História das Romarias no Mundo Ibero-Americano / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020

Rezar com os pés. Nas palavras de romeiros que palmilham o chão em busca dos espaços sagrados, esta é uma das assertivas mais comuns e contundentes na definição da romaria. Ser romeiro incide em constituir-se enquanto sujeito que busca o sagrado a partir do deslocamento dos espaços, que experimenta a sacralidade em cada passo, que transmuta o corpo em epicentro de sensibilidades sensoriais. O corpo do romeiro emerge como evidência da prática e esta, por sua vez, como testemunha de sonhos e desejos. São vestígios tingidos no espaço e no tempo, que sinalizam para a história dos de baixo, das camadas populares.

Esta chamada temática da Revista Brasileira de História das Religiões tem como escopo a história das romarias no mundo ibero-americano. Como prática devocional dos de baixo, experiência social das camadas populares, historicamente marginalizadas, as romarias foram, durante muito tempo, vistas como expressões imóveis, uma penumbra de passado superado que insistia em continuar no presente. Uma presença incômoda do outro: o maltrapilho, o pobre, o sujeito tido por uma elite (clerical, política ou intelectual) como desviante, ultrapassado, desvirtuado ou agonizante. Uma experiência de outrora, engessada e incapaz de se reinventar. Um desvio das camadas populares que para o clero necessitavam de reforma litúrgica; para os folcloristas remetiam a um passado anônimo e atemporal; e, para os políticos, exigiam vigilância e controle, enquanto para a esquerda católica demandava-se a conscientização. Entre esses múltiplos sujeitos que teceram uma polifonia discursiva, responsável pela tessitura de um emaranhado de leituras, havia em comum a certeza de que os romeiros, entendidos como “os outros”, existem para serem “corrigidos”. Em outras palavras, os romeiros formariam um grupo social explicitado pelo desvio.

Neste sentido, a proposta dessa chamada temática consistiu em reunir trabalhos que explicitassem as romarias em duas perspectivas: primeiramente foi pensar as romarias historicamente, superando a frágil ideia de que se trata de um eterno imutável, ou seja, é o desafio de entender as especificidades de cada momento histórico da romaria, pautada na valorização do protagonismo de seus romeiros interpretados a partir de seu contexto. A segunda perspectiva implica no desafio de pensar as rupturas e reinvenções acerca dos espaços sagrados e das experiências romeiras, a partir dos valores atribuídos aos sujeitos protagonistas de tais práticas. O que pensam os romeiros sobre os santuários e seus santos de devoção? Quais hierarquias são tecidas em suas experiências de deslocamento? Em suma, é o desafio de pensar a história a partir do emergir de novos protagonismos.

No mundo ibero-americano, em grande medida, as romarias passaram a se constituir como um dos principais eixos norteadores das identidades nacionais, regionais e locais. Identidades forjadas em contextos específicos, como a emblemática década de 30 do século XX, momento no qual governos nacionalistas passaram a constituir políticas culturais a partir do uso de romarias como símbolos da nação. Esse foi o caso de Nossa Senhora de Fátima (Portugal), Nossa Senhora Aparecida (Brasil), Nossa Senhora de Coromoto (Venezuela), Nossa Senhora de Guadalupe (México) ou Nossa Senhora de Luján, na Argentina. Se em alguns casos, a devoção é usada politicamente como símbolo da nação, também é notória a força popular de devoções regionais, que explicitam a polifonia devocional do multifacetado mundo religioso ibero-americano, como as multitudinárias romarias de Nossa Senhora del Rocío (Almonte, na Andaluzia, Espanha), Nossa Senhora Divina Pastora (Barquisimeto, na Venezuela) e Nossa Senhora de Nazaré (em Belém do Pará, no Brasil). Expressões devocionais visualmente impactantes e que referendam a complexidade da dinâmica intrínseca e extrínseca das romarias.

Neste sentido, a chamada temática reuniu textos que tiveram como foco as romarias em diferentes contextos espaciais e temporais, assim como em suas múltiplas dimensões em âmbito cultural, social, econômico e político, bem como as tensões envolvendo clero, intelectuais, políticos e romeiros. Expressões devocionais lidas a partir de elementos epistemológicos da História, Antropologia e Turismo.

Com isso, publicamos quatro leituras acerca das romarias. O primeiro texto, intitulado “Tradição e história de uma devoção católica no norte peruano (Santíssima Cruz de Chalpón)”, tem como escopo a festa religiosa da Santíssima Cruz de Chalpón, na cidade de Motupe, analisando-a como uma devoção católica específica a partir da perspectiva da tradição oral e da história. Trata-se de uma interessante leitura que articula as memórias de romeiros com experiências devocionais no sul do Brasil, a partir da figura de Juan Agustín de Abad. Com isso, interpreta-se como a festa a Santíssima Cruz de Chalpón, em sua essência, é semelhante a outras manifestações religiosas católicas espalhadas pela América Latina.

O segundo texto, intitulado “Romarias a lugares sagrados no sertão da Bahia: leituras e memórias em Monte Santo”, tem como cerne um dos mais notáveis espaços devocionais do Brasil. O artigo analisa as romarias ao Santuário da Santa Cruz, o antigo no Brasil que representa a Via Crucis de Jesus, desde o seu surgimento em 1785, na Serra do Piquaraçá na cidade de Monte Santo na Bahia. A Via Crucis de Monte Santo começou a ser construída sob a supervisão direta do Frei Apolônio de Todi. Com isso, o texto explicita com no Sertão do Estado da Bahia, as práticas do catolicismo popular são encontradas em diversas cidades, vilarejos ou mesmo no campo, destacando-se Monte Santo, para onde acorrem as romarias ao Santuário da Santa Cruz.

O terceiro texto também mobiliza uma leitura acerca de um centro de romaria na Bahia. Trata-se do artigo “Razões para peregrinar: experiências devocionais no santuário do Sagrado Coração de Jesus da Gruta da Mangabeira (Ituaçu – BA, 1900- 1950)”, que se propõe a investigar a vivência religiosa em Ituaçu – BA, cidade da Chapada Diamantina, na primeira metade do século XX. Assim, a pesquisa elucida o espaço sacralizado, no qual os fiéis rendem graça, renovam seus votos e promessas. Assim, anualmente, entre os meses de agosto e setembro, os devotos e romeiros ocupam a Gruta da Mangabeira com seus cantos, benditos, rezas, ladainhas, novenas e procissões.

O quarto e último artigo da chamada temática provoca outro olhar acerca das romarias. Trata-se do texto “Romaria na Música Popular Brasileira” que desenvolve uma análise reflexiva da temática romaria na Música Popular Brasileira, tendo como aporte as devoções marianas de norte a sul do país. É uma leitura na qual explicita a linha tênue entre sagrado e profano na cultura religiosa e musical dos brasileiros.

Com isso, convidamos os leitores a se deslocarem pelas páginas da Revista Brasileira de História das Religiões e mergulharem em diferentes experiências atinentes ao complexo universo das romarias no mundo ibero-americano. Boa leitura!

Magno Francisco de Jesus

Maria Teresa Arcila


JESUS, Magno Francisco de; ARCILA, Maria Teresa. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.38, set. / dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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