“A Direita na América Latina Contemporânea”: universidades, intelectuais, disputas de espaços e sentidos | Revista de História da UEG | 2021

Apresentação

“Um fantasma recorre a América Latina”. Especialmente desde os anos de 1960, depois da Revolução Cubana e seu influxo na radicalização política de alguns setores da juventude militante daquele período, os debates entre universitários “bolcheviques”, ou seja, aqueles mais próximos da experiência soviética e chinesa, que, por sua vez, baseavam-se na prática maoísta, o surgimento das propostas de socialismo nacional nos partidos populares, bem como o boom dos escritores latino-americanos fez com que se afiançara a noção cultural da hegemonia das esquerdas nos campos intelectual e universitário. Paradoxalmente, esse argumento, qual seja, o do “esquerdismo” dos e das estudantes, docentes e intelectuais, é um velho tópico usado também pelas direitas para denunciar a decadência das universidades e da cultura em geral.

Por isso, esse dossiê analisa esse sentido comum por meio de diferentes artigos que mostram as experiências direitistas de intelectuais e universitários em diferentes países latino-americanos. Entendemos o conceito de intelectual em seu sentido amplo, isto é, incluindo jornalistas e empresas editoriais, bem como atores políticos que fazem uso de instrumentos intelectuais para indicar e defender suas ações e projetos. O campo de estudos sobre as direitas latino-americanas (e de outros recortes geográficos) cresceu significativamente nas últimas décadas, ganhando legitimidade como tema de investigação social, desmentindo a alguns detratores que lhe atribuíam um caráter meramente militante. Por outro lado, com a recente irrupção de partidos e governos de direita na região, se colocaram em evidência as premissas e corpus de ideais pensados por intelectuais de direita que também assumiram uma nova visibilidade. Leia Mais

Teoria da história e história da historiografia / Revista de História da UEG / 2021

Apresentamos mais uma edição da Revista de História da UEG. Este é um volume especial, pois se trata do décimo volume lançado desde o início da revista. Ao longo dos últimos anos temos nos dedicado com afinco à tentativa de consolidar a Revista de História como um importante canal de publicação e veiculação da pesquisa histórica no país, o que temos conseguido fazer com sucesso. Julgamos que a Revista cresceu muito nestes anos de existência, o que pode ser percebido pela quantidade de artigos que temos recebido e pelo nível e qualidade dos textos publicados, de autores(as) de todas as partes do país, o que sempre foi nosso objetivo principal.

Nesta edição trazemos um importante dossiê sobre “Teoria da História e História da Historiografia”, que procura refletir sobre os conceitos teóricos da pesquisa histórica, assim como a história da historiografia, não só nacional como da historiografia clássica. Segundo os professores que idealizaram o dossiê [1]: “o presente dossiê reuniu trabalhos que abordam as diferentes perspectivas de produção e circulação do conhecimento histórico. A História, enquanto disciplina, reflete sobre seus fundamentos teóricos e epistemológicos conectada com suas formas de organização curricular e modalidades de intervenção na sociedade. Portanto, foram acolhidas questões relativas aos conceitos, métodos, objetos e sujeitos envolvidos na escrita da história, da mesma maneira que reflexões sobre instituições de pesquisa, divulgação e ensino de História de modo geral.

O intuito maior é contribuir para a reflexão urgente sobre os diferentes modos de fazer História e se relacionar com ela em diferentes épocas e contextos. Diante disso, além dos enfoques que incidem na escrita da história, como as relações e tensões entre história e verdade, história e memória, história e representação, história e ficção, história e temporalidades, abrimos espaço para debates em torno do papel social do historiador, dos horizontes de divulgação da história ensejadas pela história pública, pela história do tempo presente ou pela relevância interseccional dos conceitos de raça, classe e gênero na escrita e recepção da história enfatizados pelas teorias feministas, giro decolonial e o pensamento afrodiaspórico, entre outros”.

Desejamos a todos(as) uma ótima leitura!

Nota

1. O presente dossiê foi idealizado por Ana Lorym Soares (UFJ) e Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos (UEG), que avaliaram grande parte dos artigos submetidos, e foi finalizado e organizado pelo Conselho Editorial da Revista de História da UEG


Conselho Editorial. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.10, n.1, 2021. Acessar publicação original [DR]

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A fotografia em instituições de memória: experiências no Brasil e em Portugal / Revista de História da UEG / 2020

No dossiê “A fotografia em instituições de memória: experiências no Brasil e em Portugal”, reunimos entrevistas e artigos que trazem uma série de informações, reflexões e problematizações em torno da pesquisa sobre fotografia, tendo em vista sua presença em instituições de memória. O dossiê insere-se num contexto de incorporação da fotografia nos campos de estudo da História, da Antropologia, da Comunicação e das Artes, dando continuidade a um processo iniciado há algumas décadas. De acordo com o balanço historiográfico realizado por Ana Mauad (2016), os estudos, ao tomarem a fotografia como objeto e fonte de investigação, têm possibilitado significativos avanços nas reflexões sobre diversos temas: as formas de linguagem, as maneiras de representação do mundo social, o modo como as imagens amparam vivências individuais e coletivas, bem como a influência da imagem nas formas de percepção do espaço e do tempo e nas políticas de memória. As pesquisas, em suas diferentes vertentes teóricas, têm refletido tanto sobre os modos de produção das imagens, como sobre suas formas de circulação e de apropriação social.

Nesse processo, foi e tem sido vital a organização e a disponibilização de acervos fotográficos [1] públicos e privados, pessoais ou institucionais, que amparam pesquisas em diferentes domínios e sem os quais não teria sido possível trilhar grande parte dos caminhos percorridos. Ao serem abrigados por instituições que são concebidas como lugares de memória (NORA, 1993), – tais como os arquivos, museus, bibliotecas, centros de documentação – estes acervos adensam o patrimônio histórico e cultural de seus respectivos países. Tanto no Brasil quanto em Portugal, verifica-se certa sensibilidade para a necessidade de guarda, tratamento e disponibilização dos acervos fotográficos. Há, nestes dois países, instituições públicas e privadas que são referências importantes para o trabalho com a história da cultura visual fotográfica e que se tornaram verdadeiros repositórios, capazes de viabilizar o trabalho com as memórias dos sujeitos, das famílias, dos governos, dos movimentos sociais e, também, dos próprios fotógrafos, com suas histórias pessoais, seus aparelhos, técnicas e métodos de trabalho. Nos limites desta apresentação, não será possível traçar um panorama da situação dos acervos fotográficos nos dois países, mas podemos indicar alguns aspectos para reflexão.

No caso do Brasil é possível afirmar que três instituições podem ser vistas como referência para o trato dos acervos fotográficos, pois contribuíram e ainda contribuem para pensar as políticas de guarda, preservação e difusão: a Funarte, a Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles. A Funarte começou a atuar no final da década de 1970 por meio do seu Núcleo de Fotografia, renomeado INFoto (Instituto Nacional de Fotografia) em 1984, e colaborou na implantação de uma política pública para os acervos fotográficos do país (VASQUEZ, s / d). Graças especialmente ao Programa Nacional de Preservação e Pesquisa da Fotografia, o INFoto contribuiu para disseminar a importância da valorização dos acervos fotográficos em arquivos públicos e particulares, universitários e sindicais, nos âmbitos federal, estadual e municipal (VASQUEZ, s / d). Foi nesse âmbito de atuação que surgiu a colaboração com a Biblioteca Nacional por meio do Projeto de Preservação do Acervo Fotográfico da Biblioteca Nacional (PROFOTO), iniciado em 1990, e que se revelou um dos mais importantes trabalhos com acervos fotográficos do país. A Biblioteca Nacional se tornou, com essa iniciativa, uma referência “(…) na afirmação e na definição de uma política de tratamento das coleções fotográficas representada por meio de publicações técnicas, orientação, processo de identificação e indexação, bem como da guarda desse material” (ZAHER, 2004). Já o Instituto Moreira Salles afirmou-se nas duas últimas décadas como uma referência na constituição de acervos fotográficos de caráter autoral, com ênfase especial em fotógrafos do século XIX e XX, contendo cerca de 800 mil fotografias. Muitas outrasinstituições no país guardam acervos fotográficos de relevância, tais como Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu Paulista da USP, a Fundação Joaquim Nabuco, o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa e o Arquivo Público Mineiro. Para oferecer uma visão mais ampla do assunto, teríamos que levar em consideração as instituições públicas e privadas do âmbito estadual e municipal, as bibliotecas, centros de documentação de universidades, etc. Além disso, teríamos que acrescentar a presença da fotografia nas coleções dos museus de arte. Enfim, fazer um balanço da situação dos acervos fotográficos no país é muito delicado, mas é possível afirmar, seguindo Aline Lacerda (2012, p. 284), que a fotografia se apresenta de maneira sistemática nos arquivos, sejam eles públicos ou privados, institucionais ou pessoais.

Uma questão importante diz respeito à digitalização de acervos, que é um desafio enfrentado pelas instituições de memória a partir da década de 1990. Desde então, vários projetos têm sido implantados. De acordo com Rubens Silva (2006), a digitalização permite a preservação da memória visual, traz a possibilidade de fortalecer as identidades e de ampliar os conhecimentos no que tange à formação educacional e cultural, principalmente quando ocorre a disponibilização de acervos online. Assim, o acesso remoto, ao mesmo tempo em que maximiza a utilização, satisfaz parcialmente as necessidades e as demandas da sociedade e, embora não permita o acesso à materialidade dos objetos fotográficos, apresenta-se como um caminho possível para democratizar a informação. Alguns exemplos de sucesso nesse campo podem ser citados: a Biblioteca Nacional Digital, o Instituto Moreira Salles e o Arquivo Público Mineiro. Cabe destacar, pela sua excelência, o projeto da Brasiliana Fotográfica, que é um dos desdobramentos da expertise alcançada pela Biblioteca Nacional no tratamento dos acervos fotográficos. A iniciativa surgiu da parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS), obtendo posterior adesão de outras instituições [2]. O acesso remoto de acervos fotográficos abre a possibilidade de fruição, ampliação da consciência, facilita o acesso de pesquisadores, constitui uma forma de preservar o documento original, abrindo oportunidades para a produção de conhecimento crítico. Um dos grandes desafios atuais diz respeito à entrada dos arquivos nato-digitais nos acervos fotográficos das instituições de memória.

Em Portugal, existem instituições de referência para o estudo e para a conservação da fotografia, tal como o Centro Português de Fotografia, o Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa e o Arquivo de Documentação Fotográfica da Direcção Geral do Património Cultural, cuja coordenadora, Alexandra Encarnação, é entrevistada neste dossiê. O projeto de investigação Fotografia no Arquivo e no Museu Colonial Português 1850 – 1950, desenvolvido em 2013 e coordenado pela historiadora Filipa Lowndes Vicente, explorou a existência de fotografias em diversas instituições de memória em Portugal e analisou-as à luz dos debates internacionais historiográficos sobre o colonialismo e a condição colonial. Graças a esse trabalho, podemos construir uma visão ampla sobre a presença da fotografia nos acervos de diversas instituições [3]. Mais precisamente, nesse contexto, a existência de fotografias em instituições de memória em Portugal foi exaustiva e até então, a nosso conhecimento, ineditamente mapeada – ainda que sob a perspectiva da sua inscrição ou afetação a um contexto colonial. Desde então, alguns desses arquivos e fundos vêm passando por reconfigurações institucionais, como, por exemplo, o Instituto de Investigação Científica Tropical, hoje sob a tutela da Universidade de Lisboa. Além disso, foram surgindo outros projetos de pesquisa na área da fotografia, – como, por exemplo, a OPSIS – Base Iconográfica de Teatro em Portugal, Mobilizando Arquivos, Photo Impulse, Perphoto –, assim como conferências, publicações, colóquios e investigações acadêmicas dedicadas ao estudo da fotografia no contexto histórico português, bem como à relação entre fotografia e (sua representatividade no e do) arquivo.

O arquivo surge então aqui como um conceito sinônimo de instituição de memória, embora possamos considerar a existência de arquivos não institucionais, tais como os fundos pessoais e as fotografias “soltas”, ou seja, não consideradas enquanto corpus arquivável. Desde há cerca de uma década, assistimos igualmente a uma gradual afirmação no panorama cultural português de instituições de memória dedicadas, direta ou indiretamente, à fotografia, tais como: o Museu da Imagem em Movimento, em Leiria; a Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã; ou, mais recentemente renovado, o Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, no Funchal. À semelhança do caso brasileiro, outro movimento importante no contexto português tem sido o da dinamização de projetos de constituição de fundos fotográficos digitais disponibilizados (exclusivamente ou não) online, que promovem a difusão de seus acervos e facilitam o trabalho dos pesquisadores [4].

Ainda à semelhança do caso brasileiro, para termos uma visão mais ampla da representatividade dos acervos fotográficos em instituições de memória em Portugal, deveríamos considerar a sua presença em nível distrital, municipal, das bibliotecas e de centros de documentação diversos; e, sobretudo, considerar a sua presença nas coleções dos museus de arte, onde se privilegia uma prática fotográfica autoral. Consideramos que o balanço da situação dos acervos fotográficos no caso português é ainda mais incerto do que no caso do Brasil, tendo sido pouco pesquisado de forma sistemática. Mas, em suma, na última década, assistimos em Portugal a um processo de consideração da fotografia, quer enquanto imagem / janela quer enquanto objeto / material, e mais particularmente como fonte de interesse da disciplina da História (e das ciências sociais em geral). Assistimos ainda ao aumento dos estudos e cuidados (de restauro, conservação, inventariação, digitalização…) com as coleções fotográficas, ou ao seu devir institucional: a sua integração em arquivos e acervos, bem como a uma crescente visibilidade da fotografia em museus e exposições de natureza diversa.

O presente dossiê reúne duas entrevistas e oito artigos. No que tange às entrevistas, temos duas conversas bem interessantes com representantes de instituições de alta relevância para a memória cultural e histórica de seus respectivos países. Pela Biblioteca Nacional do Brasil, temos Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, servidor da instituição há trinta e nove anos, que fez um amplo balanço do trabalho com os acervos fotográficos que esta vem realizando há algumas décadas, o que a tornou referência na área. Pelo Arquivo de Documentação Fotográfica, temos Alexandra Encarnação, que faz um balanço dessa mesma instituição de grande relevância no que diz respeito ao panorama dos arquivos fotográficos em Portugal, assim como do trabalho desenvolvido pela mesma na guarda de outros acervos. Na entrevista, destaca-se ainda alguns exemplos de coleções e imagens no arquivo, fundamentais quer para a história da fotografia em Portugal quer na Europa.

No que diz respeito aos artigos, talvez devido ao fato de ser esta publicação uma iniciativa “brasileira”, houve uma resposta mais expressiva em relação às pesquisas que incidem em coleções fotográficas no Brasil. Na apresentação dos artigos, optamos por trazê-los em conjuntos. Temos dois artigos nos quais os autores, cada qual partindo de uma fotografia específica, problematizam a participação das referidas imagens nas práticas sociais. O artigo de Marcus Vinicius de Oliveira discute as formas de apropriação da fotografia de uma criança guineense de nome Augusto na época de sua produção, no contexto da Exposição Colonial de 1934, na cidade do Porto. Estuda-se a trajetória da imagem com o objetivo de problematizar o colonialismo contemporâneo, por meio das reflexões em torno dos usos e funções desempenhados pela imagem. Já o artigo de Aline Montenegro Magalhães e Maria do Carmo Teixeira Rainho problematiza a trajetória histórica da fotografia de uma mulher de turbante, realizada provavelmente no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, pelo fotógrafo alemão Albert Henschel. Em ambos, podemos acompanhar a potência dos estudos de biografia das imagens e o quanto uma única fotografia pode constituir-se como instância de sentido, a partir da qual várias problemáticas podem ser levantas, na medida em que ela é tomada enquanto fonte histórica polissêmica. Os autores nos mostram que as imagens devem ser interpeladas em relação às suas características formais, à sua autoria, ao contexto de produção, bem como analisadas em virtude da produção, circulação, consumo e apropriações diversas ao longo da história.

Um segundo conjunto de artigos nos leva para dentro de instituições de memória que lidam com acervos fotográficos, sendo que um deles tematiza a experiência de um museu e o outro aborda uma escola. O artigo de Guilherme Marcondes Tosetto apresenta um histórico da atuação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) na incorporação da fotografia em seu acervo. A partir do levantamento das exposições realizadas pelo museu e da atuação do Clube de Colecionadores de Fotografia, o autor constrói uma descrição detalhada do conjunto fotográfico sob guarda da instituição, indicando os questionamentos artísticos que orientaram o trabalho de curadoria na constituição da coleção. Já o artigo de Hugo Rodrigues Cunha traz o relato do encontro fortuito e inesperado com um material fotográfico guardado em uma área da escola onde é docente da disciplina de Química: o Liceu Camões, em Lisboa. A partir de um pequeno conjunto formado por objetos, negativos e fotografias, ele realiza algumas reflexões sobre a relação entre memória e história e os silêncios e invisibilidades, intencionais ou involuntários, que marcam as ações humanas na escola e em outros espaços.

