Ideias de história: tradição e inovação de Maquiavel a Herder – LOPES (HH)

LOPES, Marcos Antônio (org.). Ideias de história: tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina: Eduel, 2007, 336pp. Resenha de: BENTIVOGLIO, Julio. História dos modernos, vocação pelos antigos: sentidos do passado no alvorecer da modernidade. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.320-326, março 2010.

Ao tratar do sentido da história na modernidade, dirá Koselleck que novas formas da experiência histórica foram acompanhadas por um conceito moderno de história. Para ele, entre os séculos XVI e XVIII, observou-se “uma temporalização da história, em cujo fim se encontra uma forma peculiar de aceleração que caracteriza a nossa modernidade” (Koselleck, 2006, p.23). Cada vez mais crescia a suspeita de que a história humana não tinha uma meta definida a atingir, embora o conhecimento do passado continuasse sendo útil para governos e governados. Constituía-se, portanto, uma consciência histórica que afastava o presente do passado, aproximando-o do futuro. Este é panorama em que os diferentes ensaios de Ideias de História – tradição e inovação de Maquiavel a Herder se inserem, analisando concepções de história no pensamento de Maquiavel, Guicciardini, Bodin, Bossuet, Vico, Voltaire, Hume, Montesquieu, Rousseau, Gibbon e Herder. A presença marcante da história, com seus usos e significados, é constante nestes clássicos do Renascimento e do Iluminismo, revelando uma transformação do conceito e da prática histórica em relação aos antigos, algo que na França ficou conhecido como a querela dos antigos e modernos, que tomou de assalto a Academia Francesa em 1687 (DeJean, 2005, 75).

Trata-se de um tipo de publicação ainda incipiente no Brasil, visto serem raras as coletâneas de história da historiografia, sobretudo em se tratando de história universal. Seu organizador, Marcos Antônio Lopes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, autor de obras e coletâneas consagradas como Grandes nomes da história intelectual, Para ler os clássicos do pensamento político e Fernand Braudel – tempo e história, reuniu neste livro um conjunto expressivo de renomados pesquisadores que nos brindam com a essência da obra daqueles pensadores modernos.

Marcos Lopes indica logo na apresentação que durante o Renascimento e o Iluminismo os pensadores sempre recorriam aos estudos dos antigos e ao passado como referências, procurando indicar o lugar em que se colocavam em relação à tradição e à experiência histórica percorrida. A rigor, entre os séculos XVI, XVII e XVIII a história era ferramenta preciosa em quaisquer campos de reflexão, fossem sistemas filosóficos, estudos literários, morais ou ensaios políticos. No campo efetivamente histórico, revela o organizador, a querela dos antigos e modernos marcaria uma autêntica escalada do historicismo que progressivamente solapa uma perspectiva ahistórica de tempo. Não obstante, vejo que a história guardava cada vez mais proximidade com o que depois se convencionou chamar de filosofia da história, ou seja, articulando em torno de um sentido a relação passado-presente-futuro, sentido este que poderia ser alcançado pelo entendimento humano, como atestam o pensamento de Voltaire e Rousseau, por exemplo. Esse caráter especulativo e filosófico que dá o tom da coletânea revela seu débito com a abordagem collingwoodiana.

O livro aparece antes da existência de uma síntese similar sobre a história da história na Antiguidade, ou seja, das ideias de história entre os antigos. Assim, na ausência de uma coletânea que trate de Heródoto, Tucídides, Políbio, Cícero ou Tácito, dentre outros, Ideias de História ocupa um lugar de destaque ao apresentar uma discussão aprofundada sobre algumas concepções modernas de história. No entanto, como em toda coletânea, podem ser sentidas ausências, como as de Hobbes, Mabillon, Kant, Commynes, Condorcet e Bolingbroke.

Isso não tira, absolutamente, o mérito da obra com seus estudos pontuais e sistemáticos, que informam e esclarecem a complicada trama pela qual o estudo do passado se efetuava a partir do século XVI no pensamento de alguns importantes pensadores. Trata-se de um momento em que o conceito e o próprio estudo do passado sofriam uma sensível mutação, deixando de ser entendido apenas como magistra vitae, ou como a descrição de narrativas de reis e imperadores, assumindo um status cada vez maior de ciência (Koselleck, 2006, 21s).

