A historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a escrita e o tempo / Anos 90 / 2020

O número que aqui apresentamos aos leitores da Revista Anos 90 é composto por sete trabalhos relativos ao Dossiê A Historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a Escrita e o Tempo, além de dois artigos livres. Todos eles se debruçam sobre um tema cuja trajetória é tão extensa quanto volumosa: a atividade missionária da Companhia de Jesus, e a produção historiográfica a respeito dela.

Podemos dizer que a ação dos inacianos em relação às populações dos territórios não europeus, para onde eles se expandiram desde os inícios do século XVI, foi uma das marcas mais significativas da primeira globalização (ALMEIDA, 2010; ARANHA, 1998; CARNEIRO DA CUNHA, 1998; GRUZINSKI, 2004). Nos territórios do Novo Mundo, a nova Modernidade buscou ser, como afirmou Bartomeu Meliá (MELÍA, 2006), “sem limites”, uma vez que visava a agir sobre os colonos europeus, assim como sobre as populações ameríndias, trabalhando para uma transformação que se processava em todos níveis, na sociedade e na economia, na vida familiar e material, no espiritual e no simbólico. As suas “missões”, especialmente aquelas que tinham por método a reducción a pueblos, foram uma singular “experiência de contato”, cuja complexidade e cujos desdobramentos gerou perene interesse de especialistas de variados campos. De uma perspectiva geral, aquilo que os jesuítas definiram como “missão por redução” pode ser entendida, assim, como um “fato social total”, não isenta de tensões.

No Brasil, os estudos sobre os vários espaços missionários em que os jesuítas atuaram, conheceram uma significativa renovação desde os finais do século XX, quando foi possível superar, a partir de uma produção acadêmica gestada no âmbito dos cursos de pós-graduação, em franca expansão na época, os tradicionais enfoques de elogio ou detratação. Na mesma medida, produziu-se, desde então, uma fecunda ampliação dos temas e das abordagens emprestadas às missões, acompanhando a própria trajetória do campo da história naquele momento. Perspectivas que dirigiam seu interesse a questões do campo da Antropologia relativas ao cultural e ao simbólico fecundaram, assim, as tradicionais histórias sobre esta temática.

Mais recentemente, a este movimento associou-se outro igualmente renovador, capaz de produzir uma mudança substancial na perspectiva pela qual se analisa o tema, dizendo respeito à recuperação, para as populações não europeias, de um lugar ativo na configuração dos elementos simbólicos e materiais que constituíram essa história. Tratou-se, fundamentalmente, no caso das Américas, como disse Celestino de Almeida (MOSTACCIO, 2010), de trazer as populações indígenas, dos “bastidores para o palco”.

A partir dos anos 1990, a história dos índios, negligenciada pelos historiadores brasileiros, desenvolveu-se produtivamente no campo da Antropologia, em que surgiram as primeiras vozes críticas, questionando as velhas concepções que lhes reservavam o lugar de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização. Antropólogos e historiadores como Manuela Carneiro da Cunha (ROBERTSON, 1997) e John Manuel Monteiro (ROBERTSON, 1997) representaram as primeiras tentativas de pensar neles como sujeitos históricos. Ambos foram as principais forças motrizes da história dos índios em contato com as sociedades coloniais e pós-coloniais, transformando-os em agentes históricos.

O diálogo com a Antropologia e a fecundidade das abordagens culturais e etno- históricas foram essenciais na reconfiguração do entendimento sobre a dinâmica indígena da missão. Isso em termos de estratégias, lógicas e práticas locais, associadas a uma adoção de certos dispositivos de poder – como a escrita – para fins diferentes daqueles do colonialismo.

Seguindo estes pressupostos teórico-metodológicos, foi possível, dessa maneira, superar a visão clássica que percebia as missões como resultado do talento organizador dos jesuítas, considerando os indígenas como sujeitos passivos e submissos a ele. Outro elemento de “densificação” das histórias que se passaram a produzir, residiu em aportar uma compreensão mais complexa dos espaços missionários, no sentido de superar visões idílicas de sociedades utópicas que puderam viver um “cristianismo feliz”, tal como na definição de Ludovico Muratori (1743)¹.

Trabalhos recentes, partindo de uma perspectiva mais complexa, concebem as missões como espaços ao mesmo tempo religiosos, culturais e políticos, bem como de interações e negociações, individuais e coletivas, em que se transformam tradições, fundamentalmente nativas, mas nas quais, igualmente, sob certos aspectos, as europeias necessitaram ser adaptadas aos contextos locais. Se, por um lado, a análise “global” nos permite situar missões no contexto das políticas de evangelização da Companhia de Jesus no Brasil, por outro lado, a perspectiva “local” integrará, modificará e / ou alterará a implementação de estratégias etnomissionais à escala mundial, bem como envolverá todos os aspectos da colonização europeia. Uma tensão entre agência política, cultura local e redes globais que alguns teóricos definiram como “glocal”².

Finalmente, podemos mencionar a importância de estudos empenhados em superar os prejuízos analíticos comportados por visões compartimentadas do espaço missionário, construídas pelas historiografias nacionais decimonônicas. A elas se opõem, com evidente avanço interpretativo, perspectivas que problematizam a noção de fronteira e que apontam para a ideia de “região”. Podemos, assim, concluir que os estudos contemporâneos sobre os espaços missionários são abertos e interdisciplinares, apontando para a importância de avaliações historiográficas que hoje em dia retomam e reinterpretam criticamente as fontes que permitem estudá-los.

Ao trabalho missionário jesuíta, que se estendeu desde o século XVI, para amplas porções do planeta, está associada uma notável produção historiográfica. Trata-se, portanto, de um tema que tem condensado fortemente, sob muitos aspectos, o interesse de historiadores de diferentes épocas e matrizes historiográficas.

Podemos dizer, efetivamente, que, no esforço de promover e “fazer memória” da sua atuação, as primeiras narrativas das missões foram construídas pelos próprios jesuítas coetâneos a elas, muitas vezes como exercício de propaganda das suas atividades apostólicas. Entretanto, há́ elementos para afirmarmos que o estudo dos espaços missionários permanece revestido de importância e densidade analítica no momento presente.

Ele é, assim, um bom ponto de partida para pensarmos, em vários sentidos, a nossa Modernidade. Entre os mais importantes ou evidentes desses sentidos, podemos apontar a atenção para as respostas locais (ou culturais) à expansão europeia iniciada junto com a Idade Moderna. É de fato possível, a partir daí, instalar-se uma profícua discussão sobre os processos de contato cultural e seus desdobramentos, tema absolutamente contemporâneo. Assim sendo, ao remetermo-nos inapelavelmente às questões das alteridades, das culturas (e, por conseguinte, do relativismo cultural), de seus trânsitos, empréstimos e apropriações, compreendemos que a importância dos espaços missionários jesuíticos justifica o número da Revista Anos 90 aqui apresentado.

Nosso Dossiê é uma amostra da variedade de reflexões que podem ser acionadas a partir da temática sobre a qual discorremos anteriormente, e de como tais problemáticas renovam uma historiografia que já é multissecular. Desejamos que a leitura seja proveitosa e estimuladora de novos trabalhos.

Notas

  1. Erudito italiano, Ludovico Antônio Muratori (1672-1750) ficou particularmente conhecido por meio da obra Cristianesimo felice nelle missioni de’ padri della Compagnia di Gesù nel Paraguay, publicada em Veneza, em 1743. A obra, conhecida como O Cristianismo Feliz defende o trabalho dos jesuítas nas Missões do Paraguai, quando elas eram fortemente criticadas.
  2. Como consequência da tese de doutoramento na Universidade de Chicago (1985), Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo (1994), Monteiro deu visibilidade ao protagonismo dos índios na construção da sociedade colonial da capitania paulista, mostrando que as dinâmicas de conquista e colonização dependiam, em grande medida, das populações indígenas, cujas ações se baseavam nas dinâmicas de suas próprias sociedades.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

ARANHA, Paolo. “Glocal” Conflicts: Missionary Controversies on the Coromandel Coast between the XVII and XVIII centuries. In: CATTO, Michela; MONGINI, Guido; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, [1992] 1998.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. In: História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-15.

GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004.

MELIÁ, Bartomeu. As missões jesuíticas nos sete povos das missões. IHU on-line, setembro de 2006. Disponível em: http: / / www.ihuonline.unisinos.br / artigo / 407-as-missoes-jesuiticas-nos-sete-povos-das-missoes. Acesso em: 20 ago. 2020.

MOSTACCIO, Silvia (eds.). Evangelizzazione e globalizzazione. Le missioni gesuitiche nell’età moderna tra storia e storiografia, Itália: Società editrice Dante Alighieri, 2010. p. 79-83.

ROBERTSON, Roland. Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scot; ROBERTSON, Roland (eds.). Global Modernities. Londres: Thousand Oaks; Nova Delhi: Sage Publications, 1997. p. 25-44.

Alex Coello de la Rosa – Professor da Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Catalunha, Espanha. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-5079-6180

Giovani José da Silva – Professor da Universidade Federal do Amapá, Macapá, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0003-4906-9300

Maria Cristina Bohn Martins – Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-7835-9062


ROSA, Alex Coello de la; SILVA, Giovani José da; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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(IN) Justiças no Mundo do Trabalho: Questões Emergentes e Desafios Permanentes | Anos 90 | 2020

No contexto mundial que vivemos de mudanças drásticas em diversas escalas, os conceitos de justiça e injustiça tomam centralidade e tornam-se fundamentais para pensar uma sociedade democrática e comprometida com os direitos humanos e a dignidade humana. No campo dos conflitos trabalhistas, envolvendo assalariados urbanos e rurais, o próprio reconhecimento do Estado desta condição (direitos) tardou e demora ainda para os trabalhadores e trabalhadoras do campo, mais do que em relação aos seus colegas urbanos e industriais. No Brasil, este atraso foi de exatos vinte anos, entre a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho, em maio de 1943, e aquela do Estatuto do Trabalhador Rural, finalmente aprovado em março de 1963, entrando em vigor meses depois.

A tradição do desprezo pelo rural, no mundo ocidental, é histórica na cultura dominante. Portanto, não é surpreendente constatar tamanha diferença de tratamento por parte de autoridades que definiam também o salário mínimo rural (e portanto a aposentadoria) como a metade daquele regional reconhecido para os empregados urbanos e industriais. A conquista de direitos inéditos pelos trabalhadores rurais – a simples medição do esforço consentido pelo canavieiro, por exemplo, com a Tabela de Tarefas (BARROS, 2014), o repouso remunerado, o décimo terceiro salário etc. – foi acompanhada da instalação de tribunais especializados que supostamente visavam a mediar e resolver os conflitos. Por isso, a denominação de Juntas de Conciliação e Julgamento, o Estado atuando na tradição Varguista como pacificador dos conflitos. Leia Mais

A Organização Internacional do Trabalho e as Américas: conexões e influências / Anos 90 / 2020

Em 2019, foi comemorado o centenário da Organização Internacional do Trabalho, a mais antiga organização internacional em atividade. A OIT foi criada como uma dependência da Liga das Nações, que sobreviveu à reformulação do sistema internacional – posterior à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria –, que incluiu as disputas pela hegemonia das organizações internacionais. Em diferentes locais, por ocasião do centenário, foram realizadas celebrações como o lançamento de livros, atividades artísticas, encontros de especialistas em Direito do Trabalho e de Historiadores interessados no legado desse centenário. A própria OIT realizou atividades comemorativas de diferentes tipos. O centenário foi um momento de comemoração, autocongratulação e de reflexão pelo caminho andado em todo esse tempo. A OIT passou por diferentes etapas e transformações, incorporando novos temas, interesses e reformulando certas abordagens. Algumas coisas mudaram significativamente – a América Latina já teve um Diretor Geral – e algumas temáticas foram incorporadas – abandonando o tom paternalista existente nos primeiros anos e outros temas, como as trabalhadoras domésticas – que passaram a fazer parte do grupo de profissões contempladas e protegidas. Outras permanecem inalteradas desde o início, como a necessidade de ratificação nacional das decisões tomadas em Genebra e a presença de trabalhadores e empresários no processo de tomada de decisões.

Ao longo desses cem anos, a OIT cresceu, incorporando países que nem sequer existiam no momento da sua criação. Hoje em dia, ao todo, são 187 os países membros, um número um pouco menor do que os 193 que integram a Organização das Nações Unidas, que são superados pelos 211 que integram a Federação Internacional de Futebol Associado. Esta quantidade de filiados e os seus cento e um anos de trajetória podem nos levar a pensar num caminho de êxitos constantes, porém, a OIT atravessou uma série de dificuldades nos primeiros anos, bem como durante e depois da Segunda Guerra Mundial. As fortes disputas ideológicas do período Entreguerras e ao longo da Guerra Fria fizeram com que a sua existência fosse, às vezes, subestimada ou fosse transformada em palanque para confrontos entre os adversários ideológicos. É importante destacar que a Liga das Nações, entidade-mãe da OIT, não sobreviveu aos conflitos ideológicos que levaram à Segunda Guerra Mundial e que a ONU, surgida ainda durante a Segunda Guerra Mundial, teve enormes dificuldades até ser aceita como um centro de discussão e debate das relações entre os diversos países.

Tendemos a naturalizar a existência desta instituição e de outras que fazem parte dos organismos internacionais. Porém, quando estudamos os diversos momentos pelos quais atravessou a OIT, assim como a diversidade de questões de que tratou e a necessidade de estabelecer um equilíbrio entre formações econômicas e sociais muito diferentes, então, compreendemos que a sua existência tem a ver com a perícia das suas primeiras conduções e o compromisso dos representantes para que a principal questão social do século XX, o Trabalho, tivesse um espaço de importância nas relações entre os países. O esforço coletivo teve como ponto de partida a demanda dos trabalhadores no final da Primeira Guerra Mundial e, a poucos anos da revolução triunfante na Rússia, para que as suas problemáticas fossem contempladas e legitimadas como importantes no convívio social e na reconfiguração das sociedades europeias no imediato Pós-Guerra. Neste primeiro momento, a existência da OIT não contribuiu para a incorporação plena dos trabalhadores na vida social e, ainda, normalizou o trabalho colonial. Digamos que o objetivo principal da OIT era o combate à ameaça comunista, esvaziando as reclamações operárias. Mesmo assim, esta instituição deve ser valorizada por ter colocado em pauta e estimulado o debate sobre as questões fundamentais do trabalho desde as oito horas de trabalho diárias ao trabalho forçado, o trabalho infantil e feminino, o trabalho marítimo, entre tantos outros.

Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a OIT foi assumindo uma posição cada vez mais técnica, discutindo como as tarefas devem ser desempenhadas, a carga e as condições do trabalho em cada um dos âmbitos em que as tarefas são desenvolvidas e a forma em que as tarefas devem ser desenvolvidas. Ao mesmo tempo em que estabelecia parâmetros técnicos, também politizava o seu acionar reformulando categorias, incorporando novos contingentes de trabalhadores e reconhecendo a importância do trabalho nas sociedades fora da produção capitalista. Esse reconhecimento permitiu que indígenas e comunidades tradicionais pudessem reivindicar direitos e um outro tipo de relação com os Estados Nacionais. De forma definitiva, esse reconhecimento deu elementos legais para a posterior existência de Estados Plurinacionais. A OIT também foi plataforma para denúncias de violações aos Direitos Humanos, pelo que o perfil técnico também foi acompanhado pela politização das suas ações.

Em síntese, a OIT é uma instituição que nos proporciona múltiplas possibilidades analíticas e representa um campo de estudos fértil e promissor. Veremos alguns exemplos nas temáticas desenvolvidas neste dossiê. É preciso mencionar que até dez anos atrás, os estudos sobre a OIT eram escassos, muitas vezes realizados por funcionários ou ex-funcionários da própria OIT. A partir do lançamento do Projeto Centenário, lançado pela OIT, foi que os estudos começaram a deslanchar. Na América Latina, o interesse pela OIT é crescente, porém, ainda engatinha, sendo um grupo importante mais limitado de historiadores. No Brasil, por exemplo, são pouquíssimos os pesquisadores do tema, mas há uma certa expectativa de crescimento e interesse sobre esse tema. Entendemos que este dossiê estimulará algumas novas pesquisas e interesses e revelará a existência de fontes e repositórios que podem renovar os estudos sobre a História do Trabalho no Brasil.

No caso da Argentina, existe, desde 2015, a Rede Interdisciplinar OIT – América Latina, que reúne, num esforço coletivo, regional e interdisciplinar, investigadores e investigadoras de universidades de diversos países como Chile, Brasil, Argentina e Bolívia, entre outros, e que, desde então, na sua perspectiva latino-americana em relação à OIT e ao mundo do trabalho, publicou dois livros, um outro dossiê, organizou oficinas na Argentina (La Plata, 2015) e no Brasil (Niterói, 2017) reunindo muitos painéis, mesas-redondas e apresentações ao longo dos seus cinco anos de existência. Este mesmo dossiê faz parte de uma trajetória comum, que esperamos que continue em franca expansão em relação aos temas, colegas e às produções.

Os artigos que compõem o presente volume da Revista Anos 90 reúnem um grupo de historiadores da América Latina. Em todos os casos, identificamos um diálogo entre a História nacional do Trabalho e a História dos Organismos Internacionais. O diálogo se dá de formas diferentes e identificam questões próprias do vínculo estabelecido entre as partes. Três dos artigos situam-se no período Entreguerras, outro trata do imediato Pós-Guerra e o último deles aborda as décadas de 1950 e 1960. Ao mesmo tempo, a relação Genebra-América Latina é central em todos os casos. Seja abordando questões técnicas ou políticas, o vínculo entre a sede e os governos nacionais são de central importância para todos os autores. Dois artigos colocaram a ênfase em questões técnicas como a maternidade e a produtividade, e o restante analisou as relações políticas entre as partes. Os países analisados são Argentina, Chile e México. O Chile é um dos países com um vínculo mais intenso e prolongado, com uma importante quantidade de Convenções aprovadas, que, ainda, proporcionou importantes quadros técnicos, entre eles, o único Diretor Geral latino-americano, Juan Somavía, que exerceu essa função entre 1999 e 2012.

O primeiro artigo do dossiê é de autoria de Fabian Herrera León, que, em La Oficina Internacional del Trabajo en México: la visita de Edward J. Phelan y Stephen Lawford Childs en mayo de 1933, analisa o interesse da OIT em estabelecer um vínculo duradouro com o México. Esse país estava em processo de ingresso na OIT e na Liga das Nações. As visitas de Phelan e Childs, funcionários de alto escalão na OIT, tinham como objetivo discutir elementos técnicos e principalmente compreender a realidade mexicana pós-revolucionária. O México estava excluído do convívio internacional desde a Revolução e pretendia a sua incorporação nas organizações internacionais, assim como pretendia discutir a sua compreensão das relações entre os países e discutir a forma como se organizava o trabalho e a sociedade nesse país. A visita dos representantes permitia discutir certos elementos da organização da OIT, como a representação corporativa, e resolver a representação operária nas Conferências Internacionais do Trabalho, ante a disputa entre as confederações mexicanas e o vínculo que tinham com o Estado.

O artigo de Paula Lucia Aguilar, Entre la protección y la igualdad: la OIT y el seguro por maternidad en perspectiva regional 1936-1939, analisou os debates acontecidos nas Conferências Pan-Americanas do Trabalho que tiveram lugar na década de 1930. As Conferências foram organizadas pela OIT e os países do continente americano. O interesse da autora está centrado no estatuto da mulher trabalhadora frente à maternidade e às dificuldades para manter o seu salário. A maternidade entrava no debate regional como uma questão vital no processo de expansão da classe trabalhadora no momento de rápida expansão da industrialização e do crescimento da presença feminina no mercado de trabalho.

Andrés Stagnaro analisa a relação da OIT com outro país latino-americano que tem um forte movimento operário, a Argentina. No artigo De la incertidumbre a la estabilización: el devenir de los muchachos peronistas en Ginebra. La representación obrera Argentina ante la OIT (1945-1955), é apresentada uma experiência inovadora do governo peronista, os agregados operários nas embaixadas. Stagnaro apresenta a forma como a Argentina lutava contra o isolamento no imediato Pós-Guerra com uma diplomacia que privilegiava as questões sociais e, portanto, via na OIT um espaço para recompor os seus vínculos internacionais, não sem tensões. A Argentina, governada pelo General Juan Domingo Perón, tinha uma política trabalhista que dialogava com a OIT, porém, precisava resolver as tensões existentes em relação à escolha da representação operária, principalmente com o vínculo estreito existente entre o Estado e a principal central operária, a Confederação Geral do Trabalho.

No caso estudado por Silvia Simonassi em El problema de la productividad en Argentina: perspectivas locales y transnacionales entre el primer peronismo y el frondicismo, temos uma análise de uma política discutida fortemente em Genebra que impactou fortemente na Argentina. A questão da produtividade e a capacidade produtiva da indústria argentina e, no caso dos seus trabalhadores, foi iniciada durante o governo de Juan Domingo Perón e se estendeu pelos vinte anos seguintes. Embora o governo de Perón tenha colocado a produtividade em discussão, nos governos posteriores, durante a proscrição do peronismo, a produtividade foi utilizada pelo governo ditatorial posterior ao golpe que depôs Perón e, no governo de Arturo Frondizi, como um avanço empresarial e estatal, para controlar o processo produtivo. Os trabalhadores, por sua vez, identificaram neste debate técnico uma forma de disputa com os governos antiperonistas.

O último estudo apresentado neste dossiê corresponde à autoria de Patricio Herrera e Juan Carlos Yáñez, Saberes compartidos entre América Latina y la Organización Internacional del Trabajo: un recuento historiográfico contemporâneo. O artigo é uma importante contribuição para compreender a construção de um campo de estudos devido ao mapeamento realizado sobre os estudos em relação à OIT. O seu foco prioritário é o Cone Sul, em grande medida, devido a que esse espaço é o que concentra a maior quantidade de estudos. Os autores mostram que os estudos têm se concentrado no período Entreguerras e no imediato Pós-Guerra. É um artigo importante pela sua capacidade de síntese de um determinado momento da produção regional sobre a OIT, bem como as relações e influências desta organização na região.

Em síntese, o dossiê mostra que este é um campo fértil de estudos e que está em crescimento e expansão. A OIT segue sendo uma instância-chave na legitimação e formação de consensos em relação à concepção e às definições do que é trabalho, quem são consideradxs sujeitos desse mundo e suas diversas formas, como deveriam ser reguladas, quais são os seus direitos básicos associados aos homens e às mulheres que o exercem. No atual contexto, as próprias formas do trabalho e com elas o labor da OIT viram-se profundamente afetados pela pandemia mundial, as diversas formas que adotou a quarentena em cada contexto nacional e regional, e as prementes situações de desconhecimento de Direitos, desregulação trabalhista laboral e demais situações limites em campos, tais como o chamado trabalho de plataformas, os novos sujeitos ficaram visíveis nesta conjuntura como os repartidores de aplicações, afirmação que corresponde à nossa região e que visibilizou e demandou a intervenção e o debate sobre essas questões, com particular intensidade na Argentina e aqui no Brasil. Em particular, o Brasil ainda precisa voltar o seu olhar para as relações internacionais e com os organismos internacionais. Compreender a importância e influência mútua entre as partes e a necessidade desses organismos políticos e técnicos no estabelecimento ou na legitimação de políticas. Esperamos que o dossiê ajude a alavancar novos estudos e debates sobre o tema.

Laura Caruso – Dra. Laura Caruso. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-6556-5705 . Universidad Nacional de San Martín (UNSM), San Martín, Buenos Aires, Argentina

Norberto O. Ferreras – Dr. Norberto O. Ferreras. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-3801-0418 Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil


CARUSO, Laura; FERRERAS, Norberto O. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Resistências africanas: novos problemas e debates / Anos 90 / 2019

A história da resistência africana tem também a sua história. Seus primórdios remontam à tendência anticolonial a partir da segunda metade do século XX e que marca não apenas os textos ficcionais sob a forma de contos, novelas e romances de uma primeira geração de escritores africanos, mas também a historiografia sobre a África do período colonial.

Até então, uma literatura colonial havia abordado as resistências como movimentos retrógrados, refratários à modernização. Ela considerou as várias rebeliões e insurgências como “revoltas bárbaras”, irracionais e amorfas. Na perspectiva dos colonizadores europeus, as resistências eram um atavismo, uma simples manifestação da “tradição” em prol da reprodução das estruturas arcaicas, da preservação dos direitos consuetudinários, da defesa dos privilégios de uma elite local etc.

Nos arquivos coloniais, encontram-se evidências de diversas manifestações e movimentos anticoloniais em África, com destaque para aquelas que ocorreram nas áreas de forte presença muçulmana. Para ficar num exemplo, a Revolta Mahdista ou Mahdiyya no Sudão (1881-1899), uma das maiores experiências históricas de contestação ao domínio estrangeiro. Em reação à ingerência econômica e política da Inglaterra e da França e que atingiam o vice-reinado do Egito quedival e do Império otomano, a Mahdiyya – liderada por Muhammad Ahmad – foi uma forma de resistência paradigmática e com desdobramentos nas relações de poder na África setentrional e na África Oriental durante o imperialismo colonial.

Também na África ocidental, os movimentos de resistência pululam, sobretudo em áreas islamizadas. Tais movimentos foram considerados de caráter “primário” por uma historiografia da primeira metade do século XX. A partir da década de 1950, temos as primeiras análises de relatos produzidos oralmente e de fontes escritas em árabe, que se revelam verdadeiros “campos de batalhas” narrativos, na acepção de Edward Said, na sua conhecida obra Cultura e Imperialismo.

Uma primeira historiografia crítica ao colonialismo favoreceu a identificação de processos de negociação entre os poderes coloniais e as elites africanas. Houve também novas interpretações das resistências africanas. Em Dacar, Ibadan e Dar es Salaam, para ficar em três exemplos, a nova historiografia africana fez das resistências africanas uma ferramenta importante para a análise das relações de poder nos quadros do colonialismo.

Os trabalhos de Allen Isaacman, Jan Vansina, Terence Osborn Ranger e de outros historiadores contribuíram para uma ideia de conjunto sobre as resistências africanas. Houve também propostas para uma tipologia das resistências africanas e mesmo para uma cronologia, como aquelas do historiador queniano Ali Al’amin Mazrui e do historiador ganense Albert Adu Boahen.

Acontece que a lógica binária do modelo “dominação e resistência” para a história da África colonial acabou por limitar a análise de certas formas concretas de exercício do poder. Para Frederick Cooper, o emprego do conceito de “resistência” na historiografia africana foi “menos sutil, menos dialético, menos reflexivo” do que a ideia de agência dos estudos subalternos.1 É verdade que o modelo “dominação e resistência”, que marcou a historiografia sobre a África colonial nas décadas de 1960 e 70, foi por vezes redutor, pois quem não resistia, colaborava e quem não colaborava, resistia.

Ao mesmo tempo, livros como Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, e Les Damnés de la Terre (1961), de Frantz Fanon, apresentam o colonialismo como um sistema que provocava uma “esquizofrenia social” e que redundava numa série de contradições, numa aporia. Tal processo desagregador, na perspectiva fanoniana, seria superado pela via revolucionária, que provocaria a necessária ruptura com o colonialismo, ensejando as independências africanas.

No entanto, aquilo que justificou ideologicamente certos movimentos de libertação, revelou- -se frágil e anacrônico quando foi transposto como ferramenta de análise dos processos africanos de um passado recente. Pode-se dizer que houve na historiografia pós-colonial uma inflação das resistências anticoloniais e dos movimentos protonacionalistas. Desde o início do processo de independência dos países africanos, uma escrita da história nacionalista projetou no passado africano pré-colonial a ideia de nação. Fazer a genealogia das modernas nações africanas foi a missão de uma historiografia que, não sem ironia, defendeu a perspectiva africana, a história “autenticamente” africana.

Apesar da importância da busca pela autenticidade africana em termos epistemológicos, novas abordagens no campo da história têm suscitado uma revisão da historiografia daquela primeira geração de historiadores africanos e de africanistas. Além dos estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais, as próprias experiências políticas de um passado recente, especialmente de ditaduras militares, de guerra civil ou de regimes de partido único, concorrem para repensar as resistências africanas, inclusive contra um neocolonialismo. Destacam-se, por exemplo, as contribuições de Klaas van Walraven, Jon Abbink, Gregory Maddox e Frederick Cooper sobre o conceito de resistência na história da África. Cabe ainda ressaltar uma “feminização” da resistência africana por uma historiografia atenta às questões de gênero e cujos trabalhos de Nina Emma Mba, Catherine Coquery-Vidrovitch, Cora Ann Presley, Luise White, Tabitha Kanogo e Norma Krieger são alguns exemplos.

A reflexão e o debate sobre as resistências africanas trouxeram à baila novas questões sobre a África diante à colonização e mesmo diante à globalização. Os estudos sobre as resistências africanas reunidos nesse dossiê propõem novas abordagens, novos casos e algumas revisões necessárias, inclusive um rigor teórico e metodológico à luz das contribuições historiográficas recentes, além de outras de áreas afins como a antropologia e a sociologia da África contemporânea.

O artigo intitulado O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma, de Felipe Paiva, abre o presente dossiê. Trata-se de uma revisão crítica de um paradigma da historiografia sobre a África colonial pelo autor de Indômita Babel. 2Muçulmanos africanos e a escravidão negra no Mundo Atlântico: interpretações, significados e resistências (séculos XVI e XVII) é o segundo artigo do dossiê. De autoria de Thiago Henrique Mota, o artigo aborda algumas resistências na África ocidental a partir da conexão entre escravidão e religião islâmica. O terceiro artigo também destaca a relação entre religião (muçulmana) e resistência. Sua autora, Regiane Augusto de Mattos, aborda as formas de trabalho no norte de Moçambique entre o final do século XIX e início do século XX como elementos fundamentais para a análise das resistências. Diferente é o foco do artigo de Hector Guerra Hernandez sobre as formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique. O autor analisa diferentes ações individuais e coletivas diante do recrutamento dos trabalhadores forçados durante o colonialismo português.

No quinto artigo do dossiê, Mahfouz Ag Adnane propõe uma análise da resistência nos territórios saarianos do Kel Tamacheque diante da ofensiva colonial francesa (1881-1919). Destaca-se a leitura crítica das fontes para propor uma nova abordagem ao debate historiográfico.

O último artigo do dossiê tem uma componente biográfica. Ângela Fileno da Silva apresenta as dissenções entre os brasileiros que se encontravam em Lagos entre as décadas de 1880 e 1890. A autora analisa conflitos e acomodações diante da presença britânica, destacando aspectos relevantes para a compreensão dos limites das ações individuais e coletivas, das constantes renegociações e dos seus desdobramentos na vida daqueles brasileiros.

A entrevista com Suresh Kumar, do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Délhi, enfatiza a importância do Departamento de Estudos Africanos da citada universidade, criado em 1948, no imediato pós-independência indiana, com a perspectiva de se propor uma aproximação com os espaços africanos em processos de conflitos anticoloniais e de se pensar em pautas internacionais reivindicatórias das novas nações que emergiam. Encerra o dossiê a sessão com as seguintes resenhas: A Escrita da História da África: Política e Resistência, de Carolina Bezerra Machado, Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910), de Matheus Serva Pereira, e Sonhos em Tempos de Guerra, de Daniel De Lucca.