Outro conjunto formado por três artigos se dedica ao estudo, cada um a seu modo, dos acervos dos fotógrafos Mario Baldi, Pierre Verger e Paulino de Araújo Ferreira Lopes. Mario Baldi, fotógrafo austríaco, realizou um amplo trabalho de fotografia, escrita de artigos e reunião de objetos da cultura indígena no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1950. Marcos de Brum Lopes analisa a coleção do fotógrafo, que é compartilhada por duas instituições de memória: o Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Teresópolis (SPHAC), no Brasil; e o Weltmuseum Wien (WMW), na Áustria. O texto de Marcos Lopes discute como o “Projeto Baldi” vem sendo desenvolvido pelas duas instituições e reflete sobre os motivos e intenções do colecionismo. O artigo de Marilécia Oliveira Santos e Thiago Machado de Lima clarifica o trabalho minucioso sobre a constituição da Fundação Pierre Verger, enfatizando o papel da instituição na guarda do legado fotográfico do fotógrafo e antropólogo francês, que viajou por muitos lugares do mundo e se radicou na Bahia em 1946. Os autores detalham o trabalho desenvolvido pela Fundação com o propósito de constituir uma organização interna que garanta a conservação do acervo fotográfico e permita a memorialização e valorização do legado fotográfico de Verger. Por fim, o artigo de Marcos Ferreira de Andrade traz um relato do trabalho de organização do Centro de Memória Cultural do Sul de Minas (CEME), desenvolvido entre 1996 e 2000, na cidade de Campanha (MG), quando era professor na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora de Sion, hoje pertencente à Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Em seu trabalho, ele discute a importância dos centros de memória dirigidos por instituições de ensino em localidades com carência de arquivos públicos. Ele apresenta o escopo de todo o projeto, mas enfatiza o trabalho realizado junto ao acervo fotográfico de Paulino de Araújo Ferreira Lopes, fotógrafo que atuou na região entre o final do século XIX e meados do século XX.

Finalizando o dossiê, o artigo de Laila Zilber Kontic não se concentra numa instituição de memória específica, mas problematiza as representações sobre os indígenas brasileiros na fotografia, a partir da visita a acervos fotográficos do Museu do Índio, da Biblioteca Nacional Digital, do Instituto Moreira Salles, do Museu do Quai Branly, e da Galeria Vermelho. Em um primeiro tempo, a autora analisa fotografias do século XIX de fotógrafos como E. Thiesson, Albert Frisch e Marc Ferrez; em um segundo tempo, ela discute o trabalho de documentação realizado pela Comissão Rondon, e por reportagens da revista O Cruzeiro; em um terceiro tempo, a autora discute o trabalho da fotógrafa suíça Claudia Andujar, que mora no Brasil desde 1955 e construiu uma convivência próxima com os Yanomami, desde a década de 1970. O objetivo principal de Laila Zilber Kontic repousa em mostrar como o trabalho artístico de Andujar elabora novas formas de utilizar a fotografia para abordar os costumes e valores do povo Yanomami, diferentemente do que fizeram outros fotógrafos com suas representações de indígenas.

Esperamos que este dossiê contribua para o aprofundamento da análise da fotografia em instituições específicas e que, deste modo, se alcance uma visibilidade quer sinóptica quer precisa da existência e da representatividade da fotografia nos arquivos e demais instituições de memória, em Portugal e no Brasil. Esperamos ainda que o dossiê constitua uma pequena contribuição para a valorização (institucional ou não) de fundos fotográficos até então invisibilizados. Finalmente, esperamos lançar o mote para pesquisas futuras e outras ações, como exposições ou mostras online, que estabeleçam análises, relações e sinergias entre coleções, fundos e acervos fotográficos nos dois países: Portugal e Brasil.

Desejamos uma ótima leitura!

Notas

1. Segundo Aline Lacerda (2013, p. 240) acervos fotográficos são “grupos de documentos tão distintos quanto arquivos estritamente fotográficos, arquivos mais tradicionais que abarcam, além de documentos de gênero textual, também o material fotográfico, parcelas de arquivos que foram desmembrados e dos quais restam apenas seu componente fotográfico, coleções mais orgânicas de fotografias (pois que produzidas com alguma sistemática), coleções menos orgânicas de fotografias (pois que mais fragmentadas), pequenos conjuntos de fotografias avulsas reunidas sob critérios vários etc.”

2. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, Dir. Pat. Hist. Documentação da Marinha, Fundação Bibliioteca Nacional, Fundação Joaquim Nabuco, Instituto Moreira Salles, Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Museu Aerospacial, Museu da República e Museu Histórico Nacional.

3. Arquivo Histórico da Marinha, Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa, Arquivo Histórico do Ex-Banco Nacional Ultramarino, Arquivo Histórico Militar, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional da Ajuda, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Centro Português de Fotografia, Fundação Mário Soares, Divisão de Documentação Fotográfica / Direcção-Geral do Património Cultural, Palácio Nacional da Ajuda, Sociedade de Geografia de Lisboa.

4. Como exemplo podemos citar a base iconográfica do teatro em Portugal, OPSIS; o site em desenvolvimento dedicado a fotografia vernacular portuguesa Foto-Sintese; coleções digitais fotográficas da Fundação Calouste Gulbenkian; registos fotográficos do Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa disponibilizados online; imagens fotográficas da secção Cinemateca Digital da Cinemateca portuguesa; a coleção online do Centro Português de Fotografia; o repositório digital do Arquivo Científico Tropical.

Referências

DIAS, Inês Sapeta; FAZENDA, Maria do Mar Fazenda; NASCIMENTO, Susana. O que é o arquivo? / What is the Archive? Lisboa: Sistema Solar / Documenta, 2018.

LACERDA, Aline Lopes de. Quatro variações em torno do tema acervos fotográficos. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.7, p. 239-248, 2013, Disponível em: http: / / wpro.rio.rj.gov.br / revistaagcrj / wpcontent / uploads / 2016 / 11 / e07_a11.pdf. Acesso em: 28 jun. 2020.

MAUAD, Ana Maria. Sobre as imagens na História, um balanço de conceitos e perspectivas. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v. 12, n. 14, p. 33-48, jan. / jun. 2016. Disponível em: http: / / www.e-publicacoes.uerj.br / index.php / maracanan / issue / view / 1194 / showToc. Acesso em 28 out. 2017.

NORA, Pierre. Entre Memória e História – A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7–28, dez. 1993. Disponível em: http: / / revistas.pucsp.br / index.php / revph / article / view / 12101 / . Acesso em: 10 jul. 2010.

SILVA, Rubens. Acervos fotográficos públicos: uma introdução sobre digitalização no contexto político da disseminação de conteúdos. Ciência da Informação, Brasília, v. 35, n. 3, p. 194-200, set. / dez. 2006. Disponível em: https: / / www.scielo.br / scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 19652006000300018&lng=pt&nrm=isso Acesso em: 29 jun. 2020.

VASQUEZ, Pedro. As ações do INFoto. Brasil Memória das artes. s / d. Disponível em: http: / / portais.funarte.gov.br / brasilmemoriadasartes / acervo / infoto / as-acoes-do-infoto / . Acesso em: 10 jul. 2020.

VICENTE, Filipa (Coord.). O império da visão: a fotografia no contexto colonial português (1860–1960). Lisboa: Edições 70, 2014.

ZAHER, Celia Ribeiro. Comentário IV. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.12, p. 35-37, jan. / dez. 2004, Disponível em: https: / / www.scielo.br / scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101 – 471420040001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 08 jul. 2020.

Rogério Pereira de Arruda – Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); professor Adjunto III na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – Campus JK-Diamantina. E-mail: [email protected]

Ana Gandum – Doutora em Estudos Artísticos – Artes e Mediações pela Universidade Nova de Lisboa (UNL); pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]


ARRUDA, Rogério Pereira de; GANDUM, Ana. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.9, n.2, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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“Associações religiosas de leigos na América Portuguesa”: novas fontes e perspectivas de análise / Revista de História da UEG / 2019

As irmandades leigas surgiram na Idade Média europeia. Suas principais funções eram a ajuda mútua e o incremento do culto religioso. Na América portuguesa, elas cumpriam um papel semelhante, sendo responsáveis pelo ministério dos sacramentos e pelo socorro material e espiritual dos confrades. Presentes nas diversas instâncias da vida do indivíduo, as irmandades constituíam espaços em que, via de regra, os “socialmente semelhantes” se encontravam. Estes buscavam santos de devoção (oragos) que correspondessem simbolicamente ao estrato social ao qual pertenciam. Era comum a participação em mais de uma irmandade; entretanto, o livre trânsito entre essas associações era possível apenas para alguns, já que era algo dispendioso e algumas agremiações estavam restritas a segmentos sociais específicos. Além do pagamento do ingresso e de anuais, as irmandades de elite impunham exigências mais rígidas para a aceitação de novos irmãos, como a comprovação de “pureza de sangue” e ausência de “defeitos de cor”.

A associação para a veneração de um santo não tinha somente a intenção de reunir pessoas que partilhassem da mesma fé. Visava também agregar indivíduos com condições financeiras e sociais que seriam, em tese, semelhantes. Embora não possamos negar que a fé era o motivo que impulsionava a criação dessas associações, a demarcação das hierarquias sociais circunscrevia, sobremaneira, a participação nelas. Entre os negros e mulatos, elas constituíam – ao lado das milícias – um dos únicos canais legais de organização. Por isso, as irmandades tornaram-se verdadeiras porta-vozes das aspirações dos “homens de cor” na América portuguesa (AGUIAR, 1993).

Um dos principais motivos para o ingresso nessas associações era a preocupação com a “boa morte”, incluindo os rituais realizados nos últimos momentos de vida e aqueles post mortem, como as missas para salvação das almas do purgatório. Para além desses sufrágios e da devoção aos santos, o auxílio em caso de pobreza e doença constituía um dos principais motivos para o ingresso de irmãos. Assim, “tratava-se de fazer face à imprevisibilidade dos acontecimentos do dia a dia, assegurando a solidariedade em uma espécie de ‘família alargada’, a partir de uma valorização do sentimento cristão de fraternidade e de amor ao próximo” (PENTEADO, 1995, p. 26).

Desde os estudos pioneiros de Fritz Teixeira Salles (1963), Julita Scarano (1978), Russell-Wood (1981) e Caio Boschi (1983), emergiu uma volumosa produção historiográfica sobre as associações religiosas de irmãos leigos. Em busca realizada no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, a partir das palavras-chave “irmandade”, “confraria”, “associações religiosas” e “ordem terceira”, encontramos 46 trabalhos que investigam essas instituições no período colonial, defendidos na área de História entre 2001 e 2016. Para conhecermos os principais temas abordados, classificamos os trabalhos entre aqueles que têm essas instituições como objeto de pesquisa e os que tratam de algum assunto específico valendo-se das agremiações religiosas de leigos como um meio de compreensão dos seus temas centrais – tais como: a morte e os ritos funerários, os regimentos e a iconografia. Entre os 46 trabalhos defendidos em programas de pós-graduação stricto sensu, treze são do segundo tipo descrito acima.

Nove pesquisas se dedicaram à compreensão do funcionamento, atuação e perfil de seus membros. As demais se valeram de variados enfoques: análise de devoções, estudo da estratificação social, análise de ritos mortuários etc. As pesquisas abordaram corporações de diferentes tipos (confrarias, irmandades, arquiconfrarias, ordens terceiras e Santas Casas de Misericórdia) e que reuniam homens e mulheres de diferentes condições jurídicas (livre, forro e escravo) e qualidades (preto, crioulo, pardo e branco). As associações mais estudadas pertencem, respectivamente, aos seguintes oragos: irmandades de Nossa Senhora do Rosário, nove; Santíssimo Sacramento, três; São José, dois; Santa Ifigênia, Nossa Senhora dos Remédios, São Crispim, São Jorge, São Gonçalo Garcia, Nossa Senhora das Mercês e São Miguel e Almas, contam com um trabalho cada um. Quatro estudos tratam das Santas Casas de Misericórdia e oito das ordens terceiras.

As dissertações e teses aqui compreendidas adotaram recortes espaciais diversificados, abrangendo tanto estudos mais localizados quanto análises mais amplas que tratam de mais de uma capitania, incluindo uma pesquisa que abarca Brasil e Portugal. Contudo, dentre os trabalhos que se concentram em espaços geográficos menores, os mais recorrentes são Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.

A partir dos dados arrolados podemos evidenciar a importância desse tipo de instituição durante o período colonial brasileiro, tanto no que se refere ao número de trabalhos realizados sobre a temática quanto à difusão dessas agremiações pela colônia. Apesar de o assunto contar com diversos trabalhos, ainda há bastante campo de pesquisa a ser explorado pelos historiadores, seja a partir de fontes inéditas ou por novos olhares para fontes já conhecidas.

O propósito desse dossiê é divulgar os novos debates sobre a temática das associações religiosas de irmãos leigos no período colonial, realizados por jovens pesquisadores de diferentes programas de pós-graduação do país. Os artigos aqui reunidos formam uma bela amostragem dessa produção mais recente.

Leonara Lacerda Delfino analisa como os irmãos do Rosário de São João del-Rei (MG) buscaram uma maior autonomia no interior dos seus templos, em detrimento da autoridade paroquial. Com essa intenção, a pesquisadora examinou os argumentos usados pelos próprios irmãos do Rosário para a defesa de uma auto sustentação material e simbólica dos seus bens sagrados.

Cristiano Oliveira de Sousa interpreta os critérios estabelecidos no estatuto de 1805 da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila Rica para o recrutamento e a seleção dos seus irmãos, verificando, ainda, o modo como foi estatuída a realização das eleições da mesa administrativa da Ordem.

Gilian Evaristo França Silva examina o surgimento das irmandades durante o período de vacância (1745-1803) da Prelazia de Cuiabá, procurando inseri-las no campo religioso católico da Capitania de Mato Grosso. Nesse contexto, o pesquisador reconstitui as posições dos grupos sociais na hierarquia local a partir das irmandades.

Edson Tadeu Pereira, coadunando-se com proposta do dossiê de pensar as devoções aos santos católicos no período colonial, discute a centralidade que determinados oragos adquiriram como intercessores dos vivos em períodos críticos de pestes e epidemias, elegendo como protetores santos especializados em certas mazelas que afligiram a América portuguesa.

Igor Roberto de Almeida Moreira dedica-se à análise da construção do perfil socioeconômico dos membros da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, instalada em Vila da Cachoeira, Bahia, durante a primeira metade do Setecentos. Para identificar a filiação de diferentes sujeitos à Ordem, tendo em vista a não preservação da documentação produzida pela agremiação, o pesquisador recorreu a fontes eclesiásticas ou judiciais. Essa estratégia de pesquisa sugere alternativas que podem contribuir para o estudo das irmandades e ordens terceiras.

Maria Clara C. S. Ferreira, em seu estudo sobre a Arquiconfraria do Cordão de São Francisco da Vila Nova da Rainha do Caeté (MG), traz à tona uma modalidade de associação religiosa de leigos pouco estudada, a arquiconfraria, analisando pormenorizadamente um complexo conjunto de elementos, debruça-se sobre uma gama de fontes de diferentes naturezas, em especial, aquelas produzidas pela própria instituição, com o fito de compreender o processo de instalação, desenvolvimento e a dinâmica interna da agremiação.

Petros José da Rocha Brandão discute como a Irmandade de Nossa Senhora dos Pretos de Recife, entre 1715 e 1730, conformava diferentes grupos sociais de ampla variedade de condições: escravos, forros e livres, no interior de uma mesma instituição, e, principalmente, como as irmandades de pretos contribuíam para a organização da sociedade colonial.

Finalmente, Monalisa Pavonne Oliveira, analisa a distribuição de diferentes segmentos sociais entre as diversas associações religiosas de leigos no período colonial, principalmente, como estas instituições colaboraram paradoxalmente por um lado, com a definição de limites hierárquicos nesta sociedade e, por outro, na busca por ascensão social; ora amortecendo possíveis conflitos, ora contribuindo para o alcance de melhores condições de vida.

A partir da colaboração de autores e autoras com pesquisas que exploram diversas fontes, abordagens e recortes espaciais e temporais pretendemos contribuir para a discussão de um tipo de instituição bastante presente no período colonial nos mais distantes locais da América portuguesa: as associações religiosas de leigos. Desse modo, reforçamos a importância dos estudos acerca das irmandades, ordens terceiras e arquiconfrarias, haja vista a centralidade que essas associações ocuparam durante o processo de colonização da América portuguesa.

Uma ótima leitura!

Referências

AGUIAR, Marco Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos nos séculos XVIII. Dissertação Mestrado. Orientadora, Prof. Dr. Maria Beatriz Nizza Marques da Silva. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993.

BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder (Irmandades Leigas e Política em Minas Gerais). São Paulo: Ática, 1983.

PENTEADO, Pedro. Confrarias Portuguesas da Época Moderna: Problemas, resultados e tendências de investigação. Lusitânia Sacra, 2ª série, 7, 1995, p. 15-52.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550- 1775. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.

SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.

SALLES. Fritz Teixeira. As associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1963.

Daniel Precioso – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com período sanduíche em Universidade de Évora (Portugal); docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História (mestrado – stricto sensu) da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Morrinhos (PPGHIS / UEG-Morrinhos). E-mail: [email protected]

Monalisa Pavonne Oliveira. Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); docente na Universidade Federal de Roraima (UFRR).E-mail: [email protected]

PRECIOSO, Daniel; OLIVEIRA, Monalisa Pavonne. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.8, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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“Tiranias Ibero-Americanas”: institucionalização dos poderes, resistência social e seus agentes / Revista de História da UEG / 2019

Prefácio

Sabe-se da definição clássica de Max Weber [1] acerca do Estado Moderno como uma associação de dominação com caráter institucional que tratou, com êxito, de monopolizar num dado território a “violência física legítima” como meio de dominação. Assim podemos estabelecer, de partida, uma relação intrínseca e inextirpável entre Estado, poder e violência; violência, claro, “legitimada” pela legislação, por instituições de justiça e aparatos policiais – mecanismos de fundamentação deste monopólio estatal, entre outros, como o monopólio fiscal e o monopólio da guerra. É claro que estamos a falar em “tipos ideais”, já que tais atribuições estatais – forjadas não sem disputa ao longo de séculos – passaram ainda por longo processo de “governamentalização do Estado”[2], bem como presenciam ainda a concorrência ou mesmo simbiose com organismos paraestatais, como o crime organizado e o terrorismo, ademais do próprio terrorismo de Estado [3].

