

Partilhando da concepção de que o internato deveria cumprir a tripla função de casa, escola e oficina é que se pode compreender o ingresso de determinados saberes e a interdição de práticas que poderiam ser consideradas correlatas, como é o caso da ginástica e do futebol.

A interdição deste último se efetiva e se vê apoiada no argumento das rentabilidades, já que, para os gestores do Instituto, o futebol inquietava, era nocivo e antieconômico. Representação que parece ter alguma capilaridade no tecido social se considerarmos as palavras de Lima Barreto. Para ele, o futebol se constituía em “uma escola de violência e brutalidade e não merece nenhuma proteção dos poderes públicos, a menos que estes nos queiram ensinar o assassinato” ou, ainda,

não é possível deixar de falar no tal esporte que dizem ser bretão. Todo dia e toda a hora ele enche o noticiário dos jornais com notas de malefícios, e mais do que isto, de assassinatos. Não é possível que as autoridades policiais não vejam semelhante cousa. O Rio de Janeiro é uma cidade civilizada e não pode estar entregue a certa malta de desordeiros que se querem intitular sportmen.[3]

A eliminação do futebol do interior do internato parece que estava em sintonia com a idéia de que tal prática seria instauradora de desordem, contra-face do projeto asilar, instrucional e profissionalizante que o internato de meninos pretendia exercer. Logo, os exercícios corporais admitidos na instituição deveriam estar alinhados a este projeto, o que ajuda a compreender a solução imposta.

O amplo, complexo e descontínuo projeto de escolarização encontrou forte incremento nos poderes públicos, em seus três níveis, seja dos municípios, províncias / estados ou do governo central. No entanto, tal projeto, para ser efetivado, também esteve associado às iniciativas privadas no campo da instrução, sustentadas, por sua vez, no marco legal do instituto da liberdade de ensino.

A rede constituída pela iniciativa privada, por vezes subvencionada com recursos do poder público, é numerosa, estratificada e diversificada, sendo parte expressiva dela criada e mantida por entidades confessionais de diferentes matrizes. A rede mais conhecida, legitimada e, provavelmente, a de história mais antiga, corresponde às escolas criadas por iniciativas de católicos, matéria analisada por Aline Limeira e Fátima Nascimento. Reconhecendo que a construção da forma escolar moderna se deu por intermediações de forças distintas, as autoras focalizam as iniciativas particulares de educação promovidas pela Igreja Católica na Corte Imperial.

A partir das propagandas do Almanak Laemmert e de diversas informações do jornal O Apóstolo, localizam vestígios da estrutura física, planos de estudos e valores cobrados por alguns colégios católicos nas décadas de 1870 e 1880. O estudo também procura refletir a respeito das relações estabelecidas entre o Estado Imperial e a Igreja Católica e observar imbricações entre poderes públicos e privados, fenômeno que ultrapassa a sociedade imperial.

As autoras consideram ser necessário investigar mais o comércio da instrução mantido pelos religiosos católicos, recorrendo a outras fontes diferentes das propagandas de jornais, revistas, almanaques ou folhetins, haja vista que muitos estabelecimentos confessionais não recorriam à publicidade. De acordo com a pesquisa realizada, convém sublinhar que a iniciativa particular era composta por muitos e diferentes empreendimentos em prol da difusão do ensino primário e secundário, como as mantidas por protestantes, leigos, maçons, católicos, indígenas e espíritas, por exemplo. Por isso, as iniciativas arroladas constituem algumas dentre as que participaram do nascente e lucrativo mercado da instrução.

Neste sentido, os elementos analisados pelas autoras são vestígios de um processo de escolarização no qual é possível perceber que o comércio pouco ou nada apresenta de uniforme ou homogêneo. No que se refere aos estabelecimentos criados e mantidos pela Igreja Católica, eles também são marcados por uma importante heterogeneidade. Esta característica pode ser percebida na estrutura física – uns pequenos e baratos, outros adaptados, alguns bem equipados, caros e espaçosos – ou pelo público atendido, igualmente diversificado em virtude das características de cada iniciativa.

Ao procurar aprofundar as reflexões acerca das relações entre as forças públicas e particulares, a análise dos efeitos e implicações dos consórcios e concorrências estabelecidas desde o século 19, no campo da oferta dos serviços de instrução, ainda demanda novas explorações a respeito desta matéria, no intuito de expandir a possibilidade de se compreender de modo mais refinado as mediações entre a esfera pública e os interesses particulares que marcam as iniciativas voltadas para a educação escolar no Brasil.

Outro ponto convertido em objeto de exame nesta sessão temática se refere às relações entre escola e cidade. Para tanto, o artigo assinado por José Cláudio Sooma Silva, Irma Rizzini e Maria de Lourdes Silva analisa um conjunto de ações de governo que almejaram empreender um entrelaçamento das dimensões preventivas, educacionais e correcionais com as iniciativas de reforma urbana na cidade do Rio de Janeiro, na década 1920.

O artigo problematiza algumas das justificativas acionadas no período que sublinhavam as potenciais contribuições que a reconfiguração dos comportamentos, hábitos e condutas da população prestaria para a tentativa de disciplinamento e harmonização do traçado arquitetônico e seus usos sociais, com base em conjunto documental composto pela legislação educacional, regulamentação da assistência social, relatórios de chefes de polícia, ofícios remetidos pela Diretoria Geral de Instrução, periódicos e registros fotográficos.