Boa leitura!

Notas

1. COOPER, Frederick. Conflict and connection: rethinking colonial African History. The American Historical Review, v. 99, n. 5, p. 1516-1545, 1994

2. PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Rio de Janeiro: Eduff, 2017.

Patrícia Teixeira Santos – Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil Sílvio.

Marcus de Souza Correa – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil.


SANTOS, Patrícia Teixeira; CORREA, Marcus de Souza. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Exercício do poder na idade média e suas representações: novas fronteiras, novos significados / Anos 90 / 2019

Esta publicação é fruto da intensificação de debates dirigidos por um grupo multi-institucional e internacional de pesquisadores(as) latino-americanos(as) que a cada dois anos, desde 2016, tem se reunido nas atividades da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais.1 A Rede não se propõe nem se apresenta como uma Associação. Os(as) pesquisadores(as) nela reunidos(as) consideram que entidades como a Sociedad Argentina de Estudios Medievales (SAEMED) e a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumprem esse papel. A ideia é, portanto, estimular diálogos e atividades sistemáticas de modo a intensificar e qualificar cada vez mais a produção historiográfica sobre o medievo para além dos espaços europeus, sem, obviamente, abrir mão dos convênios, acordos e parcerias com instituições desse continente.

As atividades da Rede começaram a concretizar-se a partir do Foro Internacional Estudios Medievales en Red, ocorrido na Universidad Nacional de Costa Rica, e no II Encontro, realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul, em Chapecó (2016 e 2018 respectivamente). Desses encontros foram definidas ao menos duas publicações que colocam em perspectiva diferentes formas de se pesquisar Idade Média: a obra La edad media en perspectiva latinoamericana2, publicada em 2018, e este dossiê publicado pela Anos 90.

Esta proposta visa a ampliar a visibilidade da produção historiográfica latino-americana no campo dos estudos medievais. Objetivo que consideramos plenamente alcançado. A justificativa fundamenta-se no fato de ser possível perceber um crescimento substancial e cada vez mais especializado na área. Junto a este crescimento quantitativo, observa-se, ainda, uma diversidade e originalidade nas abordagens historiográficas, temáticas e conceituais. Cabe ressaltar que a Anos 90 se insere, com esta publicação, em um contexto de recente interesse de periódicos nacionais pela temática da Idade Média, como a Revista Brasileira de História, Revista de História, Tempo, Esboços e História em Revista. 3

Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados reúne dez trabalhos de pesquisadores(as) do Brasil, Chile, Costa Rica, México e França. Pode ser compreendido como uma publicação dividida e pensada em ao menos dois eixos: o primeiro remete às recentes disputas sobre o ensino escolar de história medieval e às reflexões de cunho historiográfico. O texto de Douglas Mota Xavier de Lima abre o dossiê à medida que toca em temas candentes e extremamente atuais sobre os usos públicos da Idade Média – não apenas no Brasil – e, principalmente, no contexto da elaboração / implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Este primeiro artigo do dossiê se dedica, especialmente, a discutir a presença do tema da Idade Média na educação escolar, tendo como documento principal de suas análises três versões da BNCC.

Outros dois trabalhos foram feitos por historiadores mexicanos. No artigo “Claudio Sánchez- -Albornoz y la preocupación por el método o cómo hacer historia medieval desde América Latina”, Martin Federico Rios Saloma investiga o trabalho deste medievalista espanhol, especialmente sua atuação durante seu período de exílio na Argentina. Seus vínculos com medievalistas europeus e seu conhecimento sobre fundos documentais espanhóis serão as bases para a análise de seu trabalho como docente e pesquisador em História Medieval.

Diego Carlo Améndolla Spínola, por seu turno, traz no artigo “Feudalismo: estado de la cuestión, controversias y propuestas metodológicas en torno a un concepto conflictivo, 1929-2015” um estudo não de um historiador em especial, mas de um conceito: o feudalismo. Para tanto, o aporte historiográfico utilizado pelo autor lida com medievalistas alemães, franceses, ingleses e italianos, não com o objetivo específico de definir o conceito, mas de verificar as transformações em sua compreensão e seu uso.

O segundo eixo do dossiê está organizado a partir de aspectos cronológicos, sendo composto pela maior parte dos artigos aqui presentes. Contempla, portanto, diferentes abordagens que assim se caracterizam seja pela diversidade de objetos (relações entre romanos e bárbaros, concílios, mosteiros), espaços (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Castela) e tipos documentais (narrativos, jurídico-normativos, tratadística, arqueológicos).

Neste segundo eixo, Renato Viana Boy apresenta uma discussão historiográfica sobre as relações de poder e autoridade no mundo mediterrânico do século VI entre romanos bizantinos e bárbaros. Mais do que perceber neste espaço e período apenas as disputas e conflitos, o autor tenta encontrar possíveis relações políticas que poderiam aproximar populações, à primeira vista, distantes.

Outros três artigos lidam com reflexões que têm a Península Ibérica como recorte geográfico. No primeiro deles, intitulado “A imagem historiográfica de Hugo de Cluny em Leão (séc. XI-XII)”, Maria Filomena Pinto da Costa Coelho apresenta uma análise historiográfica sobre a força política do abade Hugo de Cluny, para além de seu espaço de atuação nos domínios da religião, durante o reinado de Afonso IV. Em “O poder sacralizado dos clérigos de Castela (século XIII e início do século XIV)”, Leandro Alves Teodoro analisa, para os séculos XIII e XIV, o processo de sacralização da Eucaristia e a celebração de missas como parte do revigoramento da ação pastoral dos bispos ibéricos, ampliando o espaço de atuação das igrejas paroquianas. Ainda sobre o recorte ibérico, Armando Torres Fauaz, no artigo “Representación y delegación de poderes. Los usos públicos del mandato en el ducado de Borgoña (siglos XIII-XIV)”, apresenta-nos um estudo sobre o exercício de um governo laico no Ocidente medieval, a partir da prática romana do mandato no ducado da Borgonha dos séculos XIII e XIV, como sendo uma atividade central nas práticas de representação de autoridade. Os outros artigos deste dossiê lidam com temáticas aplicadas para além do espaço ibérico. Em “‘Assembled as one man’. The councils of Henry II and the political community of England”, José Manuel Cerda se dedicou a analisar a presença das communitas ou universitas regni como uma comunidade de nobres que eram peça-chave na compreensão das origens parlamentares inglesas. O artigo “Redes e centros de poder no Centro-Oeste Gaulês na primeira Idade Média (séculos V-X)”, de autoria de Adrien Bayard, trabalhou a relação entre fontes de natureza escrita e arqueológica para o estudo das redes estabelecidas entre grupos aristocráticos locais e representantes do poder visigodo e, depois, franco, nas dioceses de Angolema e Saintes, entre os séculos V e X. E, fechando o dossiê, no artigo “O abade, o poeta e o charlatão: reflexões acerca de esoterismo e política nos séculos XV e XVI”, onde o historiador Francisco de Paula Sousa Mendonça Júnior trabalhou com a relação entre esoterismo e política no processo de transição do regimen animarum para a Razão de Estado. Para tanto, Francisco se utilizou de fontes de origem alemãs e italianas.

Assim, entendemos que a reunião de artigos presentes no dossiê Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados apresenta não apenas um apanhado de recentes pesquisas sobre o medievo, mas também demonstra uma forte articulação da produção historiográfica brasileira e estrangeira (em especial, latinoamericana) sobre a Idade Média. Além desse diálogo mais próximo entre pesquisadores de diferentes países, os artigos que compõem este dossiê demonstram, ainda, uma variedade que se dá em aspectos distintos: temático, cronológico, geográfico, documental e metodológico. Assim, acreditamos que os objetivos traçados nos momentos de encontro dos pesquisadores da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais, que se fundamentavam basicamente na produção e divulgação de trabalhos que prezam pela qualidade, atualidade, diversidade e intenso diálogo entre medievalistas de diferentes espaços, tenham sido alcançados neste dossiê.

Notas

1. Informações sobre a Rede em: http: / / edadmedia.cl / rede-latino-americana-de-estudos-medievais /

2. TORRES FAUAZ, A. (org). La edad media en perspectiva latinoamericana. Heredía: EUNA, 2018.

3. Considerando de 2016 a 2019, e incluindo este dossiê da Anos 90, foram / estão para ser publicados ao menos 6 dossiês sobre o medievo. Este número é mais amplo se considerarmos outras publicações, como a Antíteses e a Diálogos Mediterrânicos. Essa inserção / ampliação das publicações se dá além das duas revistas mais específicas da área, Signum e Brathair. Importante considerar também a Revista Chilena de Estudios Medievales e a Temas Medievales, Argentina. Todas podem ser acessadas online e gratuitamente.

Igor Salomão Teixeira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6866-9654

José Manuel Cerda Costabal – Professor da Universidad Gabriela Mistral, Santiago, Chile. Doutor em História pela University of New South Wales, Sydney, Austrália. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-6175-774X

Renato Viana Boy – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó, SC, Brasil. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


BOY, Renato Viana; COSTABAL, José Manuel Cerda; TEIXEIRA, Igor Salomão. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil / Anos 90 / 2019

Em junho de 2010, Judith Butler proferiu uma conferência em Berlim por ocasião do Christoph Street Day, sendo condecorada com o prêmio Courage, o qual recusaria. Queere Bündnisse und Antikriegspolitik, título em alemão dado à fala de Butler, traduzida e publicada em português como Alianças queer e política anti-guerra1, expressa os motivos da filósofa para tal recusa. O texto também ilumina os objetivos que orientaram a proposta do presente dossiê.

Na conferência de Berlim, Butler destacou o quão surpreendente eram as alianças na Turquia (aparentemente “atrasada”), onde feministas trabalhavam com pessoas gays, lésbicas, trans e queer contra a violência policial, “unidas na sua oposição ao militarismo, ao nacionalismo e àquelas formas de machismo que os sustentam”2. Em contraponto, lembrou seu encontro, durante uma conferência sobre gênero e educação em Lyon, na França (aparentemente “avançada”), com uma feminista que havia escrito um livro sobre a “ilusão” da transexualidade e que tinha suas palestras públicas “atacadas” por várias ativistas trans e seus / suas aliados(as) dissidentes queer.

As especificidades da homofobia, da transfobia e da misoginia precisam ser entendidas, reconhece Butler. Contudo, nenhuma delas pode ser bem compreendida sem referência uma à outra. Elas estão profundamente ligadas em um mundo no qual certas normas governam como os corpos podem e não podem se mover no mundo, como corpos devem surgir ou fracassar em surgir, como a discriminação e a violência ocorrem com base no modo como corpos e desejos são percebidos3 . A luta de uma minoria desprivilegiada está invariavelmente ligada à luta de todas as minorias desprivilegiadas.

Nesse sentido, Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também poderia ter como título “Alianças queer e política anti-guerra”. Os artigos reunidos aqui pretendem historicizar e problematizar as lutas feministas e LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e +) no Brasil. Privilegia como marco temporal a segunda metade do século XX, momento em que emergem, internacionalmente e no Brasil, os feminismos de “segunda onda” e os movimentos homossexuais; e as primeiras décadas do século XXI, quando esses movimentos multiplicam e diversificam sujeitos, reivindicações e estratégias de mobilização. Desse modo, os textos reunidos analisam as estratégias de resistências empreendidas por mulheres e LGBTQ+ a partir do final da ditadura civil-militar, no período da redemocratização, nos últimos governos democráticos.

No artigo que abre o dossiê, Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia, Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad analisam as pesquisas apresentadas em 2015, ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em eventos de Comunicação, como o Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom, o Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do Encontro Nacional da Compós e o GT de História da Mídia Alternativa, a fim de questionar se os textos selecionados tematizavam a comunicação de lésbicas — organizadas em grupos ou presentes de forma individual em mídias diversas. Conforme as autoras, nos eventos científicos mencionados, pouco ou nada se discutiu sobre a temática das lésbicas.

Jamil Cabral Sierra, em Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015, estuda os processos de constituição, no cenário brasileiro, da noção de diversidade sexual e de gênero, bem como de que maneira tal noção se associou às políticas identitárias das últimas décadas no Brasil. O autor problematiza a parceria entre Estado e movimentos sociais, especialmente LGBT, de modo a caracterizar como essa relação tem produzido as formas de governamento dos sujeitos LGBT nos últimos 13 anos (até o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff).

No texto “Que Possamos Ser o que Somos”: memórias sobre o Movimento Gay de Alfenas no processo de luta pelos direitos de cidadania LGBT (2000-2018), Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa parte da memória coletiva expressa por meio da história oral de vida de quatro membros mais antigos do Movimento Gay de Alfenas (MGA), fundado no ano de 2000 no sul de Minas Gerais. Com isso, a autora lança luz sobre a atuação da organização na defesa dos direitos humanos, em questões jurídicas e em manifestações culturais e políticas.

O que nos faz humanos? Maria Lídia Magliani e a solidão do corpo em tempos fascistas, de Gregory da Silva Balthazar, se apropria do conceito de rosto conforme discutido por Judith Butler como um operador decisivo de uma ética intersubjetiva em tempos de fascismos individualizantes. Para tanto, o autor traz a debate as pinturas de Maria Lídia Magliani, problematizando “sua potência em nos sugerir possibilidades de repensarmos, conjuntamente, o próprio sentido do que nos faz humanos.

Inaugurando as discussões no dossiê sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil, Antonio Mauricio Freitas Brito analisa, em “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura, algumas representações anticomunistas heteronormativas elaboradas por militares sobre sexualidade, moralidade e juventude durante a ditadura no Brasil. A partir da preocupação de membros da caserna com a ação comunista junto aos jovens, o autor revela a concepção de mundo que estigmatizava e temia comportamentos desviantes de gênero.

Em seguida, no artigo Sob vigilância: os movimentos feministas brasileiros na visão dos órgãos de informação durante a ditadura (1970-1980), Ana Rita Fonteles Duarte analisa as informações produzidas por diferentes órgãos de vigilância ligados ao aparato repressor durante a ditadura civil militar brasileira sobre os movimentos feministas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, a partir de documentos encontrados nos Arquivos do Estado do Rio de Janeiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.

Por sua vez, em Feminismo vende? Apropriações de discursos democráticos pela publicidade em Claudia (1970-1989), Soraia Carolina de Mello propõe estabelecer relações entre publicidade, feminismos e democracia nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil a partir da Revista Claudia. A ideia da publicidade como espaço de informação e educação e seu potencial como divulgadora de ideias feministas ou propagadora de estereótipos de gênero também são abordados no artigo, a partir de teorias feministas, estudos culturais e as noções de subjetivação / singularização.

Por fim, no artigo “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”: Movimento de Mulheres do IAJES, Movimento Regional de Mulheres e a luta por democracia no Brasil, Cíntia Lima Crescêncio e Mariana Esteves de Oliveira apresentam a mobilização do Movimento de Mulheres do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) e do Movimento Regional de Mulheres (MRM), rede formada no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, na construção da Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. A Carta foi resultado de ampla discussão a nível nacional de inúmeros movimentos de mulheres e feministas que, entre 1985 e 1987, fizeram debates e coletaram assinaturas para garantir “demandas das mulheres” na nova Constituição (1988). Como lembram as autoras, “a documentação selecionada permite uma reflexão fundamental sobre os movimentos de mulheres e feministas de ontem e de hoje, bem como as sensíveis aproximações e afastamentos desses grupos”.

Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também está assinalado, em sua gênese, pela vulnerabilidade e pela precariedade que marcam as vidas das mulheres e de LGBTQ+s no Brasil contemporâneo. Segundo os dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Atlas da Violência, lançado em 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 20174 . A maior parte das vítimas (66%) é negra! Por outro lado, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que pela primeira vez trouxe um recorte específico de casos relacionados à violência contra o público LGBTQ+, informou que 99 gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais foram assassinados(as) em 20175 . Segundo o Anuário, divulgado este ano durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de LGBTQ+s agredidos fisicamente teve alta de 1,3% entre 2017 e 2018.

Parafraseando Butler, este dossiê é sobre essa vulnerabilidade e essa precariedade que marcam as sexualidades e os gêneros dissidentes, mas é também sobre os desejos, as ocupações dos espaços públicos, as reivindicações por visibilidade e escuta ontem e hoje, sendo tudo isso absolutamente essencial para qualquer movimento político / sexual / de gênero. É absolutamente essencial para a vida em democracia com justiça de gênero, sexualidade, raça e classe.

Agradecemos aos / às autores(as) por terem enviado suas propostas. Somos gratos também ao Alessander Mario Kerber e à equipe da revista Anos 90 pelo espaço e pelo diálogo. Finalmente, agradecemos a cada leitor, leitora, leitxr, por fazer da leitura deste dossiê uma possibilidade política de lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia, de alianças queer e política anti-guerra. Boa leitura!!

Notas

1. BUTLER, J. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 11, n. 16, p. 29-49, 2017. Disponível em: https: / / periodicos.ufrn.br / bagoas / article / view / 12530. Acesso em: 22 dez. 2019.

2. Ibidem, p. 31-32.

3. Ibidem, p. 37.

4. CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

5. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019

Joana Maria Pedro – Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorados na França, na Université d’Avignon, e nos Estados Unidos, na Brown University. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5690-4859

Elias Ferreira Veras – Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-7726-4475


PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e Patrimônio: questões teóricas e metodológicas / Anos 90 / 2018

O presente dossiê pretende contribuir para os debates recentes acerca das interfaces entre história e patrimônio. Para tanto, agrega artigos que enfocam questões teóricas e metodológicas referentes a três possibilidades de interface entre história e patrimônio. A primeira delas trata das investigações acadêmicas sobre os processos de patrimonializacão e usos do passado, cuja acolhida não se estabeleceu apenas em programas de pós-graduação stricto sensu em História, mas em uma miríade de programas interdisciplinares criados no Brasil nas últimas décadas. A segunda possibilidade envolve a atuação do profissional historiador em um campo de disputas, onde estão em jogo os embates em torno de práticas e representações sobre os bens culturais e sobre o passado. Finalmente, a terceira interface está relacionada ao ensino de história e envolve especialmente as políticas educacionais que, no Brasil, tem colocado o patrimônio como eixo de abordagens transversais no currículo escolar. Em qualquer destes lugares de produção histórica sobre o patrimônio, o aprofundamento teórico e metodológico constitui-se em prerrogativa para o avanço da reflexão sobre a especificidade das contribuições do conhecimento histórico para a questão, bem como para o compartilhamento e debate interdisciplinar com outras áreas envolvidas. Desse modo, o Dossiê História e Patrimônio agrega reflexões de ordem teórica e metodológica relacionadas às possibilidades de interface acima elencadas, discutindo autores e conceitos utilizados, bem como metodologias postas em ação para elucidação de problemas.

A ideia da proposição desse dossiê partiu de debates acerca da importância das questões teórico-metodológicas desenvolvidos no GT História e Patrimônio Cultural da ANPUH e foi aprovada pela Comissão Editorial da Anos 90 no primeiro semestre de 2017. Foi feita uma chamada ampla no dia 31 de julho de 2017 para que todos os doutores que investigam acerca dessa temática interessados em publicar artigos no dossiê fizessem as submissões. O prazo para submissão estendeu-se até o dia 30 de abril de 2018, quando iniciou a busca por outros doutores especialistas no tema para que fizessem gratuitamente a avaliação dos artigos submetidos, conforme as normas da revista. Agradecemos a esses avaliadores anônimos que muito contribuíram para a seleção e qualidade dos textos aqui publicados.

Ao final do processo de avaliação, foram aprovados os artigos que seguem:

“O lugar do patrimônio na operação historiográfica e o lugar da história no campo do patrimônio”, de Zita Rosane Possamai, mapeia a história do patrimônio no Brasil a partir da contribuição dos museus e destaca a presença da produção historiográfica nesses espaços. Problematiza as aproximações e distanciamentos desse saber nesse campo e finaliza com a análise de dados recentes sobre a produção em nível de pós-graduação sobre patrimônio em diversas áreas, com ênfase na história.

“Patrimônio cultural na contemporaneidade: discussões e interlocuções sobre os campos desse saber”, de Elis Regina Barbosa Angelo e Euler David de Siqueira, discute, a partir dos aportes conceituais da História e da Antropologia, as relações entre o patrimônio, como elemento de diálogo com o passado, e os processos vinculados à memória, à identidade, ao tempo e à cultura. Situa a configuração do patrimônio associado ao Estado-nação e problematiza os movimentos identitários mais recentes, presentes em diversas regiões do mundo, que reivindicam a valorização dos patrimônios locais no contexto da globalização.

“Memórias e identidades: a Patrimonialização e os usos do passado”, de autoria de Sandra C. A. Pelegrini, busca mostrar os “perigos” aos quais estão sujeitos os profissionais de diversas áreas atuantes em comissões ou conselhos ligados à preservação dos bens culturais. O estudo de caso do processo de tombamento e de registro de bens patrimoniais, na Estância Balneária de São Vicente (São Paulo), permitiu à autora relacionar aportes teóricos e metodológicos na abordagem da questão.

“Patrimônio cultural e turismo: tensões contemporâneas”, de Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho, enfrenta os tensionamentos decorrentes da relação entre patrimônio e turismo, ao ter como foco a cidade de Barcelona, Espanha. Os autores mostram como bens culturais ativados como patrimônios mundiais constituíram-se como suportes para contestações contra a presença dos turistas na cidade e contra a expansão desenfreada do turismo internacional na região. Através das imagens fotográficas chega-se a vozes / imagens dissonantes produzidas por sujeitos individuais ou coletivos, contrários à presença desses visitantes na cidade.

“Patrimônio e performance cultural: experiência e territorialidade na conquista do espaço”, de Eloísa Pereira Barros, através dos conceitos de território, performance cultural e sua relação com o patrimônio, propõe refletir sobre as ideias de memória, performance, cultura e identidade. Considera o patrimônio cultural como prática social que performa o movimento realizado pelos grupos sociais ao materializar os aspectos simbólicos e codificados da cultura nos espaços sociais, seja ele material ou imaterial.

“O registro do Cordel como patrimônio imaterial e as políticas de preservação da cultura popular no Brasil”, de Antonio Gilberto Ramos Nogueira, aborda os desafios da preservação dos aspectos culturais intangíveis e percorre as mudanças conceituais e metodológicas nas políticas públicas sobre essa problemática. Trata do processo de construção dos sentidos de patrimônio cultural imaterial e da patrimonialização do Cordel no Brasil. Através da trajetória da Literatura de Cordel, o autor mapeia os deslocamentos de sentidos, indo do folclore ao patrimônio imaterial, nas políticas públicas no que se refere à noção de cultura popular.

“A patrimonialização e suas contradições: o patrimônio prisional na França do tempo presente”, de Viviane Trindade Borges, aborda os embates em torno das práticas de patrimonialização de espaços prisionais na França, tendo como foco o caso da Prison de La Santé. A autora analisa os destinos contraditórios desses patrimônios monumentais, obsoletos na atualidade, e problematiza a atuação de intelectuais franceses nesse processo, entre os quais alguns historiadores, que debatem a emergência do conceito de patrimônio carcerário ou patrimônio prisional.

“Entre a sala de aula e o gabinete do museu: as primeiras coleções do Museu Histórico de Londrina / PR na gestão do Padre e Professor Carlos Weiss (1970-1976)”, de Cláudia Eliane P. Marques Martinez e Angelita Marques Visalli, analisa o processo de constituição das primeiras coleções no Museu Histórico de Londrina, a partir das iniciativas de seu primeiro diretor, Pe. Carlos Weiss (1970 a 1976). A atuação desse diretor determinou a escolha e prioridade dada a alguns objetos específicos, sobretudo artefatos arqueológicos e etnográficos. A quantificação do acervo por meio de um banco de dados com os registros do Primeiro Livro de Registro do Museu Histórico de Londrina permitiu analisar a recorrência nessas coleções de artefatos arqueológicos e etnográficos, provenientes da região.

Finalmente, “Goiânia: dinâmicas do patrimônio e da memória entre a instituição da cidade-monumento e a cidade-praticada”, de Edmar Aparecido de Barra e Lopes, aborda a discussão acerca dos usos sociais do passado e suas relações com a dinâmica da patrimonialização a partir da análise de narrativas dominantes sobre o urbano e a cidade de Goiânia / GO.

Essa variedade de problemas, objetos e casos empíricos apresentados demonstra, por um lado, a fertilidade das investigações sobre o patrimônio desenvolvidas no âmbito dos estudos históricos. Por outro lado, essas pesquisas demonstram a necessidade de diálogo com outras áreas de conhecimento e como essas permitem apreender a complexidade dessas questões. Finalmente, apontam para a problematização e legitimação da atuação do profissional de história e de outras áreas nesse campo. Sem exaurir as possibilidades, certamente inesgotáveis, desejamos que esse dossiê venha a contribuir para a reflexão e inspiração para novas pesquisas. E, especialmente nesse momento em que o patrimônio brasileiro sofreu uma perda inestimável com o incêndio do Museu Nacional, renove nossas esperanças em seguir agindo na defesa da preservação dos traços de nossas memórias e dos nossos passados.

Zita Possamai – Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS. Doutora em História com pós-doutoramento na Universidade Paris 3 Sorbonne Nouvelle (França). Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: [email protected] , http: / / orcid.org / 0000-0003-4014-5389

Alessander Kerber – Professor associado do Departamento de História e do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em História com pós-doutoramentos na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidad Nacional de Cuyo (UNCUYO, Argentina). E-mail: [email protected] , https: / / orcid.org / 0000-0002-7604-7484


POSSAMAI, Zita; KERBER, Alessander. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 48, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo / Anos 90 / 2018

Se fosse preciso definir com três conceitos-chave a conjuntura deste primeiro quarto de século XXI, os organizadores deste dossiê acreditam que a maioria dos questionados conviria em utilizar, pelo menos, alguma das palavras que propomos como título. A ideia, então, de organizar um volume sobre a temática da guerra, da violência e da migração no mundo antigo nasce, simplesmente, de nossa observação da realidade contemporânea. Impotentes como historiadores, professores e / ou seres humanos, assistimos à eclosão de conflitos militares de rara violência na região do Oriente Próximo que atingem o planeta inteiro. A guerra na Síria, a ofensiva do autointitulado Estado Islâmico, a invasão do Iraque pela chamada “coalizão internacional”, liderada pelos EUA, trouxeram enorme instabilidade política e, mais importante, uma tragédia humanitária sem precedentes na história recente. Não podemos esquecer a outra face das guerras, tão dramática quanto a primeira, que representa as migrações forçadas de milhares de pessoas. Tudo isso, associado à destruição, ao espólio e ao saque do patrimônio cultural da humanidade presente nesses territórios, teve um efeito provocador a nós, historiadores da antiguidade.

Nosso dever de ofício aceita como tarefa primordial, então, o fato de tentarmos entender o mundo que hoje nos cerca estabelecendo um diálogo entre passado e presente, se quisermos construir o melhor futuro possível. Eis aí, para nós, a pedra fundamental do conhecimento e do estudo da antiguidade. Mais do que nunca, faz- -se necessário propor o debate, instigar a pesquisa, incitar a reflexão construtiva como nossa contribuição para a sociedade. E assim, algumas indagações nortearam nossa proposição. É possível tirar lições do passado? Somos capazes de compreender o conflito como fato e suas diversas dimensões na antiguidade e na atualidade, para estabelecermos paralelismos válidos e evitá-los, no futuro?

A partir dessas questões, formulamos a proposta do dossiê Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo, com o objetivo de refletir sobre temas urgentes e atuais a partir do estudo das sociedades antigas. Sabemos que as práticas de violência legitimadas pelas guerras, tendo como consequência a migração massiva de populações, têm uma longa historicidade, pois essas diversas experiências históricas foram preservadas e deixaram inúmeros indícios nos textos, nas imagens e na cultura material. Assim, entendemos que investigar essa temática na antiguidade pode contribuir para a compreensão dos recentes acontecimentos que atingem o mundo, especialmente o Mediterrâneo, a Europa e os EUA.

O enunciado deste dossiê abraça, entretanto, diversos outros enfoques, tais como questões relacionadas à tecnologia da guerra, à retórica da violência, à situação das mulheres e crianças nos conflitos, às agressões sexuais, à migração e ao fenômeno de transculturação, entre outros. Como afirma Magnoli (2006, p. 14): “A guerra é um fenômeno total, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades, o espelho de um tempo e um lugar”.

Foram vários os autores que atenderam ao nosso chamado. Eles provêm de distintos horizontes de pesquisa, alguns atuando no Brasil e outros no exterior. Vários são especialistas no Mundo Clássico, enquanto outros se interessam pelo Oriente, mas todos aportam uma reflexão original e uma boa dose de erudição.

O dossiê abre com a contribuição de Pedro Paulo A. Funari, intitulada “Migration flows from a long-term perspective”, que traz um estudo de longa duração sobre o fenômeno das migrações na história da humanidade. O autor discute os fluxos migratórios desde o processo de hominização até o período pós-segunda guerra mundial, incluindo a história brasileira, e argumenta que as migrações são um grande desafio tanto para as sociedades como para os intelectuais que refletem sobre elas.

A professora Katia Maria Paim Pozzer contribui com “Guerra, violência e memória cultural nas imagens assírias”, artigo no qual faz partir sua reflexão dos baixos-relevos em pedra resgatados dos palácios assírios de Nínive, analisando alguns elementos estéticos da antiguidade que o mundo contemporâneo tem reutilizado, levando a cabo um interessante paralelismo multisecular.

Com “The power of a powerless woman: examining the impact of violence on a Biblical nation”, Elizabeth Tracy nos conduz pelos caminhos da concubina levita, ou Pilegesh, analisando os últimos capítulos do bíblico Livro dos Juízes, cruel em algumas das suas imagens de violência contra a mulher e tão atual, lamentavelmente.

Viajamos depois para a Bretanha na pena da Dra. Tais Pagoto Bélo, com “Britannia: violência, poder e contato”, que propõe uma reflexão contemporaneamente válida através da cultura material representada por epitáfios da província da Britannia.

A professora Lorena Lopes da Costa contribui com “Troianas, de Eurípides (415 a. C.): a guerra injusta e o fim da linhagem dos heróis”, no qual traça um paralelismo da história de Atenas, dos crimes e excessos da guerra, com a tragédia euripidiana.

Estefanía Bernabé-Sánchez trata o tema da violência sexual em “El mito de Inanna y Šukaletuda: violencia sexual en Sumer”, mito no qual a deusa Inanna é estuprada pelo mau jardineiro Šukaletuda. A autora estabelece um paralelismo entre o crime sexual cometido contra a deusa suméria e aqueles que estão sendo, hoje, moeda comum nos conflitos armados do Oriente Médio, especialmente na Síria.

Finalmente, encerra este dossiê o trabalho do professor Fábio Vergara Cerqueira, “‘Melodia sangrenta’ (Anth.Pal. VI.159): a trombeta e a guerra na Grécia Antiga”, em que ele analisa o instrumento de vento chamado salpinx (σάλπιγξ) na iconografia e nos textos relacionados com a guerra na Grécia antiga, particularmente em Atenas, estabelecendo paralelismos entre as funções militares e os simbolismos.

