História das Sociedades africanas: temas, questões e perspectivas de estudo / Anos 90 / 2014

Desde pelo menos meados do século XX, pode-se falar da existência de uma área acadêmica denominada estudos africanos ou africanologia, integrada por profissionais de diferentes disciplinas (antropologia, arqueologia, arte, direito, filosofia, história, literatura, música, sociologia, entre outras), que têm em comum o interesse pela análise de aspectos relativos aos povos, às sociedades, instituições, atividades econômicas, aos sistemas simbólicos, discursos e às interpretações sobre a África e os africanos.

Esta área tem sido desenvolvida a partir de pelo menos três diferentes tendências gerais de abordagem. A primeira ganhou forma na Europa ocidental, desde o período da colonização na África, e evoluiu de uma perspectiva racializada e eurocêntrica para outra mais diversificada, em que as particularidades africanas passaram gradualmente a ser consideradas (DIALLO, 2001; GOERG, 1991; VYDRINE, 1995; MAINO, 2005). A segunda emergiu nos Estados Unidos nos anos 1950-1960 e teve a origem ligada em parte às demandas de conhecimento das universidades estadunidenses sobre as jovens nações africanas no momento em que elas eram inseridas no complexo jogo das relações internacionais do período da Guerra Fria; vincula-se também à emergência dos movimentos de reivindicação de direitos civis protagonizados por afro- estadunidenses, desejosos de ver seus laços históricos fortalecidos com o seu continente de origem (FERREIRA, 2010). A terceira é constituída por intelectuais nativos da África, de variada formação, e suas interpretações valorizam as referências locais, bem como a experiência dos próprios africanos, fundando-se em conhecimento erudito articulado a saberes tradicionais, endógenos (NZIEM, 1986; LOPES, 1995; KAKOMBO, 2005; BARBOSA, 2012).

No Brasil, a área ganhou força na última década, embora exista há mais de meio século em núcleos de pesquisa pioneiros, como o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), na Universidade Federal da Bahia, fundado em 1959; o Centro de Estudos Africanos (CEA), da Universidade de São Paulo, criado em 1965, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), da Universidade Cândido Mendes, em 1973. Fora desses, não obstante iniciativas isoladas, somente no início do século XXI assiste-se a um movimento no sentido da institucionalização dos estudos africanos, através de atividades em diversas disciplinas – sobretudo história e literatura, e em menor proporção antropologia e sociologia (MARQUES; JARDIM, 2012).

Esta alteração corresponde a uma resposta da comunidade acadêmica diante das exigências colocadas pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no ensino fundamental e médio após a promulgação da lei federal nº 10.639 / 2003, ampliada pela lei federal nº 11.645 / 2008. É a partir deste momento que ocorre, ao que parece, uma progressiva inserção curricular de temas africanos, com a criação de disciplinas nos cursos de história de 34 universidades públicas. É também desse momento em diante que se pode observar uma tendência à ampliação do interesse pela África, para além da docência, com pesquisa acadêmica formal incipiente (PEREIRA, 2013).

Tal movimento implica, em certa medida, uma tomada de posição em relação aos referenciais de estudo, aos métodos e instrumentos conceituais e analíticos empregados nas análises, bem como uma definição mais clara deles quanto à sua aplicabilidade aos temas e problemas específicos das sociedades africanas em sua experiência social, cultural e histórica. Implica igualmente a definição mais precisa de fronteiras entre os estudos africanos e estudos afro-brasileiros, em especial aqueles vinculados ao tráfico atlântico e à diáspora que, embora próximos em certos pontos, não são necessariamente equivalentes (PIAULT, 1997; SANSONE, 2002; ZOUNGBO, 2012). As condições para que isso venha a ocorrer de modo cada vez mais consistente foram ampliadas com a criação de uma rede nacional de NEABs (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) e, em 2011, com a criação do GT Nacional de História da África, vinculada à Associação Nacional de História (ANPUH).

O presente dossiê tem a finalidade de contribuir neste processo de afirmação institucional. Dele participam especialistas em estudos africanos provenientes de diversas regiões brasileiras, da África ocidental, Estados Unidos e Europa, com experiência em distintos temas de investigação, em sua maior parte colaboradores da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino de Estudos Avançados da UFRGS (http: / / grupodeestudosafricanos.blogspot. com.br / 2014 / 06 / tendencias-de-estudo.html), criada em 2014, sob nossa coordenação e do jovem pesquisador guineense Frederico Matos Alves Cabral.

No que diz respeito ao enfoque do dossiê, maior atenção veio a ser dada aos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), devido muito provavelmente às afinidades culturais que nos unem a Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, mas também comparecem textos sobre outros espaços africanos, na Costa do Marfim e na Namíbia, com o desenvolvimento de questões políticas e sociais que lhe são próprias. Quanto ao espectro da análise, abrange os modos de organização social, instituições e tipos de exercício do poder, relações de dominação e resistência, processos identitários, elaborações discursivas, formas de representação e preservação da memória coletiva em diferentes áreas geográficas e contextos, no lapso temporal compreendido entre o século XV e o início do século XXI.

