África e Diáspora: 15 anos da Lei Federal 10.639/2003 e os desafios do campo de estudos no Brasil / Revista de História da UEG / 2018

O presente dossiê, escrito para Revista da UEG, a qual agradecemos a equipe editorial, se torna público em um dos momentos mais dilacerantes da História recente de nosso país. E nasce do desejo de mobilizar pessoas em torno de pessoas e seus escritos que buscam manter acesa a chama da esperança, do desejo de investir em produções e experiências na educação básica e superior, de modo a cambiar a cultura escolar e enfrentamento das práticas de opressão, inclusive aqueles que partilhamos por hábito, ou por dificuldades enfrentar o colonialismo que habita em nós mesmos.

Agradecemos a cada um dos autores e autoras, que atenderam ao nosso apelo e vemos neles, na diversidade de pontos de vista, evidências de mudanças que se processaram nos últimos 15 anos. Eles, igualmente, são expressão de diversos atores sociais, em meio a uma conjuntura política nem sempre favorável, de agências governamentais, universidades, setores da sociedade civil, em especial intelectuais, pesquisadores, militantes e professores, todos e todas têm contribuído para a transformação positiva de abordagens coloniais e colonizadas sobre o tema. Mas, como sabemos, há muitos desafios.

Lidamos com a urgência de superar uma historiografia generalizante ao abordar as experiências afrodescendentes, compreendendo-as enquanto lutas diárias de diferentes pessoas e agrupamentos organizados em busca por melhores condições de vida. Ansiamos indicar como essas populações ultrapassaram e / ou implodiram noções de condição cativa, enxergando-se a partir de seus próprios termos e perspectivas, mobilizando-se e reorganizando espaços próprios de atuação, sociabilidade e solidariedade.

A música, a dança, a performance, o movimento, constituíram formas de manutenção, reatualização e ressignificação cultural de Áfricas nas Américas, atentando para o fato de que o corpo constitui espaço de memória, encharcado de vivências e códigos culturais. Neste sentido, a partir de experiências corporais os estudos da diáspora africana podem avançar e alavancar universos outros, para além do corpo-trabalho-escravizado, tão enfatizado em diferentes estudos históricos, mas tão pouco conhecido em suas dimensões éticas, estéticas e culturais.

O presente dossiê procura evidenciar experiências de África e Diáspora em diferentes áreas do conhecimento preocupadas com a educação antirracista e o cumprimento da Lei Federal 10.639 / 03, que completou 15 anos de promulgação em 09 de janeiro de 2018. Incorporando narrativas de diferentes áreas do conhecimento, em especial Educação, História e Literatura, dentre outras atentas às críticas ao colonialismo e seus impactos na educação ainda nos dias atuais, este dossiê espera contribuir, por meio de debates recentes em torno de desafios do presente, quanto ao tema em questão.

Em A sala de aula após a Lei Federal 10.639 / 03: avanços, desafios e possibilidades, narrativa desenvolvida por Pauliana Maria de Jesus (UFPI) e Marcio Douglas de Carvalho e Silva (UFPI), apresenta um panorama da Lei Federal 10.639 / 03 e uma avaliação de práticas docentes realizadas em Campo Maior (PI). As autoras destacam, ainda, a importância do papel do poder público na implementação da Lei, em especial com a oferta de formação para professores, material didático, cursos e afins.

Na sequência, adentramos no artigo Narrativas sobre a Diáspora Africana em Sala de Aula: apontamentos sobre práticas docentes e possibilidades para o Ensino de História, de Carolina Corbellini Rovaris (UDESC), que discute práticas docentes em sala de aula, estratégias e metodologias para repensar conteúdos e temas abordados em explicações e atividades desenvolvidas com os alunos sobre a temática. A partir de narrativas de homens e mulheres de origem africana, a autora sugere possibilidades de abordagem no ensino de História.

O terceiro trabalho intitula-se O que você sabe sobre a África? Um estudo de caso de uma escola da rede pública do Distrito Federal, da autora Júlia Schnorr. O estudo aponta que estudantes e professores têm interesse na História da África, contudo, a formação docente existente e a formação docente ofertada antes da Lei, não produzem instrumentalização suficiente para abordagem da temática, o que resulta ainda numa visão colonizadora da África e do africano na formação do Brasil.

Carina Santiago dos Santos, em Os 15 anos da Lei 10.639 / 03: reflexões sobre a Rede Municipal de Florianópolis, análise as “configurações sociais que permeiam as unidades educativas e a importância de debater sobre o ensino de História no ambiente escolar, entendendo o percurso histórico da disciplina”, apontando avanços e desafios no fazer cotidiano para que a legislação seja efetivada.

A implementação da Lei 10.639 / 2003 na formação inicial de professores de História: uma análise de projetos políticos pedagógicos de universidades públicas mineiras, de Mônica Maria Texeira Amorim, Samira de Alkimim Bastos Miranda e Raimara Gonçalves Pereira, consiste em texto analítico sobre os Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) de universidades públicas que ofertam o curso de licenciatura em História no estado de Minas Gerais. O estudo tomou por base os dados disponíveis no “sistema INEP-DATA do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e as matrizes curriculares disponíveis nas páginas oficiais dos cursos de licenciatura em História de 09 das 11 universidades públicas mineiras que ofertam tal licenciatura”.