Acontece que o estabelecimento desta noção de “violência física legítima” foi acompanhada do desenvolvimento coetâneo da figura da violência iníqua, ilegal, ilegítima, condensada na construção do retrato do tirano e da tirania como o lugar da ruptura da legalidade do poder político – imagens antitéticas ao “bom governo” e que, como seu reverso fotográfico que se desejava afastar, tinham a função correlata de reforçar a legitimidade do que se considerava como a correta dominação política. De todo modo, o exercício tirânico do poder resultaria na transgressão das regras de um governo justo, no estabelecimento de um regime baseado na violência, no medo e no interesse privado do governante, acima do interesse público e do bem comum.

Ora, se levarmos em consideração a afirmação do historiador de Tyrannie et tyrannicide de l’Antiquité à nos jours (2001), Mario Turchetti, que reivindica a utilização atual do conceito de tirania – definindo-a como “um regime que viola os direitos humanos” [4] – seria mais interessante, da nossa perspectiva, avaliar as diversas formas de governo, bem como os governantes, consoante os graus de tirania potencial ou exercida. Ou seja, segundo análise do maior ou menor respeito aos direitos humanos [5] – tanto no que toca ao aspecto do “discurso / atos de fala” [6] quanto na implementação de programas governamentais. Assim, contornaríamos o debate milenar sobre “formas de governo e suas degenerações” bem como as armadilhas do pensamento dicotômico preocupado com classificações demasiado estanques. Não se trata neste texto, por conseguinte, de algo como democracias x tiranias (autoritarismos, ditaduras, totalitarismos, terrorismos?), mas sim de evidenciar os níveis variáveis de tirania que podem ser observados lá no que há de mais tangível, o exercício do poder. A própria previsão funcional da tirania naquilo que é a forma mais elaborada e translúcida do “Estado de exceção” – imerso no corpo constitucional das democracias contemporâneas desde a Revolução Francesa – sustenta tal compreensão [7].

Sem perder de vista as concepções acima enunciadas – e afim de demonstrar ainda a manutenção da operacionalidade e viabilidade dos conceitos antigos de tirania – propomos um pequeno exercício mental através de exemplos de “tirania clássica”, devidamente adaptados ao período atual.

Quando, em idos de 2017, o presente dossiê temático foi aprovado – visando publicação no primeiro semestre do corrente ano – muitos analistas políticos não vislumbraram que a Nova República testemunhasse uma rápida transição entre as duas figuras clássicas da tirania, tais quais foram conceituadas no pensamento Greco-romano [8], ou seja, por: 1) aquisição original ilícita, como “conquista” ou ”usurpação” ao 2) exercício cruel de um poder originariamente legal.

Que a “conquista do poder” veja-se realizada mediante violência física estrangeira e / ou através da articulação conspiracionista de um “Golpe de estado” – seja este via emprego de quaisquer tipos de “Forças Armadas” (“oficiais” ou “milícias paraestatais”) e / ou com o concurso das próprias “Instituições Civis” (Golpe civil-militar); sejam as mesmas instituições civis estruturando uma “judicialização da política” que leva a uma “espetacularização da Justiça” (tal como afirma o pesquisador Wanderley Guilherme dos Santos [9]); quer ainda protocolando todo tipo de “abusos” ou “jogo duro constitucional” [10] (cujo auge estaria no “Golpe branco / suave” ou “Golpe midiático-parlamentar”) – enfim, tudo isto são apontamentos detalhados do modus operandi utilizado em cada situação concreta. Assim, o antigo conceito de tirania por 1) aquisição original ilícita, como “conquista” ou ”usurpação”, permanece um conceito heurístico de filosofia política, cuja validade e relevância para os tempos atuais é flagrante.

Passemos àquela que era a preocupação central da filosofia política greco-romana, a clássica tirania por 2) exercício cruel de um poder originariamente legal. Ou, em sua forma mais atualizada, “um regime que viola os direitos humanos”.

Boa trilha para efetuar este tipo de análise é a utilização dos relatórios anuais sobre violações de direitos humanos – produzidos por organizações não-governamentais (ONG’s) como a Human Rights Watch (HRW) e a Anistia Internacional (AI). O recente relatório da AI (2017 / 2018) resumidamente afirma que:

A situação dos direitos humanos no Brasil foi examinada pela terceira vez de acordo com o processo de Revisão Periódica Universal da ONU. O Brasil recebeu 246 recomendações, entre outras: com relação aos direitos dos povos indígenas à terra; aos homicídios cometidos por policiais; à tortura e às condições degradantes nas prisões; e à proteção aos defensores de direitos humanos. (…) Entre essas medidas retrógradas, estavam propostas que reduziam para menos de 18 anos a idade em que crianças podem ser julgadas como adultos; alteravam ou revogavam o Estatuto do Desarmamento, facilitando o licenciamento e a compra de armas de fogo; restringiam o direito de manifestação pacífica e criminalizavam os protestos sociais; impunham a proibição absoluta do aborto, violando os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas; mudavam o processo de demarcação de terras e a exigência do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e das comunidades quilombolas; e diminuíam a proteção aos direitos trabalhistas e o acesso à previdência social. A Lei N 13.491 / 2017 [11], assinada pelo Presidente Temer em 13 de outubro, estabelecia que violações de direitos humanos, inclusive homicídio ou tentativa de homicídio, cometidas por militares contra civis seriam julgadas por tribunais militares. Esta lei viola o direito a um julgamento justo, uma vez que os tribunais militares no Brasil não oferecem garantia de independência judicial [12] (…) As Forças Armadas foram cada vez mais designadas a cumprir funções policiais e de manutenção da ordem pública (Anistia Internacional, Informe 2017 / 18, p.88-93).

O símbolo maior foi a Intervenção Federal no Rio de Janeiro [13], que ante a elevada taxa de violência cotidiana foi veículo de uma aposta conservadora na militarização da sociedade (com cobertura corporativa aos militares através da “justiça militar”), numa política punitivista e pautada no confronto policial. Por outro lado, as diminuições na demarcação de terras de minorias étnicas, a postura reacionária quanto ao aborto – via proposta de criminalização até do aborto em caso de estupro, hoje ainda legalizado – a desconfiguração dos direitos trabalhistas (Lei 13.467 / 2017 [14]) e dos direitos previdenciários (com a proposta de reforma da previdência [15]) configura um quadro geral de escalada na retirada de direitos sociais (parte integrante dos direitos humanos), bem como de reduzida participação política da sociedade em geral.

O relatório da HRW alerta ainda sobre os ataques e perigos à liberdade de expressão já demonstrados durante as eleições de 2018:

Mais de 140 repórteres foram intimidados, ameaçados e, em alguns casos, fisicamente agredidos durante a cobertura das eleições, concluiu a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Depois de vencer a eleição, Bolsonaro disse que cortaria verba publicitária para veículos de imprensa que se comportassem de forma “indigna”. Durante a campanha, juízes de tribunais eleitorais ordenaram que universidades ao redor do país reprimissem o que consideraram “propaganda eleitoral irregular”, incluindo um evento contra o fascismo e publicações “em defesa da democracia”. Em uma decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal derrubou essas restrições por violarem a liberdade de expressão. A decisão ocorreu em um cenário em que Bolsonaro e seus aliados buscavam aprovar um projeto de lei que proibiria professores de “promover” suas próprias opiniões nas salas de aula ou de usar os termos “gênero” ou “orientação sexual”, e determinaria que escolas dessem preferência a “valores de ordem familiar” na educação moral, sexual e religiosa [16]

Tal cenário de cerceamento das liberdades democráticas (como a liberdade de imprensa e de manifestação) e do pluralismo de ideias – direitos na Constituição Federal (CF) de 1988 – tem ponto nodal no campo pedagógico: bem simbolizado no projeto “Escola sem Partido”, que críticos mais corretamente designariam como “Escola sem Liberdade” ou “Escola de Partido Único”. [17]

Poderíamos ainda sublinhar o uso sistemático das Fake / Junkie News [18] ao longo da corrida presidencial. Um estudo encomendado pela ONG Avaaz apontou que 98,21% dos eleitores do candidato vitorioso em 2018 foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a eleição, e 89,77% acreditaram que os fatos eram verdadeiros [19]. A prática permanece, pois em 136 dias como presidente Bolsonaro deu 186 declarações falsas ou distorcidas, segundo checagem sistemática realizada pela “Aos Fatos” [20]. Mas não bastam Fake News, é preciso um terreno fértil para que as pessoas acreditem em determinadas coisas (“terraplanismo”, “Nazismo de esquerda”, “kit gay” [21] etc.) veiculadas pelas redes sociais.

Podemos dialogar com o historiador Luiz Edmundo de Souza Moraes. Ele descarta que crises políticas e econômicas gerem automaticamente um ambiente propício para a expansão de um discurso de extrema-direita, que recusa valores como igualdade e dignidade humana, a universalidade de tratamento, princípios da democracia liberal. Na verdade, nos últimos 30 anos é possível perceber o quanto o espaço público foi sendo paulatinamente ocupado por discursos e ideias extremistas como “os bandidos não devem ser tratados legalmente”, que “o assassinato é parte do bom trabalho policial”, ou de que “não há nenhum problema no fato de você sofrer algum tipo de violação de seus direitos individuais e direitos humanos” [22]. Assim, discursos de desrespeito e restrição aos Direitos Humanos no Brasil – sintetizados no conhecido slogan “Direitos Humanos para humanos direitos” [23] – não surgiram mas ganharam força pública na presente década, estruturando um imaginário receptivo para certas Fake News. Sobre os perigos de se acreditar numa realidade ficcional, salienta ainda o historiador estadunidense Timothy Snyder: “Renunciar à diferença entre o que se quer ouvir e o que de fato é verdadeiro é uma maneira de se submeter à tirania. Essa recusa à realidade pode parecer natural e agradável, mas o resultado é o seu fim como indivíduo (…)”[24].

Aproveitando-se da efeméride de 100 dias do governo atual, o início de abril foi ocasião de diversos balanços críticos no âmbito das propostas e das políticas governamentais em fase de implementação, que vieram a lume em vários jornais, revistas, observatórios [25]. Como exemplo e na qualidade de fiscalização judiciária de atos administrativos e decretos executivos, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) [26], entre várias medidas, ressalta que:

O afrouxamento das hipóteses de registro, posse e comercialização de armas de fogo no Brasil – estabelecido pelo governo federal – é ilegal e inconstitucional (…) compromete a política de segurança pública no Brasil – um direito fundamental de todas as pessoas, especialmente no tocante à vida (…). A decisão do governo federal de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar” a atuação de organizações da sociedade civil no Brasil também foi considerada inconstitucional (…) a PFDC destaca que a medida viola princípios da legalidade, além de impactar no controle social e no combate à corrupção (…) Em ação coordenada que reuniu Procuradorias da República em pelo menos 18 estados e o Distrito Federal, o Ministério Público Federal recomendou a unidades militares em todo o país que se abstivessem de promover ou tomar parte de qualquer manifestação pública, em ambiente militar ou fardado, em comemoração ou homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar de 31 de março de 1964. A medida foi adotada após a Presidência da República ter recomendado ao Ministério da Defesa para que fosse comemorado o aniversário de 55 anos do golpe (…) (Informe PFDC 2019 em 100 dias: p.6-7).

No caso da “saudade da ditadura” [27], argumenta Moraes que se trata do “fato de que durante 30 anos pouco se falou que a ditadura é um regime criminoso, pouco se falou da tortura e não [se] judicializou os torturadores” [28], ausências balizadas pela Lei de Anistia (L.A) de 1979 – que impediu o necessário trabalho de uma Justiça de Transição no Brasil – e são conhecidas as reclamações sobre a ativação da Comissão Nacional da Verdade (2011-2014) [29] e sobre tentativas de revisão da L.A [30].

Os direitos humanos foram ainda atingidos por enorme retrocesso com a Medida Provisória (MP) 870 [31]. O “Ministério de Direitos Humanos” passou a se chamar “Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos” e excluiu a população LGBTI de suas diretrizes, institucionalizando o preconceito [32]. Parece transparente que a MPV 870 contraria o artigo 3º, IV, da CF, que expressa, como objetivo republicano, a promoção do bem de todos – sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Corrobora essa ideia o artigo 5º da Carta pois “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, logo, ao excluir qualquer indivíduo de seu rol de atenção e direitos, contraria gravemente a Lei Maior do país. [33]

Empregamos aqui, em especial, a atualidade do conceito de tirania como um “regime que viola os direitos humanos”, não no sentido de um regime formal de governo, mas tendo como foco os discursos, as propostas e medidas governamentais – em suma, o exercício do poder. Observamos um recrudescimento do desrespeito e violações aos direitos humanos- nas áreas previdenciária, trabalhista, educacional , sexual e reprodutiva, na segurança pública bem como na discriminação de minorias – no recorte temporal aqui proposto (2017-2019), demonstrando assim a relevância do conceito de tirania para a política brasileira atual, com exemplos do que pode ser percebido incluso na vida cotidiana. De todo modo, este esquema de interpretação permite avaliar quaisquer governos e governantes, afastando-se, ainda, das dicotomias classificatórias das “formas de governo e suas degenerações”, em prol de uma análise mais dinâmica do poder.

Assim, as considerações enunciadas até aqui são só um pequeno exercício analítico, mas fornecem uma grade de leitura e caminhos de interpretação, bem como um esboço de método para observar os graus variáveis de tirania na conquista e exercício do poder.

Tirania: Restituir seus usos heurísticos – ou um nome forte para tempos brutos [34].

Os paradigmas e os conflitos cíclicos da sobrevivência humana em sociedade estão declarados. A busca por compreensão sobre as formas de se interagir, de interseccionar diferenças e relacionar aproximações têm sido cada vez mais importante e difícil ao mesmo tempo no campo das ciências humanas e sociais. Lançar um dossiê temático sobre um tema tão polêmico e atual é com certeza um contributo que esperamos representar algum nível de reflexão e mensuração sobre a sociedade que nos cerca, em pensar que todos nós, sem exceções, somos seres políticos e sociais. Vivemos, comemos, respiramos política, quer queira quer não. Deixamos claramente o convite ao fomento de reflexão crítica não apenas aos acadêmicos e acadêmicas, mas para os que se interessam em explorar novos temas e ângulos sobre as tiranias e resistências sociais do mundo moderno aos nossos dias.

Esse pertinente tema que calhou tão exatamente com as relações sociopolíticas que enfrentamos hoje no Brasil não seria possível sem a abertura da Revista de História da UEG, tampouco sem o total apoio, eficiência e atenção do coordenador editorial Léo Carrer Nogueira, que nos acompanhou com toda prestatividade ao longo destes meses. Agradecemos aos autores e autoras que se propuseram a adentrar neste desafio contribuindo com as mais diferentes pinceladas de objetos, visões, posições geográficas e temas que abarcaram desde a América Latina até os países Ibéricos em discussões com diferentes espaçamentos temporais, em cenários tão diversificados, porém, ao mesmo tempo conectados por similitudes: regimes autoritários e resistência social!

Buscamos agrupar os onze artigos apresentados neste dossiê por suas diferentes abordagens seja pela temática ou pelo período histórico em que se agregam. Abrimos este caderno temático partindo de discussões teóricas e conceituais sobre tirania no espaço / tempo moderno. Bruno Silva de Souza apresenta-nos um contributo importantíssimo com seu artigo sobre a reflexão dos processos de tirania ligados à razão do Estado no século XVII a partir de um viés político, buscando dialogar com a herança conceitual de certa leitura católica acerca de Nicolau Maquiavel. Já Walter Luiz de Andrade Neves guia-nos através dos “manifestos” e “papeis da restauração” como objetos para se compreender o golpe de Estado e alterações dinásticas nos seiscentos na Europa. Partindo desta temática, apresenta importantes conceitos para se compreender as problemáticas acerca da “tirania” e suas representações memoriais. No Brasil, o período moderno também passou por distintos processos não só de tirania, mas de exploração e imposição. Em seu artigo, Luiz Henrique Souza dos Santos discutirá as produções de discurso e das tomadas de posição e poder em torno de conceitos fundamentais – como a tirania-, à volta de figuras públicas na Bahia seiscentista. Por sua vez, Marcos Arthur Viana da Fonseca debate um importante movimento de uso dos conceitos e construções de argumento jurídico-político como forma de enfrentamento contra os governantes pernambucanos na segunda metade do século XVII.

Em um segundo bloco, navegando em território português contemporâneo, temos o artigo de Franco Santos Alves da Silva em um significativo questionamento sobre o caráter fascista de Oliveira Salazar durante a ditadura portuguesa, a partir do jornal Portugal Livre. Já com nuances de resistência artística e literária, Thales Reis Alecrim apresenta-nos a importante e interessante história das redes de sociabilidades subversivas no Porto durante o regime autoritário português, através do jornalista e poeta João Apolinário. Uma ruptura tão pouco discutida e conhecida no Brasil, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, é trazida a baila para este dossiê como um importante evento de mudanças socioeconômicas e políticas no Portugal contemporâneo, como mostra de resistência e poder popular frente a anos de um regime autoritário e fascista do Estado Novo português, discutido no artigo de Pamela Peres Cabreira. Partindo de uma análise comparativa entre as ditaduras em Portugal e Brasil, Tiago João José Alves discute e avalia de forma dinâmica o paralelismo entre os dois regimes e como as relações diplomáticas entre os dois países foram sui generis nas cooperações e decorrências políticas engendradas por esta relação.