Neste amplo quadro geográfico e histórico, cumpre identificar em primeiro lugar o papel diferencial das dinâmicas sociais e a grande capacidade de adaptação e interação das sociedades africanas ou de indivíduos provenientes delas em situações de contato dentro e fora do continente. Do que se pode depreender dos trabalhos iniciais do dossiê, relativos à alta Guiné e ao litoral centro-ocidental durante os séculos XV-XIX, no período de formação do “mundo atlântico”, os africanos não se fecharam em costumes e instituições imutáveis, mas abriram-se a diferentes inovações. Não se trata, muito longe disso, de assimilação, nem mesmo de processos de mestiçagem ou crioulização pura e simples, mas de transformações decorrentes da ampliação de suas possibilidades históricas ou de alterações que afetaram suas estruturas sociais originais.

É o que indica o estudo do africanista português José da Silva Horta, da Universidade de Lisboa, ao examinar a tessitura das primeiras redes de contato intracontinentais de que participaram africanos livres. Delas tomaram parte indivíduos de diferentes grupos de origem, entre a Senegâmbia, o arquipélago de Cabo Verde, os rios da Guiné e Serra Leoa, de onde sua diferencial participação na formação de aristocracias africanas e luso-africanas nas elites locais. Neste trânsito também circularam conceitos, práticas e experiências religiosas de origem africana em paralelo aos elementos do sagrado cristão, produzindo o que o autor designa de imaginários comunicantes – optando desse modo pela ideia da coexistência, ou no máximo de justaposição de elementos das diferentes cosmologias postas em contato, em vez das sínteses ou mesclas sugeridas pela ideia de imaginários mestiços.

Noutra área geográfica, mas com sentido parecido, verifica-se o processo de reconfiguração desencadeado pela cristianização do Congo na primeira metade do século XVI, quando foi decisiva a atuação de sacerdotes e catequistas congueses na estruturação de novas práticas religiosas. Ao aliar elementos cristãos aos elementos tradicionais de sua sociedade, estes serviram de destacados mediadores culturais, algo posto em evidência pela pesquisadora Marina de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo.

Por razões diferentes, mas relacionadas com as alterações impostas pela gradual importância do porto de Luanda no tráfico transatlântico, surgiram desde o século XVII comunidades de escravos fugitivos, conhecidas pelos nomes de mutolos ou quilombos, que funcionavam como foco de resistência em áreas sob controle português. Em detalhado estudo, o brasileiro Roquinaldo Ferreira, que atua há anos na Universidade de Brown, examina os fatores associados a esta questão – que ganhou maior projeção no século XIX, no contexto da crise do tráfico internacional de escravos.

Outro aspecto a ser sublinhado tem a ver com a alta capacidade de resiliência daquelas sociedades, que souberam resistir a pressões e determinações exteriores, mantendo vivos seus traços essenciais, sobretudo em face da situação colonial – para usar a conhecida expressão cunhada por Georges Balandier. Nesse sentido, o trabalho de Regiane Augusto de Mattos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, desenvolve uma questão pouquíssimo explorada no estudo da institucionalização da conquista colonial europeia ao fim do século XIX: o protagonismo das mulheres anciãs chefes de linhagens do norte de Moçambique, chamadas pia-mwene – com quem as autoridades portuguesas, para garantir sua influência local, foram forçadas a se relacionar, e inclusive a negociar.

Por sua vez, as contradições inerentes às relações desequilibradas entre a metrópole lusa e as colonias de Angola e Moçambique são evidenciadas na interpretação do significado da proclamação da república portuguesa, em 1910, feita por Valdemir Zamparoni, da Universidade Federal da Bahia. O autor examina o contraste entre o ideal universalista do conceito político de república, sua efetiva manifestação conservadora em Portugal e as espectativas frustradas das camadas dirigentes coloniais em face do pragmatismo administrativo de cariz racista inerente ao projeto imperial transplantado para a África.

A busca da complexidade das estratégias africanas norteia por sua vez o texto de Marçal de Menezes Paredes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no estudo sobre a formação nacional em Moçambique no período posterior à independência. A atenção recai especificamente no projeto político e ideológico da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que se baseia na ideia de um homem novo, em consonância com uma noção particular de moçambicanidade.

Saindo da comunidade linguística oficial lusófona, a proposta de análise do brasileiro Acácio de Almeida Santos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do marfinês Aghi Bahi, da Universidade Félix Houphouët-Boigny, recoloca em outros termos as categorias e os conceitos retirados da literatura sociólogica e da ciência política para entender as relações entre sociedade civil e participação política na Costa do Marfim. Trata-se de pensar os componentes e as variáveis da ação política de diferentes segmentos sociais, desde o período colonial até o momento presente, o que põe em causa a ideia corriqueira de um suposto apolitismo ou de uma suposta passividade da sociedade civil diante das elites que controlam o Estado.