O intuito deste volume que apresentamos, então, nos convida à reflexão crítica sobre a nossa realidade, partindo do conhecimento da remota antiguidade, de seus personagens e suas histórias, assim como da ideia de que guerra e violência, entendidas em todas as suas manifestações, são nefastas e não atendem aos pressupostos em que a humanidade deve enxergar a evolução e o desenvolvimento.

Frente àqueles que esquecem o passado e, por conseguinte, descuidam do presente enquanto olham para o futuro, anotemos aqui a definição que Sêneca nos deixou em De brevitate vitae (Sobre a brevidade da vida): sábio é aquele que lembra o passado, sabe aproveitar o presente e dispõe do futuro.

Que isso seja como uma de nossas bússolas.

Referência

MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.

Estefanía Bernabé-Sánchez – Professora da Pontificia Universidad Católica del Peru – PUCP. E-mail: [email protected] ´

Katia Maria Paim Pozzer – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Pedro Paulo A. Funari – Professor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: [email protected]


BERNABÉ-SÁNCHEZ, Estefanía; FUNARI, Pedro Paulo A.; POZZER, Katia Maria Paim. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, jul., 2018 .Acessar publicação original [DR]

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Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia / Anos 90 / 2017

Organizar o dossiê “Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia” representou um desafio ao demandar a articulação da leitura acadêmica e das experiências e vivências de cada um de nós. Período ainda negligenciado pela historiografia, a década tem sido revisitada no âmbito público a partir de questionamentos sobre continuidades e rupturas, sobre sua atualidade e seus legados, em suas manifestações culturais, estéticas, políticas e religiosas. Pensamos o dossiê como uma possibilidade de encontrar respostas historiográficas ao “retorno” dos / aos 1980, como uma vivência utópica ou nostálgica e, ainda, como encontrar outras leituras sobre aqueles anos, leituras estas realizadas majoritariamente a partir do âmbito político.

Susan Sontag, ao avaliar seu livro Contra a interpretação (1966) mais de trinta anos após o lançamento, produzia um diagnóstico sobre aquela década: “Como tudo isso [os anos 1960] parece maravilhoso em retrospectiva. Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia. Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico.”1

Impressão retrospectiva escrita após o que convencionalmente seria “o tempo de uma geração”, se é possível entender os anos 1960 como momento verdadeiramente utópico, ou, pelo menos, mais utópico que nostálgico, é preciso reconhecer que estas reflexões de Sontag nos anos 1990 são permeadas por certa nostalgia. A partir da ideia de uma oscilação entre nostalgia e utopia é que, enquanto organizadores, nos questionamos: o que nós e nossos colegas teríamos a dizer sobre os anos 1980, anos de experiência vivida e objeto de pesquisa? Teriam sido um tempo perdido?

Uma resposta à pergunta seria o impulso de reviver os anos 1980. Acompanhando a cultura nostálgica própria de nosso tempo, há pouco assistimos ao revival da cultura pop dos anos 1980 no que virou um fenômeno de classe média como as Festas Ploc. E desses fenômenos espontâneos surgiu um movimento da indústria cultural que reviveu bandas e personagens que marcaram aquele tempo. Não por acaso, portanto, Roger e Lobão, ídolos da transgressão para parte da juventude de então, podem ser alçados atualmente à condição de comentaristas políticos imprescindíveis. Na televisão a cabo, há um canal dedicado a novelas “antigas”, muitas delas produções da década de 1980. Ainda no campo da cultura de massa, internacionalmente, o sucesso de uma série como Stranger Things evidencia que os anos 1980 estão por toda parte, assim como a atenção e atualização de outros tempos que caracterizariam nosso presente como um tempo de expectativas decrescentes ou como momento pós-utópico.

Voltando à pergunta sugerida pela afirmação de Susan Sontag, os anos 1980 teriam sido tempos simultaneamente utópicos e nostálgicos na igual medida? Ou ainda se vivia, no Brasil, plenamente a utopia, dadas as esperanças jogadas no processo de redemocratização que não atingia apenas a política, mas o político entendido, a partir de Rossanvallon, como instância de conformação do social que atravessa diversos momentos e lugares das sociedades modernas? Se admitirmos que parte da narrativa historiográfica ainda preserva a história política como ossatura essencial, pode-se dizer que a história produzida sobre os anos 1980 seguiria a hierarquizar as instâncias e personagens da redemocratização: o fim da ditadura como evento principal e os novos movimentos sociais como seus principais agentes, secundados por novas organizações partidárias que lhe conferiam legitimidade num cenário ainda marcado pelo autoritarismo estatal.

É certo, porém, que já há 10 anos, a tímida, mas importante produção sobre o período torna visível a diversidade daquela década, tornando possível identificar naquela circunstância histórica muitas das pautas políticas contemporâneas: a luta das mulheres por seus direitos e outras questões de gênero, debates sobre a sexualidade, enfrentamento de preconceitos de cunho étnico-raciais e pela população LGBT etc. Nesse sentido, é possível reconhecer a marca utópica que funda a história e a historiografia moderna? Se pensarmos a redemocratização reconstruída pela historiografia atualmente, é possível identificar nesse esforço o compromisso essencial da historiografia com o futuro.

Mas a história hoje não participa também da nostalgia? A reconstrução dos anos 1980 pelos historiadores também não obedece ao impulso nostálgico que toma as relações mais gerais com o passado? Se assim for, é necessário distinguir dois tipos de nostalgia. Um, de caráter restaurador, leva a uma reconstrução pouco crítica de passados idealizados para cumprir fins identitários no presente; outro, que se conceitua como nostalgia reflexiva se caracteriza como um impulso melancólico, toma o gosto pelo passado como ponto de partida para pensar ainda futuros possíveis e abertos2. A historiografia teria, então, aqui um ponto de contato positivo com a cultura nostálgica contemporânea.

Algumas perguntas que nos moveram ao propor essa reflexão receberam respostas provisórias ao longo dos artigos que compõem o dossiê; outras permanecem como interrogantes para seguir retornando ao período e buscando alguma inteligibilidade para o presente: quais as possíveis relações entre a crise sociopolítica iniciada em 2013 e as especificidades de nossa transição da ditadura civil-militar para a democracia? O que permanece do legado autoritário, bem como das lutas e conquistas democráticas experimentadas desde o fim dos 1970? Estamos vivendo o fim da “Nova República”? Quais eram as esperanças e fantasmas desse passado-presente (“anos 1980”)? Quais os legados, as esperanças perdidas, os afetos atuais e inatuais daquele tempo? O que passou e o que não passou dos anos 1980? E, finalmente, como a historiografia responde ao movimento de “retorno” aos anos 1980 que atravessa nossa cultura?

Em 1986, a banda Legião Urbana lançava o álbum Dois. Aquela juventude que nascera sob uma ditadura civil-militar e sob o regime de terrorismo de Estado questionava-se sobre seu tempo e afirmava que não havia sido tempo perdido. As diferentes percepções em relação à década daqueles que a viveram e por outros que gostariam de tê-la vivido permitem que a pergunta seja apresentada e recolocada à produção historiográfica: o que há para ser escrito sobre a história dos anos 1980?

O dossiê é aberto com o artigo “Qual a importância de uma época? Anacronismo e história”, em que o autor, André Fabiano Voigt, teoriza, a partir de Kant, Hegel e Marx, quais as relações que o ser humano estabelece com o tempo e quem possui autoridade para determinar que indivíduos têm uma visão ou compreensão melhor da situação que outros. O artigo nos sugere, então, pensar a qualidade dos anos 1980 como uma época.

“Será que nada vai acontecer? Tempo e melancolia na poética da Legião Urbana”, de Henrique Pinheiro Costa Gaio, além de apresentar uma discussão sobre o rock nacional da década de 1980, analisa a emergência de certa sensibilidade sobre o tempo a partir da poética da Legião, que apresenta uma estética melancólica e afetos localizados entre a esperança e a frustração. Pode-se pensar, a partir dessa leitura, até que ponto a tensão entre expectativa e desilusão não foi uma percepção generalizada sobre a época.

Seguindo o dossiê, temos o artigo “O filme documentário Mauvaise Conduite: memória e direitos humanos em Cuba”, de Isabel Ibarra Cabrera e Rickley Leandro Marques, que apresenta reflexões sobre a relação história e cinema e o uso desse artefato cultural como fonte para o estudo do passado, analisando um filme de caráter documental sobre a violação de direitos humanos durante o período.

O artigo de Alvaro de Oliveira Senra, “CNBB, democracia e participação popular na década de 1980”, apresenta as concepções de democracia e participação popular elaboradas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e demonstra que estas ideias guardavam relação com o pensamento social católico e serviram de base para ação de diversos movimentos sociais. Uma importante contribuição para se pensar quais sentidos de democracia foram derrotados pelas perspectivas liberais que se hegemonizaram no debate político.

Um dos temas negligenciados pela historiografia do período, a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituição de 1988 – que completa 30 anos em 2018 –, a despeito da existência e disponibilidade de fontes para a pesquisa, é o tema do artigo de Mayara Paiva Souza e Noé Freire Sandes, intitulado “Entre silêncios e ruídos: a Anistia na Assembleia Constituinte de 1987 / 88”. Os autores analisam os debates sobre a ampliação da anistia durante a Constituinte e os setores que consideravam a discussão perniciosa para a construção da democracia.

Por fim, o dossiê se encerra com a contribuição de Francisco Gouvea de Sousa, “Escritas da história nos anos 1980: um ensaio sobre o horizonte histórico da (re)democratização”, em que o autor, a partir de algumas leituras realizadas em cursos de formação de professores, procura reconstruir o período de transição em diálogo com a história da historiografia e da construção da democracia com a institucionalização da pesquisa histórica no Brasil.

Os artigos reunidos neste dossiê apresentam uma dimensão da miríade de possibilidades de um retorno historiográfico àqueles anos. Desejamos uma boa leitura.

Notas

1. SONTAG, Susan. Against Interpretation and Other Essays. New York: Picador, 2001. p. 311.

2. Sobre essa diferença ver o livro e artigo de Svetlana Boym: BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Basic, 2001 e BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 23, p. 153-165, abr. 2017.

Caroline Silveira Bauer – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Marcelo Santos de Abreu – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]

Mateus Henrique de Faria Pereira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]


BAUER, Caroline Silveira; ABREU, Marcelo Santos de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 46, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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As conexões e as dinâmicas atlânticas na formação do mundo moderno / Anos 90 / 2017

Entre os dias 5 e 7 de novembro de 2014, o Instituto Latino- -Americano de Estudos Avançados (ILEA–UFRGS) foi palco do Seminário Internacional Conexões Atlânticas – evento promovido pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e organizado por nós, juntamente com o colega Luiz Alberto Grijó. O Seminário pretendeu ser um espaço de debates sobre a história brasileira entre os séculos XVI e XIX, a partir de perspectivas historiográficas recentes que tratassem das múltiplas dinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais mais globais, com ênfase nas inter-relações entre as sociedades atlânticas – Europa, África e as Américas. Entendíamos que era um momento mais do que necessário para tais reflexões e debates, uma vez que o número de professores e estudantes brasileiros no exterior aumentava a cada ano, implicando em uma intensa troca de ideias e experiências acadêmicas com pesquisadores estrangeiros. Além disso, de uma realidade em que a nossa história era unicamente objeto de estudo de pesquisadores europeus e norte-americanos, os últimos anos nos revelavam um sentido inverso, pois numerosos grupos de historiadores brasileiros cada vez mais pesquisavam a história dos países latino-americanos, da Europa medieval e moderna e das sociedades africanas, entre outras. Portanto, o Seminário buscou oferecer uma oportunidade para pensarmos os mencionados caminhos até então percorridos e as possibilidades de pesquisa abertas às gerações futuras.

Historiadores e historiadoras nacional e internacionalmente renomado(a)s conferenciaram ao longo dos três dias, revisitando antigos debates reanimados à luz de novas pesquisas, e propondo novos enfoques analíticos sobre diferentes temáticas. Carlos Alberto Sánchez e Giovanni Levi trataram da Atlantic History, suas contribuições, seus desafios e seus limites analíticos; João Paulo Pimenta, Ana Frega, Gabriel Di Meglio e Jose Carlos Chiaramonte proferiram suas falas a respeito do processo de Independência no sul da América e suas conexões políticas com o outro lado do Atlântico; Marcus Carvalho, Paulo Moreira e Eduardo França Paiva relacionaram a escravidão africana com o tráfico transatlântico e às dinâmicas de mestiçagem; João Luís Fragoso e Ana Volppi Scott refletiram sobre as migrações, as relações familiares e o uso das fontes paroquiais para o estudo do Brasil colonial; Tiago Luís Gil e Maria Fernanda Martins palestraram a respeito das estratégias sociais das elites luso-brasileiras no século XVIII; e Angela Alonso tratou das redes de relações e do papel dos mediadores no movimento abolicionista internacional no século XIX. Neste sentido, o presente Dossiê foi pensado não apenas como um capítulo final do Seminário que obteve um grande sucesso de público, como também um outro espaço para propiciar novas reflexões a respeito do tema, visto que o número de pesquisas inspiradas pelo mesmo continua crescendo.

Nos últimos anos, a grande repercussão internacional de algumas matrizes historiográficas que apostam nas abordagens e métodos de análise em escala mais global é notável. A “Global History”, por exemplo, tem pautado coletâneas, debates em periódicos e temáticas de eventos no mundo todo. Contudo, no que diz respeito à história das sociedades ocidentais, a chamada “Atlantic History” também atraiu uma série de investigadores preocupados com a chamada “formação” do mundo moderno entre os séculos XV e XIX. Fruto de uma iniciativa da parte de um grupo de historiadores da Universidade Johns Hopkins, liderados por Jack Greene, os mesmos adotaram o Atlântico como campo de investigação e promoveram um amplo e dinâmico grupo de pesquisa que reunia metodologias interdisciplinárias e uma perspectiva comparativa. Uma das propostas do grupo era fugir do molde imperial ou nacionalista das análises anteriores, atravessando divisas e fronteiras e estudando os movimentos das pessoas, de animais, de plantas e mercadorias, com fins de reconstituir o ir e vir de costumes, ideias, estilos e artes. Ao reunir estudiosos de várias disciplinas, as novas pesquisas contribuíram para a criação de uma nova perspectiva e uma aproximação original das facetas do Atlântico e da inter–conectividade dos povos que habitavam as costas dos continentes banhados pelo mesmo oceano.

Não demorou muito e estes ventos começaram a soprar para os lados do Brasil. Dialogando com estas e outras correntes historiográficas, um número significativo de pesquisas proporcionou uma profunda revisão de interpretações clássicas a respeito de temas ligados tanto à América portuguesa quanto ao Brasil monárquico. Por ocasião destas recentes perspectivas, a constituição da sociedade colonial tem sido entendida nos quadros do Império português e sob uma comparação mais complexa com outras realidades coloniais do período. O maior número de estudos escritos por africanistas possibilitou uma melhor compreensão da escravidão, do tráfico atlântico e das sociedades neles envolvidas sob uma perspectiva multiculturalista, valorizando, cada vez mais, a história da África e a sua importância para a compreensão da história do Brasil. A história dos povos originários também se viu renovada, apresentando importantes contribuições a partir de um diálogo mais aproximado com a Antropologia e a Arqueologia. As diferentes sociedades escravistas do atlântico, as migrações em escala mais global, as diversas elites locais forjadas em economias agrárias e mercantis, seus espaços de atuação e suas estratégias e a possibilidade de compará-las umas com as outras tem oferecido uma visão do passado muito mais complexa do que há 40 anos. Com relação aos aspectos políticos e econômicos, a preocupação em vincular a crise do Antigo Regime europeu com o processo de independência das colônias americanas e as distintas trajetórias institucionais dos Estados constituídos durante a “Era das Revoluções” com o avanço do capitalismo e a desagregação das economias escravistas tem crescido bastante. Em suma, pode-se dizer que a configuração de um mosaico social e econômico tem se tornado cada vez mais claro aos pesquisadores que buscam estudar realidades históricas circunscritas regionalmente sem perder de vista as dimensões atlânticas em que as ditas sociedades estavam envolvidas.

Não se pode dizer que estas preocupações estavam totalmente ausentes em pesquisas realizadas antes dos anos 1970. Contudo, a renovação historiográfica posterior pautou os novos estudos a partir de referenciais teóricos e metodológicos distintos. Escapando da rigidez estruturalista e dos postulados caros à Teoria da Dependência, a perspectiva atlântica das décadas posteriores trazia consigo um maior protagonismo dos agentes históricos, dialogando com uma história vista debaixo, e trazendo para o centro das atenções estudos referentes ao papel dos indígenas, dos escravos, dos libertos, dos homens livres pobres, das mulheres de todas as classes sociais, em diferentes enfoques. As noções de “Centro” e “Periferia”, “Metrópole” e “Colônia”, “Colonizadores” e “colonizados” foram revistas. Neste sentido, os antes chamados “povos sem história” também foram contemplados e a sua ação social foi encarada como ingrediente cultural fundamental na constituição das sociedades atlânticas do mundo moderno. Para tal empreitada, novas fontes documentais foram descobertas e novos métodos em história social disseminaram-se entre os historiadores que buscam a comparação de resultados gerais sem deixar de atender à riqueza das trajetórias individuais. O presente Dossiê reúne seis artigos e todos eles são tributários de parte dessas reflexões e debates.

Carlos Alberto Sanchez estuda o profundo impacto do descobrimento e da conquista da América no imaginário dos europeus do século XVI. Sevilha é destacada como a grande metrópole do século e, ao lado de Lisboa, tornou-se o eixo que coordenava as dinâmicas políticas e econômicas atlânticas daquele novo mundo. Por fim, o autor advoga a necessidade de se praticar uma “nova história atlântica” que integre o Mundo Atlântico em um contexto mais amplo da história global. Uma história que integre todas as Américas (espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e holandesa) e que supere uma historiografia empenhada em destacar apenas as diferenças e disparidades. Neste sentido, critica vertentes que enfatizam a excepcionalidade do caso norte-americano que exibe o sucesso do norte frente ao fracasso do sul, trazendo para o debate interpretações que defendem que a colonização puritana da Nova Inglaterra foi, também, uma continuação dos modelos ibéricos e não um capítulo de ruptura na história do período.

Rubens Leonardo Panegassi analisa o contexto intelectual que caracterizou a formação do mundo moderno enquanto espaço de circulação de ideias e juízos diversos. Para tanto, o autor recupera o senso de ordem social próprio do imaginário europeu da primeira modernidade a partir de diferentes registros literários produzidos no contexto do Renascimento ibérico. Tais registros remeteriam ao ideário do cristianismo primitivo – referência intelectual coerente aos propósitos espirituais da mundialização levada a cabo pelos ibéricos. Portanto, apesar das concepções etnológicas da primeira modernidade serem tributárias do “pensamento patrístico”, elas se vinculam à experiência estatal moderna. Neste sentido, nas palavras do autor, a sujeição política foi a tônica dominante do fenômeno da mundialização.

Fernando Bouza analisa os debates gerados no século XVII a respeito das potencialidades da exploração comercial da erva-mate (Ilex Paraguaienseis). Sua pesquisa permite acompanhar as discussões que pautaram a construção de saberes locais na América do Sul na primeira metade do seiscentos. No memorial enviado ao rei Felipe IV, pelo fray agostinho Gonzalo del Valle, em 1637, onde consta a sugestão de introduzir uma nova taxa sobre o consumo da erva mate paraguaia, – é possível compreender as estratégias presentes na tomada de decisão pelo governo espanhol e os critérios adotados nos assuntos referentes as Índias ocidentais. Bouza trabalha com documentos inéditos a respeito da produção, distribuição e consumo de erva mate nas colônias espanholas até sua eventual chegada na corte espanhola. A discussão reporta a um debate intelectual travado entre sujeitos que ocupavam posições de destaque tanto na Península Ibérica como na América, gerando uma circulação de saberes entre as duas margens do Atlântico, tema que evidencia as conexões entre o Velho e o Novo mundo.

Fábio Kuhn trabalha com a construção da hegemonia portuguesa no contrabando de escravos para o rio da Prata durante a primeira metade o século XVIII. Enquanto que entre 1715 e 1730, os contrabandistas luso-brasileiros atuaram a partir da Colônia de Sacramento, afrontando diretamente os interesses britânicos estabelecidos em Buenos Aires, após essa conjuntura, e por conta de mudanças no contexto político e da nova guerra anglo-espanhola que interrompeu as operações da South Sea Company no rio da Prata, o predomínio lusitano consolidou-se. Os traficantes luso-brasileiros passaram a tomar conta do negócio negreiro estabelecendo as conexões atlânticas necessárias para formação de uma rede de agentes envolvidos no comércio ilícito de cativos. O contrabando trans -imperial de escravos conectou os traficantes luso-brasileiros que operavam na Colônia do Sacramento aos dois principais portos negreiros da América portuguesa (Rio de Janeiro e Salvador). Tais negócios foram fundamentais no desenvolvimento econômico e social da região platina, aproximando mais ainda os interesses dos colonos tanto do lado português quanto do lado espanhol das fronteiras imperiais.

A presença de comerciantes estadunidenses no Rio da Prata entre a última década do século XVIII e o fim do período das independências na América do Sul é o objeto do artigo de Fabrício Prado. Normalmente negligenciada por historiadores em detrimento de análises da consolidação dos laços comerciais entre os países sul-americanos e o império britânico, a presença comercial norte-americana, de acordo com Prado, se estabeleceu através de redes construídas no contexto do domínio colonial ibérico na região do Prata e se reconfigurou de acordo com as mudanças políticas, entre elas a invasão de Napoleão à Espanha, a subsequente tomada de Montevidéu e Buenos Aires pelos ingleses nos primeiros anos do oitocentos, o período das guerras revolucionárias e, no caso de Montevidéu, o período Cisplatino. As flutuações das relações entre mercadores norte-americanos e as elites locais são aqui estudadas através da presença de navios estadunidenses na região do Prata.

Finalizando o Dossiê, Jonas Vargas estuda a importância da Irlanda na produção e no comércio atlântico das carnes preparadas nos séculos XVII e XVIII e de como tal êxito serviu de modelo para as Coroas ibéricas incentivarem a criação das suas próprias fábricas de carnes em barris no sul da América. Apesar da vinda de mestres irlandeses para as principais cidades da região, as tentativas foram frustradas e um outro tipo de carne, mais simples e de qualidade inferior (e que já era do conhecimento dos indígenas americanos), acabou vingando. O charque (que no Rio da Prata era conhecido como tasajo) trouxe grande riqueza para os investidores de Pelotas, Montevidéu e Buenos Aires e teve uma função primordial no interior dos sistemas econômicos que caracterizaram o mundo atlântico no colonial tardio, pois fomentou a entrada de escravos africanos para trabalharem nas fábricas, abasteceu as plantations açucareiras e cafeeiras do Atlântico e garantiu a alimentação da tripulação dos navios negreiros.

Boa leitura!

Eduardo Santos Neumann – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Jonas Moreira Vargas – Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Renata Dal Sasso Freitas – Universidade Federal do Pampa (Unipampa).


NEUMANN, Eduardo Santos; VARGAS, Jonas Moreira; FREITAS, Renata Dal Sasso. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 45, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História Política: problemas e estudos / Anos 90 / 2016

A história política, vinculada às relações de poder político-institucionais que permeiam as sociedades e o Estado em suas múltiplas dimensões, renovou-se muito nas últimas décadas, ganhando cada vez mais impulso e importância. Neste dossiê, a revista Anos 90 abriu-se para contribuições concernentes a recortes temáticos que pudessem se enquadrar nesta área de estudos históricos, tanto para os problemas teóricos e metodológicos enfrentados pelos pesquisadores quanto para os estudos de objetos característicos desse campo de análise. Recebemos diversas contribuições de várias partes do país e do exterior, pelas quais agradecemos aos pesquisadores que se dispuseram a apresentar seus originais a este dossiê. Depois das avaliações realizadas, restaram os nove artigos que se seguem.

Os artigos estão apresentados em uma ordem lógica e cronológica ao mesmo tempo. Assim, o dossiê inicia com a contribuição de Maria Helena Capelato. Em História do Brasil e revisões historiográficas, a autora busca refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito da escrita da história de modo geral e, em particular, sobre os seus usos políticos. Desse modo, o trabalho toma uma dimensão ético-política que traz importantes contribuições para o debate tão atual acerca dos lugares de produção de história, seus usos sociopolíticos e o papel dos profissionais e não profissionais nestas tarefas científicas e / ou culturais.

O segundo texto, das professoras portuguesas Isabel Maria Freitas Valente e Maria João Guia, trata da premente e espinhosa questão das políticas de imigração na União Europeia, centrado no exame da legislação respectiva. Ao mesmo tempo em que procura historiar as contribuições legislativas mais gerais a respeito do tema, ao final, as historiadoras concentram-se na temática propriamente portuguesa.

Luiz Alberto Grijó, por sua vez, aborda as empresas de meios de comunicação brasileiras, traçando um panorama amplo, desde o período pré-64 até os dias atuais. O artigo explora a transformação paulatina dos meios. Desde a situação anterior, na qual eram espécies de apêndices da luta política mais ampla, até o momento atual, em qum sequestraram a democracia em nome de seus próprios valores apresentando-se como protagonistas centrais no jogo político-partidário, inclusive agindo para a deposição da presidenta eleita em 2014.

Esteban Javier Campos, em seu artigo, propõe uma história comparada sobre as práticas e concepções políticas da Ação Popular e dos Montoneros tomando suas semelhanças e suas diferenças. O autor parte da análise desses movimentos a partir de suas origens católicas, suas aproximações com o socialismo e seus redirecionamentos entre linhas maoísta e peronista, em meio a reflexões sobre processos políticos em escala nacional.

Por sua vez, Larissa Rosa Correa e Paulo Roberto Ribeiro Fontes dedicam-se, através da análise da produção historiográfica mais recente sobre os trabalhadores e os movimentos sindicais brasileiros na época da Ditadura Militar (1964-1985), a observar “um certo apagamento” da história e da presença desses extratos sociais e suas organizações de classe na referida literatura. Visam, com isso, a lançar luzes em aspectos e lacunas ainda existentes a propósito do regime instaurado em 1964.

Adriane Vidal Costa procura na “prática epistolar de Júlio Cortazár”, em seu período mais frutífero, os anos de 1960 e 1970, instrumentos de compreensão para a formação de redes de sociabilidades intelectuais; de suas ideias políticas como um escritor engajado, ao mesmo tempo em que visa a recuperar o ambiente cultural de discussão literária e as funções sociais do intelectual em meio à defesa que Cortazár promovia do socialismo e sua condenação das ditaduras militares latino-americanas do momento.

O partido do Rio Grande: redes de relações, mediação e revolução de 1930, de Cássia Daiane Macedo da Silveira, discute o papel e a participação dos chamados intelectuais nos acontecimentos que envolveram a Revolução de 1930, especialmente nas articulações que acabaram levando a ela. Cássia centra-se na questão fundamental destes homens de letras como mediadores culturais e sociais e nos efeitos políticos que isso possibilitava, abordando os casos de dois deles: o carioca Rodrigo Otávio Filho e o gaúcho Felipe d’Oliveira.

Carla Brandalise, em seu artigo, remete-se às políticas internacionais da Itália sob o fascismo voltadas para a América Latina na década de 1920. Com efeito, assiste-se nesses anos a um recrudescimento dos interesses italianos sobre essa região, a partir do que se estabelece estratégias, pacíficas, de maior inserção econômicas e político-culturais. Para tanto, joga-se com a questão da latinidade intrínseca ao continente e com a perspectiva de que a Itália constitui a verdadeira líder dos povos latinos, dado que se outorga como lócus original e atemporal da romanidade. Suas ambições, portanto, vão para além da maior interação com sua comunidade emigrada.

Rodrigo da Rosa Bordignon, que encerra o dossiê por ser o que aborda o momento cronologicamente mais recuado, analisa as narrativas dos homens de letras, de comentadores, políticos e pensadores do Brasil na virada do século XIX para o XX. Enfoca especificamente a clivagem entre as posições “monarquistas” e “republicanas” a partir da perspectiva não de reificá-las, mas de desvendar os mecanismos que levaram a estas tomadas de posição, os quais ajudam a revelar qual ou quais concepções de política estavam em jogo e sua relação com os critérios de classificação e ordenação sociais e ideológicos e seus modos de legitimação.

Carla Brandalise.

Luiz Alberto Grijó.


BRANDALISE, Carla; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Dilemas e possibilidades da Pós-Graduação em História no Brasil/Anos 90/2016

O dossiê Dilemas e possibilidades da Pós-Graduação em História no Brasil foi pensado como uma forma de comemorar os trinta anos do nosso Programa de Pós-Graduação. Em 1986, iniciava-se o Mestrado em História, com dez alunos, já desenhado com três das quatro atuais linhas de pesquisa do programa: Sistemas simbólicos, representações e práticas (posteriormente transformada em Cultura e Representações), Relações de dominação e resistência e Relações político-institucionais. Mais tarde, acrescentou-se a essas a linha de Teoria da História e historiografia. No ano de 1996, iniciava-se o Doutorado em História. Esta trajetória, que muito nos orgulha, ainda aguarda uma narrativa histórica capaz de articular os projetos, as realizações e os êxitos, bem como seus insucessos, e as estratégias intelectuais e políticas de seus principais promotores e agentes. Ao pensarmos este Dossiê, sabíamos da dificuldade que se interpunha para uma proposta desta natureza. Então, pareceu-nos que a melhor maneira de marcar este ano comemorativo seria reunir contribuições para pensar as múltiplas políticas de pós-graduação nas quais estamos inseridos nestes anos.

Os artigos recebidos constituem-se principalmente de exercícios bem-acabados de História do tempo presente e mesmo de História imediata. Como tal, e em sintonia com a proposta do Dossiê, refletem sobre movimentos que podem ser explicados por eventos situados em meados do século XX, marcando muito mais as suas ressonâncias e os seus impactos na atualidade do que as rupturas e descontinuidades verificadas desde então.

Outra característica que vale ser ressaltada nos artigos é o fato de que foram escritos por atores envolvidos nestes mesmos processos que analisam. Dessa forma, em seu conjunto, os textos apresentam os atributos do exercício crítico da História, tanto quanto uma problematização de identidades, ora profissionais, ora étnicas, entrecruzadas com concepções políticas de história e de ensino. Marcam um esforço bem-sucedido de reflexão sobre a própria prática profissional, proporcionando-nos textos indispensáveis para pensar não apenas o passado recente, mas os rumos da Pós-Graduação em História e Ciências Humanas no Brasil.

O artigo de Marieta de Moraes Ferreira retorna às décadas em que a formação para a licenciatura era a função principal das Faculdades de Filosofia e dos cursos de História a ela vinculados; descreve a criação dos primeiros cursos de pós-graduação na mesma década, 1950, em que são criados a Capes e o CNPq; situa os debates pela Reforma Universitária promovidos pela UNE no início dos anos 1960 no contexto da radicalização dos movimentos sociais do final do anos 1950, que coincidem com o surgimento da ANPUH e sua defesa de ampliar o estudo da História contemporânea; observa que a “modernização autoritário-conservadora” do período militar, que ampliou a pós-graduação no país, também criou a Licenciatura em Estudos Sociais, e que a ênfase na pós-graduação levaria a uma resistência ao trabalho com a graduação e a um menor interesse pela formação de docentes. A necessidade de superação do dilema entre ensino e pesquisa ocupa a parte restante do artigo de Marieta Ferreira, e, nesse sentido, a jovem experiência dos Mestrados Profissionais em Ensino é destacada pela autora, que analisa, mais especificamente, a criação dos Mestrados de Ensino de História, apontando seu potencial de revitalização das licenciaturas. Trata-se de exercício crítico de História do tempo presente, como assinalado anteriormente, proporcionado pela análise e pelo ponto de vista privilegiado de uma das principais promotoras do ProfHistória em rede.