Ao tomar a capital como observatório, os autores percebem que o desenrolar dos anos 1920 foram marcados pelo fortalecimento da certeza de que, para a necessidade de organizar, disciplinar e harmonizar o cotidiano social, não bastava promover o incremento dos aparatos de vigília e controle. Pelas características da capital, tornava-se indispensável inculcar nos habitantes a concepção de que o respeito às normas e regras não deveria estar diretamente vinculado à atuação de instâncias governamentais de fiscalização, ou seja, que a obediência fosse desencadeada somente pelo receio das possíveis penalidades.

Um dos desafios era fazer com que os cariocas internalizassem as regras estabelecidas, acreditando que seu cumprimento acarretaria benefícios para si e para os outros.

Em função desse investimento, as iniciativas se voltaram para o entrelaçamento das medidas de caráter policial com as ações de segurança, assistência e educação da população. Esse conjunto de intervenções pautado em uma gestão e racionalização da vida dos cariocas contribuiria para promover um rearranjo entre o conjunto físico e o conjunto humano e minimização das desordens.

Por fim, Ângela Aisenstein e Maria Eugenia Cairo abordam a questão dos saberes difusos que concorrem para modelar práticas no interior das unidades escolares e nas suas exterioridades, como é o problema da alimentação. Uma questão que não é recente, pois, na Argentina, já desde as últimas décadas do século 19 parte do discurso pedagógico foi orientado no sentido de se ensinar professores, famílias e crianças a respeito das qualidades, quantidades e modalidades do que deveria ser ingerido [4].

No estudo realizado, as autoras enfrentam esse questionário e procuram analisar o modo como a questão da ingesta se articula com o chamado discurso pedagógico estatal e os meios pelos quais foram difundidos na Argentina, com base em periódicos pedagógicos oficiais.

A análise do discurso pedagógico oficial sobre a educação alimentar, difundido pelas revistas educacionais, permite reconhecer a presença de concepções provenientes de distintos campos do saber. A partir de registros científicos, higiênicos e morais, o discurso pedagógico selecionou e ajudou a construir um texto em que se articulam prescrições, descrições e normas que procuraram orientar, criar e regular hábitos de alunos e alunas em relação aos alimentos, comidas, sua produção e consumo.

Ao lado disso, de acordo com as autoras, é possível assinalar que tais registros se reforçavam mutuamente e prescreviam lógicas, modelos sexuais e de organização familiar desejáveis, considerados social e politicamente necessários na virada do século 19 para o 20 na Argentina.

Para finalizar caberia destacar o efeito de conjunto pretendido pelos dez artigos aqui reunidos. Os dez estudos se aproximam pelo investimento comum em desnaturalizar a escola e o processo de escolarização. Afastam-se, igualmente, das teses generalistas que procuram fazer resumos simplificados da instituição e do movimento que busca legitimá-la. Logo, é o processo em sua diversidade e heterogeneidade, marcado pelo reconhecimento de alianças entre saberes, instituições e redes humanas, que interliga os trabalhos aqui reunidos.

Nesse conjunto há também uma recusa à busca de marcos fundadores originais e da perspectiva teleológica. Para os autores aqui reunidos, a história é uma reflexão indiscreta, composta por matéria ativa. É um saber ilimitado porque marcado pelo horizonte e pelas expectativas dos que produzem e dos seus destinatários, portanto, uma experiência aberta a recomposições infinitas.

Logo, as relações possíveis de serem estabelecidas entre distintos dispositivos associados à construção do modelo escolar, em diferentes espaços e temporalidades, constituem-se em condição para dilatar o saber existente e desafiar suas fronteiras em direção ao que ainda não fomos capazes de pensar.

Notas

1. O termo normalização serve para se referir àqueles que foram alunos das escolas normais, como a atenção que se procurou atribuir ao efeito constitutivo dessa experiência; aquilo que ela produz.

2. População é aqui entendida como possibilidade de se identificar e gerir as multiplicidades passíveis de serem medidas e calculadas, condição para que se produzir mecanismos e regras comuns, globais, visando efeitos de conjunto. Pensada nestes termos, ela implica nas tecnologias de governo, sendo a escola uma delas. A esse respeito ver FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

3. BARRETO, Lima. Não queria, mas… Crônica publicada na revista Careta em 3 de junho de 1922. Ver também BARRETO, Lima. O football. Crônica publicada na revista Careta em 1 de julho de 1922. As crônicas de Lima Barreto encontram-se publicadas no livro Toda crônica, organizado pelas professoras Beatriz Resende e Rachel Valença, publicado pela editora Agir em 2004.

4. O debate a respeito da ingesta também pode ser observado no Brasil do século 19, envolvendo agentes da ordem médica e da ordem pedagógica. A esse respeito, conferir GONDRA, José. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.

José Gonçalves Gondra

Aline de Morais Limeira

Organizadores do dossiê.


GONDRA, José Gonçalves; LIMEIRA, Aline de Morais. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 16, n. 38, set. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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