Atravessando o Atlântico, a ditadura civil-militar-empresarial brasileira é discutida a partir de dois artigos que balizam instituição e resistência. Destarte, no início do golpe de 1964, Roberto Porto Castro traz uma intensa discussão sobre como se constituiu a mobilização da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil no Rio Grande, buscando traçar resistência e opressão no contexto do golpe. Ao analisar os parlamentares da Legislatura entre 1963 a 1966, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Guilherme Catto abre o debate deste grupo em oposição a Jango e ao Golpe de 1964, alinhando este grupo com a Doutrina de Segurança Nacional, trazendo para o viés da história política um amplo espectro do poder e das fissuras de uma democracia em capitalismo. Saltando para o México, apresentamos o artigo de Mariana Varandas Lazzari que discutirá o conceito de tirania em torno da democracia e legalidade em uma brutal relação de forças entre o Estado mexicano e as resistências formadas, resultando em uma institucionalização antipopular.

Gingando entre história política e história social, os temas intercruzam-se e compõem um dossiê que atravessa continentes e interpela relações de poder e de resistência. Esperamos, ao abrir este leque de discussões, que novos horizontes de expectativas surjam, que a história de hoje não seja deixada a passar para depois se discutir. Desejamos que este contributo seja frutífero em engendrar-se novas perspectivas e estudos críticos acerca da nossa visão crítica enquanto cientistas sociais.

Notas

1 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1979.

2 Como se sabe, Foucault havia realizado a história da governamentalização do Estado e da vida, a partir do chamado “poder pastoral”, que seria mais tarde vinculado à prática católica da confissão (o exame de si e o processo de subjetivação através do poder), e através das teorias da “razão de Estado”, até o aparecimento da “população” enquanto fenômeno e realidade nova no século XVIII, que o poder estatal tem por função gerir através de uma tecnologia da segurança da vida. Cf. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Martins Fontes, São Paulo: 2008.

3Sobre a política contemporânea enquanto gestão do terror (interno e externo) cf. MBEMBE, Achille. Necropolitica. Arte & Ensaios. Revista do ppgav / eba / UFRJ nº. 32, dezembro de 2016, p.122-151. Sobre a segurança como pedra de toque os programas governamentais, cf. ESPOSITO, Roberto. Biopolítica y filosofia. In: CAPPELLI, Guido & RAMOS, Antonio Gómez (Edição e introdução). Tiranía: aproximaciones a uma figura del poder. Madrid: Dykinson, 2008, pp. 255-265.

4 Cf. o capítulo de Mario Turchetti, intitulado “’Tiranía’ y ‘despotismo’: una distinción olvidada”. In: CAPPELI, Guido; RAMOS, Antonio Gómez. (ed.). Tiranía: aproximaciones a una figura del poder. Madrid, Editorial Dykinson, S. L., 2008. p. [17-58].

5 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Desde sua adoção, em 1948, a DUDH foi traduzida em mais de 500 idiomas – o documento mais traduzido do mundo – e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (e seu Protocolo Opcional), formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. Uma série de tratados internacionais e outros instrumentos adotados desde 1945 expandiram ainda o corpo do direito internacional dos direitos humanos. Eles incluem a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio(1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança(1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), entre outras. Disponível em: https: / / nacoesunidas.org / direitoshumanos / declaracao / e https: / / nacoesunidas.org / direitoshumanos / documentos. Acesso em maio 2019.

6 Estudar o discurso político implica estudar fatos históricos, pois faz parte desse enfoque pensar os discursos como ações – “atos de fala”, para usar o termo da filosofia da linguagem contemporânea derivada de Wittgenstein -, para reagir a fatos passados (geralmente ações humanas), modificar fatos presentes ou criar futuros. Cf. ARAÚJO, Cícero. Introdução In: POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, p.9.

7 “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptivo – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. (Tradução de Iraci D. Poleti). 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p.13.

8 Guido Cappelli e Antonio Gómez Ramos, na introdução que realizam ao conjunto de artigos organizado na recente obra coletiva Tiranía: Aproximaciones a una figura del poder, sublinham a presença constante da figura do tirano em toda teoria de poder desde as origens do pensamento político ocidental. É com Platão que será definida tipologicamente o tirano e a tirania em oposição à figura antitética do governante virtuoso – anteriormente rei e tirano eram imagens que se superpunham, como ressalta Guido Cappelli em La otra cara del poder. Virtud y legitimidad en el humanismo político (2008: 98). Será o filósofo das Ideias que identificará tirania com injustiça, infelicidade, escravidão e infração à lei, como salienta Francisco Lisi em Tiranía, justicia y felicidad en Aristóteles (2008: 81). São frutos do Seminário Internacional El poder y sus limites: figuras del tirano, que se deu em Madrid (junho de 2005), patrocinado pelo Instituto L. A. Sêneca, da Universidade Carlos III. O seminário abriu um pertinente debate sobre a viabilidade para a reflexão contemporânea da noção tradicional de tirania, cuja utilização atual ainda se advoga como instrumento de análise e classificação política, no que nosso texto vem à guisa de corroboração. CAPPELLI, Guido & RAMOS, Antonio Gómez (Edição e introdução). Tiranía: aproximaciones a uma figura del poder. Madrid: Dykinson, 2008. Digamos que esta antiga “confusão” entre rei e tirano oferece perspectivas mais profícuas a partir de uma concepção mais anarquista do poder do Estado.

9 Disponível em: https: / / jornalggn.com.br / justica / cardozo-falhou-diante-de-abusos-institucionais-dizcientista-politico / . Acesso em maio 2019.

10 Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade Harvard, lançou recentemente o livro Como as Democracias Morrem (Zahar), escrito em parceria com o colega de instituição Daniel Ziblatt. A tese central defendida pelos autores é que golpes de Estado clássicos, com uso de armas e fechamento do Congresso, já não são mais aplicados. As democracias, diz ele, morrem por ataques sutis e sistemáticos contra as instituições. O autor prefere falar em “Jogo duro constitucional”, isto é, usar as instituições como arma política contra o seu oponente, usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei. Cf. Steven Levitsky: Por que este professor de Harvard acredita que a democracia brasileira está em risco. Disponível em: https: / / www.bbc.com / portuguese / brasil-45829323. Acesso: março de 2019. O livro é mais detalhado no que toca à política institucional norte americana.

11 Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / _ato2015-2018 / 2017 / lei / l13491.htm . Acesso em: maio de 2019.

12 “Artigo X: Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele” (DUDH – UNIC / RIO / 005, janeiro 2009. DPI / 876: p.7)

13 A decisão foi instituída por meio do Decreto n.º 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, outorgado pelo Presidente da República. Foi nomeado como interventor o general de exército Walter Souza Braga Netto. A Intervenção durou até 31 / 12 / 2018.

14 Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / _ato2015-2018 / 2017 / lei / l13467.htm. Acesso em: maio de 2019.

15 PEC 287 / 2016. Disponível em: https: / / www.camara.leg.br / proposicoesWeb / fichadetramitacao?idProposicao=2119881 . Acesso em: maio de 2019. Em continuidade e aprofundamento está a proposta do governo atual. Cf. Disponível em: http: / / download.uol.com.br / files / 2019 / 02 / 2265192701_pec-da-reforma-da-previdencia-bolsonaro.pdf . Acesso em maio de 2019.

16 Jair Bolsonaro, um membro do Congresso Nacional que endossou a prática de tortura e outros abusos, e fez declarações abertamente racistas, homofóbicas e misóginas, venceu a eleição presidencial em outubro. Cf. Disponível em: https: / / www.hrw.org / pt / world-report / 2019 / country-chapters / 326447 . Acesso em: maio de 2019.

17 Disponível em: https: / / profscontraoesp.org / bibliografia-referencias-academicas / . Acesso em: maio de 2019.

18 O problema se torna ainda maior pela prática de as notícias falsas trazerem elementos passíveis de verdade ou com ela mesclados / deturpados, quando seria mais preciso intitulá-las Junkie News.

19 Ainda de acordo com dados da pesquisa, 93,1% dos eleitores de Bolsonaro entrevistados viram “notícias” sobre fraudes nas urnas eletrônicas e 74% afirmaram que acreditaram nelas. A pesquisa, realizada pela IDEA Big Data de 26 a 29 de outubro com 1.491 pessoas no país, analisou Facebook e Twitter. Cf. Disponível em: https: / / www.valor.com.br / politica / 5965577 / estudo-diz-que-90-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-emfake-news . Acesso em: maio de 2019. A Folha de São Paulo revelou que empresas contrataram disparos massivos de mensagens pelo aplicativo WhatsApp contra o Partido dos Trabalhadores, em contratos que chegavam a 12 milhões de reais. Cf. Disponível em: https: / / apublica.org / 2018 / 10 / grupos-pro-bolsonaro-nowhatsapp-orquestram-fake-news-e-ataques-pessoais-na-internet-diz-pesquisa / . Acesso em: maio de 2019. Cf. Disponível em: https: / / www1.folha.uol.com.br / poder / 2018 / 10 / empresarios-bancam-campanha-contra-opt-pelo-whatsapp.shtml. Acesso em: maio de 2019.

20 A organização deste agregador de declarações parte de uma ideia concebida originalmente pelo Fact Checker, a tradicional coluna de checagem do jornal americano Washington Post. Tal como lá fiscalizam Donald Trump, esta base agrega todas as declarações de Bolsonaro feitas a partir do dia de sua posse como presidente. As checagens são feitas pela equipe do Aos Fatos semanalmente. Disponível em: https: / / aosfatos.org / todasas-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro /  . Acesso em e atualizado: maior de 2019.

21 O estudo também revelou que 85,2% dos eleitores do Bolsonaro entrevistados leram a notícia que Fernando Haddad implementou o “kit gay” e 83,7% acreditaram na história. Cf. Disponível em: https: / / www.valor.com.br / politica / 5965577 / estudo-diz-que-90-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-emfake-news. Acesso em: maio de 2019

22 O especialista foi convidado a proferir uma palestra no âmbito do colóquio internacional “Que direita tomou o poder no Brasil?”, organizado na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais. Com o tema Entre o visível e o invisível: a afirmação lenta e certa da extrema-direita no Brasil Contemporâneo, o historiador falou para estudantes e pesquisadores que procuram entender o atual momento político e social do país. Cf. Disponível em: http: / / br.rfi.fr / brasil / 20170602-ideias-da-extrema-direita-circulam-livremente-no-brasil-diz-historiadorluis-edmundo . Acesso em: maio de 2019.

23 Disponível em: https: / / www.em.com.br / app / noticia / politica / 2018 / 11 / 01 / interna_politica,1002158 / generalheleno-defende-direitos-humanos-para-humanos-direitos.shtml . Acesso em: maio de 2019. Ora, “Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros”. Cf. Disponível em: https: / / nacoesunidas.org / direitoshumanos / . Acesso em: maio de 2019.

24 É sabido que “o estilo fascista baseia-se na repetição interminável destinada a tornar o ficcional plausível e a conduta criminosa desejável (…)”. Atualmente alguns sublinham a novidade da “pós-verdade”, pensando que o desprezo pelos fatos cotidianos e a construção de realidades alternativas sejam algo “pós-moderno”. Contudo, uma releitura atenta de 1984 de George Orwell dissiparia facilmente esta crença. “Os fascistas desprezavam as pequenas verdades da experiência cotidiana, amavam palavras de ordem que ressoavam como uma nova religião e preferiam mitos de criação à história ou ao jornalismo. Usavam os novos meios de comunicação, representados na época pelo rádio, para criar uma propaganda que apelasse aos sentimentos antes que as pessoas tivessem tempo para pensar E hoje, como naquela época, muitas pessoas confundiram a fé num líder cheio de enormes defeitos com a verdade sobre o mundo em que todos vivemos. A pós-verdade é o pré-fascismo” SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania: Vinte Lições do Século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Tradução de Donaldson M. Garschagen. (p. 32-33). Disponível em ebook em http: / / dagobah.com.br / wp-content / uploads / 2019 / 01 / Snyder-Timothy.-Sobre-a-Tirania.pdf.

25 Conferir as publicações de El País, O Globo, Carta Capital, Estado de São Paulo, Le monde diplomatique, Folha de São Paulo, Observatório da Democracia e Observatório judaico dos direitos humanos, entre tantos outros.

26 A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) nasce do compromisso constitucional do Ministério Público de proteger e promover direitos individuais indisponíveis, coletivos e difusos, desempenhando papel de ombudsman nacional. Nesses cem primeiros dias de 2019, a PFDC se manteve atenta à defesa de garantias fundamentais, em um trabalho que envolveu a articulação com movimentos sociais e organismos internacionais, o monitoramento de políticas públicas, a incidência no Judiciário, além da interlocução com o Congresso Nacional. A diretriz foi de permanente vigilância. Ver Informe PFDC 2019 em 100 dias.

27 Sublinhamos aqui a recente tentativa de “revisionismo” ou “negacionismo” histórico acerca do período de exceção de 1964-1985, assim como de rejeição da Constituição Federal de 1988, presente no “documentário” “1964: Entre Armas e Livros”. Cf. Disponível em: https: / / gauchazh.clicrbs.com.br / politica / noticia / 2019 / 03 / bolsonaro-e-militares-tentam-reescrever-historiasobre-1964-cjtuq47o601rf01llaovmi7mu.html e https: / / www.cartacapital.com.br / opiniao / o-golpe-de-1964-ea-reescrita-da-historia-do-brasil /  . Acesso em: maio de 2019.

28 Disponível em: http: / / br.rfi.fr / brasil / 20170602-ideias-da-extrema-direita-circulam-livremente-no-brasil-dizhistoriador-luis-edmundo . Acesso em: maio de 2019.

29 Disponível em: http: / / cnv.memoriasreveladas.gov.br /  . Acesso em: maio de 2019.

30 Disponível em: https: / / brasil.elpais.com / brasil / 2014 / 04 / 17 / politica / 1397764903_857222.html . Acesso em: maio de 2019.

31 Disponível em: https: / / www.congressonacional.leg.br / materias / medidas-provisorias / – / mpv / 135064 . Acesso em: maio de 2019.

32 “Artigo II, 1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (DUDH – UNIC / RIO / 005, janeiro 2009. DPI / 876, p.5)

33 Disponível em: https: / / www.observatoriodademocracia.org.br / 2019 / 04 / 10 / relatorio-sobre-governobolsonaro-100-dias / . Acesso em: maio de 2019.

34 Sobre o direito de resistência e o tiranicídio: o historiador Mário Turchetti ressalta que tiranicídio, num sentido mais lato, quer dizer acabar com a tirania, o que não significa necessariamente assassinar o tirano, podendo resultar, por exemplo, no seu exílio, que foi historicamente a primeira forma romana de tiranicídio. O primeiro Brutus, Lucius Iunius, condenou ao exílio a Tarquino, O Soberbo. Foi o segundo Brutus, o mais célebre, Marcos Iunius, que ficou famoso ao ser um dos assassinos de Júlio César, cometendo um tiranicídio por meio do homicídio do tirano. Assim, e adequada aos tempos atuais, a doutrina do tiranicídio podia se basear em diferentes direitos de defesa, como o de legítima defesa, de defesa dos inocentes, da pátria, e poderia redundar em deposição, exílio e, no caso mais extremo, no assassinato ou condenação à morte do tirano. TURCHETTI, Mario. ¿Por qué nos obstinamos en confundir Despotismo y tiranía? Definamos el derecho de resistência. Revista de Estudios Políticos (nueva época), n. 137, Madrid, julio-septiembre (2007), pp. 67-111, p.109. É válido ter-se em conta uma das considerações do preâmbulo da DUDH de 1948: “Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”. (DUDH – UNIC / RIO / 005, janeiro 2009. DPI / 876, p.2).

Walter Luiz de Andrade Neves – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); professor da Prefeitura Municipal de Itaguaí (RJ). E-mail: [email protected]

Pamela Peres Cabreira – Doutoranda em História Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) – Portugal; bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


NEVES, Walter Luiz de Andrade; CABREIRA, Pamela Peres. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.8, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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África e Diáspora: 15 anos da Lei Federal 10.639/2003 e os desafios do campo de estudos no Brasil / Revista de História da UEG / 2018

O presente dossiê, escrito para Revista da UEG, a qual agradecemos a equipe editorial, se torna público em um dos momentos mais dilacerantes da História recente de nosso país. E nasce do desejo de mobilizar pessoas em torno de pessoas e seus escritos que buscam manter acesa a chama da esperança, do desejo de investir em produções e experiências na educação básica e superior, de modo a cambiar a cultura escolar e enfrentamento das práticas de opressão, inclusive aqueles que partilhamos por hábito, ou por dificuldades enfrentar o colonialismo que habita em nós mesmos.

Agradecemos a cada um dos autores e autoras, que atenderam ao nosso apelo e vemos neles, na diversidade de pontos de vista, evidências de mudanças que se processaram nos últimos 15 anos. Eles, igualmente, são expressão de diversos atores sociais, em meio a uma conjuntura política nem sempre favorável, de agências governamentais, universidades, setores da sociedade civil, em especial intelectuais, pesquisadores, militantes e professores, todos e todas têm contribuído para a transformação positiva de abordagens coloniais e colonizadas sobre o tema. Mas, como sabemos, há muitos desafios.

Lidamos com a urgência de superar uma historiografia generalizante ao abordar as experiências afrodescendentes, compreendendo-as enquanto lutas diárias de diferentes pessoas e agrupamentos organizados em busca por melhores condições de vida. Ansiamos indicar como essas populações ultrapassaram e / ou implodiram noções de condição cativa, enxergando-se a partir de seus próprios termos e perspectivas, mobilizando-se e reorganizando espaços próprios de atuação, sociabilidade e solidariedade.

A música, a dança, a performance, o movimento, constituíram formas de manutenção, reatualização e ressignificação cultural de Áfricas nas Américas, atentando para o fato de que o corpo constitui espaço de memória, encharcado de vivências e códigos culturais. Neste sentido, a partir de experiências corporais os estudos da diáspora africana podem avançar e alavancar universos outros, para além do corpo-trabalho-escravizado, tão enfatizado em diferentes estudos históricos, mas tão pouco conhecido em suas dimensões éticas, estéticas e culturais.