Das especificidades da história dos antigos limitadas aos feitos de seus povos, emergia uma preocupação de integrar as diferentes histórias em uma mesma história. Espelhando-se nos antigos, dos quais preservam inúmeros pontos de concordância, tais como o do caráter exemplar, da repetição, da importância da esfera política dentre outros; os modernos rompem com o olhar tradicional sobre a relação entre o passado, sua narrativa e o presente ao ampliar a assimilação crítica do tempo e dos clássicos greco-romanos. Embora ainda fossem modelares, não eram mais vistos como fonte exclusiva de autoridade.

Os ensaios também indicam que aqueles autores subsumiam a história e seu estudo à reflexão filosófica, pois se colocava à história uma tarefa que não tivera na agenda dos antigos: crônicas, anais e memórias careciam de um sentido universal como desejava a razão moderna em sua ânsia por crítica e erudição. O passado não perdia seu caráter pedagógico, pelo menos no todo, mas se ampliava a convicção de uma história entendida como aperfeiçoamento e progresso. Concomitantemente, o estudo do passado adquiria um caráter bem mais sistemático e rigoroso, do que então tivera, no qual o método ganhava enlevo, muito embora a história continuasse sendo um ramo atrelado ora à filosofia, ora às belas letras (Gervinus, 2010, 28), como um gênero narrativo menor.

Ao contrário dos antigos nos quais a urdidura dos eventos ou sua narrativa eram a dimensão mais importante fazendo com que o elemento cronológico superasse, muitas vezes, a importância dos julgamentos; entre os modernos a ênfase recaía sobre a crítica, de modo que a história iluminava a compreensão de determinados temas, diluindo-se a importância dos eventos e ampliando-se o valor dos temas e das fontes tratados. Outro aspecto notável é o futuro assumir uma dimensão fundamental, minando a possibilidade do presente ser experimentado como algo fixo e imutável. Novas perspectivas passaram a pautar a relação sujeito-objeto do saber e, independentemente do modo como o passado era percebido, seja para romper com generalizações, seja para encontrar regras gerais, a história continuava, entretanto, a oferecer exemplos para a vida. Patenteia-se nos autores clássicos reunidos nesta coletânea a convicção de que a história “pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral e intelectual de seus contemporâneos […] cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas” (Koselleck, 2006, p.43).

Daí o esforço dos pesquisadores desta coletânea em compreender e localizar as idéias de história e o momento em que foram concebidas, suas tradições, embates e assimilações. Eis o sentido que alimenta o espírito da obra, pois, os colaboradores revelam que muito mais do que apropriação ou crítica, havia inovações naqueles pensadores, que ao fazerem parte do desenvolvimento de uma nova concepção de história estavam dotados de grande originalidade teórica e metodológica. Em seu conjunto, todos os textos que compõem o livro são tributários de Idéia de História publicado em 1946 por Robin G. Collingwood, que inaugurou um novo capítulo na história da historiografia com sua abordagem historicista e filosófica (1952).

Para os modernos não se tratava apenas de narrar feitos humanos notáveis, evitando-se o esquecimento, ou ainda apenas registrar eventos singulares, mas, sobretudo, de pensá-los dentro de um contexto, como um processo. Encontrar conexões, tal era o desafio, algo que já havia sido proposto por Chladenius. Este pensador germânico havia indicado ainda que, além das conexões, era também fundamental deixar claro para os leitores o ponto de vista (Sehepunkt) adotado pelo autor (Chlandenius, 1752, 36s).

No primeiro capítulo, José Luiz Ames dedica-se a dissecar o pensamento de Maquiavel e revela como o florentino adotava a história como um conhecimento inestimável para se compreender as regras gerais da ação política.

Para ele a história era o resultado das ações humanas e Roma um modelo útil para se compreendê-las e se estabelecer comparações com o presente. Mas, embora o passado fosse louvável, isso não significaria, absolutamente, que devesse ser imitável. A história deveria ser pensada sob o prisma da identidade, dos desejos e humores humanos e da diferença dos acontecimentos históricos.