Convergindo com o diagnóstico da recente revalorização da formação (continuada) de professores, o artigo de Ricardo Pacheco e Helenice Rocha mostra uma ênfase no “ensino” no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em História, reconhecida pelos autores como uma subárea interna à área da História, pois constituem “abordagens teórico-metodológicas particulares para os estudos históricos”. Tomando por base as informações de anos recentes da Plataforma Sucupira (CNPq), os autores construíram suas interpretações selecionando e quantificando dados referentes às Linhas de Pesquisa de PPGs em História voltadas, mesmo que conjugadas com outros temas, ao Ensino, assinalando os temas de pesquisa predominantes destes programas.

O artigo de Valdei Lopes de Araujo delineia e reflete de forma arguta os processos de produção intelectual mais marcantes no contexto de inequívoco crescimento da graduação e da pós-graduação em história nos últimos 40 anos. De forma crítica, avalia que “o modelo do acoplamento entre pesquisa, pós-graduação e mercado” sobrevaloriza o “conhecimento novo”, a “inovação”, silenciando sobre as atividades de formação e transmissão inerentes à prática dos/as pesquisadores/as e docentes/as. Submetida a processos avaliativos orientados por critérios quantitativos, a produção intelectual dos professores/as universitários/as tem se especializado e fragmentado cada vez mais, de forma a prejudicar e até obstruir o seu processo de transmissão e comunicação. No novo regime intelectual, portanto, a quantificação e a ideologia do crescimento tornam-se, o maior obstáculo à autonomia. O artigo finaliza como uma série de propostas, coerentes com as críticas realizadas, das quais destacamos: “É preciso romper com a lógica do quanto mais melhor”.

O artigo assinado por José Antônio dos Santos e Luciana Garcia de Mello traz retrospectivas de processos ocorridos no âmbito da história e da sociedade, situando a política de ações afirmativas no Brasil, entre as quais está o acesso de jovens negros a cursos de graduação e, mais recentemente, pós-graduação, em um histórico que remonta à luta por escolarização da população negra no final do século XIX e que acompanha a defesa da educação por parte da Frente Negra Brasileira, primeira (1931) entidade criada por militantes negros/as com caráter eminentemente político, e por parte do Teatro Experimental do Negro, criado em 1944. As ações destas entidades, que, no caso do TEN, pleiteiam inclusive o ensino superior subvencionado aos estudantes negros/as, são consideradas pelos autores, genericamente, como Movimento Negro. A fundação efetiva do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que, posteriormente, adotou denominação de Movimento Negro Unificado (MNU), é de 1978, no contexto da luta dos jovens negros contra a ditadura. A seguir, o artigo acompanha o debate da implantação das cotas a partir da década 1990 e sua efetivação já no século XXI, e aponta os significados da autoidentificação para a população negra. O ingresso de negros/as no ensino de pós-graduação tem o potencial, entre outros valores, de “redefinir o papel social dos professores-pesquisadores para o reconhecimento dos outros como formadores de si mesmos”.

Por fim, de forma a complementar ao dossiê, integradas neste mesmo ato reflexivo e comemorativo dos 30 anos do nosso PPGH, encontram-se duas entrevistas realizadas respectivamente com atuais e ex-integrantes do Conselho Editorial da revista discente Aedos e com a atual representação discente do PPGH-UFRGS. A apresentação que precede as entrevistas traz maiores informações sobre o porquê de entrevistarmos Marisângela, Marina, Micaele, Graziele, Pedro e Isadora. De maneira genérica, podemos definir esta escolha como um ato de luta contra o esquecimento das “ações memoráveis” de nossa trajetória, algumas já contempladas há 10 anos, quando comemoramos os 20 anos do programa. Reconhecendo a incompletude inevitável de nossas escolhas, já que muitos outros alunos/as e ex-alunos/as poderiam com justiça dar seus depoimentos, neste momento oferecemos uma homenagem a todos os alunos/as do Programa, especialmente àqueles/as que desde a fundação da revista discente, em 2008, têm se mobilizado politicamente e se envolvido de forma mais intensa com a própria formação.

Desejamos uma boa leitura a todos.

Mara Cristina de Matos Rodrigues – Doutora em História e Professora-Associada do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: mara. [email protected]

Regina Weber – Doutora em História e Professora-Associada do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: regina. [email protected]

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Usos públicos e políticos da memória: Construções – Conflitos – Representações / Anos 90 / 2015

A luta por combater as violações aos direitos humanos e as ações que visam a estabelecer políticas de memória se evidenciaram com força a partir dos últimos anos do século XX. A partir de meados dos anos 1980, no processo de redemocratização ocorrido nos países sul-americanos, rompeu-se o silêncio em relação ao passado autoritário, as vítimas passaram a reivindicar a revelação dos fatos, assinalando sua preocupação com a memória coletiva. Reconheceu-se que a memória não é um exercício individual, pertencente somente aos vitimados, mas que toda a sociedade submetida à repressão e ao autoritarismo e, sobretudo, ao ocultamento das brutalidades, tinha o direito de conhecer a verdade e buscar romper com a impunidade em relação aos crimes cometidos por entes estatais. O dossiê Usos públicos e políticos da memória: construções, conflitos e representações busca apresentar uma parte do amplo universo de pesquisas atuais sobre os usos da memória e suas implicações culturais, identitárias e políticas em suas diferentes manifestações – sejam elas construções e representações ou gestão de conflitos de memória – em sociedades marcadas por um passado traumático.

Instituir mecanismos de enfrentamento do passado traumático através da criação de estratégias que envolveram o estabelecimento da verdade e a busca de uma justiça de transição se tornou a tônica de organizações de direitos humanos em sociedades que viveram violência estatal. O enfrentamento das brutalidades cometidas pelos estados foi o caminho para buscar a verdade, reparar os danos e iniciar um processo de reconciliação com o passado com vistas a consolidar a democracia. Essas sociedades encontraram diferentes estratégias para acertar as contas com o passado, tendo em vista que a transição à democracia ou à pacificação teve expressões diversas de um país para outro.

Assim sendo, a iniciativa de organizar um dossiê que desse conta desse universo de pesquisas respondeu ao crescente interesse sobre os debates de políticas de reparação e memória, em parte estimulado pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, mas também por um profícuo intercâmbio interdisciplinar e internacional entre grupos de pesquisa que, de maneira comparativa, procuram entender os complexos processos de relação entre a memória e a sociedade. Assim, o volume da Revista Anos 90, coordenado por mim, Claudia Wasserman (UFRGS) e pelas professoras Caroline Silveira Bauer (UFPel) e Isabel Pipper Shafir (Universidad de Chile), também possibilitou a apresentação de artigos por parte dos integrantes do projeto Memoria y sociedad. Las políticas de reparación y memoria y los processos sociales em la construcción de la memoria pública contemporânea en Europa y América. Conflicto, representación y gestión, financiado pelo Ministério de Innovación y Ciencia da Catalunha, e coordenado pelo professor da Universidade de Barcelona (UB) Ricard Vinyes Ribas. Foi também oportuno para a divulgação de artigos oriundos de outros projetos e pesquisadores que têm como tema central de suas investigações os usos públicos e políticos da memória. Todos os artigos foram revisados pelo comitê editorial da revista Anos 90, pelos coordenadores do dossiê e submetidos ao processo de duplo parecer às cegas.

O dossiê aparece com artigos sobre memória e usos do passado na Europa, notadamente acerca de monumentos memoriais construídos em Bruxelas, na Alemanha e na Espanha, e na América Latina, com ênfase, neste último caso, para Brasil, Chile, Colômbia e México. Os autores são todos especialistas no tema e apresentam artigos que são fruto de pesquisas concluídas recentemente.

Ricard Vinyes Ribas, no artigo Los usos públicos del pasado en la Europa: hacia una memoria sincrética, analisa a House of European History como um instrumento de gestão do passado. A pesquisa refere-se às políticas sobre o passado que a União Europeia (UE) vem construindo nos últimos anos e os antecedentes intelectuais e políticos dessas iniciativas. Argumenta que o relato presente na exposição permanente do novo museu está orientado a estabelecer o mito fundacional de uma suposta identidade entre os países do bloco. Descreve igualmente a pressão exercida pelos países da Europa Oriental para instalar sua própria e excludente versão da memória europeia como a única memória possível e que deva ser adotada por todos os europeus.

O artigo de Valentina Rozas Krause, Cruising Eisenman’s Holocaust Memorial, analisa uma exposição de arte no Museu Judaico de Nova Iorque que exibe as imagens de jovens homens gays posando junto aos blocos de pedra do Memorial do Holocausto, em Berlim. Valentina Rozas Krause reflete justamente sobre os motivos que levaram esses jovens a escolher o memorial de Berlim para suas fotos de perfil, que compõem um site de namoro. Analisa como os espaços de memória podem sofrer ressignificação em práticas cotidianas e também revela as possibilidades de um memorial performático reinscrever questões de gênero e sexualidade em narrativas aparentemente improváveis, como as do Holocausto, com o objetivo de chamar atenção para uma memória subterrânea, como a da perseguição dos nazistas aos homossexuais.

O artigo de Nancy Berthier, La Verticalidad Superlativa del Valle de los Caídos y sus avatares cinematográficos durante la transición, un Noeud de Mémoir aborda a apropriação de outro monumento histórico europeu. Construído para expressar a epopeia da ditadura franquista e para homenagear os heróis da guerra contra os republicanos, o monumento foi reapropriado pelo cinema e o artigo discute justamente de que forma uma imagem que simboliza a ditadura circulou depois da morte do ditador. Depois de explicar as características do monumento no discurso franquista, Nancy Berthier apresenta os filmes que foram feitos entre 1975 e 1981 que visavam a prolongar ou a subverter aquela narrativa memorial.

Os artigos de Caroline Silveira Bauer, O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da ditadura civil-militar brasileira e de Benito Bisso Schmidt, De quanta Memória precisa uma Democracia? Uma reflexão sobre as relações entre práticas memoriais e práticas democráticas no Brasil atual estão situados em tema muito atual do debate sobre memória da ditadura no Brasil. Caroline Bauer analisa o debate ocorrido na sessão legislativa que aprovou a criação da Comissão Nacional da Verdade evidenciando os usos públicos e políticos do passado, bem como as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade que coexistem em se tratando da temática da ditadura civil-militar brasileira. Parte de uma pesquisa mais ampla, a análise centra-se na diferença entre o “tempo dos vencidos” e o “tempo dos vencedores” e de que forma essas diferentes concepções temporais influenciam na elaboração de políticas de memória e consecução da justiça de transição no Brasil. Benito Schmidt analisa a relação entre práticas de memória e práticas democráticas, tendo como eixo projetos memoriais realizados no Brasil atual em relação à ditadura civil-militar iniciada em 1964. Examina lugares de memória e manifestações da sociedade civil que evocam o passado autoritário, considerando-os como integrantes da justiça de transição. Postula também a necessidade de uma memória exemplar a respeito da ditadura como elemento fundamental à construção de uma democracia vigorosa e de uma cidadania plena.

O artigo de Isabel Piper Shafir, Memorias de la violencia política en Chile: 1970-2014, reflete sobre a hegemonia das memórias das vítimas e sobre as vítimas no Chile e argumenta que essa preponderância encobre outras memórias. Com menor visibilidade e reconhecimento, essas outras memórias participam igualmente do processo de memorialização de uma forma menos clara e precisa, mas com importantes efeitos psicológicos, sociais e políticos. Sustenta, por outro lado, que limitar as ações e políticas de memória à reparação das vítimas pode excluir a discussão pública e o debate sério e reflexivo em torno das violências políticas exercidas no período democrático. Argumenta ainda que condenar as práticas do passado, por vezes, pode excluir as práticas atuais, igualmente perversas e violentas.

Outros dois artigos discutem as comemorações de datas redondas como forma de legitimar o passado e conciliar os traumas, mas que também colocam em movimento atores que questionam o passado plasmado nas festividades. É o caso dos artigos de Carlos Alberto Rios Gordillo, Reflexiones sobre um acontecimiento. La conmemoración del bicentenario, la memoria y el presente, sobre a comemoração dos duzentos anos de vida independente no México, e de Sebastián Vargas Alvarez, La investigación sobre las conmemoraciones rituales em Colombia (siglos XIX-XXI): balance historiográfico, sobre a literatura contemporânea a respeito das comemorações rituais na Colômbia e a estreita relação que estas festas tem com os projetos de construção e legitimação do Estado-nação durante os últimos dois séculos. Ambos artigos refletem sobre os usos políticos do passado que se fazem presentes nos eventos comemorativos, assim como evidenciam a memória como um campo de batalha atual.

Com essa variedade de pesquisas acerca da memória pública e da apropriação e reapropriação do passado, bem como de seus usos, a Revista Anos 90 espera oferecer ao leitor uma parte do que vem sendo produzido neste campo da história e que certamente constitui extraordinária contribuição para o enriquecimento de nosso conhecimento sobre o tema.

Claudia Wasserman.


WASSERMAN, Claudia. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Estados Unidos: História e Historiografia / Anos 90 / 2015

“Quem será o americano, este novo homem”?

(Ou quantas Américas cabem na América?)

Uma outra América, um país sem nome!

Os Estados Unidos da América (EUA) constituem um estranho país! Para iniciar, trata-se de um país “sem nome”!

O historiador Leandro Karnal – da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – salientou, numa conferência proferida em nossa universidade, em 2010,1 que todos os países americanos têm nomes: eles podem ser associados a heróis nacionais (Bolívia, Colômbia), a acidentes geográficos (Uruguai, Paraguai), aos nomes que tinham estes territórios antes da conquista (Chile, México), ou a produtos identificados com os lugares (Argentina, Brasil). Os Estados Unidos, ao contrário, originários das Treze Colônias, pertencentes ao Reino Unido, constituíram-se em estados, resguardando suas autonomias, tendo como referência o continente – a América, que lutava pela independência – em oposição a uma opressão que vinha da Europa.

O país “sem nome” adotou como seu um nome que incluía outras terras e povos! É raro escutar de um estadunidense, referindo-se ao seu país, a expressão United States; bem mais comum é o uso da abreviatura U.S.A., pronunciada rapidamente, letra por letra. No entanto, America é, desde a Revolução de Independência, uma referência tão forte que mesmo os americanos de outros países se referem aos estadunidenses como “americanos” ou pelo menos “norte-americanos”2.

Mas o país, se não tinha um nome, construiu seus símbolos identitários e implementou processos políticos e sociais que lhe trariam a condição de superpotência apenas um século e meio depois de sua criação. E desde o início a formação do Estado nacional foi garantida a partir de unidades autônomas – os estados sucedâneos às colônias originais – que delegaram a um poder constituído na forma de uma federação.3 Muito antes disso, porém, já havia sido criada a representação máxima da nação, a bandeira. Primeiramente uma bandeira clandestina que representava as colônias por listras alternadas vermelhas e brancas, adotada por Washington, em 1776, mas ostentando no quadrante superior esquerdo o desenho da bandeira britânica, substituído definitivamente pelo retângulo azul, com as estrelas simbolizando os estados, criada pela lei de quatorze de junho de 1777. Deram-lhe nomes: Stars and Stripes, descritivo; Old Glory, apologético!

Esta marca inconfundível dos Estados Unidos ainda não tinha cem anos quando foi negada pelos rebeldes sulistas que fizeram a secessão dos Estados Confederados da América. Criaram sua própria bandeira, com fundo, listras e estrelas noutro arranjo. E ela é ainda hasteada em estados do Sul, muitas vezes de forma contraditória, ao lado do estandarte da União. Além disso, foi parodiada por Mark Twain, que compôs um estandarte de listras vermelhas e negras, ostentando num retângulo preto caveiras, ao invés das estrelas; para ele, a nação da liberdade convertera-se num entreposto da pirataria mundial.

Outra glória máxima da nação é o hino! Além do hino dos Estados Unidos, de 1814, tornou-se muito popular outra composição, God Bless America (Deus Abençoe a América), de Irving Berlin, que a partir de 1938 tornou-se um “hino não oficial” do país, popularizando-se muito nos tempos de guerra que se seguiram. Parte da letra diz: “From the mountains / To the prairies / To the oceans / White with foam / God bless America / My home sweet home” 4.

Mas, assim como a bandeira, esse hino foi glosado pelo músico e cantor Woody Guthrie; ligado ao cancioneiro folk desde jovem, tornou-se famoso pelas letras de protesto depois da Grande Depressão, quando aderiu ao Partido Comunista. Em 1940, ele escreveu God Blessed America for Me, fazendo um contraponto mordaz ao hino. Mais tarde ele modificaria um pouco a letra, renomeada como This Land is Your Land, da qual reproduzimos um trecho: “When the sun came shining, and I was strolling / And the wheat fields waving and the dust clouds rolling / A voice was chanting, As the fog was lifting, / This land was made for you and me”.5 Sempre com um violão com os dizeres “This machine kills fascists”, os versos de Woody expunham a terra da promissão.

No entanto, afinal, que país era (é) esse? Quais encantos exerceu (exerce) aos que o conheceram (conhecem)? Quais as decepções ou revoltas que provocou (provoca) interna e externamente?

“Quem é o americano, este novo homem”!

John Hector St. John de Crèvecœur – um francês que escolhera viver em New York – na sua Letter III dos anos 1760 fez esta pergunta: “What then is the American, this new man? He is either a European, or the descendant of a European, hence that strange mixture of blood, which you will find in no other country”.6 Este “novo homem” que gerou tais indagações seria mais tarde recuperado pela Literatura como um ser original, muito mais adequado aos embates de uma terra por construir que seus avós do Velho Mundo. Pode-se especular que em Crèvecœur confluíssem uma tradição puritana – associada a uma busca pela Terra Prometida, que mais tarde resultaria na doutrina do Destino Manifesto – e um pragmatismo burguês de políticos e pensadores que literalmente projetaram um país.

Com sua Declaração de Independência de quatro de julho de 1776, estes “novos homens” emergiam da Revolução Americana7 para a construção de uma nação que passava, antes que nada, pela sua identificação como “um povo”. Dizem os membros congressistas dos Treze Estados:

When in the Course of human events, it becomes necessary for one people to dissolve the political bands which have connected them with another, and to assume among the powers of the Earth, the separate and equal station to which the Laws of Nature and the Nature’s God entitle them, a decent respect to the opinions of mankind requires that they should to declare the causes which impel them to the separation.8

Destacamos que, se era alegada uma legitimação divina, aparecia também em maiúsculas as Leis da Natureza! O “americano” político tinha sido gestado pela sua “natureza americana”.

Para esse país tornado independente pelas armas “americanas”, em dezessete de setembro de 1787, seus Founding Fathers 9 assumiram a representação de “Povo dos Estados Unidos” quando escreveram uma Constituição que vige até os dias atuais. Já o seu Preâmbulo, clama por um apelo coletivo:

We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.10

Mais tarde a ratificação deste diploma passou pela elaboração da Bill of Rights – a Declaração de Direitos – formada por dez emendas, também elas em vigor atualmente. É à Primeira Emenda em que se atribuem os fundamentos da democracia “americana”:

Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances”.11

O “novo homem” inaugurava-se em nome da liberdade, da igualdade, dos direitos universais. Mas estes “americanos” não eram tão “iguais”, ou tão “livres”, ou não gozavam todos dos mesmos direitos. Neste projeto de nação em que os políticos dos ilustrados estados do Norte atraíram estrangeiros de todas as partes para suas grandes cidades, ao mesmo tempo em que lhes facilitaram o acesso às generosas terras do Oeste, conformavam-se campos de conflito: burgueses e operários nos centros urbanos, fazendeiros e indígenas, nos novos territórios. Por outro lado, conviviam com os aristocratas dos estados do Sul, com suas grandes plantations de algodão tocadas por escravos africanos, com cinturões de brancos pobres sitiantes.12 Os acertos de tantas disparidades se faziam com a expansão do país às custas do extermínio dos que fossem empecilho: povos indígenas, franceses, espanhóis, mexicanos… A doutrina do Destino Manifesto avançava as fronteiras dos Estados Unidos, mas o melting pot que formaria o “americano” decerto não incluía estes outros povos.

Lutas pelos direitos civis dos afrodescendentes, reconhecimento dos povos indígenas remanescentes, imigração clandestina de latino-americanos e orientais, imperialismo e opressão externos são ainda dilemas da sociedade estadunidense que não foram garantidos pelos diplomas da sua fundação. Ainda não sabemos o que é um americano, ou em que ele difere dos demais americanos. Afinal, que América é esta, dentro da nossa América?

A outra América entre nós!

O Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul há muito tempo destaca como área de estudos a História da América. Em tempos mais pregressos, as disciplinas obrigatórias de História da América incluíam os conteúdos de História dos Estados Unidos, desde os tempos coloniais até os contemporâneos. Assim, era possível uma comparação entre os processos de colonização, as revoluções de independência e formações dos Estados nacionais, a inserção no capitalismo mundial etc. Observava-se, no entanto, que a História dos Estados Unidos merecia um destaque maior, até porque os temas relativos à História Contemporânea chamavam a atenção para uma superpotência cuja história de antanho não vinha sendo trabalhada com a intensidade merecida. Numa reunião de docentes que ministravam História da América na UFRGS, realizada em 1990, a professora Heloísa Jochims Reichel sugeriu a criação de uma disciplina específica de História dos Estados Unidos; os demais professores – Susana Bleil de Souza, Claudia Wasserman, Helen Osório e Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – apoiaram esta proposta, que foi mais tarde referendada pelo Departamento de História.

Desde então, História dos Estados Unidos da América faz parte do currículo de disciplinas eletivas do Curso de História, mas há reparos a fazer. O primeiro deles diz respeito a uma dupla mudança na inserção dos conteúdos ministrados: aos tempos em que eles faziam parte dos programas de História da América, eram obrigatórios para todos os alunos do curso; no formato que vige desde 1990, eles se tornaram opcionais! Além disso, na medida em que História dos Estados Unidos da América é eletiva, os professores que a assumem têm também uma ampla liberdade de escolha em relação aos temas que desenvolvem. (História dos Estados Unidos da América já foi ministrada por Heloisa J. Reichel, Susana B. de Souza e Cesar A. B. Guazzelli, tanto de forma sucessiva como compartilhada.)

Em 2003, Cesar A. B. Guazzelli foi contemplado com Bolsa Produtividade do CNPq para desenvolver o projeto de pesquisa Senhores da guerra em espaços fronteiriços: o norte do México e o Rio da Prata na primeira metade do século XIX (c.1810-c.1850); este estudo comparativo inaugurava as pesquisas sobre História dos Estados Unidos na UFRGS. Neste mesmo ano, Guazzelli também ministrou pela primeira vez a disciplina de História dos Estados Unidos da América, realizando um corte temporal entre a Independência e o final do século XIX. A esse projeto, foram integrados dois acadêmicos do Curso de História que desde o ano anterior estavam associados aos estudos sobre fronteiras: Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas. Fluentes em inglês, cada um deles tratou de um tema específico em relação ao espectro mais amplo da pesquisa: Arthur Avila assumiu a investigação sobre Fronteiras nos ensaios de Frederick Jackson Turner, cuja obra nunca era traduzida em português; Renata Freitas dedicou-se aos temas fronteiriços na obra de James Fenimore Cooper, quase toda ela inédita em português.

Os dois bolsistas deram continuidade aos seus trabalhos com investigações próprias derivadas destas atividades. Arthur Lima de Avila realizou o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS como bolsista do CNPq, defendendo em 2006 a dissertação intitulada E da Fronteira veio um Pioneiro: a “frontier thesis” de Frederick Jackson Turner (1861-1932), sob a orientação de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli. Ingressando no Doutorado do mesmo Programa, Arthur Ávila desenvolveu sua Tese Território contestado: a reescrita da história do Oeste norte-americano (c.1985-c.1995), com apoio do CNPq, ainda sob orientação de Cesar Guazzelli. Durante o Doutorado, realizou estágio na John Hopkins University. Em 2011, o trabalho foi contemplado com o Prêmio CAPES de melhor Tese em História de 2010.

As pesquisas sobre Cooper renderam a Renata Dal Sasso Freitas a dissertação de Mestrado Páginas do Novo Mundo: um estudo comparativo entre José de Alencar e James Fenimore Cooper na formação dos Estados nacionais brasileiro e norte-americano no século XIX, realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS; ela recebeu bolsa do CNPq, sendo concluída em 2008, sob orientação de Cesar Guazzelli. Neste mesmo ano, Renata Freitas iniciou seu Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro; em 2012, concluiu a Tese intitulada “Love of country”: os romances históricos de James Fenimore Cooper sobre a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1821-1824), com apoio do CNPq; nesse período estagiou na Yale University, em função de suas pesquisas.

Atualmente, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas coordenam o projeto de pesquisa América: identidades e alteridades: a escrita da História da América Hispânica nos Estados Unidos (c.1900-c.1930) apoiado em Edital Universal do CNPq. Essa pesquisa reúne diversos pesquisadores e bolsistas da UFRGS e de outras universidades, todos com investigações relacionadas e temas de História dos Estados Unidos da América. 13

A outra América em Revista!

Salientamos até agora algumas controvérsias que gera a História dos Estados Unidos, esta “outra América” que dá nome a um país tão diverso das demais nações americanas. Este irmão do Norte, cuja cultura de massas penetrou com uma intensidade talvez maior que sua influência na política ou sua dominação econômica imperialista, recebe atenções mínimas da historiografia nacional. Nesse sentido, nossa intenção de organizar este dossiê para a revista Anos 90 buscou cumprir uma dupla missão: 1) dar continuidade a um campo de conhecimento que vem se afirmando entre nós já há algum tempo; 2) apresentar para os historiadores que a História dos Estados Unidos tem uma grande possibilidade de se desenvolver em nosso meio.

Para este número da revista Anos 90, compusemos este dossiê com seis artigos inéditos, abordando aspectos históricos bem variados dos Estados Unidos da América.

O primeiro artigo tem como título A Quem Pertence o Passado Norte-americano? A controvérsia sobre os National History Standards nos Estados Unidos (1994-1996), de autoria do professor Arthur Ávila (UFRGS). Este texto trata da controvérsia pública sobre os National History Standards, um conjunto de propostas que visavam a auxiliar na reforma do Ensino Básico nos Estados Unidos, entre 1994 e 1996. No texto, enfatizam-se as respostas dos setores conservadores às diretrizes propostas, especialmente sua rejeição àquilo que consideravam um “sequestro da história” pelas hostes “multiculturais”, “politicamente corretas” e “antiocidentais”. Com isso, argumenta-se que tais setores buscavam a construção de um passado estável e sem conflitos justamente como contraponto a um presente que se apresentava cada vez mais instável e conflituoso, assegurando, assim, uma ideia bastante limitada sobre quem eram os personagens da história norte-americana e o que ela deveria significar.

Segue-se Os Estados Unidos entre o nacional e o transnacional: o saber produzido pela circum-navegação científica da U. S. Exploring Expedidion (1838-1842), de autoria da professora Mary Anne Junqueira (USP). Aqui trata-se de analisar alguns aspectos do conhecimento moderno expresso no relato de viagem da primeira circum-navegação científica, U. S. Exploring Expedition, entre 1838-1842. Os conjuntos de saberes constituídos pela expedição estiveram entre a afirmação nacional e os aspectos transnacionais próprios da época. Revela-se o propósito norte-americano no que diz respeito à inserção de quadros do país na rede de conhecimento liderada pelos europeus, discutindo com os seus pares do velho continente, mas também concorrendo com eles.

O trabalho seguinte é de autoria do professor Vitor Izecksohn (UFRJ) e tem como título A experiência miliciana norte-americana: antimilitarismo ou pragmatismo? Nesse artigo, o autor discute a experiência miliciana nas colônias inglesas da América do Norte e nos Estados Unidos durante a primeira república. Enfatizo o papel do antimilitarismo como principal aspecto da experiência militar anglo-americana. Relaciono essa perspectiva à aversão ao despotismo, derivada da tradição política inglesa e ao controle civil sobre os militares. Sublinho as dificuldades encontradas para a criação de um exército profissional e os problemas de coordenação entre o poder central e as autoridades locais e estaduais.

O artigo de Valeria Lourdes Carbone (UBA) tem como título El Movimiento afro-estadounidense contra el Apartheid sudafricano: un reflejo de la lucha de la comunidad negra a nivel doméstico y su impacto sobre la política exterior de los EE.UU. Esse texto tem como proposta analisar como – e em que medida! – o ativismo político afro-estadunidense contra o Apartheid sul-africano, após décadas de militância e organização, passou a influenciar as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a África do Sul. Isto permite ver como o movimento afro-americano foi recebido pelo governo Reagan; além de observar como qual era a real influência que aquele movimento podia ter ao desafiar certos aspectos da política externa do governo, destaca-se também a possibilidade de canalizar demandas próprias e reivindica-las internamente.

O texto Sobrevoando histórias: sobre índios e historiadores no Brasil e nos Estados Unidos foi escrito por Soraia Sales Dornelles e Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). As duas historiadoras abordam aspectos similares entre as produções brasileira e estadunidense sobre os respectivos grupos indígenas. Salientam que em ambos os casos as produções históricas feitas sobre os habitantes nativos tiveram importância objetiva nas políticas públicas relativas a eles. Destacam ainda que muitas influências de natureza complexa agem na formulação de conhecimentos sobre os povos indígenas do Brasil e dos Estados Unidos. O objetivo das autoras é perseguir uma abordagem comparativa entre as construções dos discursos históricos sobre os indígenas nos dois países, buscando, a partir disso, mapear os possíveis intercâmbios científicos sobre o tema.

Martha De Cunto (UBA) escreveu Chase-Riboud: Sally Hemings: Oralidad, escritura y la resignificación del passado, em que analisa o romance histórico de Chase-Reboud dentro de tradição literária negra. O trabalho relaciona o romance com as primeiras narrativas dos escravos, mostrando as continuidades e ruptura. Indaga sobre as representações dos principais personagens: Langdon, a escritura; Sally, a oralidade; e James, a cultura e a comunidade negra. O texto discute a legitimidade, o valor histórico e a veracidade dos discursos escritos, assim como aborda a desestabilização do binário “realidade ficcional” e “realidade” histórica, denunciando a forma como a historiografia dos brancos dominadores apresenta os negros marginalizados.

O último artigo, Entre Cabanas e Diligências: os Fronteiriços na Western Fiction de Bret Harte e Ernest Haycox, é de autoria conjunta de Cesar Guazzelli e Renata Freitas (UFRGS). O texto evidencia como a fronteira americana em seu avanço inexorável para Oeste produziu obras ficcionais muito carregadas de emoção, mesmo passados os tempos épicos dos pioneiros. Mais que isso, elas recriaram os seus dramas fora daquelas paisagens ocupadas pelos grandes rebanhos de gado e seus cowboys, mas justamente nos núcleos civilizatórios que já se haviam instalado no Oeste. A mitologia dos pioneiros mudava para uma realidade menos glamourizada, mas talvez mais verossímil. Assim, o que propomos é uma leitura comparada de dois contos que se reportam ao avanço da fronteira “civilizatória” para o Oeste: The Outcasts of Poker Flat, de Bret Harte, escrita em 1868 (HARTE, 2001) e Stage to Lordsburg, de Ernest Haycox, escrita em 1939.