O presente dossiê procura evidenciar experiências de África e Diáspora em diferentes áreas do conhecimento preocupadas com a educação antirracista e o cumprimento da Lei Federal 10.639 / 03, que completou 15 anos de promulgação em 09 de janeiro de 2018. Incorporando narrativas de diferentes áreas do conhecimento, em especial Educação, História e Literatura, dentre outras atentas às críticas ao colonialismo e seus impactos na educação ainda nos dias atuais, este dossiê espera contribuir, por meio de debates recentes em torno de desafios do presente, quanto ao tema em questão.

Em A sala de aula após a Lei Federal 10.639 / 03: avanços, desafios e possibilidades, narrativa desenvolvida por Pauliana Maria de Jesus (UFPI) e Marcio Douglas de Carvalho e Silva (UFPI), apresenta um panorama da Lei Federal 10.639 / 03 e uma avaliação de práticas docentes realizadas em Campo Maior (PI). As autoras destacam, ainda, a importância do papel do poder público na implementação da Lei, em especial com a oferta de formação para professores, material didático, cursos e afins.

Na sequência, adentramos no artigo Narrativas sobre a Diáspora Africana em Sala de Aula: apontamentos sobre práticas docentes e possibilidades para o Ensino de História, de Carolina Corbellini Rovaris (UDESC), que discute práticas docentes em sala de aula, estratégias e metodologias para repensar conteúdos e temas abordados em explicações e atividades desenvolvidas com os alunos sobre a temática. A partir de narrativas de homens e mulheres de origem africana, a autora sugere possibilidades de abordagem no ensino de História.

O terceiro trabalho intitula-se O que você sabe sobre a África? Um estudo de caso de uma escola da rede pública do Distrito Federal, da autora Júlia Schnorr. O estudo aponta que estudantes e professores têm interesse na História da África, contudo, a formação docente existente e a formação docente ofertada antes da Lei, não produzem instrumentalização suficiente para abordagem da temática, o que resulta ainda numa visão colonizadora da África e do africano na formação do Brasil.

Carina Santiago dos Santos, em Os 15 anos da Lei 10.639 / 03: reflexões sobre a Rede Municipal de Florianópolis, análise as “configurações sociais que permeiam as unidades educativas e a importância de debater sobre o ensino de História no ambiente escolar, entendendo o percurso histórico da disciplina”, apontando avanços e desafios no fazer cotidiano para que a legislação seja efetivada.

A implementação da Lei 10.639 / 2003 na formação inicial de professores de História: uma análise de projetos políticos pedagógicos de universidades públicas mineiras, de Mônica Maria Texeira Amorim, Samira de Alkimim Bastos Miranda e Raimara Gonçalves Pereira, consiste em texto analítico sobre os Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) de universidades públicas que ofertam o curso de licenciatura em História no estado de Minas Gerais. O estudo tomou por base os dados disponíveis no “sistema INEP-DATA do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e as matrizes curriculares disponíveis nas páginas oficiais dos cursos de licenciatura em História de 09 das 11 universidades públicas mineiras que ofertam tal licenciatura”.

A autora Laura Luiza Pagliari Cruz, no artigo A história africana nos livros didáticos do Ensino Fundamental de Montividiu-GO, destaca como a africana é retratada nos livros didáticos do 6º ano de 2015, na única escola urbana da rede municipal de ensino fundamental de Montividiu-GO. No entendimento de Cruz, “embora as obras estejam de acordo com a Lei 10.639 / 03, a história africana tem pouco destaque, aparecendo fragmentada e desconexa da história eurocêntrica que norteia o material didático”.

Em se tratando de distintas temáticas que compõem as abordagens em sala de aula, Camila do Socorro Aranha dos Reis, Edvandro Luise Sombrio de Souza e André Vinícius Gomes da Silva trazem à tona o texto Estandartes para os orixás: mitologia iorubá nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Na produção, os autores enfatizam uma proposta pedagógica desenvolvida sobre a mitologia iorubá, na disciplina de Artes Visuais, com os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental, em uma escola da zona norte do Rio de Janeiro. “Aliados aos estudos teóricos, temos como resultado plástico a produção de estandartes com referência aos orixás pertencentes ao culto do Candomblé de Ketu”. O trabalho procurou “questionar hierarquias sustentadas pelo campo da arte, na qual alguns objetos são classificados como ‘artísticos’, enquanto outros são relegados a categorias marginais”.

Luís Ernesto Barnabé e Ruhama Sabião, em Entre História e Literatura: reflexões acerca do uso do romance “a flecha de deus”, buscam refletir acerca da possibilidade do uso do romance histórico “A Flecha de Deus”, do escritor Chinua Achebe. Com narrativa que envolve “pontos de vista de europeus e africanos acerca do imperialismo europeu do século XIX, o romance também oferece ricas informações a respeito das relações sociais entre famílias, o funcionamento das estruturas econômicas e religiosas antes e durante a chegada dos europeus”. Esse romance possibilita abordagens interdisciplinares para efetivação da Lei Federal nº10.639 / 03.

No artigo Caminhos identitários: contribuições de Kabengele Munanga na construção da identidade negra positiva, Quecia Silva Damascena e Eduardo Oliveira Miranda elucidam o papel das obras Negritude: usos e sentidos (1986), Superando o racismo na escola (2005) e Uma Abordagem Conceitual das Noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia (2004), de Kabengele Munanga. Apontam que as reflexões proporcionadas nessas obras ressignificaram a construção das identidades docentes, impactando positivamente sobre as “possibilidades culturais dispostas no chão da escola”.

A presença negra na história do Paraná: a memória entre o esquecimento e a lembrança, de Delton Aparecido Felipe discute a negação da memória negra no Paraná enquanto projeto ideológico de construção baseada em uma política de branqueamento vigente no final do século XIX e início do XX no Brasil. “O paranismo foi uma das estratégias utilizadas para alicerçar uma identidade paranaense a partir dos imigrantes europeus que chegaram no estado na segunda metade do século XIX”. Conforme Felipe, essa gestão da memória, com papel do governo e da literatura especializada, tentou apagar a presença negra da história oficial do Paraná.

Em nosso penúltimo texto do dossiê, Eval Cruz, no artigo intitulado Diáspora e conexões do Atlântico: histórias, identidades e resistências africanas em Laranjeiras / SE, salienta diferenças presentes entre as muitas variedades de grupos religiosos de matriz africanas presentes no país. Seu texto aponta também que a “diáspora estendeu a cultura africana a vários povos, levando-os a um mundo totalmente desconhecido daquele em que estavam acostumados; todavia, mesmo com os traumas provocados pela travessia atlântica, sua cultura religiosa foi preservada e cuidadosamente ressignificada para que pudesse florescer no novo habitat”.

Fechando a seção de artigos do dossiê, Línguas africanas e a pesquisa em História da África a partir do Brasil: um desafio em aberto, de Felipe Barradas Correia Castro Bastos, evidencia teórica e metodologicamente “a pertinência do treinamento linguístico para ressaltar a premência da implantação de cursos de línguas africanas em universidades brasileiras”. O trabalho articulou aspectos do interesse de instituições e indivíduos ocidentais na apreensão de línguas africanas, em particular a língua suaíli.

Na seção de traduções, Pablo Biondi, em PESQUISAS SOBRE UM MODO DE PRODUÇÃO AFRICANO de Catherine COQUERY-VIDROVITCH, apresenta um texto importante e pouco conhecido em português, a respeito das relações de organização da produção e hierarquias, enfatizando as relações sociais em sociedades africanas que não se “encaixam” na denominação de “classes”.

Paulino de Jesus Francisco Cardoso – Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); docente da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected]

Karla Leandro Rascke – Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA); pesquisadora associada ao NEAB-UDESC e ao CECAFROPUC / SP. E-mail: [email protected]


CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.7, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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“As gentes no Atlântico”: biografias e histórias conectadas (séculos XVII a XIX) / Revista de História da UEG / 2018

Lançada em 2013, a coletêna The Sea: Thalassography and Historiography (2013), organizada por Peter Miller, numa perspectiva ampla e metodológica, tenta compreender exatamente o desafio que lançamos aqui para os autores deste dossiê da Revista de História da UEG, a qual agradecemos a equipe de editores: em que medida os mares e oceanos podem ser tomados como espaço de questionamento historiográfico e mesmo da definição de novos conceitos. Com um posfácio de Sanjay Subrahmanyan, autor de Explorations in Connected History (2011), a coletânea não somente apresenta um conjunto de artigos com estudos de caso sobre o tema como sugere o conceito de thalassography, como um campo de estudos dentro da área.

Subrahmanyan também é autor do ensaio Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia (1997), que lançou uma profunda discussão no sentido das limitações impostas por uma história nacional, encapsulada. Sugere em uma ampla e reconhecida obra, dentre outras coisas, uma maior atenção a esses fios que conectam o globo apresentando, também, ensaios de biografias de sujeitos envolvidos no processo de expansão e exploração do império português na Asia.

Essas pesquisas também podem ser inscritas no que se configurou chamar história do Atlântico. Indiscutivelmente, nas últimas três décadas, esse campo de reflexão vem desenhando um importante espaço de trabalho, não somente na História, mas nas demais ciências sociais e seus domínios; o crescente número de programas de pós-graduação, no Brasil e no exterior, que incorporam o termo às suas propostas de trabalho e pesquisa é destacável. Distante de leituras que privilegiavam centros e periferias como centros únicos de poder, leituras globais, conectadas, que tomam o Atlântico, o Índico ou o Báltico como centro de dinâmicas individuais e coletivas têm-se popularizado entre investigadores de todos os tempos históricos, tendo em vista relações transnacionais, transimperiais e multiculturais.

A perspectiva aqui lançada, no entanto, vale-se de experiências pessoais, coletivas e institucionais no sentido de compreender, no curto tempo de uma vida, como trajetórias de personagens pouco conhecidos podem e devem ser objetos de estudos dentro de um espaço geográfico e social tão amplo e múltiplo como o Atlântico. Essas “vidas atlânticas”, que Mark Meuwese (2014) descreve como profundamente envolvidas e marcadas pelo desenvolver de um capitalismo mercante a partir do Seiscentos, não podem ser restringidas a figuras da alta burocracia, exploradores ou mercadores. Um dos resultados desses de questionamentos de Meuwese pode ser consultado na coletânea Atlantic Biographies: Individuals and Peoples in the Atlantic World, editado por ele e por Jeffrey A. Fortin (2014) que nos serve aqui de inspiração e contraponto.

Os cinco artigos que aqui apresentamos à comunidade académica leitora da Revista de História da UEG, cujos autores agradecemos pelo desafio aceito, se aproximam não somente no vocabulário empregado – conexões atlânticas, atlântico sul, movimentações pelo atlântico, bordas e fios pelo espaço desuniforme de um oceano. Esta entidade, geográfica por natureza, mas social nas suas produções de sentido, não é compreendida nos estudos aqui publicados como espaço vazio ou apenas como um obstáculo aos objetivos dos sujeitos ou grupos estudados: o Atlântico é, antes de tudo, um passivo cercado, senão imerso, em dinâmicas; estas são resultado da confluência entre o que se pensou sobre ele e das experiências (literárias, políticas, religiosas) registradas nas tentativas de sua exploração e domínio. A este respeito, a título de exemplo, o trabalho biográfico sobre Matthew Fontaine Maury (1806-1873) assinado por Chester G. Hearn (2002), questiona não somente as movimentações e estudos do americano no Oitocentos no sentido de mapeamento das correntes marítimas e de ventos, mas dos usos desses conhecimentos para a constituição de circuitos de circulação mais rápidos e com menos perdas de embarcações e pessoas, aspecto constantemente ignorado em estudos sobre o Atlântico.

Essas e outras experiências são apresentadas aqui pelos autores por meio de estudos biográficos. Estes são, portanto, uma dimensão capaz de superar as ilusões e os problemas inerentes ao campo de trabalho, seja pela relação entre estruturas e agentes ou pelo cuidado em evitar a supervalorização de trajetórias e biografias, em amplas dimensões comparativas e que estabeleçam conexões.

Nesse sentido, os artigos presentes neste dossiê estão organizados com uma preocupação propriamente cronológica, não por uma sequência temporal, mas pelas próximidades dos contextos históricos dos seu objetos de análises. Helidacy M. M. Corrêa apresenta no estudo Gaspar de Sousa e o Maranhão “Ibérico”: Impactos da política filipina no norte do Brasil uma espécie de ponto de partida oportuno para este número especial. Ao se perguntar sobre os impactos das políticas filipinas no processo de conquista e ocupação no norte do Brasil, tema que há décadas vem produzindo importantes obras nas historiografias brasileira e portuguesa, onde o contexto do Maranhão “Ibérico”, conforme destaca a autora, tem pouca visibilidade.

Ainda dentro deste cenário do Maranhão colonial, o artigo intitulado Conexões Atlânticas: famílias de cristãos-novos no Maranhão colonial e suas redes de sociabilidades, escrito por Eloy Barbosa de Abreu, analisa, pelo viéis biográfico, a formação de redes sociais entre indivíduos comestigma de cristão-novo, a partir da imigração de casais oriundos de Portugal. A suposta condição de cristão-novo de Gregório de Andrade da Fonseca fez dele um indivíduo forjado pela sociedade que lhe foi contemporânea.

No estudo Ignacio António da Silva Lisboa: um português entre Lisboa e São Luís nas primeiras décadas do Oitocentos, desenvolvido por Marcelo Cheche Galves, o sujeito aqui é investigado pelos rastros que deixou pela documentação preservada e demonstra como o personagem se movimentava entre as tensões geradas por polos políticos divergentes em lados oposto do Atlântico.

Do mesmo modo, Luisa M. S. Cutrim em Negócios além-mar: a Casa comercial de António José Meirelles nas bordas do Atlântico (c. 1820 – c. 1840), vai de um personagem pouco conhecido apresentado no texto anterior, ignorado pela historiografia até o momento, para um negociante de grande trato. António José Meirelles, como o estudo apresenta, tinha sobre si um variado leque de fios que conectavam esse oceano e seus pontos de contato.

O dossiê é finalizado por Romário Sampaio Basílio com o artigo A Castro e a morte da memória: Joaquim José Sabino, poeta e burocrata em circulação pelo Atlântico (c. 1790 – c. 1840). Da burocracia cotidiana aos usos de versos e memórias, o sujeito biografado circulou pelo Atlântico em busca de reconhecimento e cargos, tendo chegado as mais altas instâncias administrativas.

Finalizamos esta apresentação ressaltando que todos os escritos expressos neste dossiê convergem para um ponto: a análise de trajetórias de sujeitos dentro de um cenário Atlântico, a partir de questões gerais sobre temáticas diversas. Portanto, para além do estilo biográfico indiciados nos textos apresentados, há a preocupação em contriubuir com o estado da arte dos estudos sobre o Mundo Atlântico.

Eloy Barbosa de Abreu – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); docente da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail: [email protected]

Romário Sampaio Basílio Doutorando em Estudos sobre a Globalização pela Universidade Nova de Lisboa (NOVA). E-mail: [email protected]


ABREU, Eloy Barbosa de; BASÍLIO, Romário Sampaio. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.7, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Culturas do território e territórios da cultura / Revista de História da UEG / 2015

O dossiê “Culturas do território e territórios da cultura” apresenta artigos sobre a relação dessas dimensões nas esferas social, simbólica e espacial, emergindo configurações socioespaciais diversas que alguns autores acreditam ser melhor compreendidas através da categoria territorialidade1.

A relação território e literatura é tratada nos dois primeiros artigos do dossiê. No artigo “Macunaíma e o caráter nacional brasileiro: a cultura desgeograficada”, Martha Victor Vieira e Jean Carlos Rodrigues discutem os aspectos geo-históricos na narrativa literária andradeana que, por meio de uma linguagem alegórica, retrata as relações tradição e modernidade; rural e urbano; realidade e ficção; memória e esquecimento, conferindo à cultura um aspecto “desgeograficado”, que resultou em uma importante contribuição intelectual para se pensar a formação do caráter nacional brasileiro. Na sequência, o artigo “Território da palavra poética: que lugar constrói a poesia nas lutas pela posse da terra no Brasil?”, Luiza Helena Oliveira da Silva e Márcio Araújo de Melo analisam o livro Raízes: Memorial dos Mártires da Terra, de Jelson Oliveira. Ao discutirem a problemática da poesia engajada, relativa aos problemas da posse da terra e dos assassinatos no campo no país, os autores abordam a proposta poética e política do livro, considerando a possibilidade de reinstaurar pela via do estético.

Os artigos “O sudoeste de Goiás como território de fronteira: a colonização do Certão do Gentio Cayapó (1830-1900)” de Rafael Alves Pinto Júnior e “Narrando com cabras, a importância dos ancestrais no cotidiano em KwaZulu-Natal (África do Sul)” de Maíra Cavalcanti Vale tratam das disputas territoriais em situação de colonização. O primeiro trabalho analisa a ocupação por fazendeiros mineiros e paulistas da região sudoeste de Goiás a partir de 1830, constituindo um cenário de violências renitentes que durou até, pelo menos, 1900, com a extinção dos indígenas e o controle desse território pelos eurodescendentes. Maíra Cavalcanti Vale a partir de sua experiência de campo de três meses com mulheres falantes de isiZulu e moradoras da zona rural de KwaZuluNatal, na África do Sul, trouxe uma reflexão acerca do regime do apartheid através das estórias contadas por essas mulheres.

