La decouverte de l’Amèrique? Les regards sur Vautre à travers les manuels scolaires du monde / Pierre Ragon

Situada em local onde havia uma antiga livraria brasileira de oposição à ditadura, em Paris, a editora/livraria L’harmattan encontra-se entre as quinze primeiras editoras francesas. Criada em 1974, voltada sobretudo para as ciências humanas, L’harmattan concede ao denominado “Terceiro mundo” um espaço privilegiado, que começou pelas publicações que tratavam da África e do Brasil. Atualmente, ela cobre toda a América Latina e oferece ao público cerca de seiscentos títulos novos por ano. A maior parte dessas publicações permanece, no entanto, ignorada pelo público brasileiro. Nesse sentido, é interessante salientar dois trabalhos publicados por ocasião das comemorações do V Centenário do descobrimento da América.

O primeiro é La decouverte de l’Amèrique? Les regards sur Vautre à travers les manuels scolaires du monde (1922). O organizador é Javier Pérez Siller, sociólogo e historiador mexicano, professor da Universidade Nacional do México, que tomou como ponto de partida o fato de ser o descobrimento da América um dos poucos acontecimentos históricos considerado como patrimônio universal. Em todos os países do mundo, as crianças aprendem que em 1492 Cristóvão Colombo descobriu a América. Com isto, Javier Pérez Siller lançou um desafio a um grupo de pesquisadores das mais diversas nacionalidades: demonstrar como o descobrimento da América foi representado nos manuais escolares. Foram pesquisados 150 manuais escolares em uso em setenta países.

O grande mérito e originalidade desse livro de agradável leitura encontra-se na sua proposta. Javier Pérez Siller reuniu pesquisadores da Alemanha, França, Grécia, Portugal, Venezuela, Colômbia, Camarões e Marrocos, dentre outros países.

O trabalho permite, assim, uma leitura comparativa a respeito dos descobrimentos, nos manuais escolares, das diversas partes do mundo, rompendo com a visão europeocentrista.

A inspiração do organizador não é difícil de adivinhar. Muitos certamente lembrar-se-ão, imediatamente, de Marc Ferro em Comment on raconte l ‘histoire aus enfants a travers le monde entier ( Paris, Payot, 1986) e em L ‘histoire sous surveillance (Calmann-Levy, 1985). Muito antes das comemorações do V Centenário do descobrimento da América, Ferro já denunciava as conseqüências de uma visão teleológica e europeocêntrica da história. Prefaciando a obra organizada por Péres Siller, Ferro adverte que “não se trata de um catálogo”, mas de uma confrontação entre as diferentes visões da história, a partir de um observatório particular”. A leitura do livro reafirma as observações de Marc Ferro.

A descoberta da América, como acontecimento que se representa, submete-se a um jogo complexo que envolve aspectos nacionais, internacionais, culturais e étnicos. Lamentavelmente, embora trabalhos como este questionem a história europeocentrista, os manuais escolares continuam perpetuando uma história centrada nos valores europeus ocidentais. Resta ao menos refletir entre a distância que no Brasil separa a produção acadêmica da produção do manual escolar.

O segundo livro, Les itidiens de la découverte. Evangélisation, mariage et sexualité (1992) é de autoria de Pierre Ragon, jovem historiador interessado em história religiosa da América Latina na época moderna e professor da Universidade de Paris X — Nanterre. Pierre Ragon segue bem de perto, nesse trabalho que trata do México pós-conquista, a trilha aberta já há alguns anos pela historiografia francesa, que aproxima a história da antropologia. O autor propôs-se a analisar o encontro de duas culturas, concedendo a evangelização o papel de transposição dos valores europeus — moral e concepções de vida — para a sociedade ameríndia completamente desconhecida.

Na abordagem dessa transposição, o autor elegeu o estudo da introdução do casamento cristão entre os índios. Ragon não restringiu o seu trabalho a um estudo de história religiosa. Com a análise do casamento, penetrou na sociedade indígena, desvendando os laços mais elementares ali existentes.

No contexto da colonização espanhola deteve-se no exame da complexa passagem de uma sociedade “paga” à cristandade, destacando com perspicácia como, aos poucos, o casamento e a sexualidade foram se tornando prioritários para os evangelizadores, uma vez que pelo casamento cristão era possível normalizar a vida dos indígenas, segundo uma fé que eles passavam a adotar. O autor insiste ainda na “abertura de espírito” de grande parte dos religiosos que aceitaram muitas das instituições indígenas, viabilizando assim a implantação das novas normas de vida. Integrando a reflexão teológica aos costumes desses povos desconhecidos, buscavam no pensamento de São Tomás de Aquino (definição do casamento e concepção da lei natural) a defesa da validade das uniões indígenas.

De forma interessante, num estilo elegante, Ragon mostra como os religiosos foram além da reflexão intelectual, lançando-se na prática a uma tarefa pedagógica que inicialmente procurou o apoio das elites indígenas, intervindo nos conflitos pelo poder, contando com o apoio feminino, enfrentando resistências e, finalmente, modificando e impondo com o casamento cristão uma reestruturação do sistema de alianças políticas, anteriormente fundadas na poligamia.

As fontes utilizadas pelo autor revelam a seriedade e a profundidade do trabalho, que não se contentou com análises superficiais. Foram pesquisados tratados de teologia, processos da Inquisição, exposições, questionários, catecismos, manuais de confissão e a correspondência dos missionários. A obra possui quatro capítulos, nos quais Ragon discorre sobre a definição dos casamentos indígenas, os teólogos do Novo Mundo e a escolástica medieval, as novas regras de comportamento e, finalmente, a evolução das relações matrimoniais e o impossível controle das condutas. O livro é ainda enriquecido por um léxico, anexos, esquemas, gráficos e fotografias.

A retomada das teses clássicas da filosofia tomista pelos missionários do século XVI e a amplitude da cristianização na América diminuem certamente as fronteiras temporais que separam a Idade Média dos tempos modernos. Javier Guerra, no prefácio ao livro de Ragon, afirma que ‘”nosso conhecimento desses fenômenos no México pode esclarecer, por analogia, os processos de aculturação que se produziram antes, na Europa, quando da cristianização dos germanos, dos eslavos e dos escandinavos”.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro – Universidade de Brasília.


SILLER, Javier Pérez. (Org). La decouverte de l’Amèrique? Les regards sur Vautre à travers les manuels scolaires du monde. 1922; RAGON, Pierre. Les indiens de la découverte. Evangélisation, mariage et sexualité. 1992. Resenha de: RIBEIRO, Eurydice de Barros. V Centenário do descobrimento da América. Textos de História, Brasília, v.2, n.4, p.182-184, 1994. Acessar publicação original. [IF]