Essas são algumas visões sobre a História dos Estados Unidos, para que talvez – parafraseando Crèvecœr – compreendamos um pouco melhor quem é aquele “novo homem”, e se este outro “americano” está tão distante assim de nós.

Notas

1. Esta fala aconteceu na abertura do Ciclo de Cinema – Curso de Extensão em Cinema, História e Educação USA não abusa! Os Estados Unidos da América em Tempos de Guerra. No mesmo ano, esta conferência de Karnal foi publicada como texto: Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos (GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010, p. 9-16).

2. Durante as guerras de independência, a expressão “americano” foi usada por todo continente em oposição aos colonizadores. Também não custa lembrar que a América do Norte – vista aqui como um subcontinente! – inclui o Canadá e o México.

3. Esta organização política pode ser acompanhada pelas publicações do jornal The Federalist, mais tarde reunidas em um livro homônimo: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

4. “Das montanhas / Para as pradarias / Para os oceanos / Branco com espuma / Deus abençoe a América / Meu lar doce lar”. Tradução nossa.

5. “Quando o sol apareceu brilhando, e eu estava passeando / E os campos de trigo ondulando e as nuvens de poeira rolando / Conforme a fumaça se levantava uma voz cantava / Esta terra foi feita para você e para mim”. Tradução nossa.

6. “Quem é afinal o americano, esse novo homem? É europeu ou descendente de europeu, e daí aquela estranha mistura de sangue que não é encontrada em nenhum outro país”. Tradução nossa. Uma série de cartas escritas por Crèvecoeur foram reunidas e publicadas em 1782, como Letters from na American Farmer. Ver: VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994, p. 18.

7. O historiador marxista estadunidense Aptheker não duvida em destacar a Revolução Americana como “uma daquelas grandes guerras realmente revolucionárias”. APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 17.

8. “Quando no Curso dos eventos humanos torna-se necessário para um povo dissolver os laços políticos que o tem ligado a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, estatuto igual e separado que lhe asseguram as Leis da Natureza e de Deus, o decente respeito às opiniões da humanidade requer que sejam declaradas as causas que os impeliram à separação”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012.

9. Pais Fundadores são chamados os congressistas que elaboraram a Constituição dos Estados Unidos e as Emendas que formam a Declaração de Direitos do Cidadão.

10. “Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para nós e para os nossos Descendentes as Bênçãos da Liberdade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS, op. cit.

11. “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. Id. Ibid.

12. O contraste entre o Norte capitalista e o Sul escravocrata levariam o país à trágica Guerra da Secessão. Para Barrington Moore, ela teve tanta importância quanto as grandes revoluções capitalistas do século XVIII. MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983. Sobre o tema, ver também: KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983.

13. Os docentes colaboradores são os seguintes: Teresa Cribelli, Ph.D. em História pela Johns Hopkins University, professora de História na University of Alabama; Fabrício Pereira Prado, Ph.D. em História Latino-Americana pela Emory University, professor de História na Roosevelt University, USA; Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na Universitat Pompeu Fabra, de Barcelona, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Joana Bosak de Figueiredo, Mestre em História e Doutora em Literatura Comparada pela UFRGS, com estágio doutoral na Universitat de Barcelona, professora de História da Arte na UFRGS; Susana Bleil de Souza, Doutora em História pela Université de Paris X – Nanterre, de professora de História na UFRGS e professora convidada da Universidad de la República de Montevidéu; Carla Menegat, Doutoranda em História na UFRGS, com estágio doutoral na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL); Rafael Hansen Quinsani, Doutorando em História na UFRGS.

Referências

APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969

FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

KARNAL, Leandro. Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos. In. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010. p. 9-16.

KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983

MOORE Jr., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994.

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Arthur Lima de Ávila – Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; ÁVILA, Arthur Lima de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, jul., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História das Sociedades africanas: temas, questões e perspectivas de estudo / Anos 90 / 2014

Desde pelo menos meados do século XX, pode-se falar da existência de uma área acadêmica denominada estudos africanos ou africanologia, integrada por profissionais de diferentes disciplinas (antropologia, arqueologia, arte, direito, filosofia, história, literatura, música, sociologia, entre outras), que têm em comum o interesse pela análise de aspectos relativos aos povos, às sociedades, instituições, atividades econômicas, aos sistemas simbólicos, discursos e às interpretações sobre a África e os africanos.

Esta área tem sido desenvolvida a partir de pelo menos três diferentes tendências gerais de abordagem. A primeira ganhou forma na Europa ocidental, desde o período da colonização na África, e evoluiu de uma perspectiva racializada e eurocêntrica para outra mais diversificada, em que as particularidades africanas passaram gradualmente a ser consideradas (DIALLO, 2001; GOERG, 1991; VYDRINE, 1995; MAINO, 2005). A segunda emergiu nos Estados Unidos nos anos 1950-1960 e teve a origem ligada em parte às demandas de conhecimento das universidades estadunidenses sobre as jovens nações africanas no momento em que elas eram inseridas no complexo jogo das relações internacionais do período da Guerra Fria; vincula-se também à emergência dos movimentos de reivindicação de direitos civis protagonizados por afro- estadunidenses, desejosos de ver seus laços históricos fortalecidos com o seu continente de origem (FERREIRA, 2010). A terceira é constituída por intelectuais nativos da África, de variada formação, e suas interpretações valorizam as referências locais, bem como a experiência dos próprios africanos, fundando-se em conhecimento erudito articulado a saberes tradicionais, endógenos (NZIEM, 1986; LOPES, 1995; KAKOMBO, 2005; BARBOSA, 2012).

No Brasil, a área ganhou força na última década, embora exista há mais de meio século em núcleos de pesquisa pioneiros, como o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), na Universidade Federal da Bahia, fundado em 1959; o Centro de Estudos Africanos (CEA), da Universidade de São Paulo, criado em 1965, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), da Universidade Cândido Mendes, em 1973. Fora desses, não obstante iniciativas isoladas, somente no início do século XXI assiste-se a um movimento no sentido da institucionalização dos estudos africanos, através de atividades em diversas disciplinas – sobretudo história e literatura, e em menor proporção antropologia e sociologia (MARQUES; JARDIM, 2012).

Esta alteração corresponde a uma resposta da comunidade acadêmica diante das exigências colocadas pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no ensino fundamental e médio após a promulgação da lei federal nº 10.639 / 2003, ampliada pela lei federal nº 11.645 / 2008. É a partir deste momento que ocorre, ao que parece, uma progressiva inserção curricular de temas africanos, com a criação de disciplinas nos cursos de história de 34 universidades públicas. É também desse momento em diante que se pode observar uma tendência à ampliação do interesse pela África, para além da docência, com pesquisa acadêmica formal incipiente (PEREIRA, 2013).

Tal movimento implica, em certa medida, uma tomada de posição em relação aos referenciais de estudo, aos métodos e instrumentos conceituais e analíticos empregados nas análises, bem como uma definição mais clara deles quanto à sua aplicabilidade aos temas e problemas específicos das sociedades africanas em sua experiência social, cultural e histórica. Implica igualmente a definição mais precisa de fronteiras entre os estudos africanos e estudos afro-brasileiros, em especial aqueles vinculados ao tráfico atlântico e à diáspora que, embora próximos em certos pontos, não são necessariamente equivalentes (PIAULT, 1997; SANSONE, 2002; ZOUNGBO, 2012). As condições para que isso venha a ocorrer de modo cada vez mais consistente foram ampliadas com a criação de uma rede nacional de NEABs (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) e, em 2011, com a criação do GT Nacional de História da África, vinculada à Associação Nacional de História (ANPUH).

O presente dossiê tem a finalidade de contribuir neste processo de afirmação institucional. Dele participam especialistas em estudos africanos provenientes de diversas regiões brasileiras, da África ocidental, Estados Unidos e Europa, com experiência em distintos temas de investigação, em sua maior parte colaboradores da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino de Estudos Avançados da UFRGS (http: / / grupodeestudosafricanos.blogspot. com.br / 2014 / 06 / tendencias-de-estudo.html), criada em 2014, sob nossa coordenação e do jovem pesquisador guineense Frederico Matos Alves Cabral.

No que diz respeito ao enfoque do dossiê, maior atenção veio a ser dada aos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), devido muito provavelmente às afinidades culturais que nos unem a Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, mas também comparecem textos sobre outros espaços africanos, na Costa do Marfim e na Namíbia, com o desenvolvimento de questões políticas e sociais que lhe são próprias. Quanto ao espectro da análise, abrange os modos de organização social, instituições e tipos de exercício do poder, relações de dominação e resistência, processos identitários, elaborações discursivas, formas de representação e preservação da memória coletiva em diferentes áreas geográficas e contextos, no lapso temporal compreendido entre o século XV e o início do século XXI.

Neste amplo quadro geográfico e histórico, cumpre identificar em primeiro lugar o papel diferencial das dinâmicas sociais e a grande capacidade de adaptação e interação das sociedades africanas ou de indivíduos provenientes delas em situações de contato dentro e fora do continente. Do que se pode depreender dos trabalhos iniciais do dossiê, relativos à alta Guiné e ao litoral centro-ocidental durante os séculos XV-XIX, no período de formação do “mundo atlântico”, os africanos não se fecharam em costumes e instituições imutáveis, mas abriram-se a diferentes inovações. Não se trata, muito longe disso, de assimilação, nem mesmo de processos de mestiçagem ou crioulização pura e simples, mas de transformações decorrentes da ampliação de suas possibilidades históricas ou de alterações que afetaram suas estruturas sociais originais.

É o que indica o estudo do africanista português José da Silva Horta, da Universidade de Lisboa, ao examinar a tessitura das primeiras redes de contato intracontinentais de que participaram africanos livres. Delas tomaram parte indivíduos de diferentes grupos de origem, entre a Senegâmbia, o arquipélago de Cabo Verde, os rios da Guiné e Serra Leoa, de onde sua diferencial participação na formação de aristocracias africanas e luso-africanas nas elites locais. Neste trânsito também circularam conceitos, práticas e experiências religiosas de origem africana em paralelo aos elementos do sagrado cristão, produzindo o que o autor designa de imaginários comunicantes – optando desse modo pela ideia da coexistência, ou no máximo de justaposição de elementos das diferentes cosmologias postas em contato, em vez das sínteses ou mesclas sugeridas pela ideia de imaginários mestiços.

Noutra área geográfica, mas com sentido parecido, verifica-se o processo de reconfiguração desencadeado pela cristianização do Congo na primeira metade do século XVI, quando foi decisiva a atuação de sacerdotes e catequistas congueses na estruturação de novas práticas religiosas. Ao aliar elementos cristãos aos elementos tradicionais de sua sociedade, estes serviram de destacados mediadores culturais, algo posto em evidência pela pesquisadora Marina de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo.

Por razões diferentes, mas relacionadas com as alterações impostas pela gradual importância do porto de Luanda no tráfico transatlântico, surgiram desde o século XVII comunidades de escravos fugitivos, conhecidas pelos nomes de mutolos ou quilombos, que funcionavam como foco de resistência em áreas sob controle português. Em detalhado estudo, o brasileiro Roquinaldo Ferreira, que atua há anos na Universidade de Brown, examina os fatores associados a esta questão – que ganhou maior projeção no século XIX, no contexto da crise do tráfico internacional de escravos.

Outro aspecto a ser sublinhado tem a ver com a alta capacidade de resiliência daquelas sociedades, que souberam resistir a pressões e determinações exteriores, mantendo vivos seus traços essenciais, sobretudo em face da situação colonial – para usar a conhecida expressão cunhada por Georges Balandier. Nesse sentido, o trabalho de Regiane Augusto de Mattos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, desenvolve uma questão pouquíssimo explorada no estudo da institucionalização da conquista colonial europeia ao fim do século XIX: o protagonismo das mulheres anciãs chefes de linhagens do norte de Moçambique, chamadas pia-mwene – com quem as autoridades portuguesas, para garantir sua influência local, foram forçadas a se relacionar, e inclusive a negociar.

Por sua vez, as contradições inerentes às relações desequilibradas entre a metrópole lusa e as colonias de Angola e Moçambique são evidenciadas na interpretação do significado da proclamação da república portuguesa, em 1910, feita por Valdemir Zamparoni, da Universidade Federal da Bahia. O autor examina o contraste entre o ideal universalista do conceito político de república, sua efetiva manifestação conservadora em Portugal e as espectativas frustradas das camadas dirigentes coloniais em face do pragmatismo administrativo de cariz racista inerente ao projeto imperial transplantado para a África.

A busca da complexidade das estratégias africanas norteia por sua vez o texto de Marçal de Menezes Paredes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no estudo sobre a formação nacional em Moçambique no período posterior à independência. A atenção recai especificamente no projeto político e ideológico da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que se baseia na ideia de um homem novo, em consonância com uma noção particular de moçambicanidade.

Saindo da comunidade linguística oficial lusófona, a proposta de análise do brasileiro Acácio de Almeida Santos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do marfinês Aghi Bahi, da Universidade Félix Houphouët-Boigny, recoloca em outros termos as categorias e os conceitos retirados da literatura sociólogica e da ciência política para entender as relações entre sociedade civil e participação política na Costa do Marfim. Trata-se de pensar os componentes e as variáveis da ação política de diferentes segmentos sociais, desde o período colonial até o momento presente, o que põe em causa a ideia corriqueira de um suposto apolitismo ou de uma suposta passividade da sociedade civil diante das elites que controlam o Estado.

Os três últimos artigos privilegiam os discursos e as representações nas sociedades africanas do século XX, pondo acento nas dinâmicas culturais que dão sentido à história e à memória e orientam a ação social e política no período contemporâneo.

O circuito em que transitaram teorias e ideias políticas e a maneira criativa como foram lidas, apropriadas e reinterpretadas pelos intelectuais africanos em diferentes locais, condições e contextos é o que confere grande originalidade ao pensamento social africano, tal como demonstra o artigo de Leila Leite Hernandez, da Universidade de São Paulo.

A maneira pela qual a produção didática em livros de história escritos no período posterior à independência de Angola tem retratado os portugueses, examinada por Anderson Ribeiro Oliva, da Universidade de Brasília, permite entrever o quanto a relação especular com o antigo colonizador continua a conferir sentido a uma identidade nacional em construção.

Por fim, a disputa pela preservação da memória de determinados atores envolvidos em acontecimentos traumáticos do período colonial do sudoeste africano, em especial o caso do massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães, entre 1904-1908, sugere leituras multifacetadas e divergentes das relações euro-africanas ou afro- europeias na Alemanha e na Namíbia. As diferentes formas de celebração dos acontecimentos na memória coletiva dos grupos envolvidos e as interpretações fornecidas pela história levantam a questão da descolonização do passado, como bem aponta o estudo de Silvio Marcus Correa, da Universidade Federal de Santa Catarina, que encerra o dossiê. Para concluir, resta agradecer aos colaboradores que gentilmente enviaram seus textos, acreditando e confiando no dossiê temático aqui publicado. Os resultados alcançados, vistos em conjunto, provam a qualidade dos estudos africanos produzidos no Brasil, vislumbrando caminhos, perspectivas de análise e grandes possibilidades de um futuro promissor.

Referências

BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral da África (UNESCO). Tese (Doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História – USP, 2012.

DIALLO, Youssouf. L’Africanisme en Allemagne, hier et aujourd’hui. Cahiers des Études Africaines (Paris), n. 161, tome XLI-1, 2001, p. 13-43.

FERREIRA, Roquinaldo. A institucionalização dos estudos africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações. Revista Brasileira de História (ANPUH), v. 30. n. 59, 2010, p. 73-90

GOERG, Odile. L’historiographie de l’Afrique de l’Ouest: tendances actuelles. Gêneses (Paris), n. 6, 1991, p. 68-78.

KAKOMBO, Jean-Marie Mutamba. L’histoire de l’Afrique vue par les africains. In: MANDÉ, Issiaka; STEFANSON, Blandine (Orgs.). Les historiens africains et la mondialisation. Actes du 3º congrès international des historiens africains, Bamako, 2001. Paris: Bamako: Éditions Karthala; AHA / ASHIMA, 2005. p. 237-251.

LOPES, Carlos. A pirâmide invertida: historiografia africana feita por africanos. In: VVAA. A Construção e ensino da História de África. Colóquio de Lisboa, 7-9 de junho de 1994. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 12-32.

MAINO, Elisabetta. Pour une genealogie de l’africanisme portugais. Cahiers des Études Africaines, n. 177, tome XLV-1, 2005, p. 165-215.

MARQUES, Diego Ferreira; JARDIM, Marta da Rosa. O que é isto: a África e sua história? In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Travessias antropológicas: estudos em contextos africanos. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia (ABA), 2012. p. 31-61.

NZIEM, Ndaywel. African historians and africanist historians. In: JEWSIEWICKI, Bogumil; NEWBURY, David (Eds). African historiographies. What history for which Africa?. Beverly Hills; London; New Delhi: Sage Publications, 1986. p. 20-27.

PEREIRA, Márcia Guerra. A pesquisa em história da África nas universidades brasileiras: um panorama. In: XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social. Disponível em: http: / / www.snh2013.anpuh. org / resources / anais / 27 / 1364762337_ARQUIVO_ApesquisaemHistoriadaAfrica. pdf. Acesso em: 12 jul. 2014. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014

PIAULT, Marc H. Images de l’Afrique, Afrique imaginaire ou question d’identité brésilienne. Journal des Africanistes (Paris), tome 67-1, p. 9-25, 1997.

SANSONE, Lívio. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. Afro-Ásia (UFBA), v. 27, 2002. p. 249-269.

VYDRINE, Valentin. A propos des études africains en Russie. Journal des Africanistes (Paris), tome 65-2, 1995. p. 235-238.

ZOUNGBO, Victorien Lavou. Idas e vindas: Áfricas, Américas. Trajetórias imaginárias e políticas. Projeto História (PUCSP), n. 44, p. 9-22, 2012. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014

José Rivair Macedo – Departamento de História e PPG de História – UFRGS; Pesquisador do CNPq; Sócio-correspondente da Academia Portuguesa da História; Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos – UFRGS; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos – UFRGS.


MACEDO, José Rivair. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e cultura histórica no alvorecer da época moderna (séculos XIV-XVII) / Anos 90 / 2014

A história da historiografia já dispõe, no Brasil, de uma considerável e consistente produção bibliográfica, a qual segue concomitante ao desenvolvimento e à consolidação de uma agenda de investigação organizada em linhas e grupos de pesquisa, em periódicos de reconhecimento internacional e em eventos acadêmicos de notável importância entre os historiadores. Como não poderia deixar de ser, preponderam entre os estudos aqui realizados aqueles voltados para a escrita da história produzida sobre temas brasileiros e por pesquisadores nacionais. Do ponto de vista temporal, é considerável a ênfase nos trabalhos sobre o século XIX, compreendendo ainda, e de forma cada vez mais intensa, pesquisas cujo foco são as primeiras décadas do período republicano, já na passagem para o século seguinte. Embora ainda em número bastante reduzido, encontram-se importantes investigações preocupadas em compreender o momento anterior a este recorte, sobretudo aquele do desenvolvimento de uma historiografia luso-brasileira no século XVIII.

Menos evidente, contudo, parece ser a produção ocupada com contextos anteriores a tais recortes, os quais, obviamente, fogem necessariamente da chave explicativa amparada na nação ou na cultura brasileira. A discussão das razões para isso não cabe nesta breve apresentação, sendo importante ressaltar apenas dois pontos. Em primeiro lugar, levando em consideração o atual contexto da pesquisa histórica no Brasil, ainda que compreensível, tal situação, não mais se justifica por questões puramente práticas, dada a relativa facilidade de acesso ao corpus documental e ao material bibliográfico de qualidade, bem como as possibilidades de circulação de pesquisadores brasileiros fora dos trópicos e de investigadores estrangeiros aqui por estas paragens. Em segundo lugar, o diagnóstico mencionado não desconhece um fato marcante: ainda que quantitativamente poucos, uma parte considerável dos estudos produzidos no Brasil voltados para estes outros ambientes historiográficos é de reconhecida qualidade, os quais se ocupam, por exemplo, com as formas de escrita da história na antiguidade, como o jogo sempre proveitoso entre antigos e modernos, com as relações do saber histórico com outros campos de saber, com o papel da história na definição do pensamento político moderno, entre outras distintas abordagens. Não seria o caso aqui de indicá-las nominalmente.

A proposta do dossiê que ora se apresenta tem por intenção portar-se diante desta situação, oferecendo alguns estudos que podem ser situados no que aqui se define como “alvorecer da época moderna”, na falta de uma terminologia mais adequada, considerando o período compreendido, grosso modo, entre os séculos XIV e XVII, ou seja, entre a florescência do chamado humanismo renascentista e os primeiros clarões das Luzes setecentistas. Não se trata de assumir um suposto tom heroico, justificando a empreitada no sentido de se “suprir uma lacuna”. Lacunas há e sempre hão de existir, sobretudo no que diz respeito à tradução para a língua portuguesa de fontes e obras de referência. Trata-se, sim, todavia, de contribuir para o desenvolvimento de um campo de investigação em franco crescimento no contexto historiográfico brasileiro, cujos estudos têm se empenhado em revelar – através do diálogo com a ampla bibliografia estrangeira sobre o tema – a pluralidade de abordagens possíveis.

Partindo da consideração, que pode funcionar como hipótese de trabalho, de que o saber histórico assumia neste momento uma feição bastante singular, a qual, embora marcada pela constante referência à antiguidade, não era mais uma história antiga e que, ainda que tenha definido certas condições para a emergência dos procedimentos modernos de escrita da história, não era ainda uma história propriamente moderna, o objetivo é indagar a respeito da singularidade desta cultura histórica ou, sugerindo uma terminologia que me parece proveitosa, deste regime historiográfico, em suas múltiplas feições, ressaltando, como ver-se-á, os princípios da erudição histórica, a relação com outras práticas de saber, as formas de compreensão dos sentidos variados assumidos pela história e pelo papel do historiador, as modalidades de figuração deste personagem e sua dimensão política, entre outros temas.

O dossiê é aberto com a tradução do texto clássico de Arnaldo Momigliano sobre a prática antiquária na época moderna, ressaltando seus fundamentos antigos e o papel central por ela desempenhada na conformação do método histórico na modernidade. É reconhecida a importância deste estudo, que já tem mais de meio século de idade, na definição de um leque bastante amplo de perspectivas historiográficas, assim como já são conhecidas as perspectivas críticas elaboradas nos últimos anos em relação às inferências ali feitas pelo historiador italiano. Não obstante, dada a relevância desse texto e a carência de traduções para a língua portuguesa deste que, sem dúvida, foi um dos principais estudiosos da história da historiografia no século XX, voltar ainda hoje a este debate me parece bastante salutar.

Em seguida, outra tradução de um texto inédito no Brasil, escrito pela historiadora francesa Chantal Grell, no qual a autora traça um panorama compreensivo sobre a cultura histórica francesa entre os séculos XV e XVII, discutindo as diferentes formas de se escrever história no período, bem como os diferentes papéis assumidos tanto pelo saber histórico quanto por aquele que o praticava. Na sequência, o leitor encontrará o artigo de Francisco Murari Pires, em que são analisadas as “figurações heroicas do historiador” nos princípios da época moderna, as quais se dão, em autores variados como Jean Bodin e Thomas Hobbes, segundo uma matriz antiga notória, a saber, Tucídides, constituindo um precedente importante para os usos do autor antigo no século XIX.

Complementando o dossiê, Cássio da Silva Fernandes oferece um estudo sobre o humanista italiano Enea Silvio Piccolomini, situando-o na fronteira entre os gêneros da cosmografia, da história e do relato de viagem. Por fim, Rubens Leonardo Panegassi discute o tema da expansão marítima lusitana a partir das questões envolvidas no embate entre antigos e modernos na obra de João de Barros, notório expoente do humanismo português.

A expectativa é que esse dossiê possa ser útil para pesquisadores voltados aos temas aqui propostos, aos estudantes interessados por esses temas, bem como aos curiosos em relação às diferentes formas pelas quais o conhecimento histórico foi apreendido e a história escrita ao longo de nossa modernidade. Ao leitor resta desejar, enfim, uma ótima leitura.

Porto Alegre, maio de 2014.

Fernando Nicolazzi – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista do CNPq. A organização deste dossiê insere-se dentro das atividades do projeto de pesquisa Erudição, ceticismo, historiografia: a cultura histórica francesa no século XVI (Bodin, Montaigne, La Popelinière), que conta com financiamento do CNPq.


NICOLAZZI, Fernando. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

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O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV / Anos 90 / 2013

O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV. No final do ano de 2001, a revista Anos 90 publicou o número intitulado Estudos sobre Idade Média Peninsular. O trabalho de seleção dos textos ali reunidos foi organizado pelo Professor Dr. José Rivair Macedo. Esse número foi a coroação de uma série de ações realizadas na UFRGS sobre história medieval na década de 1990. Sendo assim, foram publicados textos de professores e, então, alunos de pós-graduação e graduação, além de professores de outras instituições. O tema daquele número também refletia a concentração de estudos, na historiografia brasileira sobre Idade Média, que privilegiavam a Península Ibérica nos séculos finais daquele período.

Doze anos depois, podemos afirmar que o presente dossiê sobre normas e relações de poder entre os séculos V e XV é reflexo de uma série de mudanças: desde as relacionadas à avaliação e classificação das revistas acadêmicas, que estimulam a inserção dos Programas de Pós-Graduação em nível nacional e internacional e evitam também a publicação de textos de autores da casa, às abordagens sobre tempos e espaços diversos. Sendo assim, os autores que publicam no presente dossiê, em geral, tem como característica geral, a presença mais constante e sistemática de períodos e projetos de colaboração internacional de pesquisa. Dessa forma, o presente número oferece ao público uma reunião de textos que tem origem em pesquisas realizadas (concluídas ou em andamento) em nove Universidades diferentes e que tratam de tempos e espaços heterogêneos.

Dividimos o dossiê O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV em três blocos, não necessariamente fechados em si. O primeiro inclui textos sobre o período inicial da Idade Média que analisam aspectos das relações de poder na região da atual França; o segundo concentra textos sobre a chamada Idade Média Central, mas também abarca os textos sobre Península Ibérica entre os séculos XI e XV; o terceiro reúne textos sobre a Península Itálica, especificamente entre os séculos XIII e XV. O leitor pode perceber, então, que há uma orientação cronológica (da Alta à Baixa Idade Média) e geográfica (França, Portugal, Espanha e Itália), porém, o que fica evidente no conjunto dos textos é a pluralidade de possibilidades: textos que defendem a atuação de um possível Estado e ideias de governo, textos sobre a constituição de normas específicas, como regras de Ordens Religiosas ou processos jurídicos, textos sobre concílios e moralização clerical, além de textos sobre resolução de conflitos.

O primeiro artigo é de autoria de Rossana Pinheiro, da UNIFESP. A autora aborda algumas características do poder episcopal na Gália do século V, com especial destaque para a não separação entre monges e bispos ou, como defende a autora, para a atuação de “monges-bispos” na expansão do cristianismo naquela região. O texto seguinte, de autoria de Marcelo Cândido da Silva (USP), trata de crises de escassez de alimentos e fome entre os séculos VIII e IX, entre os carolíngios. O autor analisa, além de anais, crônicas e inventários, a atuação de combate à fome adotada por governantes, como: Pepino, o Breve († 768), Carlos Magno (†814), Luís, o Piedoso († 840), Carlos, o Calvo (†877) e Carlomano II (†884). Para Cândido da Silva, os indícios encontrados sobre a fome na documentação analisada não necessariamente permitem associar as crises às dificuldades técnicas. Sendo assim, o autor fornece um olhar mais voltado para a história política do que para a história econômica para discutir o assunto.

O segundo bloco de textos inicia-se com a reflexão proposta por Cláudia Regina Bovo, professora de história medieval na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. A autora expõe seu problema de pesquisa no título do artigo: O combate à simonia na correspondência de Pedro Damiano: uma retórica reformadora do século XI?. O objetivo é discutir se se pode afirmar a existência de um “programa reformador” no século XI. Em outras palavras, a autora propõe uma revisão sobre a chamada “reforma gregoriana” a partir de uma análise de caso: a simonia. Ao final do texto, ela conclui que não é possível afirmar a existência de uma noção ampla de “reforma”. O texto de Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) sobre o concílio de Coyanza (século XI) apresenta as características que fazem dessa reunião uma das mais importantes ocorridas na Península Ibérica durante o medievo e, principalmente, como se deu a construção historiográfica sobre essa importância. De acordo com a autora, as duas redações diferentes das atas daquele concílio revelam os interesses políticos que estavam em cena nas disputas no reino de Castela-Leão. O terceiro texto que compõe esse eixo é de autoria de Maria Filomena Coelho (UNB). A autora analisa, a partir do tema da clausura feminina, o processo de instituição e consolidação do braço feminino da Ordem Cisterciense na Península Ibérica, bem como relaciona esse processo às tensões políticas em Castela-Leão no século XIII. Para Coelho, como a clausura era um elemento básico e importantíssimo para a legitimação da vida monacal das mulheres, o tema deve ser analisado a partir da cultura política, entendida como “valores em que se assentam e pelos quais se justifica o poder de exigir a observância da clausura, bem como o de permitir as exceções”. Sendo assim, ao final do texto, a autora defende a necessidade de entender a clausura feminina como um elemento de legitimação institucional de um modelo, no qual as disputas concernentes a essa questão devem ser entendidas no contexto social e político de cada região. Finalizando o segundo bloco, o texto de Beatris dos Santos Gonçalves (UCAM-RJ) aborda a importância da concessão do perdão régio no processo penal português para a afirmação de um reino centralizado e fortalecido no século XV. A autora privilegia a análise das Ordenações do Reino e conclui que o “acesso à benevolência da remissão régia” funcionou como elemento de propagação do argumento que “só o rei poderia garantir a justiça”.