Dois exemplos da relação discurso, constituição e disputa territorial são apresentados nos trabalhos “O processo socioterritorial do extremo Norte Tocantinense: aproximações teóricas” de Elias da Silva e Elzimar Pereira Nascimento Ferraz e “Cartografias do passado, arqueologias do presente: as ideias de Percy Harrison Fawcett sobre a Amazônia” de Dernival Venâncio Ramos Júnior. No primeiro exemplo é abordada a constituição da região conhecida como Bico do Papagaio, sob a perspectiva da cultura e identidade como elementos importantes da formação socioterritorial aí levada a cabo. Por outro lado, no segundo exemplo é descrita e analisada as ideias de Percy Harrison Fawcett sobre a Amazônia, tratando de contextualizá-las historicamente, em sua série de representações sobre a região, ligadas ao Eldorado e outras territorialidade míticas, envolvidas elas em disputas territoriais e simbólicas pelos recursos amazônicos.

Na sequencia, três artigos discutem as diversas concepções de conflito e as historias da exploração dos recursos territoriais amazônicos. O artigo “‘Guardar é para tirar depois’: disputas territoriais e conceituais em uma unidade de conservação” de Nelissa Peralta e Deborah Lima destacam os paradigmas em voga na discussão sobre manejo da biodiversidade, refletindo sobre esta controvérsia entre agentes sociais que disputam sua ação sobre um território, com base em diferentes percepções da conservação. O estudo de caso sobre a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá ilustra, segundo as autoras, a micropolítica da conservação da biodiversidade em uma área disputada por três grupos de interesse que fazem alianças, negociam normas e formulam estratégias de governança do território, concluindo que as estratégias de conservação da biodiversidade devem levar em consideração as motivações econômicas e políticas dos agentes da conservação. Ainda no que diz respeito ao Estado do Amazonas, o artigo “Bionegócios e desenvolvimento alternativo no Estado do Amazonas” de Kleber Abreu Sousa e Giane Lourdes Alves de Souza Figueiredo pontuam as possibilidades de um modelo de desenvolvimento econômico alternativo através do aproveitamento de recursos da biodiversidade da região Amazônica. Segundo os autores, a falta de estudos sobre o potencial impacto na economia local de um modelo de desenvolvimento alternativo aliado à biodiversidade reforçam a necessidade de ampliar a discussão e reflexão sobre os aspectos relacionados aos bionegócios para uma orientação mais estratégica dos instrumentos públicos, com vistas no desenvolvimento de políticas efetivas de inovação.

Sobre a história do território goiano, trazemos duas importantes contribuições. A primeira delas é o artigo “Pium: garimpo e garimpeiros de cristal de rocha do Antigo Norte de Goiás (1940-1950)” de Ana Elisete Motter e Bianca de Oliveira Aragão, que, a partir de fontes literárias, apresentam historicamente o ciclo de extração de cristal de rocha, ocorrido no norte de Goiás, na década de 1940, tornando a região uma referência, durante a Segundo Guerra, nesse tipo de minério e sendo significada na memória local como momento fundador da cultura local. O segundo é o artigo “Periodização do território a partir da ação estatal: a capitalização do território goiano (1748-1988)” de Edgar da Silva Oliveira e Leandro Oliveira Lima, que trazem uma proposta de periodização do território goiano a partir das políticas governamentais que atuaram na região desde o período da mineração até os dias atuais.

Finalizando o dossiê, dois artigos abordam as noções de território e territorialidades nas regiões Norte e Nordeste do país. Fagner David da Silva no texto intitulado “A estrada de automóveis do Seridó e a constituição de uma nova mobilidade no território norte-rio-grandense (1914-1934)” reflete sobre a noção de progresso que imbuia as lideranças políticas e sociais da região e que levaram à construção das estradas de rodagens no interior do estado norte-rio-grandense, durante o início do século XX. Fechando o dossiê, Alexandre de Brito Alves analisa o trabalho de pesca e comercialização de caranguejos no interior do Pará, no artigo “É o jeito vender’: coletores, marreteiros e o trabalho no manguezal em Bacuriteua (Pará – Brasil, 1975- 2010)”. Os conflitos entre os que pescam (coletores) e os que vendem (marreteiros) o caranguejo-uçá nesta região é uma importante fonte para a reflexão sobre o trabalho nos territórios dos manguezais, ecossistema predominante desta região.

Os artigos apresentados atravessam vários pontos da relação cultura e território com a expectativa de fomentar essa discussão temática e aprimorar a nossa compreensão de como tal articulação, na contemporaneidade, reflete nas esferas social, simbólica e espacial. Esperamos que essas leituras agucem a produção científica de novos estudos e inspirem outras reflexões que tragam elementos motivadores para a discussão das culturas do território e dos territórios da cultura.

Nota

1. HAESBAERT, R. “Território e multiterritorialidade: um debate”. GEOgraphia. Vol. 9, nº 17 (2007) e Little, P. “Espaço e memória: estabelecendo o território”. Textos de história. N 4. Brasília: Editora da UnB, 1994, pp-06- 25.

Dernival Venâncio Ramos Júnior – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UNB); docente da Universidade Federal do Tocantins (UFT) E-mail: [email protected]

Plábio Marcos Martins Desiderio – Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (UNB); docente da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected]

Rosária Helena Ruiz Nakashima – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); docente da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected]


RAMOS JÚNIOR, Dernival Venâncio; DESIDERIO, Plábio Marcos Martins; NAKASHIMA, Rosária Helena Ruiz. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.4, n.2, ago / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]

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(Ab) Usos do Cinema em História / Revista de História da UEG / 2013

Prefácio: Alguns (ab) usos do cinema

Na sala escura, antes dos filmes que vemos na tranquilidade do nosso lar, são-nos apresentadas pequenas peças propagandísticas de outros filmes. Os trailers dilatam, prolongam e estimulam nosso desejo de assistir a mais filmes. Há, entretanto, uma dimensão da feitura do cinema que está além ou aquém da exibição do filme e só nos é possível acessá-la em casa ou nos cineclubes. É o que na língua inglesa se denomina making of (e já quase dispensa a tradução para o português, tamanha sua circulação entre nós). O making of é um recurso metalinguístico que registra e, algumas vezes, traz alguma reflexão sobre a execução de um filme.

É um remix entre trailer e making of a matéria do presente texto. Mas não só. Aqui, também, objetivamos apresentar um panorama de questões acerca dos (ab)usos do cinema na / pela história, enquanto área do conhecimento humano, partindo dos textos que integram esse dossiê (certamente, é isso uma justificativa prévia para uma “apresentação” tão extensa).

Atendendo a uma chamada pública divulgada há um semestre, alguns estudiosos acadêmicos lançaram-se à aventura criativa e responderam à provocação, submetendo suas reflexões ao público. O problema apresentado naquela oportunidade chamava esses estudiosos a refletirem sobre os (ab)usos do cinema em história. O recurso gráfico dos parênteses que delimitam o prefixo antes da palavra “usos” provoca certo movimento semântico. A palavra amplia-se em outra palavra possível, um significante a ampliar significados. Antes fixa, a palavra entra em movimento: duas coisas em uma.

Quaisquer usos podem se deslizar em abusos (e todo abuso não deixa de implicar um uso). “(Ab)Usos”, portanto, é uma palavra que se movimenta tal qual os fotogramas que, ao serem sequenciados acima de certa velocidade2, provocam a impressão do movimento, iludindo-nos. Esse fato técnico, mecânico e fisiológico paira por trás da complexa arte cinematográfica.

Portanto, por “(Ab)Usos do cinema em história” desejávamos, também, forçar a operação binária que hierarquiza (e cristaliza) a presença do cinema dentro das salas de aula ou das “oficinas históricas”. Afinal, todo uso é um abuso em potencial, como já dito. Por sua vez, todo abuso, por uma questão de ajuste, pode se transformar em um poderoso uso.

A expressividade do título também traz, para o primeiro plano da investigação, a prática, a vida, o fazer, o (ab) usar. É preciso não somente refletir sobre a prática, mas investigá-la como centro em torno ao qual se dá o processo de reflexão teórica. Assim, para enfrentar, desconstruir e propor, na chamada original, escrevemos:

O objetivo do dossiê é divulgar o resultado de pesquisas, reflexões, ensaios, notas de pesquisa e resenhas que problematizem os usos e abusos do cinema nas diversas dimensões do ofício histórico: no trato documental, na criação textual, na comunicação e no ensino / aprendizagem dos conhecimentos e saberes históricos. As relações entre a linguagem cinematográfica (em suas dimensões técnicas, artísticas, políticas, econômicas etc.) e o conhecimento histórico nem sempre são objeto de reflexão sistematizada. Possivelmente, as aulas de história constituem a situação em que melhor visualizamos o silenciamento sobre as demais dimensões da linguagem do cinema. A simples ênfase na narrativa / enredo / informação enunciada, em detrimento das demais dimensões, seria o principal “abuso” do cinema: o mais ordinário e, por isso, possivelmente, o mais forte. A dimensão textual (com suas especificidades de linguagem, comunicacionais, discursivas, ideológicas…) é quase sempre obliterada pelo “(ab)uso ilustrativo” do cinema3 .

Depois de um longo processo de reunião, avaliação e discussão, chegamos aos textos que constituem o presente dossiê4, cujo processo de organização, da gênese à publicação, também constitui um dado para ser analisado. As propostas submetidas atestaram uma prática muito forte quando nos colocamos diante do cinema (para além de simples espectador): a dificuldade em resistir à “impressão luminosa” sobre nossas retinas e a toda sequência de reações que ela provoca. O conteúdo enunciado em forma de luz ainda encanta nossa curiosidade e, talvez por isso, resistimos à valorização e à consideração de sua linguagem como constituinte / constituída do conteúdo. A simples análise e atenção dada ao conteúdo ainda é o elemento hegemônico nos estudos das estruturas expressivo-formais da matéria fílmica. Se assim o é nos textos acadêmicos, possivelmente, também o será nas aulas escolares. O conteúdo em primeiro lugar. A forma que lhe constitui, por sua vez, nem sempre interessa…

Por que isso acontece? Seria a linguagem cinematográfica mais complexa que qualquer outra linguagem, desmotivando seu enfrentamento? Certamente, não. É preciso romper com a dicotomia conteúdo / forma, como discute Rafael Borges, no texto A crítica da imagem eurocêntrica no ensino de história (2013), ancorando-se nas discussões de M. Bakhtin.

O (ab)uso conteudista precisa ser revisto, seja na produção ou na comunicação dos conhecimentos históricos. Há conteúdo para além das estruturas formais da linguagem cinematográfica? A análise do sentido fílmico não é possível fora de sua linguagem específica. Ao menos, não é possível dentro de uma compreensão complexa e substantiva do que venha a ser cinema. A simples análise de conteúdo desconsidera justamente o específico fílmico, isto é, o jogo complexo dos elementos que constituem sua especificidade de sua linguagem.

Nesse sentido, os usos tradicionais do cinema pela história (seja na produção desse conhecimento ou em sua comunicação) ainda constituem fetiches criados pela ilusão do conteúdo. Destarte, a crítica ao (ab)uso conteudista na abordagem do cinema passa por uma atitude de enfrentamento das estruturas da linguagem do cinema.

Por informar sobre esses elementos e seu funcionamento na realização dos filmes, é fundamental a contribuição da obra A linguagem secreta do cinema (2006), do criador cinematográfico francês Jean-Claude Carrière, resenhada no presente dossiê por Weverson Cardoso de Jesus.

Como sempre se ressalta nas obras que discutem os usos do cinema na sala de aula ou na produção do conhecimento histórico, o aluno / professor / investigador não precisa tornar-se um cineasta5. Mas é preciso o mínimo de conhecimento sobre as estruturas dessa linguagem. Senão, podemos desistir do seu uso em uma relação de ensino / aprendizagem. Senão, dificilmente, nós historiadores seremos lidos (e considerados) pelos que fazem cinema.

Quanto ao primeiro “senão”, destacamos o relato de um colega orientador de estágio de um curso de licenciatura. Num encontro de orientação, sua estagiária lhe confidenciou que teve muita dificuldade quando se propôs a usar um filme em certa aula preparada para uma turma de Educação de Jovens e Adultos. Depois de dizer que “passaria” um filme na aula, uma das alunas da escola-campo levantou-se com seus materiais e disse: “Professora, já que não vai ter aula, filme eu assisto em casa”. A estagiária ficou atônita e, a sala, esvaziada pela metade.

É fato. A simples exibição de filmes, como se seu conteúdo falasse por si, não é uma atitude de aprendizagem, muito menos de ensino. Infelizmente, a constante repetição dessa postura por parte dos professores criou a tradição segundo a qual o uso de filme “não é aula” ou uma “enrolação” que a substitui. A atitude da aluna supracitada, cansada depois da jornada diária de trabalho, é prova desse mau uso do cinema. Isso afeta, sobretudo, quem acredita no potencial do uso do cinema em sala de aula para o ensino / aprendizagem. Possivelmente, esse (ab)uso do cinema teria sido minimizado se, ao longo dos anos, o uso de filmes em aula tivesse, como condição mínima, valorizado os elementos expressivos do cinema. Afinal, dificilmente encontraríamos um aluno que não seja, mesmo eventualmente, um consumidor de filme.

Claro, “não devemos desconsiderar o efeito estético, emocional e argumentativo do discurso fílmico valorizando somente a dimensão técnica de sua linguagem”, argumentariam alguns. A linguagem cinematográfica por ela mesma, apartada do seu conteúdo, igualmente, não faria / faz o menor sentido para a criança, adolescente ou adulto que se encontra numa sala de aula, além de esterilizar a potência transformadora da sétima arte.

É preciso que cada um de nós tenha consciência da inter-relação entre forma e conteúdo, realidades intrínsecas imbricadas, para aprendermos a saborear a “maravilha” cinematográfica de forma autônoma e protagonista. Sair da condição de consumidor passivo precisa ser o objetivo maior de qualquer uso do cinema. E entender a relação conteúdo / forma, em cada especificidade discursiva, é a primeira atitude para resistir, reagir e transcender ao encanto que consome nossa autonomia diante de uma TV ou na sala escura de um cinema.

Portanto, na esperança de que o segundo “senão” seja rapidamente superado, convidamos o leitor a continuar conosco nas páginas seguintes, nas quais apresentamos algumas considerações sobre os textos que constituem o presente dossiê. De forma geral, os textos foram agrupados em duas grandes seções. A primeira trata dos (ab)usos do cinema na comunicação do conteúdo histórico, observados a partir do interior das salas de aula. A segunda reflete sobre os (ab)usos do cinema na produção do conhecimento histórico. Vejamos, então.

  1. O cinema na história, a história no cinema: (ab)usos de filmes na comunicação do conteúdo histórico

No artigo A crítica da imagem eurocêntrica no ensino de história (2013), Rafael Borges apresenta a importância dos conceitos bakhtinianos de dialogismo e hetoroglossia para um uso autônomo do cinema. A consequência imediata disso é o questionamento do (ab)uso dos filmes em sala de aula como apresentação objetiva da história enquanto processo (o que o autor chama de “uso acrítico” do cinema).

Apontando para uma atitude de descolonização das mentes e culturas, Rafael Borges inicia sua discussão problematizando a relação entre o cinema e o imperialismo cultural europeu. Para isso, toma por base a Crítica da imagem eurocêntrica, de Robert Stam e Ella Shohat (2006). Tal discussão trespassa o longo período, do qual as práticas colonizadoras europeias ainda hoje retiram sua força, em que foi forjado historicamente o “sujeito moderno”. O eurocentrismo não se limita ao fato de a Europa se ver como uma entidade geográfica mas, sobretudo, de se ver como o sujeito central da história da humanidade. Para entender seu funcionamento e força é fundamental o retorno ao processo de colonização da América. Foi a partir desse momento que, ao defrontar-se com o outro (americano), os europeus deixam seu lugar cultural periférico (em relação ao mundo muçulmano) para galgar à posição de senhores da cultura (universal e universalizante).

Contudo, como nos lembra Enrique Dussel, na obra 1492: O encobrimento do outro (1993), a construção da identidade europeia como centro do mundo – processo em que a pureza e a unidade foram os cosméticos que maquilaram discursivamente a face fragmentada e diversificada da Europa – resulta de um processo dialógico, em que a América foi a protagonista obnubilada, sem cachê e que não apareceu nos créditos finais – para (ab)usar aqui do léxico cinematográfico. E mais: o “papel” da América na constituição do eurocentrismo não foi somente a do Outro. Foi, sobretudo, a do Outro dominado. O argumento de Rafael Borges, retirado das reflexões de Dussel, bem poderia ser base para um roteiro de filme épico e “baseado em fatos reais”. Melhor: baseado em fatos históricos, pois já foi experimentado na pele por milhões de americanos, desde 1492.

Foi no processo “altamente centrípeto e homogeneizador” de conquista dos americanos, como diz Rafael Borges, que se deu o nascimento do sujeito moderno eurocêntrico. A Europa não se fez sozinha, inventou-se sobre (e às custas d)as vidas de milhões de indígenas americanos e, depois, de escravizados africanos.

Nessa altura da história contada por Rafael Borges, entra o estudo de Robert Stam (2000) a nos revelar os negativos ideológicos eurocêntricos das primeiras fitas cinematográficas, produzidas no final do século XIX, e que serão reproduzidas desde então. A repetição dessas imagens naturalizou paulatinamente a “superioridade do europeu e do branco, de uma forma geral, perante o resto do planeta”.