Os três últimos artigos privilegiam os discursos e as representações nas sociedades africanas do século XX, pondo acento nas dinâmicas culturais que dão sentido à história e à memória e orientam a ação social e política no período contemporâneo.

O circuito em que transitaram teorias e ideias políticas e a maneira criativa como foram lidas, apropriadas e reinterpretadas pelos intelectuais africanos em diferentes locais, condições e contextos é o que confere grande originalidade ao pensamento social africano, tal como demonstra o artigo de Leila Leite Hernandez, da Universidade de São Paulo.

A maneira pela qual a produção didática em livros de história escritos no período posterior à independência de Angola tem retratado os portugueses, examinada por Anderson Ribeiro Oliva, da Universidade de Brasília, permite entrever o quanto a relação especular com o antigo colonizador continua a conferir sentido a uma identidade nacional em construção.

Por fim, a disputa pela preservação da memória de determinados atores envolvidos em acontecimentos traumáticos do período colonial do sudoeste africano, em especial o caso do massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães, entre 1904-1908, sugere leituras multifacetadas e divergentes das relações euro-africanas ou afro- europeias na Alemanha e na Namíbia. As diferentes formas de celebração dos acontecimentos na memória coletiva dos grupos envolvidos e as interpretações fornecidas pela história levantam a questão da descolonização do passado, como bem aponta o estudo de Silvio Marcus Correa, da Universidade Federal de Santa Catarina, que encerra o dossiê. Para concluir, resta agradecer aos colaboradores que gentilmente enviaram seus textos, acreditando e confiando no dossiê temático aqui publicado. Os resultados alcançados, vistos em conjunto, provam a qualidade dos estudos africanos produzidos no Brasil, vislumbrando caminhos, perspectivas de análise e grandes possibilidades de um futuro promissor.

Referências

BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral da África (UNESCO). Tese (Doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História – USP, 2012.

DIALLO, Youssouf. L’Africanisme en Allemagne, hier et aujourd’hui. Cahiers des Études Africaines (Paris), n. 161, tome XLI-1, 2001, p. 13-43.

FERREIRA, Roquinaldo. A institucionalização dos estudos africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações. Revista Brasileira de História (ANPUH), v. 30. n. 59, 2010, p. 73-90

GOERG, Odile. L’historiographie de l’Afrique de l’Ouest: tendances actuelles. Gêneses (Paris), n. 6, 1991, p. 68-78.

KAKOMBO, Jean-Marie Mutamba. L’histoire de l’Afrique vue par les africains. In: MANDÉ, Issiaka; STEFANSON, Blandine (Orgs.). Les historiens africains et la mondialisation. Actes du 3º congrès international des historiens africains, Bamako, 2001. Paris: Bamako: Éditions Karthala; AHA / ASHIMA, 2005. p. 237-251.

LOPES, Carlos. A pirâmide invertida: historiografia africana feita por africanos. In: VVAA. A Construção e ensino da História de África. Colóquio de Lisboa, 7-9 de junho de 1994. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 12-32.

MAINO, Elisabetta. Pour une genealogie de l’africanisme portugais. Cahiers des Études Africaines, n. 177, tome XLV-1, 2005, p. 165-215.

MARQUES, Diego Ferreira; JARDIM, Marta da Rosa. O que é isto: a África e sua história? In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Travessias antropológicas: estudos em contextos africanos. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia (ABA), 2012. p. 31-61.

NZIEM, Ndaywel. African historians and africanist historians. In: JEWSIEWICKI, Bogumil; NEWBURY, David (Eds). African historiographies. What history for which Africa?. Beverly Hills; London; New Delhi: Sage Publications, 1986. p. 20-27.

PEREIRA, Márcia Guerra. A pesquisa em história da África nas universidades brasileiras: um panorama. In: XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social. Disponível em: http: / / www.snh2013.anpuh. org / resources / anais / 27 / 1364762337_ARQUIVO_ApesquisaemHistoriadaAfrica. pdf. Acesso em: 12 jul. 2014. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014

PIAULT, Marc H. Images de l’Afrique, Afrique imaginaire ou question d’identité brésilienne. Journal des Africanistes (Paris), tome 67-1, p. 9-25, 1997.

SANSONE, Lívio. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. Afro-Ásia (UFBA), v. 27, 2002. p. 249-269.

VYDRINE, Valentin. A propos des études africains en Russie. Journal des Africanistes (Paris), tome 65-2, 1995. p. 235-238.

ZOUNGBO, Victorien Lavou. Idas e vindas: Áfricas, Américas. Trajetórias imaginárias e políticas. Projeto História (PUCSP), n. 44, p. 9-22, 2012. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014

José Rivair Macedo – Departamento de História e PPG de História – UFRGS; Pesquisador do CNPq; Sócio-correspondente da Academia Portuguesa da História; Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos – UFRGS; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos – UFRGS.


MACEDO, José Rivair. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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