O presente dossiê é finalizado por uma sequência de três textos que tratam de ideias de governo, normas, regras e conflitos na Península Itálica. André Luís Pereira Miatello (UFMG) aborda os usos e significados das ideias de bem comum e utilidade comum nas cidades comunais italianas, como Florença, Siena, Bolonha e Pádua. O autor analisa dois escritos retóricos de Brunetto Latini (1220- c.1294): Rettorica (ca. 1260), e Li Livres dou Tresor (ca.1260-1267). Miatello conclui que é possível afirmar a existência de uma “esfera pública” construída nas cidades italianas a partir da noção de bem comum. No texto de Carolina Coelho Fortes (UFF), sobre a formação da Ordem dos Irmãos Pregadores (dominicanos) no início do século XIII, o leitor encontra alguns aspectos da tese de doutorado da autora, defendida em 2011. Seu principal interesse está em discutir o papel dos estudos na constituição de uma identidade institucional dos frades pregadores. A autora analisa documentos como o Liber Consuetudinum e as atas dos capítulos gerais realizados pela Ordem entre 1220-1260. Fortes conclui que, ao identificar na documentação constantes referências à regulamentação sobre a saída dos frades para atuar como mestres, inclusive, em casas de outras ordens, é possível afirmar que os dominicanos, no século XIII, podem ser associados a uma societas studii, ou “sociedade de estudos”. O texto que encerra o dossiê é de autoria de Didier Lett (Paris VII). O autor apresenta uma microanálise sobre qual consciência homens e mulheres poderiam ter dos estatutos nas cidades italianas da região das Marcas de Ancona. Para isso, apresenta e analisa um processo movido pelo pai de uma criança, em 1458, após um jogo de batalha de pedras em São Severino. No processo, a acusação é de um tipo de traumatismo craniano provocado por Benincasa di Beneamato Corradi em Andrea di Nicola. O pai de Andrea recorre à justiça e o pai de Benincasa é convocado a defender o filho. O que estava em causa: a inimputabilidade penal de Benincasa. Em outras palavras, a defesa foi estruturada a partir do argumento de que o acusado teria menos de dez anos quando do ocorrido e, por isso, não deveria ser aplicada pena. Na movimentação dos dois pais a partir do acionamento e recurso à justiça para a resolução do conflito, Didier Lett desvenda um universo que compreende desde as práticas cotidianas de divertimento de crianças e jovens de uma determinada região, a consciência que os habitantes poderiam ter das leis (pois o pai da vítima reclamou na justiça o direito de indenização) e, também, a atuação de diferentes autoridades no processo de formação e a relação entre práticas e representações nas comunas italianas no final da Idade Média.

Os nove textos aqui reunidos, dessa forma, oferecem ao leitor um espectro diversificado sobre o universo político e social, em diferentes regiões, entre os séculos V e XV. Além desses artigos, apresentamos também uma resenha, de Néri de Almeida Sousa (UNICAMP), do recente livro Guerra Santa, de Jean Flori, publicado em português em outubro de 2013. Sendo assim, o leitor tem acesso a um bom número de reflexões recentemente concluídas e / ou de pesquisas em andamento que já produziram resultados consistentes. Resta aos organizadores o convite à leitura e o estímulo ao debate. Agradecemos aos colaboradores da Anos 90: a comissão editorial 2010-2012, que aceitou a proposta do dossiê, aos pareceristas que colaboraram com a qualidade dos textos aqui publicados e aos autores que privilegiaram a proposta ao enviar seus textos para avaliação.

Boa leitura!

Igor Salomão Teixeira

Cybele Crossetti de Almeida

(Organizadores)


TEIXEIRA, Igor Salomão; ALMEIDA, Cybele Crossetti de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Redes Latino-Americanas / Anos 90 / 2013

O dossiê do número 37 da revista Anos 90 está dedicado às Redes Intelectuais Latino-Americanas e Espaços de Fronteira: ultrapassando o âmbito do Estado Nação. Os autores deste volume fazem parte de um convênio entre o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e os Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Nacional de Cuyo (UNCUYO), em Mendoza, Argentina, Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Nacional de la República (UDELAR), Montevideo, Uruguai, e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), financiado pelo programa CAPES / MERCOSUL.

A rede pode ser definida como “[…] uma estrutura de laços entre atores de um sistema social… Os seus laços podem basear-se na conversação, afeto, amizade, parentesco, autoridade, troca econômica, troca de informação ou qualquer coisa que constitua a base de uma relação” (NOHRIA; ECCLES, 1992, p. 288). Os autores dos textos que foram selecionados para compor este número da revista Anos 90 estão preocupados justamente em definir relações entre atores em determinado sistema social, seja no âmbito do direito das gentes na época das independências sul-americanas, seja em grupos de mulheres vítimas de violência, grupos ecumênicos, seja entre intelectuais e autores de ficção.

Do ponto de vista intelectual e mais especificamente latino-americano, a preocupação deste grupo de investigadores é ultrapassar o âmbito do Estado-nação, sem perder de vista as especificidades de cada caso. Apesar de diferentes inquietações, relativas às questões particulares de cada país ou região, os problemas que absorvem os intelectuais da América Latina são complexos, densos, de difícil diagnóstico e solução – questões relativas aos direitos humanos, aos direitos civis, às necessárias reformas políticas, à educação, aos sistemas de saúde pública, ao desenvolvimento, à dependência e à preservação das culturas e do patrimônio são apenas algumas das angústias dos intelectuais da região.

A complexidade e a heterogeneidade das preocupações e dos temas que afligem o intelectual da América Latina e do Caribe se vinculam ao problema em como converter assuntos que poderiam ter uma análise apenas nacional em uma interpretação cuja abrangência ultrapasse esses limites.

Até o presente momento, os intelectuais que objetivaram articular as preocupações nacionais com uma agenda latino-americanista, procuraram “romper com a singularidade dos casos”, através da história comparada.

Desde o início da década de 1970, algumas instituições que se dedicam à produção do conhecimento histórico tiveram uma preocupação em promover o encontro de historiadores e cientistas sociais de toda a América Latina para debater temas comuns cujas conclusões / publicações pudessem se converter em sínteses desses assuntos para a história subcontinental.

Mesmo assim, apesar desses esforços, claro está que há um déficit no que diz respeito ao estudo de redes. Nossas tradições acadêmicas estão demasiadas centradas nos cenários nacionais e as redes frequentemente ultrapassam este âmbito. As principais perguntas que se colocam são: de que prisma explicar as redes sem cair em uma análise sociológica que privilegie as classes e os grupos sociais? Quais são as especificidades das redes intelectuais? Até que ponto se pode enfatizar o âmbito privado na constituição e manutenção das redes sem cair em uma história do cotidiano desvinculada dos problemas sociais mais amplos? Qual a relação entre os sujeitos que compõem e as instituições que abrigam as redes? Qual o papel das figuras proeminentes na formação das redes e qual a participação dos que orbitam em torno desta figura? Como enfrentar o tema dos “coletivos” que se constroem em torno destes personagens? Como lidar com a relação entre o espaço público e privado no caso das redes? Qual o papel da circulação de ideias, dos intercâmbios de bens culturais, das viagens, dos espaços descontínuos e dos sujeitos mobilizadores nas redes?

A proposta de elaborar estudos históricos das redes intelectuais, políticas e familiares na América Latina pretende sanar um importante vazio. Continuam sendo escassos os estudos de redes intelectuais dentro do campo da história propriamente dito.

Trata-se, portanto, de questionar, afinal, o que é uma rede e porque estudá-la sob uma perspectiva histórica. A rede, enquanto “formação cultural”, está constituída por um conjunto de indivíduos que estabelecem relações entre si através de um interesse particular: intelectual, literário, político, programático etc., mas que não compartilham, permanentemente, um mesmo espaço, e estão a depender de meios técnicos para formar a comunicação. De modo que se pode anotar como uma característica das redes, a existência de um nexo causal entre desenvolvimento tecnológico e características da rede. Deveríamos falar, neste sentido, de um nexo conceitual conformado pelos termos da tecnologia, da sociedade e das transformações históricas.

Por outro lado, dentro do variado leque de motivações, um dos focos de irradiação de uma rede intelectual pode ser rastreado através dos efeitos do exílio. Assim, cabe mencionar a rede de exilados durante a época de Juan Manuel de Rosas nos países limítrofes, bem como a diáspora dos anos 1970 e 1980 do século XX em grande parte da América Latina, que colaborou para um surto de latino-americanistas, tanto no contexto europeu como latino-americano. As lógicas de vínculo existentes nestes agrupamentos podem ser particularmente percebidas através da participação em determinados órgãos de divulgação periódica, tanto como nos epistolários, autobiografias e memórias. O conjunto que integra estes textos resulta em um acervo de extraordinária eficácia para medir o alcance, a dimensão e eficácia de uma formação que opera em rede.

Diante de uma tradição historiográfica nacional, que opera dentro dos marcos do Estado nação, os supostos teóricos do grupo de investigadores que compõem este grupo visam a superar estas abordagens. A ideia de superar estes marcos nacionais constitui um dos pontos de partida deste volume da revista Anos 90. Não se pretende a escritura de uma nova história intelectual, mas que ela seja repensada através das redes. Uma historia das redes intelectuais, políticas, familiares e outras na América Latina e, particularmente nos espaços de fronteira, abre um conjunto de interrogações em torno do objeto a historiar. A história das redes: é fazer uma reconstituição das mesmas? é fazer uma história de suas práticas? é recriar os contextos dos sistemas de vínculo? Parece prudente em uma primeira aproximação reconhecer a conveniência de que rastrear a história dos contatos culturais se realize partindo das sequências ou dos episódios específicos em que as culturas entram em contato por meio de viagens, exílios, congressos, revistas, traduções etc.

Mais ainda, como a natureza mesma das redes transborda as fronteiras do Estado nação, não é possível admitir homogeneidades neste sentido. Em outros termos, os contatos produzem-se não apenas entre culturas nacionais, mas também regionais e nas fronteiras, nas bordas destas nacionalidades, bem ou mal definidas. Ao precisar os episódios e / ou sequências concretas em que se produzem os contatos, uma categoria teórica de grande potencial interpretativo, em articulação com a de rede pode ser a de sociabilidade. Lugares que favorecem o surgimento de laços configuradores de um relacionamento complexo, o desenvolvimento de vínculos específicos. Neste sentido, tanto associações mais formais (academias, sociedades literárias, centros institucionalizados) quanto locais mais espontâneos (grupos de leitura, cafés, publicações periódicas) conformam uma boa porta de abordagem e compreensão dos modos como se constroem as redes, da mesma forma que as solidariedades, tensões ou conflitos que podem atravessá-las.

Na perspectiva das redes, alguns conceitos, como o de influencia, por exemplo, perdem a eficácia tradicional. Em efeito, os sistemas de vínculo parecem mais propensos a produzir fenômenos de transculturação, do que meras recepções ou influências. Assim, ainda que possam existir e que as influências de fato ainda ocorram, elas devem ser pensadas dentro de outros marcos metodológicos.

Entre os artigos que compõem este volume, estão o de Claudio Maíz, professor da Universidade Nacional de Cuyo. Seu artigo, trata-se de um trabalho teórico e de revisão historiográfica sobre as diferentes formas de sociabilidade intelectual. Maíz aborda a historiografia que se debruçou sobre associações, epistolários, revistas para entender até que ponto esta historiografia ajuda a conformar uma metodologia da rede intelectual para o estudo da elaboração das mesmas.

Ramiro Esteban Zó, igualmente professor na UNCUYO, aborda o tema da literatura comparada para analisar a possibilidade de incorporar esta metodologia às teorias de redes intelectuais, tendo em vista que as interpretações em vigor na literatura comparada estão preocupadas com as inter-relações culturais dentro e fora do continente latino-americano.

Miriam N. Di Gerónimo, pesquisadora e docente na Facultad de Filosofía y Letras da Universidade Nacional de Cuyo, procura reconstruir uma rede feminina latino-americana a partir do microrrelato acerca da violência de gênero. Di Gerónimo permite conhecermos uma rede solidária e social que se estende por vários países da América do Sul através desta cruzada editorial. Seu artigo ajuda a incrementar o suporte analítico de redes e constelações para tratar de um fenômeno literário específico.

Amor Hernandez, doutoranda na UNCUYO, apresenta um artigo que discute as redes intelectuais, abordando especificamente os encontros e as reuniões acadêmicas (congressos, jornadas, seminários, colóquios etc.), como espaços onde se estabelece o conhecimento de novos conceitos, informam-se sobre novos métodos de trabalho, trocam-se experiências de investigação etc. Partindo-se desses espaços, segundo a autora, estabelecem-se redes ativas de intelectuais, a partir dos quais se promove e se consolida o conhecimento sobre temas específicos.

O artigo da professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Maria Medianeira Padoin, apresenta uma síntese histórica sobre a evolução do Direito Natural e das Gentes com o fim de demonstrar a relevância de seu estudo para entender a fundamentação teórica que esteve presente nos processos de formação dos estados nacionais na América e nos discursos de defesa de projetos federalistas. Segundo a autora, o Direito Natural e das Gentes faz um percurso histórico tanto na Europa como na América e constitui como exemplo de circulação de ideias no processo de construção e consolidação do Estado Moderno nos dois continentes.

O artigo do professor Carlos Armani, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), propôs-se a pensar a história intelectual e as redes intelectuais a partir da filosofia da desconstrução, sendo seu objetivo estreitar os laços entre a história intelectual e a filosofia.

Alejandro Paredes, professor da UNCUYO, aborda o Encontro Ecumênico Latino-Americano “Mauricio López”, considerado um ponto de consolidação de um subgrupo no interior da rede ecumênica latino-americana. Esse subgrupo reúne integrantes do Equador, da Argentina e do Brasil. No artigo em questão, Paredes analisou tanto a trajetória de militância de Mauricio López como também o Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), que foi a entidade que organizou o encontro.

Todos os artigos, portanto, contribuem para um maior conhecimento teórico e histórico sobre as redes intelectuais e procuram ultrapassar o âmbito nacional para compreender o espaço de sociabilidade e de circulação destes personagens que compõem as redes.

Referência

NOHRIA, Nitin; ECCLES, Robert G. (Eds.). Networks and Organizations: Structure, Form, and Action. Boston: Harvard Business School Press, 1992.

Claudia Wasserman


WASSERMAN, Claudia. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 11-16, jul. 2013 .Acessar publicação original [DR]

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História e Mídia / Anos 90 / 2012

Há muito que os meios de comunicação social, também referidos genericamente e no singular como “a mídia”, participam do trabalho dos historiadores, precipuamente como fontes para suas pesquisas com objetivos que vão desde a busca de “fatos”, até a procura de dados para estudos sobre mentalidades, visões de mundo, cultura ou valores de determinadas épocas e lugares. Cada vez mais, porém, os próprios veículos se tem tornado objeto de pesquisas, não apenas para a produção de narrativas a seu respeito, mas em investigações que enfocam e analisam seus agentes e instituições, as concepções e visões de mundo que produzem e reproduzem, suas relações com as demais áreas da produção cultural, especificamente com a história enquanto produção acadêmica ou não, a sua relação com os demais agentes sociais, com o mercado, com a política, com a memória social.

O dossiê História e Mídia, que Anos 90 publica nesse número, reflete um pouco do estado da arte em termos da produção historio gráfica acadêmica a respeito do tema na América Latina. Os textos aqui contidos, de modo geral, se articulam em maior ou menor grau, a partir de estudos de casos, com preocupações epistemológicas e seus corolários teórico-metodológicos que as abordagens nessa área têm trazido para os historiadores. Assim, jornais, cinema, revistas, a televisão e o que produzem seus agentes são tomados como parte de objetos de estudos que findam por enfrentar questões relevantes para a historiografia que vão desde as relações entre determinados periódicos e o mundo cultural de uma sociedade ou época até a relação entre o que socialmente se entende por história, ou se procura fazer entender como tal, e aquilo que é veiculado reiteradamente por um periódico ou por programas de televisão. Ou seja, os artigos aqui apresentados não se limitam às suas excelentes contribuições específicas em termos dos temas e períodos que abordam, mas apontam para uma reflexão mais geral que discute história, memória, instituições sociais, produção e reprodução cultural, política – como disputa pelo poder e relação de dominação – e historiografia.

Desde o lançamento da proposta do dossiê, recebemos uma grande quantidade de artigos a cujos autores agradecemos muitíssimo. Lamentamos, porém, que a maioria não tenha sido incluída, o que ocorreu não pela falta de qualidade dos mesmos, pois muitos tiveram pareceres favoráveis, mas por uma decisão editorial que limitou o número de contribuições às dez aqui contidas.

Elas se iniciam com o trabalho de Marialva Barbosa que, tendo como pretexto “um olhar sobre as práticas, processos e sistemas de comunicação nas últimas décadas do século XIX”, com efeito propõe uma série de reflexões teóricas e, especialmente, metodológicas de apropriação histórica de objetos recortados na área dos meios de comunicação, os quais devem ser entendidos não em si mesmos, mas como imersos no espaço cultural maior a partir do qual se dá a sua produção e significação. A contribuição do artigo não se restringe a temas circunscritos ao período explicitado no seu título, ela é uma contribuição muito mais ampla, sendo aplicável a qualquer tema similar e, além disso, a qualquer escrita de história. A proposta é “que a história da comunicação seja sempre história dos processos e das práticas comunicacionais cujo procedimento metodológico desvende o circuito da comunicação”. Ainda segundo a autora, “uma história dos meios deve colocar a questão da comunicação como centro da reflexão e não apenas tentar descrever o conteúdo das mensagens ou remontar como se caracterizava a mídia outrora”.

O trabalho de Sônia Meneses, analisando o caso do jornal Folha de São Paulo e seu “projeto”, tendo como fonte principal mente os seus manuais de redação, discute a “operação midiográfica”. Este conceito, inspirado no de operação historio gráfica de Michel de Certeau, “tanto funciona para falar de práticas e elementos que conformam a produção midiática […], como sua posterior reprodução e ressignificação em vários ciclos hermenêuticos de significação do tempo”. A reflexão se volta para o modo como a produção midiática se torna também produção de um tipo muito específico de história e os mecanismos que lança mão para tal. Sônia Meneses aporta ainda mais elementos que contribuem com o aprimoramento das reflexões epistemológicas sobre a história e sua relação com o modo como é produzida, por quem é produzida e em quais condições, ao mesmo tempo em que enriquece as possibilidades teórico-metodológicas de apreensão pela historiografia acadêmica de objetos na área de história da mídia.

O trabalho seguinte é o de Claudio Elmir. Os desafios metodológicos da pesquisa em jornais é o seu foco básico. Tendo como ponto de partida uma pesquisa realizada com o jornal Última Hora, de Porto Alegre, as reflexões se voltam para os desafios encontrados, as perguntas formuladas à fonte e sobre ela e as possibilidades ou não de serem elas respondidas. Aqui o leitor encontra um tour pelo mundo da pesquisa acadêmica em periódicos diários de grande circulação, pelo que eles próprios são postos em questão e avaliados a partir dos desafios metodológicos que trazem à pesquisa histórica. “O jornal, nesta perspectiva da recepção, pode ser apropriado de formas as mais diversas. Quero propor uma breve digressão acerca de duas dessas maneiras de ler o jornal para fins de pesquisa. Uma delas […] consiste em tomá-lo (1) com fonte de informação. A segunda […], (2) faz dele objeto intelectual da pesquisa”. Claudio Elmir convida para uma crítica documental e para uma “aventura” pelos meandros da pesquisa histórica e seus desafios.

Marcelo Borrelli estuda o diário portenho El Clarín no período dos últimos meses do governo de Isabel Perón e dos primeiros do governo civil-militar instituído pelo golpe de Estado de 24 de março de 1976. Tem como tema específico o modo como o jornal apoiava as políticas de Estado e as ações clandestinas, “paraestatais”, voltadas para a “luta anti-subversiva”, a qual resultou, como todos sabemos, na carnificina que ceifou milhares de vidas de argentinos e de outras vítimas que foram assassinadas sem direito a qualquer procedimento jurídico-legal. Um estudo desse tipo “se torna imprescindível para se compreender o contexto que circundou o golpe de Estado de 24 de março de 1976, como também os argumentos que legitimaram um aprofundamento da repressão voltada contra os setores da esquerda radical e peronista mais combativos”. Num momento em que se implanta na Argentina a chamada Lei da Mídia de 2009, a qual visa extirpar monopólios e oligopólios na área da propriedade de meios de comunicação entre outras disposições, essa discussão a respeito do apoio que certas empresas monopolistas deram a ações criminosas implementadas por agentes estatais e paraestatais antes durante e depois dos regimes civis-militares latino-americanos mais recentes é extremamente pertinente e, mais ainda, necessária.

O texto de Reinaldo Lohn se debruça sobre questões semelhantes às abordadas por Marcelo Borrelli e, em parte, por Sônia Meneses. Estuda o periódico O Estado de Florianópolis, sob o ponto de vista de suas narrativas, as quais vinham ao encontro de uma certa visão de sociedade e país que se estava tentando estruturar desde os inícios do regime civil-militar de 1964. No caso da capital de Santa Catarina, um discurso do “novo” e do “moderno” que secundava e antecipava movimentos estatais e da iniciativa privada que transformavam a ocupação dos espaços urbanos da cidade com a substituições de edificações tidas como “casas velhas” por prédios “novos” de vários andares, bem como pela abertura de vias urbanas rápidas, parques e calçadões. Nesse caso, o “discurso jornalístico apresenta-se […] como uma das mais destacadas instâncias organizadoras do social, o que incluiu a definição sobre o que deve ser lembrado ou esquecido”.

Claudia Feld realiza uma profunda reflexão a respeito das conexões entre memória social e um meio específico de comunicação, a televisão. Toma como pretexto a reativação mais ampla da discussão na sociedade argentina, que ocorreu a partir de meados dos anos 1990, a respeito dos crimes da sua última ditadura civil-militar, especialmente as prisões, as torturas e as mortes patrocinadas por agentes e agências estatais e paraestatais. A televisão aparece como enquadrável em três eixos que seriam os seguintes: 1) como “empreendedora da memória”; 2) como “cenário da memória”; 3) e como veículo de transmissão de memória entre gerações. A partir de uma sólida discussão com as principais contribuições teóricas e epistemológicas a repeito, o trabalho mostra “que não se pode tomar a televisão isoladamente, porém todo o processo de memória e os atores envolvidos; mas tampouco se pode desconhecer o enorme potencial que tem a representação televisiva nos atuais processos de construção de memórias”.

O trabalho de Margarida Adamatti, por seu turno, também se situa em termos cronológicos no período da mais recente ditadura civil-militar brasileira, enfocando a questão da produção cinematográfica épico-histórica nacional em relação com o regime e, especialmente, em relação com a crítica de cinema em jornais “alternativos”. A sua opção metodológica é mais tradicional, de análise de conteúdo, mas obtém resultados interessantes no sentido de explicitar os critérios que lastreavam os autores das críticas, colaboradores dos jornais Opinião (1972-7) e Movimento (1975- 81), e as discussões que se travavam a respeito das produções cinematográficas, ou melhor, tendo elas como pretexto, pois “os jornais contribuíram com a disseminação de um pensamento historio gráfico oposto ao praticado pela grande imprensa, afinal foi a relação indissociável entre política e cinema que mudou a visão tradicional sobre a função da crítica de cinema.”

Luís Carlos Martins enfoca o período histórico anterior ao da implementação do regime civil-militar no Brasil. Na década de 1950, sob o governo de Getúlio Vargas, discutiram-se intensamente as questões da criação de uma empresa estatal petrolífera e do monopólio estatal no setor. Os principais jornais do país participaram ativamente do processo, o que o artigo analisa em detalhes no que diz respeito à imprensa do Rio de Janeiro, então capital da República. Ao contrário do que se poderia supor, pois é um tanto difundido na bibliografia que a “grande imprensa” dita “liberal” fazia figadal oposição ao governo “nacionalista” de Vargas, “no que se refere à relação entre os jornais e o universo político, notamos que os primeiros adotam sinuosas e distintas estratégias conforme os agentes do segundo se movem taticamente em torno do tema”. Isso aponta para a necessidade de que as pesquisas se aprofundem ainda mais nessa complexa relação entre imprensa e política que dificilmente pode ser reduzida a um maniqueísmo estreito.

O artigo de Aristeu Lopes tem como fonte as imagens presentes em periódicos da “imprensa ilustrada” do Rio de Janeiro na década de 1870. Seu objetivo é analisar a presença de uma simbologia republicana e como ela se articula com a imprensa de humor em si mesma e com um período marcado no Brasil pelo início da chamada “propaganda republicana” mais organizada e sistemática, ancorada em um Partido Republicano. A perspectiva adotada aponta para que “os periódicos analisados […] constituem uma fonte de pesquisa que permite compreender um momento da história do Brasil Imperial demarcado pelo surgimento de grupos políticos que passavam a contestar a ordem estabelecida”. Ou seja, o recurso aos jornais e sua produção não são um fim em si mesmo, mas uma estratégia teórico-metodológica para uma abordagem propriamente historiográfica.

O trabalho que encerra o dossiê é o de Mauro Franco. Seu objetivo é refletir sobre as “figurações do outro” através da imprensa brasileira no século XIX, especialmente a Revista Brasileira, em sua primeira fase de circulação (1857-61). A análise se volta para os conteúdos publicados na revista, tanto quanto às origens dos textos (boa parte composta por traduções de originais publicados em revistas francesas), quanto às suas características que visavam transformar o periódico em “um índice, um sintoma de uma nação / civilização que desejava por meio da palavra impressa contribuir para o desenvolvimento econômico, científico e artístico, em especial, do espaço público do jovem país.” Novamente, o recurso a um periódico abre a possibilidade para a reflexão a respeito das características mais gerais da sociedade imperial brasileira e suas elites.

Esperamos com esse dossiê contribuir para as discussões e reflexões a respeito do tema proposto, seus desdobramentos, limites e possibilidades.

Bom proveito.

Luiz Alberto Grijó.


GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / Anos 90 / 2012

O Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul, que integra o presente número da Revista Anos 90, confirma o crescimento e a excelência das pesquisas que, sobre essa temática, vêm sendo realizadas nos países do Cone Sul. Nesse sentido, o avanço da produção historiográfica é inegável. Tal fato decorre, por um lado, de uma certa mirada simultânea na valorização da História Recente regional; por outro, pelo contexto de mudanças políticas na região, fato que não é alheio à revalorização do passado imediato. Nesse sentido, há, no presente, o interesse social pelo resgate da experiência histórica de uma geração que viveu singularmente aquele período autoritário, bem como uma agenda de demandas sobre questões inconclusas (abertura de arquivos repressivos; papel da justiça; reparações; formação de comissões da verdade etc.). Tais demandas redimensionam as contribuições que os historiadores e profissionais de outras áreas geram a partir das suas pesquisas e dos seus trabalhos de divulgação, permitindo, ainda, a socialização de um conhecimento que possibilita à sociedade maior aproximação a um passado ainda pouco conhecido e interditado por controversas políticas de esquecimento.

Deve-se salientar, também, que uma perspectiva de conjunto sobre o Cone Sul – independentemente dos traços singulares que, evidentemente, emolduram as experiências locais e nacionais – possibilita desenvolver uma percepção dos elementos comuns, paralelos, semelhantes e, em diversos casos, conectados. O atual panorama político dos países da região tem estimulado o debate sobre leis de anistia, acessibilidade dos arquivos repressivos, comissões de verdade e justiça de transição, papel das testemunhas, herança das experiências traumáticas e formas de reparação, bem como avanços e recuos do Poder Judiciário diante dos crimes do terrorismo de Estado. Portanto, não só a academia tem se mostrado receptiva a esta dinâmica efervescente em relação à história recente, como outros protagonistas têm incidido no debate, caso de partidos políticos, associações de direitos humanos, mídia, forças armadas etc., gerando um vigoroso processo de interação que é retroalimentado pela simultaneidade de iniciativas tão diversas, mas que coincidem em um redimensionamento e valorização do passado recente.

O conjunto de quatorze artigos e uma resenha que compõem o Dossiê (resultado de exigente processo seletivo que envolveu mais de trinta e cinco artigos recebidos) reflete as problemáticas anteriormente citadas, incluindo aspectos vinculados aos antecedentes e às transições posteriores, enfatizando diversos subtemas correlatos: fontes e arquivos; fundamentação doutrinária; conexão repressiva; discussões teóricas; papel da memória; efeitos traumáticos etc.

O Dossiê inicia com a apresentação de um consistente artigo do professor Bruno Groppo, pesquisador do Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université de Paris I). Intititulado Reflexões sobre os conceitos de responsabilidade e culpa na obra de Karl Jaspers e sobre sua aplicabilidade à ditadura de 1976-1983 na Argentina, o texto analisa a tentativa do filósofo alemão de propor, em 1946, portanto, no contexto do julgamento e da divulgação massiva dos crimes cometidos pelo nazismo, uma avaliação à sociedade alemã, sobre a sua atitude, participação ou omissão diante daquela experiência. A análise de Groppo resgata a proposição de Jaspers, de estabelecer um debate centrado nos conceitos de responsabilidade e culpa. Ignorada no seu tempo, a problemática ética levantada pelo filósofo alemão, entretanto, acabou sendo recolocada pelos filhos da geração do silêncio. Diante dos significativos efeitos que, finalmente, produziram tais ideias de Jaspers, Groppo utiliza esse antecedente para aferir se contribui para dar maior inteligibilidade ao tenso embate entre esquecimento e memória existente na história argentina relacionado à ditadura de 1976-1983.

O artigo La dictadura del Proceso de reorganización nacional y la represión al movimiento obrero, de autoria do professor da UBA, Pablo Pozzi, centra-se em um dos objetivos mais estratégicos – e ainda pouco conhecido – da ditadura de segurança nacional argentina, a repressão contra o movimento operário, condição fundamental para seu disciplinamento e para a reprodução do capital. Com o objetivo de abrir a economia e torná-la competitiva, procurou-se acabar com o ativismo sindical. A infiltração, a delação e a colaboração orgânica entre setores empresariais e forças repressivas foram fundamentais para atingir aqueles objetivos. Pozzi expõe os mecanismos de enquadramento específicos implementados pela ditadura, caso dos sequestros e desaparecimentos ocorridos em empresas como a Ford e a Mercedes Benz, entre outras. A partir da explicitação da análise da documentação produzida pela Dirección de Investigaciones Políticas de la Policía de la Provincia de Buenos Aires, o autor destaca, ainda, a utilização de leis que permitiram garantir algum grau de legitimidade, bem como a imposição de uma reestruturação sindical que permitiu cooptar quadros dirigentes, tirando autonomia e capacidade reivindicativa ao movimento e isolando, assim, os setores mais organizados do denominado sindicalismo combativo.

O Golpe civil-militar de 64: algumas possibilidades sobre seu significado, artigo do cientista político e professor da Universidade Católica de Pelotas, Renato Della Vecchia, apresenta um panorama das condições que geraram a interrupção da democracia brasileira em 1964. Partindo de certas interpretações clássicas sobre o significado histórico do golpe, entre as quais as realizadas por Paul Singer, Maria Victória Benevides, Angelina Cheibub Figueiredo, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, Della Vecchia avalia o desenrolar do processo histórico que configura a queda do Governo Goulart, a partir da premissa do necessário diálogo do político com o econômico, como chave explicativa para compreender as expectativas então existentes em relação ao sentido e significado de tão frágil democracia, e do autoritarismo em gestação.

A atuação parapolicial é o tema desenvolvido por Ana Belén Zapata, da Universidad Nacional del Sur (Bahía Blanca), em Violencia parapolicial en Bahía Blanca, 1974-1976. Delgados límites entre lo institucional y lo ilegal en la lucha contra la “subversión apátrida”. Ancorada nos documentos existentes no Arquivo da Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA), o trabalho analisa aspectos da violência implementada por grupos parapoliciais na cidade de Bahía Blanca (provincia de Buenos Aires), entre os anos de 1974 e 1976. Trata-se do período de amadurecimento e fermentação dos fatores que levaram ao golpe de Estado que impôs a ditadura identificada com o Proceso de Reorganización Nacional. Centrado na violência de extrema direita naquela cidade, o artigo indaga a respeito das motivações e caracterização dos crimes promovidos na fase terminal da tensa democracia argentina, o grau de conhecimento e envolvimento da própria DIPBA (órgão estatal) e a forma como os protagonistas do sistema político encararam e interpretaram essas ações ilegais e parapoliciais na denominada “luta antissubversiva” instalada previamente ao próprio golpe de Estado.