Aqui, deparamo-nos com um ponto fundamental quanto ao uso do cinema em sala de aula: o mediador precisa problematizar as representações eurocêntricas de forma que o espectador / aluno possa ter uma postura dialógica diante delas, posicionando-se de forma crítica, percebendo, de forma conscientemente controlada, que essas representações “são passíveis de ressignificação, rejeição e contestação variadas”, como escreve Rafael Borges (2013, p. 34). Entender o processo de produção do sentido é a primeira condição para superá-lo. Assim, o imaginário imagético monológico que retroalimenta as representações do colonizado (como pessoa selvagem, infantilizada, feminizada, virgem etc.) e do colonizador (o cientista, o pai, o penetrador) é desestabilizado, desnaturalizado. A postura dialógica do espectador frente ao discurso fílmico pode favorecer essa desconstrução. Nesse ponto, Rafael Borges retoma o (ab)uso do cinema pela história. É preciso

rejeitá-lo como apresentação mecânica do real e buscar, em casos de imagens eurocêntricas, estratégias que possam denunciar e contestar a representação ali engendrada, estratégias essas que a nosso ver, devem se pautar na percepção da natureza dialógica da linguagem (BORGES, 2013, p. 37).

Na segunda parte do texto de Borges, serão discutidas as ideias de dialogismo e heteroglossia. Ambos nasceram na tradição bakhtiniana e podem fundamentar uma metodologia que oriente o uso do cinema em sala de aula. Em que pese a discussão sobre a autoria bakhtiniana desses conceitos, a ideia de dialogismo propõe a compreensão da obra cultural tanto a partir da valorização do conteúdo quanto de sua forma. Nesse caminho, um filme, por mais realista que seja, como são apresentados aos alunos os documentários, por exemplo, não reflete a realidade. É, antes, uma refração e reflexão de outras esferas de sentido. Na criação cultural (no caso aqui observado, a audiovisual: artística ou não, documental ou ficcional, “histórica” ou não), não há separação entre “dentro e fora”, “conteúdo e forma”, “interior e exterior”, “texto e contexto”: essas dimensões se permeiam constantemente.

Assim, a análise fílmica não pode deter-se unicamente nas representações veiculadas (a poupa narrativa, o conteúdo, o enredo, a trama e os sentidos que o / a constituem) nem tampouco nos mecanismos da linguagem fílmica os quais dão matéria às representações por ela veiculadas. Apesar de que, como bem lembra Daniel Matos no texto Serial Killers e imaginários sociais (2013), citando Baczko (1985), muitas vezes, as representações dão origem e enquadram os acontecimentos.

Para refletir um pouco sobre o uso dos filmes em aulas de história, declinemos um pouco do texto de Rafael Borges para nos aproximar dos passos de Roland Barthes no seminal O discurso da história (2004), um pequeno, mas denso texto.

1.1. Os tempos da matéria

O professor de história, ao analisar o filme, precisa atentar-se tanto para o tempo da matéria enunciada quanto para o tempo da enunciação da matéria (BARTHES, 2004, p.163-180).

O tempo da matéria enunciada é, no interior do objeto fílmico, a forma como a história / enredo / narrativa é construída discursivamente por meio dos códigos específicos da linguagem cinematográfica. Nos filmes históricos, é “o passado” que (não podemos nunca nos esquecer) parece e quer se nos apresentar na tela. Precisamos, portanto, resistir a essa pretensão. Como nos informa Barthes, o passado nunca se apresenta por si só. A relação aí não é objetiva, apesar de a objetividade ser um argumento basilar para a pretensão científica da história.

O tempo de enunciação da matéria, por sua vez, é constituído pelo conjunto dos condicionantes da enunciação, inseridos em seu tempo histórico de produção, ou seja, suas estruturas de significação: temporais, sociais, econômicas, de classe, de gênero, de etnia, de região e quantas outras mais forem passíveis de detecção (e de construção).

Essa distinção de tempos pode ser acessada, nesse dossiê, em Bonnie e Clyde: um estudo do gênero de Gângster, texto de Tiago G. da Silva (2013). O filme a que se refere o artigo, dirigido por Arthur Penn, em 1967,

apesar de retratar os Estados Unidos na década de 1930, deve ser pensando como forma de estudar a sociedade norte-americana dos anos 1960, momento em que foi produzido, pois o discurso sobre o período histórico retratado na trama do filme é influenciado por uma série de questões referentes à realidade do tempo em que foi realizado […]. Ao se analisar a trama do filme e seus personagens, pode se perceber que há referência a um momento histórico que não é aquele que eles recuperam no longa-metragem (os anos 1930), mas sim aquele que existia na ocasião da produção da obra [os anos 1960] (SILVA, 2013, p. 120).

Em seu texto, Tiago Silva faz referência ao Motion Picture Production Office ou Código6. Estabelecido em 1930, mas efetivo somente a partir de 1934, o Código imputou a censura aos filmes estadunidenses. Ele obrigava a produção cinematográfica a respeitar certos valores morais e cristãos quanto ao trato da família, Igreja, sexo, violência, etc. Esse elemento exterior à produção cinematográfica acabou condicionando as representações e sentidos produzidos no interior dos filmes do período7. Ao analisarmos as obras cinematográficas produzidas nos EUA, de 1934 até o final da década de 1960, portanto, não podemos deixar de considerar os desdobramentos do código para a / na produção fílmica. Assim, fica claro que, se nos detivermos apenas no universo interior ao mundo diegético, não daremos conta de elementos que lhe são exteriores e que lhe influenciam sobremaneira. Aqui fica evidente a importância de, durante a análise fílmica, não separarmos as dimensões intrínsecas e extrínsecas, forma e conteúdo, textual e contextual.

Um risco que corremos em nossa análise dos elementos contextuais, ou seja, histórico-sociais da produção fílmica, é gastar todas as nossas energias e tempo nessa etapa, chegando exauridos à análise do próprio filme. Talvez isso seja resultado do procedimento analítico de se partir do todo para o particular. Muitas vezes, quando o autor “chega” ao filme, tem pouca energia para analisar os conteúdos, sentidos, representações existentes no filme. Na maioria das vezes, negligencia a linguagem dessa produção. O desafio na análise fílmica, portanto, é sempre fazer, paralelamente, o jogo de escalas: do texto para o contexto, do conteúdo para a forma e assim sucessivamente, percebendo e evidenciando suas interpenetrações.

Desperdício de energia não é o que faz Tiago Silva. Seu artigo distribui, em sua exata primeira metade, as questões contextuais para, a partir delas, dedicar-se a uma observação mais pontual do filme analisado. Possivelmente, a problematização do enredo do filme em relação ao seu contexto de produção, sem dúvida um benemérito de Tiago Silva, teria sido potencializada se tivesse o autor valorizado a dimensão da linguagem na produção desses sentidos.

Na esperança de maior objetividade na discussão sobre o tempo da enunciação e o tempo da matéria enunciada, tomemos por exemplo o filme Danton, o processo revolucionário, de Andrzej Wajda (1982).

1.2. Danton(s) enunciados

O tempo da matéria enunciada no filme é a Revolução Francesa, especificamente, o período do Terror Revolucionário. Ali observamos microhistoricamente dois importantes protagonistas: Danton e Robespierre. O primeiro quer “fazer recuar o Terror que ele mesmo ajudou a instaurar”. Nas palavras do diretor do filme, representa o mundo ocidental liberal (e capitalista). Robespierre é a meticulosa, inflexível, dogmática (e moralista) mente “linha dura” à frente desse mesmo Terror, a defender sua necessidade para levar a cabo o processo revolucionário. Representa o mundo do Leste comunista (e totalitário).

O período de produção (“o presente”) do filme, o início da década de 1980, nos traz pistas sobre o tempo de enunciação da matéria do filme. Mas, para abarcá-lo, é necessária uma aguçada visada analítica, o que fez o historiador Robert Darnton no ensaio Cinema, Danton e o duplo sentido (1990). Ao ler esse texto, percebemos que Danton foi recebido de forma diametralmente oposta em dois países diferentes: na França esquerdista, do presidente Mitterrand (que bancou sua produção orçamentária) e na Polônia comunista, do diretor Wajda. Apesar de o filme ser “ambíguo demais para oferecer uma moral definida para o presente”, nas palavras de Darnton, vários aspectos foram recebidos pelos espectadores poloneses como uma “crítica ao controle sobre a liberdade de pensamento dentro de seu país”, denunciando o doutrinamento (e a historiografia) stalinista que vitimaram muitas pessoas com o seu desaparecimento sob a ditadura militar (DARNTON, 1990). Claro que a ambiguidade, para além do gênio criativo do diretor, é uma condição necessária para se produzir (e sobreviver) em meio a estruturas opressivas. Talvez por isso o filme tenha lotado as salas em que foi exibido na Polônia, num exercício de catarse coletiva, em que liberavam energia destrutiva contra a ditadura militar de seu país, através da sétima arte.

Movimento contrário a tudo isso aconteceu na França. O filme gerou um escândalo entre a esquerda: contrarrevolucionário, falseador da história francesa, anunciaram os jornais e intelectuais. O Danton reabilitado de Wajda destoava do Danton dos livros escolares (e da historiografia) franceses, corrupto e vendido à contrarrevolução dos nobres. O Robespierre do diretor polonês também não se encaixava no modelo heroico francês que o representava como o estrategista ideológico que orientou o movimento no caminho da revolução social (DARNTON, 1990).

Assim, a partir dessa análise sobre o tempo de enunciação da matéria, Darnton conclui que o filme de Wajda evidencia a força do mito da Revolução Francesa (ao menos na visão ortodoxa comunista), pois “controlar o mito é exercer poder político”. Por esse motivo, ocorreu tamanho burburinho contra o filme: o diretor eliminou as referências ao contexto de extrema pressão vividos pela população sob o Terror; reduziu a Revolução a um duelo parlamentar entre alguns oradores burgueses; retirou o povo da Revolução, embora tivesse sido um levante das massas… Em verdade, para esse historiador estadunidense, as reclamações sobre as imprecisões históricas no filme disfarçavam a insatisfação dos franceses contra a representação do diretor polonês “mais ambígua e menos heroica” das figuras dos livros escolares. O filme desvelou, na França, o poder simbólico, o discurso político. Por isso, tanta preocupação com a “ordem dos fatos no tempo e os heróis encaixados nas categorias certas”, afirma Darnton. Enfim, assevera que o debate sobre o filme nos mostra que “os fatos não falam por si sós”. Apesar de único, o filme “não foi o mesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentido sugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significação da Revolução Francesa nunca se esgotará” (DARNTON, 1990).

Relembremos a argumentação feita por Rafael Borges: não podemos prescindir de uma postura dialógica: o tempo da enunciação interpenetra o tempo da matéria enunciada.

1.3. A dimensão política do (Ab)Uso conteudista do cinema em sala de aula

Com pequena margem de erro, podemos afirmar que a análise fílmica em sala da aula, em sua quase totalidade, começa e acaba na representação existente no filme, ou seja, em seus conteúdos (pretensamente históricos). A ênfase no conteúdo é o maior e o mais perene (ab)uso do cinema em história na sala de aula. Por esse motivo, podemos chamá-lo também de o (ab)uso tradicional do filme. Talvez por conta dessa ênfase no conteúdo, outro (ab)uso muito recorrente no uso do cinema nas aulas é tomar a narrativa fílmica como ilustração de certo conteúdo curricular.

Rafael Borges traz o conceito de heteroglossia como uma forma de ultrapassar o uso meramente ilustrativo do cinema. Um mesmo sujeito fala de modo diferenciado dependendo da situação discursiva em que se encontra. Então, um mesmo discurso fílmico pode ser recebido e interpretado de formas diferentes em relação ao lugar de fala / escuta do espectador ou ao seu território, ao período de produção do filme, à identidade de gênero do receptor, às diferentes gerações dentre outras chaves para interpretação. Dessa forma, o ato de se assistir ao filme pode transformar-se em um acontecimento dialógico.

A partir da obra Nós que aqui estamos, por vós esperamos, o texto de Julia Matos (2013) traz reflexões simples e objetivas que podem auxiliar o professor no uso do cinema em sala de aula. Para isso, é importante entender o aluno também como protagonista da atividade e não somente como espectador passivo das informações. Para tanto, é fundamental que o professor prepare a atividade, com pesquisa, reflexão e dedicação. Ou seja, tudo o que as condições atuais do trabalho docente (como é compreendido pela maioria dos gestores públicos municipais e estaduais) não possibilitam plenamente.

Não somente para o uso de filmes na sala de aula, mas para que qualquer atividade seja efetiva para a boa relação ensino / aprendizagem, contribuindo substantivamente para a formação humana e profissional do aluno, o professor precisa de condições mínimas de trabalho, o que não encontramos na maioria das redes municipais e estaduais. O que vemos são professores entendidos, pelos gestores da educação pública, apenas como executores de atividades previamente pensadas e estabelecidas. Diante desse processo, a autonomia docente para o trabalho dos conteúdos curriculares em sala de aula diminui cada vez mais. Preocupados com os exames (e o consequente ranqueamento das escolas via Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), os governos constroem cada vez mais um processo educativo frio e, literalmente, calculista apenas preocupado com índices e taxas (de aprovação, de evasão, de progressão…). Esse processo é um câncer silencioso a corroer a curiosidade e o interesse dos discentes pela aprendizagem e o empenho, estímulo, dedicação de seus professores pelo ensino.

Lançando mão do ágil e poderoso recurso midiático, os governos gastam milhões com propagandas mentirosas, maquilando aos olhos da população, a doença de uma escola que não ensina e de crianças e adolescentes que não aprendem.

Muitos estados ainda pagam seus professores com salários inferiores ao valor estabelecido em lei. Recebendo pouco, estes precisam aumentar sua carga de trabalho ou se dedicar a outras atividades e bicos para complementar a renda. Assim, gastam sua vida e saúde com uma carga horária de trabalho semanal desumana, dividindo-se entre várias escolas, atividades, disciplinas, restando pouco ou nenhum tempo e energia para as aulas a preparar… ou a se preparar para as aulas.

Diante desse cenário, como pode o professor usar, em suas aulas, recursos e atividades que exigem certo tempo e atenção como o cinema? Tempo para assistência e fruição do filme? Antes disso, tempo para constituição de um capital cultural, sem o qual o cinema vira mero entretenimento? Como comprar livros, participar de cursos, de palestras com o salário que os professores recebem?

Por isso, o uso de filmes de uma forma significativa na formação dos alunos – e não apenas uma possibilidade fácil para matar o tempo ou para substituir um professor faltoso – passa, antes de tudo, por reflexões sobre poder, sobre a gestão de poderes, sobre política. Essa é uma discussão que pouco vimos nos artigos, textos e livros sobre o uso do cinema em sala de aula. Mas é fundamental e deve ser enfrentada sempre.

Não podemos entender, pesquisar, avaliar o uso de filmes nas escolas pensando somente na condição pessoal e particular do professor, pois sua atividade e a forma que ele as executa não lhe é algo pessoal e particular. A prática docente insere-se em uma estrutura maior que a abarca.

Por isso, em nossa reflexão sobre (ab)uso do cinema, precisamos dar atenção aos elementos que ultrapassam as paredes das salas de aula, os muros das escolas, as fronteiras municipais e estaduais… é necessária, também, uma visada histórica, já que essas estruturas não nasceram hoje, sob nossa responsabilidade.

Diante das condições atuais de exercer seu trabalho, como simplesmente apontar metodologias para o professor? Como investigar academicamente o (ab)uso de filmes nas escolas? Como responsabilizar o professor pelo sucesso ou fracasso do uso de filmes? Por que gastar nosso tempo com discussões e reflexões epistemológicas, teóricas, metodológicas que estão a anos-luz da realidade escolar?

Apesar de hercúlea, para nós que acreditamos no potencial de ensino / aprendizagem do cinema (não somente na sala de aula, mas em todos os espaços em que hajam pessoas, pois o cinema é uma importante face da condição humana) a tarefa da investigação e da reflexão sobre as dimensões teóricas e metodológicas do uso de filmes é incontornável.

1.4. Outros (Ab)Usos

De forma rápida e certeira, a exemplo dos protagonistas dos filmes do Velho Oeste, podemos incriminar certos (ab)usos dos filmes nas escolas. Quem nunca teve um professor que “passava um filme” acreditando que a simples exibição valeria pela aula?8 Qual coordenadora pedagógica (e, às vezes, até mesmo o professor) não entendeu que a exibição de um filme servia para substituir o professor faltoso? Qual professor nunca teve um insight fantástico de relacionar tal filme, tal cena a certo conteúdo escolar (mas não planejou o uso de forma devida e por isso o resultado não foi assim tão estimulante quanto imaginado)? Ou então que correu à locadora e não encontrou aquele filme? Ou que achou disponível na internet, mas não conseguiu baixa-lo? Ou que fez o download, mas o filme veio sem legenda ou sem versão dublada? Ou ainda (que essa sequência de situações já está pra lá de angustiante – e esse parágrafo também) que, na aula, não conseguiu operar o equipamento? Qual professor nunca se irritou (minimamente) com a turma de alunos que fez chacota do seu filme amado, após tê-lo exibido em sala com tanto respeito e deferência? Para enfrentar todas essas situações, é preciso planejar o uso de filmes. E isso demanda tempo e dedicação do professor.

Aqui, voltemos então às contribuições de Júlia Matos (2013). A autora nos ajuda a visualizar alguns (ab)usos clássicos do cinema nas aulas de história. Talvez o mais recorrente seja o uso do filme como mera ilustração dos conteúdos curriculares. Mas esse tipo de uso, além de ensinar pouca coisa (propriamente quase nenhuma em relação ao conteúdo curricular), pouco ajuda na transformação do espectador passivo em sujeito do processo de comunicação. Aqui reside a potência de autonomia adormecida a cada vez em que o professor leva um filme para a sala de aula.