A autora Laura Luiza Pagliari Cruz, no artigo A história africana nos livros didáticos do Ensino Fundamental de Montividiu-GO, destaca como a africana é retratada nos livros didáticos do 6º ano de 2015, na única escola urbana da rede municipal de ensino fundamental de Montividiu-GO. No entendimento de Cruz, “embora as obras estejam de acordo com a Lei 10.639 / 03, a história africana tem pouco destaque, aparecendo fragmentada e desconexa da história eurocêntrica que norteia o material didático”.

Em se tratando de distintas temáticas que compõem as abordagens em sala de aula, Camila do Socorro Aranha dos Reis, Edvandro Luise Sombrio de Souza e André Vinícius Gomes da Silva trazem à tona o texto Estandartes para os orixás: mitologia iorubá nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Na produção, os autores enfatizam uma proposta pedagógica desenvolvida sobre a mitologia iorubá, na disciplina de Artes Visuais, com os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental, em uma escola da zona norte do Rio de Janeiro. “Aliados aos estudos teóricos, temos como resultado plástico a produção de estandartes com referência aos orixás pertencentes ao culto do Candomblé de Ketu”. O trabalho procurou “questionar hierarquias sustentadas pelo campo da arte, na qual alguns objetos são classificados como ‘artísticos’, enquanto outros são relegados a categorias marginais”.

Luís Ernesto Barnabé e Ruhama Sabião, em Entre História e Literatura: reflexões acerca do uso do romance “a flecha de deus”, buscam refletir acerca da possibilidade do uso do romance histórico “A Flecha de Deus”, do escritor Chinua Achebe. Com narrativa que envolve “pontos de vista de europeus e africanos acerca do imperialismo europeu do século XIX, o romance também oferece ricas informações a respeito das relações sociais entre famílias, o funcionamento das estruturas econômicas e religiosas antes e durante a chegada dos europeus”. Esse romance possibilita abordagens interdisciplinares para efetivação da Lei Federal nº10.639 / 03.

No artigo Caminhos identitários: contribuições de Kabengele Munanga na construção da identidade negra positiva, Quecia Silva Damascena e Eduardo Oliveira Miranda elucidam o papel das obras Negritude: usos e sentidos (1986), Superando o racismo na escola (2005) e Uma Abordagem Conceitual das Noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia (2004), de Kabengele Munanga. Apontam que as reflexões proporcionadas nessas obras ressignificaram a construção das identidades docentes, impactando positivamente sobre as “possibilidades culturais dispostas no chão da escola”.

A presença negra na história do Paraná: a memória entre o esquecimento e a lembrança, de Delton Aparecido Felipe discute a negação da memória negra no Paraná enquanto projeto ideológico de construção baseada em uma política de branqueamento vigente no final do século XIX e início do XX no Brasil. “O paranismo foi uma das estratégias utilizadas para alicerçar uma identidade paranaense a partir dos imigrantes europeus que chegaram no estado na segunda metade do século XIX”. Conforme Felipe, essa gestão da memória, com papel do governo e da literatura especializada, tentou apagar a presença negra da história oficial do Paraná.

Em nosso penúltimo texto do dossiê, Eval Cruz, no artigo intitulado Diáspora e conexões do Atlântico: histórias, identidades e resistências africanas em Laranjeiras / SE, salienta diferenças presentes entre as muitas variedades de grupos religiosos de matriz africanas presentes no país. Seu texto aponta também que a “diáspora estendeu a cultura africana a vários povos, levando-os a um mundo totalmente desconhecido daquele em que estavam acostumados; todavia, mesmo com os traumas provocados pela travessia atlântica, sua cultura religiosa foi preservada e cuidadosamente ressignificada para que pudesse florescer no novo habitat”.

Fechando a seção de artigos do dossiê, Línguas africanas e a pesquisa em História da África a partir do Brasil: um desafio em aberto, de Felipe Barradas Correia Castro Bastos, evidencia teórica e metodologicamente “a pertinência do treinamento linguístico para ressaltar a premência da implantação de cursos de línguas africanas em universidades brasileiras”. O trabalho articulou aspectos do interesse de instituições e indivíduos ocidentais na apreensão de línguas africanas, em particular a língua suaíli.

Na seção de traduções, Pablo Biondi, em PESQUISAS SOBRE UM MODO DE PRODUÇÃO AFRICANO de Catherine COQUERY-VIDROVITCH, apresenta um texto importante e pouco conhecido em português, a respeito das relações de organização da produção e hierarquias, enfatizando as relações sociais em sociedades africanas que não se “encaixam” na denominação de “classes”.

Paulino de Jesus Francisco Cardoso – Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); docente da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected]

Karla Leandro Rascke – Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA); pesquisadora associada ao NEAB-UDESC e ao CECAFROPUC / SP. E-mail: [email protected]


CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.7, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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