Embora eventos políticos pudessem se repetir, isso não implicaria numa história imutável. Ou seja, a noção maquiaveliana de imitação, nas palavras de Ames, “está longe de ser a repetição mecânica” (p.29). Mesmo quando apelava para um modelo de tipo circular, utilizava-se de uma noção de prognóstico (Koselleck, 2006, 35).

Em seguida Sylvia Ewel Lenz analisa Guicciardini, que, se nos reportássemos ao modo como Gervinus pensa a narrativa histórica, teria feito a transição da narrativa cronológica para a memorialística. Curiosamente, o autor mantém a presença do fatalismo medieval, dos sinais, da fortuna. Muito embora tenha incorrido em pecados capitais em relação ao método, como já apontara Ranke (1824), ao deixar-se impressionar por superstições e preconceitos correntes de seu tempo, Guicciardini fez uma história do tempo presente com um zelo documental sem precedentes (p.48).

No terceiro capítulo, Marcos Antônio Lopes discute a obra de Bodin que tomava a história com uma preocupação política, para compreender as ações humanas em sua relação com as formas de governo, mas ao contrário de Maquiavel, não perdeu de vista as diferenças de escala da política antiga para a política do presente. Ele incorpora o espírito da histoire accomplie, ou seja de uma história perfeita, que busca o rigor metodológico, a crítica documental, evitando ser mera descrição de transições dinásticas ou um romance de reis. E separou “a história sacra, a história humana e a história natural” revelando que a “história humana não tem qualquer meta a atingir; ela é o campo aberto da inteligência humana” (Koselleck, 2006, 28-9).

Bossuet foi também analisado por Marcos Lopes no quarto capítulo, ele que em sua obra representou o esforço de reunir histórias particulares em uma mesma história, acreditando que o conhecimento histórico daria enorme impulso à hermenêutica bíblica além de ser um dos veículos mais apropriados para a educação dos príncipes. Providência e história seguiam uma ordem universal e Deus se encarregaria de corrigir as distorções provocadas pelos príncipes, pois como Santo Agostinho – sua grande influência – já havia sugerido, os Estados terrenos e a cidade de Deus não eram pólos opostos.

João Antônio de Paula analisa o pensamento de Vico no capítulo seguinte, cuja Ciência Nova representou uma verdadeira revolução no pensamento e uma das compreensões mais originais da história. Para Paul Hazard, Vico ilustra perfeitamente um momento decisivo da crise da consciência européia, inaugurando “uma nova maneira de pensar ao mesmo tempo inovadora, em seu conteúdo, e desconcertantemente original, em sua forma” (p.116). Karl Löwith encarou o italiano como precursor de Herder, Dilthey, Hegel, Splenger e Niebuhr, dentre outros; cujas idéias adormecidas aguardariam pelo advento do romantismo, do idealismo e do historicismo, para despertarem com força absoluta, visto colocarem a história como o base de todo conhecimento. Atribuise a Vico a elaboração da primeira filosofia da história.

No sexto capítulo Renato Moscateli toma Montesquieu, “escritor que ganhou renome de grande pensador político por ter estabelecido princípios que fundamentariam as constituições de inúmeros Estados modernos” (p.151) que em uma de suas primeiras obras Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e sua decadência, de 1734, demonstrava a importância do exame de diferentes causas e personagens, de sua interpretação e não meramente de sua narração. Sua análise revela que os eventos se reúnem numa teia de causas essenciais, dotadas de sentido, pois, para ele “não é a fortuna que domina o mundo, mas ações concretas, físicas, morais, humanas. Em O espírito das leis Montesquieu parte do jusnaturalismo e da política para, embasado no terreno da história edificar uma das mais importantes obras do pensamento ocidental moderno que não se limita à classificação ou à descrição de sistemas jurídicos ou da arquitetura das leis, mas procura localizar sua essência cunhando conceitos, tipos ideais e introduzindo uma nova perspectiva de análise que parte das virtudes políticas e morais como molas para a compreensão dos fenômenos humanos.