O texto de Débora Carina D’Antonio – Los presos políticos del penal de Rawson: un tratamiento para la desubjetivación Argentina (1970- 1980) – foca, de uma perspectiva de gênero, a realidade de um centro de detenção onde foi aplicada uma tecnologia de disciplinamiento, sob o marco de práticas evidentemente ilegais e inconstitucionais. Segundo a autora, no interior da prisão de Rawson, foi imposta uma lógica desmasculinizadora que extrapolou o objetivo explícito da ditadura de quebrar os presos de uma perspectiva ideológica e política. O artigo, ao introduzir o tema da violência sexual, perfila-se como instrumento de resgate de traumas ainda pouco explicitados que confirmam a existência de faces repressivas ainda pouco conhecidas dentro do inesgotável universo constitutivo do terrorismo de Estado. Mesmo assim, onde a atuação da justiça é perceptível, coletivos de vítimas que sofreram essa violência vêm ocupando espaço público e colocando o problema como temática necessária de pesquisa ou experiência de vida que exige reparações e responsabilizações. É da natureza dessa dimensão tão complexa, portanto, que trata a reflexão de D’Antonio.

A professora Paula Vera Canelo, pesquisadora do Conicet e da Universidad Nacional de San Martín, questiona no seu artigo Los desarrollistas de la ‘dictadura liberal’. La experiencia del Ministerio de Planeamiento durante el Proceso de Reorganización Nacional en la Argentina, a caracterização da ditadura argentina (1976-1983), certa compreensão generalizada que associa a ditadura argentina (1976-1983) como sendo homogeneamente liberal. Após historiziçar a experiência de planejamento no país e apontar uma linha de continuidade desde o governo Frondizi até o golpe do Proceso de Reorganización Nacional, Canelo, discordando daquele senso comum, avalia a pugna interna entre o entorno do Ministro de Economia, Martínez de Hoz (aperturista, privatista e desindustrializador), e um conjunto civil-militar que, através do Ministério do Planejamento e desempenhando funções no complexo militar industrial e em empresas estatais, defendia o planejamento e a intervenção estatal na economia, a partir de uma interpretação da Doutrina de Segurança Nacional, que justificava uma “industrialização defensiva” e que se estabelece no interior do aprofundamento da relação do binômio “desenvolvimento-modernização”. O artigo estuda a origem e formação doutrinária desse grupo, sua inserção no projeto ditatorial, o embate com correntes opostas e seu declive final.

Alejandro Paredes, pesquisador do Conicet e da Universidad Nacional de Cuyo (Mendoza) centra seu artigo, La organización de los refugiados políticos chilenos en Mendoza y la huelga de hambre de Julio de 1976, na conexão repressiva regional chileno-argentina, destacando o caso dos refugiados políticos chilenos, em Mendoza (Argentina), entre 1976 e 1983. Após o golpe no Chile, milhares de perseguidos políticos chilenos e de outras nacionalidades fugiram do Chile, da Unidade Popular, atravessando a duras penas a cordilheira dos Andes, a procura de “terra amiga”. A implantação da ditadura na Argentina, em 1976, aprofundaria o clima de hostilidade contra esses exilados, inclusive dentro do marco da Operação Condor. A partir do dimensionamento de uma greve de fome promovida em 1976, Paredes resgata uma história de resistência e solidariedade, em condições extremadas. A mesma teve como protagonistas diretos, além de milhares de refugiados chilenos, a organização cristã Comitê Ecumênico de Ação Social (CEAS), amparada e financiada pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela ACNUR.

Jorge Fernández, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pesquisador das relações repressivas argentino-brasileiras no contexto das ditaduras de segurança nacional, no texto O Brasil e a Contra-ofensiva Montonera, 1978-1980, perscruta a forma como a Operação Retorno, conhecida como Contraofensiva Montonera, permitiu a coordenação de esforços entre as ditaduras do Brasil e da Argentina tentando impedir que o território do primeiro fosse utilizado como caminho ou plataforma para a passagem dos militantes que, após avaliação feita pela sua direção no exílio, haviam recebido ordens de retomar a luta armada no seu país. A pesquisa de Fernández, assentada em documentos repressivos, mapeia rotas e locais de passagem dos quadros montoneros. Da mesma forma, identifica a informação que circulava entre as forças de segurança de ambas ditaduras e avalia o grau de infiltração que sofria a organização armada. Finalmente, contribui no problemático resgate dos acontecimentos que produziram o desaparecimento de cidadãos argentinos no Brasil, bem como os coloca dentro da perspectiva da coordenação regional da Operação Condor.

Também relacionado com o tema da conexão repressiva regional, o artigo da doutoranda Melisa Slatman, denominado Actividades extraterritoriales represivas de la Armada Argentina durante la última dictadura de Seguridad Nacional (1976-1981), realça o protagonismo da Marinha argentina. A partir de um conjunto de apreciações refl exivas sobre a essência da já citada Operação Condor, o texto defende a necessidade de aprofundar o debate sobre a mesma, a efeitos de aprimorar sua conceituação. Dessa forma, marca distância, de uma perspectiva problematizadora à luz de pesquisas empíricas mais recentes, dos primeiros trabalhos de investigação e sua ênfase em uma certa linearidade de atuação dos protagonistas envolvidos. Tomando como objeto de estudo as atividades repressivas extraterritoriais da Marinha durante a última ditadura de segurança nacional na Argentina, Slatman investiga a inserção das mesmas no marco institucional do Estado Terrorista. A seguir, analisa a constituição e autonomização, na estrutura orgânica da Marinha, do Grupo de Tareas 3.3, responsável pela administração de um dos maiores centros clandestinos de detenção do país: a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Finalmente, o estudo analisa a evolução das atividades repressivas extraterritoriais desse Grupo de Tareas, dentro do marco multifacêtico da coordenação regional existente.

No artigo A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus, a doutora pela Universidade de São Paulo, Janaína Almeida Teles, oferece um panorama reflexivo sobre a interdição do passado recente, estabelecendo uma narrativa sobre a formação da memória social a partir destes momentos “fundacionais”, que diluíram e esvaziaram os limites de transição pactuada que marca o cenário pós-ditadura no Brasil. Partindo da constatação de que a transição brasileira para a democracia ocorreu sem rupturas evidentes, o que tem possibilitado a persistência de legado ditatorial, até hoje, a autora considera que a reconstituição factual e a avaliação crítica acerca do período autoritário têm sido permeadas por zonas de silêncio e interdições. Para tanto, escolhe como objeto de análise eventos que, segundo ela, são fundamentais na formação da memória sobre a repressão da ditadura brasileira: a publicação do projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus. Em relação ao primeiro, além de resgatar a história da sua produção do seu contexto, realiza-se, a partir dele, a avaliação do seu impacto no conjunto da sociedade e a comparação com o Nunca Mais argentino – bem como com o impacto que este gerou no seu país. Quanto à Vala de Perus, o texto é muito rico quanto à análise das dificuldades, dos entraves e das limitações colocadas pelo poder público. Merece registro, ainda, além de outras fontes pertinentes, o rico conjunto de entrevistas com protagonistas diretamente envolvidos nos eventos citados.

Priscila Brandão, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e Isabel Leite, doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro, resgatam no artigo Nunca foram heróis! A disputa pela imposição de significados em torno do emprego da violência na ditadura brasileira, por meio de uma leitura do Projeto ORVIL, o processo de criação, execução e divulgação desse controvertido documento. O texto lembra que algumas das afirmações ali contidas têm sido constantemente replicadas no site TERNUMA, com cuja lógica narrativa mantém sintonia. O projeto, esboçado desde o final da ditadura, pretendia contrapor-se à narrativa de uma história recente da ditadura produzida pela esquerda sobrevivente acerca da tortura – principalmente a partir da Anistia – e divulgada através de entrevistas, bibliografia memorialística e, sobretudo, do relatório Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. As perguntas das autoras miram na percepção que de se tinha um determinado grupo de militares, marcadamente ultraconservadores e perfilados no centro do processo do golpe de Estado, na implementação dos mecanismos repressivos e nas estratégias utilizadas para contar e rememorar esse passado.

Em Do luto à luta: um estudo sobre a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, o cientista político, Carlos Gallo, analisa a luta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), cuja atuação no tempo tem mantido coerência na defesa e exigência dos seguintes eixos reivindicativos: a responsabilização do Estado pelos crimes praticados contra os direitos humanos; a apuração das circunstâncias das mortes e desaparecimentos; a responsabilização dos culpados; e o resgate dos fatos e a preservação da memória relacionada aos mesmos. Incansável, a Comissão tem sido referência no esforço pelo combate ao esquecimento induzido e à impunidade resultante da ação estatal, bem como da omissão de importantes setores da sociedade. Como grupo de pressão, a organização, que carrega as bandeiras históricas do Nunca mais e as exigências de “Verdade, Memória e Justiça”, tem ocupado espaço crucial no questionamento das posições do Estado quanto à abertura dos arquivos repressivos, à interpretação sobre a Lei da Anistia, à condenação do Brasil na CIDH / OEA e à demora pela nomeação da Comissão da Verdade. Nesse sentido, o artigo de Gallo analisa o surgimento das demandas dos familiares, a sua organização após a ditadura, o conteúdo das demandas, a forma como a questão dos mortos e desaparecidos foi trabalhada ao longo dos anos e, por fim, os limites às demandas dos familiares durante a sua trajetória.

O artigo Te seguiremos buscando… Derecho a la identidad y prácticas judiciales durante el Terrorismo de Estado en Argentina resulta de um trabalho coletivo multidisciplinar que objetiva um dos temas mais candentes, mobilizadores e singulares da experiência argentina de segurança nacional e do terrorismo de Estado: o sequestro de crianças e a apropriação da sua identidade. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Archivo General de los Tribunales de Córdoba (Argentina), orientada à divulgação, sistematização e análise das adoções tramitadas nos juizados civis e de menores da cidade de Córdoba durante 1975 e 1983. A pesquisa, baseada em fontes judiciais, resgatou a lógica da tramitação dessas adoções, permitindo avaliar a vinculação do poder judiciário com esse crime. Os autores concluem que a falta de exigências legais existentes na época favoreceram tais “adoções” e que o plano sistemático de apropriação ilegal de crianças desenvolvido pela ditadura se apoiou em mecanismos e dispositivos que facilitaram a inscrição de crianças como filhos próprios e que funcionavam como regra no interior dos processos judiciais.

No artigo de Maricel Alejandra López, Moral y don en las reparaciones económicas a las víctimas del terrorismo de estado en Argentina, a autora propõe pensar o tema das reparações a partir da teoria do “don”, elaborada por Marcel Mauss. Tal teoria é vista como instrumento que a autora considera válido para superar um debate tensionado pelos valores, pelas ações e pelos compromissos que as vítimas e os sobreviventes remarcam sempre como algo político e ético. López lembra que a reparação econômica às vítimas da ditadura é uma das políticas estatais que o Estado estabeleceu em relação aos crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos. Mas na lógica das vítimas, a vida, a morte e os direitos humanos são parte das “coisas que não têm preço”, embora estejam inseridas em um mundo onde o econômico é sempre relevante. Para muitas das vítimas e dos sobreviventes, toda reparação é algo que não pode ser aceito, pois, supostamente, contradiz valores, coerências e ações. Para López, analisar tais reparações à luz da Teoria do “don”, de Marcel Mauss, pode tornar possível a aceitação do fato da reparação. A base do esquema é o tripé “dar, receber, devolver”, em que o “don” é percebido como ato de reconhecimento social, enquanto que o “receber” representa uma carga redimida pelo “devolver”.

Por fim, o Dossiê encerra-se com a resenha sobre a obra de Caroline Silveira Bauer, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória, resultado da tese de doutorado defendida no PPG-História da UFRGS, em 2011, e vencedora do Prêmio Teses da FLACSO / CLACSO, em 2012.

Diante de tudo o que foi exposto, agradecemos a todos os autores que encaminharam seus artigos para avaliação, bem como aos pareceristas que muito contribuíram para a qualidade deste Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul que ora apresentamos.

Boa leitura.

Enrique Serra Padrós – Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.


PADRÓS, Enrique Serra. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

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História Indígena na América / Anos 90 / 2011

É com grata satisfação que a Revista Anos 90, do programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, apresenta um Dossiê dedicado à História indígena na América. No total foram selecionados doze artigos, para integrarem o volume de número 34. O expressivo número de trabalhos enviados para submissão é um indicativo da vitalidade dessa temática atualmente.

Como proposta geral, o Dossiê tem a pretensão de repensar a história dos índios na América, fato que implica estabelecer uma reinterpretação geral dos processos históricos e contatos culturais em que as populações originárias estiveram envolvidas. Para tanto, é necessário investir em uma perspectiva que considere os indígenas como sujeitos, valorizando os acontecimentos nos quais foram agentes de suas próprias histórias e as estratégias dessas populações diante das novas conjunturas encetadas pela presença europeia no continente americano.

Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes disciplinas têm dedicado atenção as sociedades indígenas. As contribuições oriundas da antropologia, arqueologia, história e educação têm proporcionado avanços promissores à temática indígena. Nesse sentido, a interdisciplinaridade tem contribuído para o entendimento sobre as diversas formas de interação e relação sociocultural entre as populações indígenas e a sociedade envolvente.

Os debates historiográficos mais recentes, amparados pelos subsídios provenientes da pesquisa em arquivos, têm enfatizado o papel desempenhado pelos indígenas enquanto agentes sociais, privilegiando as atitudes e respostas manifestas frente às situações de conflitos, além do papel das lideranças e sua atuação como mediadores culturais. Afinal, o mundo indígena não foi um receptor passivo das políticas e iniciativas que emanavam da colonização, muito pelo contrário, foi capaz de elaborar respostas e gerar ações próprias.

Entre os textos que integram este Dossiê, há uma preponderância da produção histórica recente, resultado de dissertações e teses de doutorados defendidas nos últimos anos nos Programas de Pós-Graduação do país. Trabalhos gestados e inseridos no panorama atual de debates sobre a participação e, especialmente, a capacidade indígena de agir em diferentes contextos históricos.

Assim, o conjunto de textos aqui reunidos constitui uma amostra do que vem sendo discutido e debatido a respeito das possibilidades e das potencialidades da temática indígena, destacando a sua relevância para um projeto de país que se quer diverso e plural. É certo que tal perspectiva somente foi garantida através da Constituição Federal de 1988, ao reconhecer os direitos coletivos dos povos indígenas no Brasil, além é claro de suas terras tradicionais. No seu conjunto, estas medidas asseguraram o direito à diferença de determinados grupos, pois eles, agora, diante de uma nova legislação, passam a integrar a nação brasileira de fato e de direito. Enfim, começamos a superar o estigma assimilacionista que vinha sendo propalado desde a época do Marquês do Pombal.

E uma nação, quanto mais plural for, mais rica será, principalmente diante das possibilidades de gestar um futuro promissor. A efetivação dessa pluralidade deverá ser divulgada nas escolas de todo país através da Lei n. 11.645, de março de 2008. Tal lei, grosso modo, determina que conste nos currículos escolares conteúdos referentes a afro-descendentes e indígenas, ou seja, procura garantir que o ensino de História no Brasil contemple e inclua aqueles que até então estavam ausentes, ou pouco representados, nas narrativas nacionais. Afinal, a escrita da história nem sempre foi igualitária.

No primeiro artigo, Guillermo Wilde, professor na Universidade Nacional de San Martín e pesquisador do Conicet (Argentina), propõe repensar criticamente alguns dos aspectos presentes na configuração das lideranças indígenas, tema ao qual dedicou atenção em sua tese de doutorado (UBA, 2003). O modelo de análise proposto por Wilde procura avançar em relação aos esquemas estáticos adotados para analisar a emergência das lideranças indígenas nas terras baixas da América do Sul, privilegiando uma perspectiva que valoriza o ponto de vista histórico e processual destacando as mudanças sociais, culturais e políticas verificadas na sociedade colonial, particularmente nas reduções de índios guaranis instalados na Província do Paraguai. Assim, os atores sociais não agem unicamente movidos por uma dinâmica pautada na tradição ou apenas é o mero resultado de uma imposição externa. Enfim, o que importa é destacar as adaptações, as reformulações e as ressignificações de sentidos verificadas nas organizações políticas indígenas.

O segundo artigo que integra este dossiê é de Elisa F. Garcia, professora de História da América na Universidade Federal Fluminense, que tem dedicado atenção às populações indígenas instaladas na região platina. Território caracterizado pela questão da fronteira entre os dois Impérios Ibéricos, e no qual as populações indígenas jogaram um papel de destaque nas políticas indigenistas das respectivas monarquias, quer como aliados ou inimigos. Ao investir nas classificações coloniais, nas maneiras pelas quais foram identificados os diferentes grupos ameríndios instalados na região ela rompe com o tratamento tradicional dispensado pela historiografia que concebiam tais grupos como estanques e com papéis previamente definidos. Elisa procura dar ênfase ao caráter ativo das populações ameríndias nesse contexto de fronteira e de como os ameríndios procuravam tirar proveito de tal situação em prol de suas necessidades. Ao enfatizar as interações entre os diferentes grupos indígenas instalados na região platina, Elisa enfatiza que as identidades indígenas são o resultado de um processo histórico e dinâmico, no qual as dicotomias discutíveis perdem sentido ao serem analisadas a partir de situações concretas e de um contexto relacional.

O artigo de Ricardo Cavacanti-Schiel, doutor pelo Museu Nacional / UFRJ e pós-doutorando na Unicamp, aborda a história indígena nos Andes, especialmente os andes meridionais. Seu artigo é uma síntese primorosa que, a partir de inquietações etnológicas geradas a partir da comparação com as demais regiões nucleares da América, procura propor uma interpretação inovadora quanto aos mecanismos de funcionamento das sociedades andinas. Ao articular de forma direta e objetiva os dados da etnologia, da arqueologia e história, o autor estabelece uma discussão densa e consistente que desemboca em uma reavaliação de alguns dos pressupostos que serviam de fundamento para o caso andino. Ao investir na lógica cultural da incorporação, eles acabam por revelar outros mecanismos que conferem coerência e inteligibilidade às ações encetadas pelos nativos radicados na região dos Andes. Ao repensar o “principio ordenador” do Tawantisuyu (“as quatro partes do mundo”, como os Incas denominavam seu território), o autor acaba por revelar os demais códigos que serviam de fundamento para as sociedades andinas.

Paulo Rogério de Melo de Oliveira, professor na Universidade do Vale do Itajaí / SC, dedica atenção aos episódios conhecidos como a rebelião de Ñezu, um poderoso cacique e pajé que concentrava poderes políticos e religiosos entre os guaranis. Apesar dos contatos iniciais promissores, ao iniciarem a evangelização no território que atualmente corresponde à região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, logo os jesuítas enfrentaram a tenaz oposição de Ñezu, tido como um grande “feiticeiro”. Sua reação resultou na morte do missionário Roque Gonzáles, de destacada atuação na região. Através dessa atitude, ele visava a preservar o antigo modo de vida dos guaranis, que considerava ameaçado diante da presença dos padres em seu território, no qual procuravam introduzir a prática dos batismos entre os indígenas e erradicar a poligamia. O autor procura, a partir de uma leitura criteriosa dos interrogatórios realizados com os indígenas simpatizantes de Ñezu, esclarecer as motivações que levaram o referido pajé a executar os três jesuítas. Tal rebelião é indicativa das relações sempre tensas e ambíguas no tocante ao projeto catequético empreendido na America colonial.

O artigo de Maria Elena Imolesi, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA), dedica atenção ao cotiguazu, ou casa das recolhidas, espaço dentro das reduções guaranis destinado a acolher mulheres de distintas procedências e condições, tais como viúvas, órfãos ou mulheres de outras parcialidades indígenas. Apesar das escassas referencias a este espaço nos documentos jesuíticos de circulação pública, há muitas menções na documentação interna cuja preocupação era a de garantir a reprodução da organização social estabelecida nas reduções do Paraguai. A autora explora esse espaço como um indicador da instabilidade e do conflito das reduções com o seu entorno, a partir das medidas tomadas para preservar as mulheres e garantir a reprodução física, indicando que houve excessos na adoção de algumas medidas pelos jesuítas, sintetizadas na expressão “el cotiguaçu no és carcél”. Ao reconstruir a história social desse espaço, a autora procura demonstrar que nem tudo saiu de acordo com o planificado pelos missionários.

O artigo de Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, aborda a trajetória etno-histórica dos indígenas conhecidos como Chiquitanos, população ameríndia localizada atualmente no território que corresponde à Republica da Bolívia. A história desse grupo está relacionada ao projeto de catequese empreendido pelos missionários jesuítas na América que, apesar de uma continuidade em termos de práticas e inserção territorial, também apresenta uma série de ressignificações e adaptações em função da situação histórica e de contatos com a sociedade envolvente. A constante necessidade de mão de obra acabou determinando uma precarização das relações de trabalho nessa região, que conjugada a outros fatores resultaram em condições desumanas de exploração do trabalho indígena, em que castigos e torturas eram práticas correntes. Apenas na segunda metade do século XX, é verificado um movimento de libertação dos indígenas, que culminou com a consolidação das Tierras Comunitárias de Origen, servindo de base para uma reformulação das leis agrárias, que tem conferido visibilidade aos Chiquitanos em suas demandas atuais.

O texto de Susane Rodrigues de Oliveira, professora na Universidade de Brasília, dedica atenção ao ensino de história. Para tanto, aborda como as sociedades indígenas estão representadas nas fontes coloniais, muitas vezes apresentadas como imagens estanques da realidade ameríndia, sem esmiuçar em que condições e contexto elas foram produzidas. Sua pesquisa é o resultado de um projeto mais amplo que contou com o recurso de questionários aplicados aos alunos do ensino médio nas escolas do Distrito Federal. A proposta da autora é a de problematizar, a partir das fontes coloniais, os pressupostos que norteiam a produção do conhecimento histórico referente às populações ameríndias, para então desconstruir a noção recorrente presente em muitos livros sobre a história como uma verdade inconteste. Enfim, pretende demonstrar como o estudo do passado pode auxiliar na compreensão do presente e lançar desafios para o futuro.

Karina Moreira e Melo, doutoranda na Unicamp, apresenta-nos uma discussão pouco presente na produção historiográfica regional, no caso as questões referentes à definição de uma política indigenista na Província de São Pedro. O estudo de Karina está centrado na instalação do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo – que até o momento não contava com um trabalho sistematizado sobre este espaço indígena formado em sua maioria por guaranis egressos das reduções. Através dos discursos proferidos pelos eclesiásticos e os políticos, principalmente no século XIX, a autora procura identificar as práticas indígenas, por vezes invisibilizada nessas manifestações públicas. A população do aldeamento de São Nicolau participou de inúmeros episódios bélicos na Província de São Pedro, com uma destacada atuação nos conflitos militares ou em atividades relacionadas à pecuária. A vivência nesse aldeamento, cuja longevidade chama atenção, permitiu a esses indígenas reelaborarem suas identidades, além de possibilitar a eles configurar novas relações sociais de maneira mais ampla e destacada do que imaginávamos até então.

Soraia Sales Dorneles, também doutoranda na Unicamp, apresenta-nos um texto que procura dimensionar o contato entre os indígenas do grupo Kaingang e as iniciativas de colonização no Rio Grande do Sul, durante do século XIX, primeiro com colonos alemães e posteriormente com os italianos. Com o avanço das frentes de colonização e a consequente ocupação das terras indígenas, foram intensificadas as experiências de contatos entre sujeitos que se desconheciam mutuamente. A autora procura demonstrar que a experiência cultural resultante desses encontros acaba por gestar novas formas de conceber as relações de alteridade e que nesse contexto a expressão “bugres” poderia tanto referir-se aos próprios indígenas como denotar certa indianização de pessoas que mantiveram uma proximidade com o mundo ameríndio. Nesse contexto, os processos de formação identitária são a resultante de situações concretas, no caso as contextuais.

A luta pela terra entre os Kaingang é o tema do artigo elaborado a quatro mãos por Ana Lúcia Vulfe Nötzold, professora na Universidade Federal de Santa Catarina, e Carina Santos de Almeida, doutoranda na mesma instituição. Tomando como estudo de caso os conflitos verificados na Terra Indígena Xapecó, em Santa Catarina, no século XX, as autoras procuram denunciar a expropriação territorial a que foram submetidos os Kaingangs instalados em Xapecó. Em boa medida, a usurpação dessas terras reservadas aos indígenas contou com a conivência de funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e mesmo de agentes do governo catarinense, pois consideravam a existência dessa Terra Indígena como um entrave ao modelo de desenvolvimento regional.

Marcio Antônio Both da Silva, professor na Unioeste / SC, em seu artigo, dedica atenção à questão fundiária e à política indígena no Rio Grande do Sul durante o governo do Partido Republicano Rio Grandense (PRR). O autor destaca que a apropriação territorial promovida nessa época, base da política de colonização e imigração no estado, foi verificada em uma região na qual estavam instaladas as principais reservas indígenas. Na sua avaliação, havia uma grande distância entre as políticas de proteção e tutela aos indígenas com o que se verificava na prática. Para exemplificar seu argumento recorre a um caso verificado em Palmeira das Missões / RS, através das informações contidas em um Processo crime, cujo desfecho resultou na morte de um índio e outros tantos feridos.

O último artigo que integra este Dossiê é de autoria de Antonio Carlos Amador Gil, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que através de uma discussão pautada na bibliografia especializada procura dimensionar o espaço dedicado aos indígenas nas manifestações dos intelectuais mexicanos no período posterior à Revolução Mexicana. O autor demonstra que apenas com o governo de Lázaro Cárdenas começava a vigorar uma postura integracionista, que apesar de valorizar o papel dos indígenas na configuração do Estado mexicano deixava muito a desejar quanto às políticas públicas direcionadas às comunidades indígenas que seguiam atuantes no México pós-revolucionário.

Para finalizar o Dossiê, publicamos ainda a resenha de autoria Horácio Zapata, da Universidade Nacional de Rosário (Argentina), que aprecia o livro coordenado por Liliana Tamagno, intitulado: Pueblos indígenas: interculturalidad, colonialidad, política (Buenos Aires: Biblos, 2009).

Como organizador deste Dossiê, avalio que no seu conjunto a grande maioria dos textos reunidos para este volume procurou abranger diferentes situações vivenciadas pelos indígenas no Continente Americano, fato que resultou, como mencionou Guillaume Boccara, na gestação de Mundos Novos no Novo Mundo.

Eduardo Neumann


NEUMANN, Eduardo. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 34, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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A História e suas fontes / Anos 90 / 2008

Este número da revista Anos 90 reúne trabalhos apresentados nas mesas-redondas realizadas durante o IX Encontro Estadual de História, promovido pela Seção Rio Grande do Sul da Associação Nacional de História – ANPUH-RS – e pelo Departamento de História da UFRGS entre os dias 14 e 18 de julho de 2008, nas dependências do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas desta Universidade. Para o Encontro, foi proposto como eixo central das reflexões o tema “Vestígios do passado: a história e suas fontes”, e as mesasredondas tiveram as seguintes pautas: 1) os diversos tipos de fontes das quais se vale o historiador para elaborar suas interpretações sobre o passado (escritas, visuais, orais e cultura material); 2) o uso destas fontes no ensino de História e 3) o papel do historiador em arquivos, museus e outros “lugares de memória”.

O tema das fontes é, ao mesmo tempo, tradicional e atual no âmbito da História. Afinal, se este campo do conhecimento passou por inúmeras transformações desde a sua constituição como disciplina autônoma e científica no século XIX, as palavras de dois dos nossos “pais fundadores”, Charles Langlois e Charles Seignobos, mestres da chamada história tradicional, não perderam sua validade: “onde não há documentos, não há história”. Claro está que a concepção daquilo que se entende por documento se alterou profundamente, passando a incluir todos os vestígios da experiência humana, os quais só se tornam fontes quando submetidos às indagações e análises dos historiadores.

Nem todos os participantes das mesas, por motivos diversos, tiveram condições de enviar seus textos, mas aqueles que agora publicamos são uma amostra significativa da diversidade e do excelente nível das intervenções então realizadas e, com a publicação dos artigos, a Anos 90 pretende contribuir para o prolongamento dos profícuos debates intelectuais que ocorreram durante o Encontro. Assim, das discussões sobre fontes escritas, temos duas reflexões baseadas em documentos específicos, a de Silvia Lara, sobre uma crônica do século XVII e a de Cláudio Elmir, sobre uma narrativa autobiográfica. Ainda dentro desta mesma pauta, além das duas reflexões supracitadas, temos a proposta de Luis Augusto Farinatti de demonstrar que um mesmo conjunto documental pode tanto permitir análises seriais quanto possibilitar a reconstrução de trajetórias individuais no estilo da micro-história. Da mesa sobre fontes orais, apresentamos o artigo de Verena Alberti em parceria com Amilcar Araujo Pereira, que, a partir da pesquisa conjunta acerca da história do movimento negro no Brasil, reflete sobre as articulações entre história oral e história política e sobre o cruzamento entre fontes orais e fontes escritas, e também o artigo de Marluza Marques Harres, que perpassa discussões sobre as possibilidades e limitações do trabalho com fontes orais. A temática das fontes visuais está representada pelo artigo de Paulo Knauss, que revisita os campos da história da imagem e da história da arte, buscando pontuar que o conceito de arte é histórico, e pelo artigo de Charles Monteiro, que, através de uma revisão na historiografia brasileira sobre história, fotografia e cultura visual, elenca problemáticas e questões teórico-metodológicas recorrentes.

A indissociabilidade entre ensino e pesquisa tem sido uma proposta freqüentemente levantada pelos historiadores brasileiros, em particular através da ANPUH, que procura estar aberta às questões ligadas ao ensino de História, seja no nível superior, seja nos níveis fundamental e médio. Os dois textos que discutem o uso de fontes históricas no ensino básico exemplificam este diálogo: o artigo de Nilton Pereira e Fernando Seffner, defendendo que o uso de fontes históricas em sala de aula pode ser uma estratégia pedagógica alternativa no ensino de História, e o de Flávia Caimi, problematizando o tema através da análise de antigos e novos livros didáticos e da avaliação de políticas públicas nacionais.

Para contribuir com as discussões sobre acervos, Rosani Feron comenta a experiência de implantação de uma política de gestão documental no Poder Executivo do estado do Rio Grande do Sul, enquanto Zita Possamai e Benito Schmidt discutem as implicações e potencialidades da ampliação do campo de atuação do profissional da área de História em espaços como museus, arquivos, memoriais, centros de documentação, órgãos de gestão do patrimônio histórico, agências de políticas culturais e de turismo.

Este número de Anos 90 conta ainda com dois artigos gerais e uma resenha. O texto de Helenice Rodrigues da Silva busca examinar a relação entre a experiência vivida e a representação elaborada do acontecimento histórico na análise da entrevista realizada com um sobrevivente dos campos de concentração nazistas. Eliane Lucia Colussi e Valmíria Antonia Balbinot analisam, em seu artigo, a repercussão da campanha de educação sanitária “Povo desenvolvido é povo limpo”, protagonizada pelo personagem denominado “Sujismundo”, no contexto histórico do período militar e do projeto de desenvolvimento para o Brasil. Por fim, uma última colaboração está na resenha, assinada por Wagner da Silva Teixeira, do livro Jango, de Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira.