O filme é sempre testemunha de seu tempo. Assim como aquela assertiva que diz que todo presente constrói seu passado, o filme (mesmo o dito “histórico”) sempre remete às estruturas do tempo da enunciação da matéria, como dissemos atrás. Então, se assistirmos a um filme sobre Maria Antonieta rodado na década de 30, 60 ou nos anos 2000, veremos que, apesar de a personagem histórica, do tempo cronológico e dos fatos, ser praticamente a mesma, cada década imaginou esse passado de uma forma diferente. Seja no figurino, na aparência, nas palavras, no jeito de falar ou nas ideias, valores e teses sobre os acontecimentos cada um se difere do outro. É por isso que Marc Ferro entende o filme como contra-análise da sociedade passada (FERRO, 1992).

Outra questão levantada pelo texto de Júlia Matos é a forma como as produções cinematográficas representam o passado. Na obra Nós que aqui estamos, por vós esperamos (1998), o diretor Marcelo Masagão apresenta uma narrativa que retoma grande parte da história do século XX. Para Matos, esse diretor constrói uma cinebiografia do “breve século” passado. Esse documentário é um exemplo de como o cinema pensa a história. Não é, obviamente, uma escrita tal qual a produz a historiografia, mas é uma certa escrita cinematográfica da história.

O que não podemos, enquanto professores, é apresentar aos nossos alunos essa escrita cinematográfica (mesmo outras que também possuam altas pretensões historiográficas) como sendo conteúdos históricos, autoevidentes e autoenunciados por si mesmos. Um filme nunca será uma obra de história.

Não temos aqui as condições suficientes para explanar sobre isso, mas, de forma resumida, podemos apresentar dois simples argumentos certeiros para mostrar o abismo que separa as escritas fílmicas e historiográficas do passado. Primeiro por uma questão de linguagem: a história faz uso da linguagem textual e o cinema possui sua própria linguagem: a audiovisual. A história parte de procedimentos teórico-metodológicos (e, às vezes, técnicos) bastante diferentes das questões teóricas e técnicas que importam ao cinema. Então, tomar o discurso fílmico pelo discurso histórico é um equívoco “arrasa quarteirão”.

Talvez, a maior contribuição do cinema à história (principalmente do filme histórico, ou seja, do cinema que toma o passado como matéria ou como argumento de sua narrativa) seria servir de fonte de alimentação do imaginário da sociedade acerca de seu passado. Como bem citou Daniel Matos (2013), em seu texto do dossiê, na sociedade do espetáculo em que vivemos, o alcance da linguagem audiovisual é bem maior que as linguagens escrita e oral. A linguagem do cinema é facilmente acessível (em sua dimensão mais “objetiva”) ao grande público. Por isso, o cinema é constituído e constituinte do imaginário social, repositor constante das representações que se constroem sobre e a partir dessa sociedade.

Nesse sentido, em particular, o cinema é concorrente da historiografia, pois ambos oferecem à população os passados reinventados em sua escritura específica. Em termos quantitativos, o cinema certamente é muito mais eficaz e poderoso que a historiografia. Os passados imaginados e reconstruídos pelo cinema são mais populares, mais vistos e influenciam mais a memória coletiva do que as teses defendidas nas academias pelos historiadores, certamente. Afinal, na sociedade do espetáculo, quem tem olho (e ouvido) é rei. A história, principalmente, enquanto discurso científico, apresenta aos olhos da maioria da população um emaranhado de palavras, às vezes, articuladas de forma complexa e intrincada. A história escolar, como estamos cansados de escutar, é chata e desinteressa aos nossos jovens e crianças.

Por sua vez, o cinema é sedutor: traz tudo pronto, perfeitamente embalado em imagens, sons, palavras, sentidos, sensações que nos emocionam e sequestram nossa atenção e, na maioria das vezes, nossa capacidade de raciocinar, nossa cognição. A autonomia psíquica e racional é transformada magicamente em passividade contemplativa. Em vez de pessoas, transformamo-nos e somos transformados em títeres conduzidos pelas mãos fílmicas. Prazerosamente, deixamo-nos levar, entregamo-nos como escravos.

Mas, se essa é a perdição que o cinema nos apresenta, é também por meio dela que podemos nos salvar. Paradoxalmente, esse é o grande poder do cinema: alienar e / ou conscientizar, distrair e / ou informar, formar e / ou entreter… Por si e em si, o cinema não é uma coisa nem outra. Mas pode sê-lo dependendo da forma como é operado pelos realizadores de filmes ou contraoperado por quem os consome. E assim, o cinema pode despertar a boa consciência, problematizar questões, relativizar posturas, retomar discussões, rever posições, levando consigo todos os seus espectadores. É esse potencial que aproxima o cinema do objetivo maior de toda aula: a (trans)formação.

Aqui entra em cena a grande possibilidade da história escolar. Talvez, ela teria, nesse sentido, mais poderes que a história científica, pois tem maior possibilidade de interferir na forma como a memória coletiva imagina o passado que a historiografia acadêmica. Dessa forma, o uso do cinema pela história escolar seria mais poderoso que a acadêmica. Legalmente, toda a população é obrigada a estudar história em sua infância e adolescência, não? Então, ao trabalhar com o cinema, o professor de história pode potencializar ainda mais seu poder de interferir na forma como a população imagina seu passado. Assim, Julia Matos assevera em seu texto:

O filme pode tornar o distante próximo do olhar do aluno, que ao invés de investir na imaginação abstrata do passado, consegue ter um ponto de referência imagético para construir sua memória e representação do passado (MATOS, 2013, p. 12).

Passemos, agora, ao segundo grupo de reflexões do Dossiê: o (Ab)Uso do cinema pela história. Certamente, é nesse grupo que tradicionalmente localizam-se os diálogos da história com o cinema.

  1. O Cinema da História, a História do Cinema: (ab)usos de filmes na produção do conhecimento histórico

No artigo Conversão com diversão? Ou como o catolicismo fez as pazes com o cinema durante a Primeira República em Goiás, com seu estilo de escrita histórica peculiar, Eduardo Quadros (2013) nos apresenta uma visada histórica sobre a história da chegada do cinematógrafo em Goiás, no início do século XX. O historiador costura as breves e objetivas notas pescadas nos jornais goianos de antanho dando corpo ao seu texto. Quadros, guiado por uma abordagem fenomenológica, começa o texto reinventando, em nosso tempo, a experiência vivida pelos vilaboenses no espaço de projeção dos filmes nos idos de 1909. Para ficar mais próximo à tela, o espectador teria que desembolsar dois “mi’rréis” (ou vender quatro dúzias de ovos!, nos conta).

A “liberdade” existente no momento de exibição dos filmes está no interior da problemática desenvolvida por Quadros. Muitas vezes era o “eletricista” (aquele que operava o projetor e responsável pela sessão) quem escolhia os pequenos filmes a serem exibidos. O historiador interessado pelas práticas e sentidos religiosos em Goiás, questiona-se sobre a posição da Igreja Católica diante do cinema, já que esse constituía uma importante expressão da modernidade, condenada oficialmente pela autoridade papal desde 1864. A modernidade é a pedra de toque que desencadeia o processo de secularização à medida que possibilita mais autonomia para as esferas sociais perante os valores (e controles) religiosos, nos conta Quadros. Começa aí a peleja entre os donos do Céu e os viventes do Mundo. Com poucas concessões, ainda hoje faíscas desse processo chispam nossos corpos (principalmente as partes íntimas).

O artigo de Eduardo Quadros contribui para que entendamos um novo poder nascido junto com o cinema e, depois, tornado adulto pela linguagem cinematográfica: o poder de ficcionalização do real travestido de realidade. Nesse processo, a aura da obra de arte transfere-se para as maravilhas criadas pela técnica: ver a realidade reproduzida diante dos olhos fez as mentes da virada do século XIX para o século XX excitarem-se diante das imagens. O Mundo Vivido encanta-se diante do Mundo Emulado pelo cinema. A realidade saltava da tela sobre os corpos do espectador. Tal maravilha dava-lhe (e a nós também) o poder de sair da vida para entrar na vida, ao mesmo tempo. Ou não é isso o que acontece quando nos abrimos para a experiência cinematográfica (ou quando ela sequestra nossa subjetividade)?

O alto grau de identificação da mercadoria cinema com seus consumidores, dos criadores com as criaturas, provoca uma alienação tal qual a religião, asseverou Marx (2006 apud QUADROS, 2013). A Igreja via, portanto, o cinema, como discurso concorrente. E, por isso mesmo, passou a combatê-lo, como defende Eduardo Quadros. Foi Walter Benjamin (1988) que nos alertou para o poder das imagens cinematográficas: “O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos […] corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo…”. Explica-se: a mudança de imagem constante interrompe a associação de ideias do espectador, deixando-lhe em estado de choque, pois “precisa ser interceptado por uma atenção aguda”. Fica o espectador sequestrado: faz-se escravo por seu próprio consentimento (BENJAMIN, 1988, p.192).

Outro texto que se lança na seara do “cinema da história” é Bonnie e Clyde: um estudo do gênero de gângster, de Thiago G. da Silva (2013). Ao valorizar o estudo dos gêneros cinematográficos, o autor nos apresenta as contribuições dessa abordagem. É nuclear, na questão dos gêneros, a relação entre a dimensão da produção industrial e mercadológica dos filmes e a sua audiência, sua recepção popular. Essa é uma abordagem que valoriza a escala social como um procedimento de análise. Os filmes, como nos informa Schatz (1981), “são gerados por um sistema de produção coletivo, que honra certas tradições narrativas (ou convenções) concebidas para um mercado de massa” (apud SILVA, 2013, p. 118). Assistir a um filme, mesmo sozinho em nossa casa, não é uma prática isolada e individual: é uma prática cultural e, diante da tela, estamos inseridos numa relação social. Produzir um filme, tampouco. “A forma com que as audiências respondem a um filme influencia no desenvolvimento das histórias e tramas” (SILVA, 2013, p. 118).

Aqui podemos relativizar a tese segundo a qual a leitura de um romance ou a assistência de um filme é uma atitude que nos retira da vida social e nos condiciona numa prática individual. Só conseguimos fazer isso (e fazemos por isso) porque essas atitudes nos remetem diretamente ao Outro, ao Nós (mesmo que emulado em imagens ou ficcionalizado em palavras). Consumir cinema é estar em relação direta com os sentidos que nos constituem e são constituídos por nós, para refletir aqui a partir do conceito semiótico de cultura apresentado por Geertz (1989).

O desafio que se apresenta para o autor do texto sobre Bonnie e Clayde, portanto, é praticar o jogo de escalas entre a análise social e a análise da linguagem do filme, a partir de suas estruturas específicas de construção de sentido.

O filme deve ser tratado, segundo afirma Valim (2012),

como um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente ao período e à sociedade que o produziu. A análise das narrativas e do momento de produção dos filmes comprova que estes sempre falam do presente, dizem algo a respeito do momento e do lugar que constituem o contexto de sua produção (apud SILVA, 2013, p. 120).

Mais uma vez, insistimos: o (ab)uso conteudista do cinema, expresso pela atenção a seus valores ideológicos, às representações constituídas pelo / no filme não pode estar apartado das estruturas que lhe dão forma. Essas estruturas são acessadas via elementos da linguagem do cinema. Se não observamos suas estruturas de linguagem não há nenhuma diferença consistente em se trabalhar com documentos textuais, audiovisuais, musicais, etc. Todas as fontes ficam homogeneizadamente condicionadas a uma única perspectiva analítica. Aqui, ainda se evidencia o peso da argumentação bakhtiniana de se fazer a análise do conteúdo em relação à forma, como salientou Rafael Borges no texto apresentado anteriormente.

No texto de Tiago Silva, temos outro exemplo do uso do cinema enquanto objeto da produção do conhecimento histórico para se produzir a “história do cinema” quando o autor nos informa sobre o Código de censura dos filmes nos EUA, entre 1930-60 ou quando ele historiciza o star system dos estúdios cinematográficos.

Analisando o filme Aparecidos (2007), do diretor argentino Paco Cabezas, Salatiel Gomes (2013) constrói seu texto a partir da relação de compromisso do filme com seu contexto sócio-histórico de produção: “a necessidade de reabertura do passado e sua reparação / ressignificação no presente, mais especificamente no que diz respeito aos que sofreram em seus corpos a ação violenta do Estado terrorista entre os anos 1976 e 1983” (GOMES, 2013, p. 48). Assim, Gomes revela no interior desse filme, elementos que lhe são maiores.

A exemplo da fotografia, o filme torna presente um passado, dá corpo a um ausente, motivo pelo qual Kracauer refere-se a ele como um modo de redenção da realidade física. Redenção é um conceito também presente na filosofia de História de Benjamin, segundo a qual os passados cativos devem ser redimidos, na atualidade, pelo trabalho da memória, instância reconstituidora do passado. Dessa definição decorre a noção de que as expectativas frustradas no passado, embora não possam ser revividas no curso dos acontecimentos, podem ser reabertas / ressignificadas / reparadas / pelo trabalho da memória (GOMES, 2013, p. 47-48).

Analisando o filme Aparecidos (2007), Salatiel Gomes constrói seu texto a partir da relação do filme com seu contexto sócio-histórico de produção. Revela no interior do filmes, os seus condicionantes maiores.

Outro autor do Dossiê também percorre um itinerário metodológico parecido. Carlos Silva dos Santos (2013) analise o filme Mon Oncle (1958), do diretor francês Jacques Tati revelando-nos os aspectos socioeconômicos da sociedade francesa e as representações veiculadas no filme. Conclui o autor:

As tensões sociais presentes na película […] constituem-se enquanto consequências da peculiar rapidez com que foi operada a recuperação e subsequente desenvolvimento econômico da França nos primeiros dois decênios após o fim da Segunda Guerra Mundial. Sob forte influência financeira e cultural dos Estados Unidos, aquela nação europeia colocou em marcha um processo que no país americano se desenvolveu ao longo de um período sensivelmente mais extenso. Seria do embate da tradição cultural francesa com as demandas oriundas da inserção de elementos que lhe eram externos, que se fundamentaria a França atual (SANTOS, 2013, p. 95).

Refletindo sobre o filme Cerro Corá (1978), dirigido por Guillermo Vera, cineasta paraguaio, Fabio Ribeiro de Sousa (2013) aproxima os valores veiculados na película ao processo de revisionismo historiográfico acerca da Guerra do Paraguai, que reabilitou a figura do Marechal Solano López. Tal processo teve seu auge durante o longuíssimo regime ditatorial paraguaio (de 1954 a 1989).

O filme financiado pelo regime de Alfredo Stroessner tornou-se um instrumento fundamental para a disseminação de uma matriz historiográfica – a revisionista – tipicamente paraguaia. Cerro Corá (1978) tornou-se uma das maiores produções cinematográficas de seu país, ajudando, além de reproduzir a corrente revisionista acerca da guerra, a influenciar o modo como o confronto é enxergado, até os dias atuais, no Paraguai (SOUSA, 2013, p. 113).

  1. Créditos finais

A partir das supracitadas questões, o dossiê contribui efetivamente para aqueles que se interessam pelo uso do cinema na produção ou na comunicação do conhecimento histórico. Apesar da dificuldade e da complexidade exigida pela aproximação com o cinema, cada vez mais ela se torna necessária. Numa sociedade espetacularizada por imagens e sons, por imagens em movimento, é preeminente criar as condições para enfrentar o olho que tudo vê ou “nos perderemos entre monstros da nossa própria criação?”.

Notas

1. Coordenador e organizador dos textos que compõem o dossiê “(Ab)Usos do Cinema em História”, que compõe esta edição da Revista de História da UEG, V. 2, N. 1, Jan-Jun / 2013.

2. A substituição sequencial de 16 fotogramas por segundo já provoca em nossas retinas a ilusão do “movimento”. No cinema analógico, consagrou-se o padrão de 24 fotogramas por segundo. Desde então, esse número só aumentou: no cinema digital, são 30 foto / s; no cinema em alta definição (HD), 60 foto / s.

3. Texto veiculado na chamada de artigos da Revista de História da UEG, divulgada no site da revista e circulada por e-mail aos acadêmicos de várias instituições de ensino superior entre março e junho de 2013.

4. Nesse processo, registramos as importantes contribuições da professora Ana Lúcia Vilela e do professor Leo Carrer Nogueira.

5. Apesar de defendermos que “a condição da realização” seja fundamental para uma maior intimidade entre a prática do fazer e a observação / análise dessa prática. Nesse sentido, sugere-se aos professores o exercício, possível e barato, em nossos dias, da produção de obras audiovisuais a partir das câmeras dos celulares. Há um grande e intenso esforço de inclusão audiovisual entre os estudantes, estimuladas pelos editais das operadoras telefônicas e das agências públicas e privadas de fomento e, principalmente, por festivais especializados (ou por aqueles que os contemplam em sua programação) nos chamados “vídeos de bolso”.

6. Daniel Ivori de Matos, autor de outro texto do dossiê, também lhe faz referência.

7. Em Hitchcock (2012), recente filme dirigido por Sacha Gervasi, é representada uma sessão de debates entre o diretor Alfred Hitchcock com o responsável pela censura estadunidense aos filmes. À época, o diretor filmava o inovador Psicose (1960) e, como nós sabemos, a cena do assassinato de Marion Crane no chuveiro muito questionava as posturas defendidas pelo Código.

8. Há uma piadinha sobre certo professor que gostava tanto de “passar filmes” que, quando a duração do filme era maior que o tempo da aula, ele dizia: “Continuamos na próxima aula”.

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Euzébio Fernandes de Carvalho1 – Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás, docente do curso de graduação em História da Universidade Estadual de Goiás, unidade Cora Coralina. Coordenador e organizador dos textos que compõem o dossiê “(Ab)Usos do Cinema em História”, que compõe esta edição da Revista de História da UEG, V. 2, N. 1, Jan-Jun / 2013. Universidade Estadual de Goiás Cidade de Goiás – Goiás – Brasil. E-mail: [email protected]


CARVALHO, Euzébio Fernandes de. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.2, n.1, jan / jul, 2013. Acessar publicação original [DR]

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