Voltaire é alvo do ensaio de Estevão de Rezende Martins no capítulo seguinte, paladino da tolerância, da liberdade e divulgador par excellence do racionalismo inglês e do pensamento iluminista francês. Segundo Estevão, para Voltaire, quanto mais esclarecido os homens, mais livres serão, pois, “apostava na espontaneidade da razão (do são entendimento), que haveria de encontrar sempre a boa solução” (p.185) e seguiu Locke “na exigência de fundamentar empiricamente a filosofia e a ciência, e de não aceitar qualquer conhecimento que não esteja exclusivamente baseado em observações” (p.190). No Ensaio sobre os costumes, Voltaire indica a necessidade de um novo tipo de história, que encontre o sentido do tempo e o espírito humano, que seja mais científica e crítica, evitando especulações teo-teleológicas (p.201).

No oitavo capítulo a professora Sara Albieri da USP analisa o pensamento de David Hume, autor da História da Inglaterra do período romano até a revolução de 1688, causando espécie ao publicar volumes seguindo uma inversão cronológica. “Hume julgara ter escrito uma narrativa histórica imparcial […] acima do conflito das interpretações partidárias, esperando persuadir as partes em disputa e atrair o consenso das opiniões” (p.206). Hume evidencia a máxima de Voltaire de que somente os filósofos deveriam escrever a história. Sara percebe em Hume a sensível mutação ocorrida da história narrativa, para uma história mais filosófica com maior preocupação metodológica e científica, cujo estilo foi obscurecido pela historiografia romântica posterior, salvo no destaque conferido à imaginação.

Em seguida Renato Moscateli se debruça sobre Rousseau, para o qual a história preserva o caráter de exempla, pois persegue o princípio da perfectibilidade humana perdida e que deve ser reconquistada; “há em seu pensamento histórico uma verdadeira argumentação dialética que liga o processo de aprimoramento da razão humana “a demonstração da corrupção que o acompanha passo a passo” (p.237).

No penúltimo capítulo Gibbon é alvo da análise de José Antonio Dabdab Trabulsi que revela o gênio do inglês em sua démarche histórica interpretativa, marcada pela erudição clássica, pelo interesse na diferença e pela subjetividade da narrativa. Mais que historiador, seria também um philosophe (p.264) em sua tentativa de fazer uma história natural da religião à semelhança de Hume em sua clássica História do declínio e queda do Império Romano.

Herder é o último pensador, analisado por Astor Diehl, fecha a coletânea, expressão dos desafios que, na encruzilhada do Iluminismo e do Romantismo, forjou os alicerces sob os quais se desenvolveria o historicismo alemão.

Como se vê, a Ideias de História realiza uma síntese louvável para se compreender a trajetória do conhecimento histórico e suas expressões em alguns pensadores clássicos da era moderna, descrevendo algumas representações do passado e sua compreensão, revelando a complexidade dos relatos historiográficos na modernidade e o caráter perturbador de novas leituras do mundo e das experiências do tempo. Como revela Hans-Ulrich Gumbrecht,

No interior do tempo histórico, não se pode imaginar que quaisquer fenômenos estão livres de mudança e isso leva à aceitação geral da premissa de que períodos históricos diferentes não podem ser comparados por quaisquer padrões de qualidade meta-histórica (GUMBRECHT, 1998: 15).

A partir daquele período, nenhum indivíduo, grupo ou momento histórico poderia ser visto como a repetição de fenômenos antecedentes, cada presente era experimentado como uma possibilidade de mudança pelo seu futuro, colocando a temporalidade e seu cronótopo como uma categoria estrutural de investigação histórica. Não por acaso apareceriam então as filosofias da história como fonte de modelos narrativos, procurando encontrar padrões para a experiência do passado, reveladoras da essência das ações humanas.

Referências

CHLADENIUS, Johann Martin. Allgemeine geschichtswissenchaft. (Ciência histórica geral – trad. Sara Baldus 2009). Leipzig : Friedrich Landisches Erben, 1752.

COLLINGWOOD, R. G. Ideia de la historia. México: Fondo de Cultura Economica, 1952.

DEJEAN, Joan. Antigos contra modernos: guerras culturais e construção de um fin de siècle. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FUETER, Eduard. Histoire de l´historiographie moderne. Paris: Librairie Félix Alcan, 1914.

GERVINUS, Georg G. Fundamentos de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2010 (no prelo).

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.

HAZARD, Paul. Crise da consciência européia (1680-1715). Lisboa: Cosmos, 1948.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.

LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

Julio Bentivoglio Professor Adjunto Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected] Av. Fernando Ferrari, 514 Vitória – ES 29069-900 Brasil.