A equipe editorial de Anos 90 agradece a todos pareceristas que auxiliaram na avaliação dos artigos e ao apoio recebido da Pró- Reitoria de Pesquisa da UFRGS, e deseja aos leitores uma proveitosa leitura.

Os Editores


Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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História e Memória / Anos 90 / 2007

São incontáveis os títulos de livros ou periódicos temáticos com o enunciado História e Memória. Se apresentamos ao leitor mais um conjunto de textos sobre o assunto é porque, mais que um tema que continua importante, o assunto parece ter se tornado emblemático da atividade do historiador. Se, como afirma Le Goff, (1992, p. 426), tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, não seria uma tarefa dos historiadores elucidar, nos mais diferentes contextos, quem são os senhores da memória e desvendar o que foi relegado ao esquecimento? Tendo acompanhado os desenvolvimentos da memória em diferentes épocas históricas e sua ampliação e diversificação na sociedade contemporânea, sua provável resposta a uma questão semelhante não deixaria dúvidas: Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica (LE GOFF, 1992, p. 477). Em Pierre Nora encontramos uma contraposição semelhante, explicitada no artigo de Benito Schmidt: enquanto a memória teria um caráter afetivo e sacralizante, a história supõe um enfoque racional e laicizante. Portanto, podemos tratar de questões de memória e história separadamente, mas se, freqüentemente, os termos formam uma dupla é porque, quando operando em um mesmo campo, há uma grande probabilidade que atuem na contramão um do outro. E as particularidades de um são relativas às do outro. Porque a memória é dominadora, a história deve ser democrática; porque a memória é afetiva, a história deve ser científica, objetiva e racional; se a memória tende para o sacro, a história deve apontar sua base humana.

Há um campo da história que precisou enfrentar essas questões de maneira mais aguda que outros, o da História Oral. A idéia de que a história oral fosse mais democrática norteou a visão daqueles que impulsionaram internacionalmente a moderna história oral (THOMPSON, 1987, p. 10). Mas logo tal concepção foi criticada (PORTELLI, 1981, p. 104). Com o refinamento dos debates podemos dizer, então, que a história oral contribui para a democratização da memória, de uma forma certamente muito importante e diferenciada da história baseada em documentos escritos, mas, como qualquer outra, a história oral não é essencialmente democrática. Contudo, o entusiasmo inicial dos historiadores orais por estarem contribuindo para versões mais matizadas da história, por trazerem à cena o relato dos que vivenciaram os acontecimentos e processos, cedeu espaço a uma reflexão que surgiu com o progresso das discussões metodológicas: a visão dos entrevistados não é diferente apenas de outras memórias construídas, ela também costuma ser diferente da interpretação do historiador, aquele mesmo que depende da boa-vontade do entrevistado. Em suma, o historiador oral, ao se pretender científico, estará desconstruindo não apenas memórias sistematizadas, produzidas a alguma distância, mas memórias que ele demandou e que ele obteve por métodos dos quais não está ausente uma certa dose de sedução. Os debates, portanto, são complexos e exigiram um aperfeiçoamento dos conceitos e das interpretações. Para tal refinamento da discussão no campo da história oral no Brasil, tem sido fundamental a reflexão de Verena Alberti, conhecida também por alguns dos melhores textos de sistematização dos procedimentos da história oral (ALBERTI, 1990; ALBERTI, 2005). Neste número de Anos 90 contamos com artigo de sua autoria, enfocando um campo muito próximo ao da história oral, o da tradição oral, em um texto que nos traz um exemplo contundente de luta pela democratização da memória, ou, mais especificamente, a luta pelo reconhecimento de direitos dos maoris da Nova Zelândia dos dias de hoje, que se legitima pela afirmação de uma determinada memória.

Os diferentes modos de construção da memória são um dos temas que têm se desenvolvido com ampliação dos estudos sobre memória nas últimas décadas. Se Capistrano de Abreu passou a ser reconhecido por muitos como o mais importante historiador brasileiro das décadas iniciais do século XX, e se foi transformado em modelo de intelectual e símbolo da nacionalidade, algum trabalho de construção de memória operou-se sobre sua figura. De uma vasta memorialística construída em torno do autor (necrológios, artigos, resenhas, biografias, sonetos, retratos, charges, fotografias, dissertações e teses, além de cartas do próprio Capistrano que contêm reflexões sobre si) Rebeca Gontijo busca nos textos biográficos sobre o estudioso os elementos para compreender como a identidade de um indivíduo pode ser apresentada como símbolo da nacionalidade. Retomando Le Goff (1992, p. 476): A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Também sobre a relação entre memória e construção de representações identitárias trata o texto de Ernesto Seidl, sendo os construtores, neste caso, agentes vinculados à Igreja católica do Rio Grande do Sul, que atuam em diferentes esferas sociais (religiosa, científico-acadêmica, intelectual, artística), e os grupos étnicos oriundos da imigração alemã e italiana, aqueles sobre quem se escreve uma história, dos quais a memória que se busca divulgar não sem disputas é a memória do êxito.

Entretanto, não poderia um texto memorialístico ser apropriado pelo historiador, não ou não apenas para sofrer uma desconstrução, para este apontar-lhe as elaborações afetivas, mas como aquilo que é básico do trabalho científico do historiador, como fonte histórica? Analisando a autobiografia póstuma do jornalista Samuel Wainer, Minha razão de viver, Luís Carlos Martins propõe que ela possa ser vista como um documento importante para compreendermos a criação do jornal Última Hora e muitos acontecimentos fundamentais do Segundo Governo Vargas. Memórias escritas serão sempre um documento importante, mesmo que seu autor não tenha sido alguém importante ou não tenha convivido com personagens históricos. Infelizmente, no Brasil, não dispomos de autobiografias ou diários de pessoas do povo, como os escritos por artesãos calvinistas ou líderes religiosos ingleses no século XVIII, estimulados a registrar os sinais de sua fé pessoal ou da de sua comunidade, munindo os historiadores dos séculos seguintes de uma preciosa fonte de pesquisa sobre os trabalhadores (ver THOMPSON, 1987).

O período da ditadura militar brasileira, por sua vez como em outros regimes em que o arbítrio leva ao encarceramento, à perda de direitos, ao exílio e à morte , ocasionou, passados quarenta anos, candentes batalhas da memória, que extrapolam os diretamente envolvidos, as vítimas e os agentes do regime repressivo, dizendo respeito a toda sociedade. Para o campo histórico, como mostra o artigo de Benito Schmidt, a presença de historiadores que foram também testemunhas cobra aos estudos de memória reflexões que dêem conta de tais imbricações.

Nos artigos diversos, dois assuntos que abordam fenômenos do processo de urbanização de um país ainda predominantemente rural. No primeiro caso, em uma das capitais Porto Alegre de um Brasil que organizava sua novel vida republicana, tornava-se necessário, em função de projetos de saneamento, regular o comércio e a prestação de serviços ambulantes. Regulamentar significa restringir, e as populações atingidas por tais medidas não deixaram de reagir. No outro caso, na região de colonização alemã, o prefeito de uma cidade recém-emancipada Novo Hamburgo narra, em 1931, através das páginas do jornal que representava a municipalidade, uma história segundo a qual os primeiros colonos da região teriam enfrentado, cem anos antes, um grupo de índios comandados por um escravo fugido. As velhas representações da superioridade branca européia, associadas a uma pitada de nacionalismo romântico (contaram com a ajuda de um cacique amigo) são utilizadas para a afirmação regional de descendentes de imigrantes.

A entrevista de Hugo Bauzá, professor titular de Literatura Latina e Artes na Universidade de Buenos Aires, com Jean Jacques Wunenburger, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Lyon, inaugura a abertura de Anos 90 à publicação de artigos em espanhol, com alteração de nossas normas editorais. Tal procedimento apenas consolida o intercâmbio já existente entre nosso programa de Pós-Graduação e os pesquisadores da América espanhola. Em breves palavras, Francisco Marshall apresenta ao leitor o campo de discussão que aproximou Bauzá de Wunenburger.

Por fim, contamos com duas resenhas, uma de Diogo da Silva Roiz sobre a coletânea Fontes Históricas, e outra de Carla Rodeghero sobre a biografia de Jango, escrita por Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes.

A elaboração deste número contou com a colaboração de mais de vinte pareceristas, cujo trabalho anônimo e generoso nós agradecemos.

Referências

ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

______. Histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 155-202.

LE GOFF, Jacques. História e Memória, 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

PORTELLI, Alessandro. The Peculiarities of Oral History. History Workshop, n. 12, p. 96-107, 1981.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 1.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora de Anos 90.

WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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África-Brasil / Anos 90 / 2008


Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, jul., 2008. Acesso apenas pelo link original [DR]

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História e Gênero / Anos 90 / 2007

Faz pouco menos de vinte anos que Joan Scott publicou seu artigo célebre mostrando a utilidade da categoria gênero para a análise histórica (Scott, 1995). De lá para cá, afloraram muitas polêmicas e abriram-se diversos caminhos nas pesquisas a respeito das relações de gênero realizadas por historiadores (as). No que tange às polêmicas, destacam-se os debates entre pesquisadores(as) alinhados(as) com a história social, que enfatizam o papel da experiência e do sujeito na construção cultural da diferença sexual, e aqueles(as) que partem de posições genericamente definidas como pós-estruturalistas, as quais procuram mostrar o próprio sujeito e suas experiências como produtos de práticas discursivas e não-discursivas.1 Em relação aos caminhos abertos, é possível dizer que, depois de uma quase exclusividade das investigações voltadas ao gênero feminino, os(as) historiadores(as) passaram a se preocupar também com as masculinidades e com os chamados “transgêneros”, além de voltarem seu olhar para processos históricos não tão obviamente generificados como, por exemplo, a construção das nações e suas metáforas femininas (a “mãe gentil”) e masculinas (o “herói guerreiro”).

Apesar deste campo de estudos ter se consolidado e institucionalizado – o que pode ser demonstrado pelas inúmeras revistas dedicadas ao tema, pelo surgimento de diversos núcleos de pesquisa, pela realização de numerosas dissertações de mestrado e teses de doutorado que, direta ou indiretamente, lidam com gênero, entre outros indicadores – cabe voltar à pergunta instigante proposta por Scott: será que esse enfoque modificou a nossa forma de encarar a História, de hierarquizar nossos temas e temporalidades, de (re)pensar referenciais teóricos e procedimentos metodológicos? Ou será que gênero continua a ser visto como “mais um tema”, um enfoque “moderno” que pode ser incluído nas coletâneas (de preferência ao final), mas que não modifica a arquitetura das nossas publicações e o nosso entendimento do passado?

Visando contribuir para tal discussão, a revista Anos 90 apresenta um dossiê sobre relações de gênero, no qual é possível vislumbrar essa pluralidade de caminhos e enfoques. O primeiro artigo, de Gil Mihaely, examina, a partir da perspectiva das masculinidades, a noção de domesticidade e seu impacto no mundo do trabalho francês de 1870 a 1910. Eni de Samara Mesquita, André Félix Marques da Silva, Breno Henrique Selmine Matrangolo, Nadia Beyeler e Patrícia Garcia Ernando da Silva, tendo por base um banco de dados construído com informações retiradas de testamentos manuscritos de São Paulo no período de 1840 a 1870, analisam as relações entre senhoras e escravos na era do café. Já Marlene de Fáveri e Anamaria Marcon Venson tratam de práticas culturais e representações construídas por mulheres de diferentes gerações, no sul do estado de Santa Catarina, relativas ao ritual de passagem ligado ao aparecimento da menarca. Por fim, fechando o dossiê, Paulo Pezat aborda a maneira pela qual o positivista religioso gaúcho Carlos Torres Gonçalves procurou aplicar, nas esferas pública e privada de sua vida, os ensinamentos de Comte a respeito do gênero feminino, o “sexo altruísta”.

Na parte geral da Revista, temos os artigos de José D’Assunção Barros sobre a “história da história comparada”; de Bruno Flávio Lontra Rodrigues, a respeito das relações entre História e Literatura, abordando especificamente a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas; e de Márcia Janete Espig, relativa à presença, nas fontes e na historiografia militar do movimento do Contestado, de ex-operários da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Seguem ainda as resenhas de Teresa Malatian do livro de Justo Serna e Anaclet Pons, La historia cultural, e de Diogo da Silva Roiz, do livro de Décio Gatti Júnior, A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990).

A partir deste número, retomamos a publicação das edições semestrais e esperamos poder regularizar a periodicidade da Revista. Continuamos os esforços de editores anteriores para adaptar a revista a padrões técnicos solicitados pelos órgãos financiadores e indexadores, sem prejuízo da qualidade intelectual que a tem caracterizado desde sua criação. Nesse momento, a presença do Programa de Apoio à Edição de Periódicos da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS tem sido muito importante, não apenas pelo apoio financeiro, mas pelas orientações em questões técnicas, nem sempre previamente conhecidas por nós, docentes. O Portal de Periódicos Científicos da UFRGS2 é tanto um instrumento de divulgação dos periódicos da Universidade, no qual Anos 90 se faz presente, como um canal de assessoria aos editores.

Nosso Conselho Editorial foi ampliado, acompanhando a diversificação das pesquisas desenvolvidas em nosso Programa, o que é um reflexo tanto do aumento do corpo docente, pelo ingresso de novos doutores, quanto da ampliação do número de alunos em nossos cursos de mestrado e doutorado. Agradecemos a todos aqueles pesquisadores que aceitaram nosso convite.

A versão digital da revista, para o que estamos trabalhando, permitirá uma relação mais orgânica com os conselheiros, os articulistas e com os leitores da revista. O portal da Anos 90, 3 vinculado à página do Programa, já está em operação e estamos conjugando esforços para torná-lo mais operacional.

Notas

1. Um resumo desta polêmica encontra-se em Cadernos Pagu, 1994.

2. Portal de periódicos científicos – UFRGS. Disponível em

3. Disponível em

Referências

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade. 20(2): 71-99, julho / dezembro 1995 (original de 1988). Porto Alegre: FACED / UFRGS.

CADERNOS PAGU. Campinas: PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero / UNICAMP, n. 3, 1994.

Benito Bisso Schmidt – Professor do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Organizador deste número.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora da revista Anos 90.


SCHMIDT, Benito Bisso; WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 25, jul., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade / Anos 90 / 2005

Pode-se dizer que atualmente existe um certo consenso que etnicidade é um tema forçosamente interdisciplinar. No conjunto das ciências humanas, os historiadores chegaram à temática depois de antropólogos e sociólogos e, por isso mesmo, não há como não lançar mão daquilo já desenvolvido, em termos teóricos e metodológicos, nas ciências vizinhas. Numa esquematização bastante simplificada, podemos situar a primazia dos antropólogos e seus estudos, que remontam ao século XIX, de culturas tribais, a etnologia, seguidos pelos sociólogos, particularmente os da Escola de Chicago, que, desde o início do século XX, analisaram contextos urbanos nos quais grupos sociais de origem diversa – diversidade sempre associada a fenômenos de imigração – passaram a dividir o mesmo espaço. Aquelas que podem ser denominadas modernas teorias da etnicidade têm sido desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX, impulsionadas por diferentes fenômenos sociais das sociedades contemporâneas: 1) o surgimento do black power, que pôs em cheque as teorias de assimilação desenvolvidas pela Escola de Chicago; 2) o processo de descolonização da África, que deixou aos africanos a tarefa de dividir o poder político em contextos urbanos e aos antropólogos o estudo dos conflitos interétnicos; 3) mais para o fim do século, dois fenômenos, o da globalização, que maximizou as sempre existentes migrações transcontinentais, e o dos novos nacionalismos, muitos deles com base étnica, incentivou a divulgação de teorias já existentes sobre o fenômeno da etnicidade e o surgimento de novas interpretações. É nesses estudos mais recentes que vemos a atuação conjunta de antropólogos, sociólogos e historiadores.

As discussões sobre etnicidade às quais os historiadores engajam-se estão distantes de um gênero de etno-história que estuda grupos tribais e próximas de estudos que se referem a temáticas recorrentes na historiografia, como imigração, nacionalismo e colonização. Mesmo que acontecimentos da Europa contemporânea não tenham expressão na América, como o separatismo étnico-nacionalista, muitos estudos recentes de fenômenos decorrentes do processo imigratório iluminam acontecimentos de outros tempos dos países americanos, para os quais tal processo está presente em vários momentos de sua história: no povoamento das colônias pelos europeus nos séculos XVI-XVIII, na imigração forçada dos africanos, nos que vieram “fazer a América” no século XIX e nas migrações contemporâneas. É por esta razão que as teorizações mais ou menos recentes da identidade étnica têm permitido uma revitalização dos estudos da problemática da imigração e da nação entre os historiadores. Na historiografia brasileira, sem dúvida, isso é visível.

Mas os historiadores não estão num papel passivo de receptores de teorias e formuladores de casos mais antigos. Na verdade, considerando a importância da trajetória histórica e da representação do passado para a formulação identitária, tanto para os grupos étnicos quanto para as nações, antropólogos já estavam fazendo às vezes de historiadores ou lançando mão destes em seus estudos. Pode-se dizer, então, que a temática de estudos étnicos constitui-se atualmente de um campo de investigações que tem acumulado formulações teóricas, conhecimentos e análises com a contribuição de diferentes disciplinas das ciências humanas.

Desse campo de investigações, que tem, de um lado, o dinamismo daquilo que está em gestação, de outro, a ausência de um campo conceitual mais definido – ou mais difundido –, o dossiê preparado para este número de Anos 90 visa ser uma expressão. Pretende-se também, justamente, contribuir para a sistematização de interpretações, noções, temáticas, conceitos, que permitam estabelecer um patamar de comunicação que indispensável para a promoção das discussões.

O texto de Karl Monsma, sociólogo por formação e historiador por ofício, é assaz representativo de como a temática da etnicidade abre novos objetos de estudo para os historiadores. Abolida a escravidão, permanecerá a luta simbólica contra a mesma. A insistência dos negros em serem tratados com respeito mostrará o grau de internalização do sentimento de superioridade dos proprietários brancos. As fazendas de café do oeste paulista, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, fornecem uma espécie de “laboratório” para o estudo de relações interétnicas. A presença de imigrantes, principalmente italianos, como administradores de fazendas permite outro ponto de observação das representações étnicas presentes no mundo do trabalho e além dele. Como outras pesquisas que buscam retratar o cotidiano de épocas passadas, a fonte principal de Desrespeito e violência: fazendeiros de café e trabalhadores negros no oeste paulista, 1887- 1914 são autos penais.

Temática consagrada pela historiografia, a escravidão também pode ser revisitada pelo enfoque da etnicidade. Utilizando-se da principal proposição de F. Barth, identidade como “categoria de atribuição”, Regiane Mattos busca observar, em São Paulo, no século XIX, como as classificações externas operadas pela Igreja e pelos proprietários de escravos acabam sendo internalizadas pelos africanos. A constatação da autora de que, no Novo Mundo, diferentes grupos descobrem afinidades que “não imaginavam existir quando estavam no continente africano” lembra processo semelhante dos imigrantes que passaram a ser reconhecidos e a se reconhecerem como “teutos” ou “ítalos” e demonstra o constante processo de reelaboração identitária.

As antropólogas Denise Jardim e Roberta Peters propõem uma aproximação com a história por meio da idéia de “tradição”, analisando rituais de casamento de imigrantes palestinos. Num período em que o fenômeno da persistência das identidades étnicas nos quadros dos estados-nação é assunto para o qual historiadores também se voltam, entender como rituais de casamento contribuem para a “fabricação” da coesão social, calcada na noção de uma coletividade dotada de uma origem comum, possibilita dimensionar o grau de enraizamento da identidade étnica nos membros de um grupo que serve de base para tal identificação. A identidade étnica, pode-se dizer, mais do que a identidade nacional, está ancorada na família. Em um dos casamentos acompanhados pela pesquisa etnográfica, a noiva é brasileira e, ao passar pelo ritual do casamento muçulmano com um filho de palestino, ela se torna árabe, mesmo não tendo saído do Estado brasileiro. Para o campo historiográfico que ainda hoje tem, freqüentemente, tratado as formulações identitárias dos diferentes grupos étnicos como previamente estabelecidas – isto é, como “essenciais” –, bastando ao pesquisador recolher números e formas dessa expressão, a sutileza da análise antropológica tem um valor didático.

Os artigos seguintes lidam com uma produção textual que, em maior ou menor grau, é representativa de formas de pensar de épocas e grupos sociais. A própria existência desta produção já indica a possibilidade de indivíduos e grupos sociais refletirem sobre a realidade, expressarem representações ou elaborarem-nas, tentando interferir na sociedade. O conjunto de textos comentado por Sílvio Correa difere da produção examinada nos outros artigos, pois tratam-se de obras publicadas no país de origem dos imigrantes, no caso, a Alemanha, que ora alertam sobre os riscos de perda da cultura alemã, ora registram sua manutenção; dito de outra forma, os emigrados permitem ao conterrâneo viajante a reflexão sobre uma identidade que é também uma alteridade. A condição de viajantes de seus autores não os obrigava a definirem uma identidade de emigrados e, talvez por esta razão, seus relatos não têm o idealismo que encontramos nos discursos dos líderes de comunidades étnicas. Os relatos de viagem registram a existência de dialetos regionais dos lugares de origem (o que aponta uma falta de unidade de imigrantes que posteriormente representaram-se de forma unificada); a vida do colono é retratada mais pela monotonia e privações e do que pelo heroísmo (tal como a saga da imigração desenharia mais tarde). Quando o autor afirma que “não houve uma integração institucionalizada dos imigrantes e seus descendentes durante as primeiras décadas da imigração”, estando o construto da identidade étnica baseado em elementos distintivos como a língua e aparência física, é como se se referisse a uma identidade que era objeto de reflexão dos narradores, mas que estava ainda em estado embrionário para os imigrantes.

Os dois próximos textos, além de analisarem representações, indicam o grau de institucionalização dos grupos étnicos. Por “institucionalização” está se referindo ao fato dos grupos terem adquirido um grau de organização social que lhes permite formar sociedades, publicar periódicos ou editar obras comemorativas, instituir datas comemorativas e, num grau mais elaborado, ter seus próprios intelectuais, cuja produção textual não se destina apenas à comunidade, mas também para a sociedade envolvente. Ancorada em um grupo, a memória coletiva torna-se memória social (Halbwachs, 1990).

Examinando a produção literária da zona colonial italiana do Rio Grande do Sul, Luís Fernando Beneduzi opera com um tipo de interpretação característico dos novos estudos da imigração, qual seja, o de que as representações étnicas são reelaboradas conforme a situação vivenciada pelo grupo “do outro lado do Atlântico”.1 Lembrando Hobsbawm, podemos dizer que todas as tradições, quando examinadas com atenção são, na verdade, muito recentes. Por exemplo, para o autor, a canção Mérica Mérica, que pertence ao folclore da imigração italiana, “não deixa de ser fruto de um processo de revisão da trajetória da imigração, enfatizando o ponto de chegada, ou seja, a vitória”. O cinqüentenário da imigração italiana, em 1925, celebra não apenas a positividade desta imigração, representada, obviamente, pelos seus expoentes mais bem sucedidos, mas a própria lembrança negativa da terra de partida é refeita, afirmando agora a imagem “de uma Itália colonizadora e civilizadora”. A vitória, como sabemos, é o engajamento nos parâmetros econômicos do sistema capitalista, visível apenas no século XX, mas, como o efeito de uma representação é tanto maior quanto mais se oculta sua base real, ela fica ancorada num ethos, cujo origem é tão longínqua no tempo que se tornou imemorial, em outras palavras, passou a constituir uma característica “primordial”.2

Se Haike K. da Silva pode analisar textos que buscam refletir sobre a identidade étnica teuto-brasileira no Rio Grande do Sul já no século XIX, isso não se deve apenas à anterioridade desta imigração no conjunto do que ficou caracterizado como “colonos imigrantes”, mas ao fato de que existiu uma parcela significativa de imigrantes urbanos que ou estabeleceram-se na capital da província ou instalaram-se na área colonial em atividades não rurais (professores, párocos, artesãos). Os que “pensaram a identidade”, como diz a autora, e o fizeram por escrito para serem lidos por seus contemporâneos estavam, invariavelmente, ligados a uma instituição ou entidade: igreja, escola, editora ou jornal, sendo que as últimas entidades podiam ser derivadas de uma do primeiro grupo. A formulação intelectual escrita de uma identidade étnica depende da existência tanto de “mentores” quanto de um público receptor de tais elaborações e de canais já criados de divulgação destas publicações. A liderança étnica que Haike Kleber da Silva examina com mais detalhe, J. Aloys Friederichs, condensa várias facetas da trajetória do grupo étnico “alemão”. Trata-se de um empresário bem-sucedido, isto é, seu sucesso econômico habilita-o a ser representante do conjunto dos imigrantes. Foi o presidente, por muitos anos, da mais expressiva entidade associativa recreativa do Sul do País, o Turnerbund (Sociedade de Ginástica), e, como imigrante alemão que se instalava no Brasil, refletiu sobre sua própria condição e sobre a do grupo ao qual estava vinculado. Enquanto os viajantes refletiam sobre uma situação com a qual tinham contato que eles sabiam não ser permanente os intelectuais teuto-brasileiros vivenciavam uma condição da qual suas leituras eram também formas de ação. Portanto, as construções identitárias estão em permanente reelaboração, variando conforme o contexto.

Notas

1. A expressão é tomada de Ellen Woortmann (2000), que fez uma análise exemplar do processo de reelaboração identitária de imigrantes, estudando o caso dos alemães no Rio Grande do Sul.

2. O termo “primordial” é um dos que se tornou indispensável ao linguajar daqueles que estudam etnicidade. Referindo-se ao que é da “essência” dos indivíduos e grupos, primordial opõe-se ao que é “circunstancial” ou balizado apenas pelo interesse. Sobre o assunto, ver Glazer e Moynihan (1975).

Referências

BECKER, Howard. Conferência: a Escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro. v. 2, n. 2, p. 177-188, 1996.

GLAZER, Nathan; MOYNIHAN, Daniel P. Introduction. In: ______ (Ed.). Ethnicity, theory and experience. Cambridge: Harvard University Press, 1975. p. 1- 26.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (Org.). A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9-23.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do atlântico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 6, n. 14, p. 205-238, nov. 2000.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS.


WEBER, Regina. Introdução. Anos 90, Porto Alegre, v.12, n.21 / 22, jan. / dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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Trabalhismo(s) / Anos 90 / 2004

Datas. Mas o que são datas?

Datas são pontas de icebergs.

Alfredo Bosi

A revista Anos 90 – cujo título é uma referência à década em que foi criada – prossegue, pelo século XXI adentro, com seu objetivo de contribuir para o debate qualificado sobre temas e questões teóricas, metodológicas e historiográficas relevantes ao campo do conhecimento histórico. Neste número, apresentamos dois dossiês que aludem a datas bastante lembradas em 2004: o cinqüentenário do suicídio de Getulio Vargas e os vinte anos do falecimento de Michel Foucault. Poderíamos acrescentar ainda, à lista dos eventos motivadores de nossos dossiês, a morte de Leonel Brizola, ocorrida também em 2004.

Pensando em tais datas como “pontas de icebergs”, queremos convidar nossos leitores a refletirem, inicialmente, com Angela de Castro Gomes, Lucia Hippolito e João Trajano Sento-Sé, sobre os diversos “trabalhismos” que, na esteira do legado de Vargas, encontraram em Brizola seu último grande representante. A seguir, na trilha dos “jogos e diálogos” sugeridos por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Fernando Nicolazzi e José Carlos dos Anjos, propomos que atentem para os desafios colocados pela obra de Foucault aos historiadores e as suas convergências e divergências com o pensamento de E. P. Thompson e o de Pierre Bourdieu.

Os demais artigos abordam facetas e temáticas distintas e instigantes do conhecimento histórico. Roberto Wu e Enrique Serra Padrós examinam questões teórico-metodológicas referentes, respectivamente, às noções de experiência e tradição em Benjamin e Gadamer e aos desafios da chamada história do tempo presente. Eliane Cristina Deckmann Fleck apresenta as reduções jesuítico-guaranis do século XVII como um espaço de reinvenção de significados, tendo em vista a apropriação seletiva e criativa e a ressignificação de expressões da cultura indígena guarani e da cultura cristã ocidental. Marcelo Basile trata de revoltas ainda pouco conhecidas ocorridas na Corte no período regencial brasileiro. Renato Amado Peixoto realiza um criativo exercício de análise da Carta Niemeyer de 1846, a primeira Carta Geral do Brasil, discutindo a leitura dos produtos cartográficos pelos historiadores. Ricardo Luiz de Souza investiga as noções de tradição, identidade nacional e modernidade na obra de Joaquim Nabuco. Finalmente, Letícia Borges Nedel enfoca as disputas de memórias relacionadas ao “herói missioneiro” Sepé Tiaraju.

Como os leitores poderão notar, a revista apresenta um novo projeto gráfico, fruto da criatividade de Daniel Clós e da contribuição do talentoso cartunista Santiago, a quem agradecemos. Agradecemos igualmente às profissionais de Letras Nara Widholzer, que revisou os textos, e Marília Marques Lopes, que traduziu os títulos para o inglês e revisou os abstracts; aos alunos Evandro dos Santos e Sandro Gonzaga, pelo apoio na organização da revista; à Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS, na pessoa da Pró-Reitora Marininha Aranha Rocha, pelo imprescindível auxílio financeiro, através do programa de apoio à editoração de periódicos; e aos pareceristas ad hoc dos artigos enviados para este número, Eliane Colussi (da UPF), João Adolfo Hansen (da USP), Carla Brandalise, Carla Simone Rodeghero, Céli Regina Jardim Pinto, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, José Augusto Avancini, Paulo Vizenti, Regina Célia Lima Xavier, Temístocles Cezar e Benito Schmidt (da UFRGS).

Desejo a todos uma boa leitura…

Benito Bisso Schmidt – Editor.


SCHMIDT, Benito Bisso. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v.11, 19 / 20, jan. / dez., 2004. Acessar publicação original [DR]

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Foucault: Jogos e dialógos / Anos 90 / 2004

Datas. Mas o que são datas?

Datas são pontas de icebergs.

Alfredo Bosi

A revista Anos 90 – cujo título é uma referência à década em que foi criada – prossegue, pelo século XXI adentro, com seu objetivo de contribuir para o debate qualificado sobre temas e questões teóricas, metodológicas e historiográficas relevantes ao campo do conhecimento histórico. Neste número, apresentamos dois dossiês que aludem a datas bastante lembradas em 2004: o cinqüentenário do suicídio de Getulio Vargas e os vinte anos do falecimento de Michel Foucault. Poderíamos acrescentar ainda, à lista dos eventos motivadores de nossos dossiês, a morte de Leonel Brizola, ocorrida também em 2004.

Pensando em tais datas como “pontas de icebergs”, queremos convidar nossos leitores a refletirem, inicialmente, com Angela de Castro Gomes, Lucia Hippolito e João Trajano Sento-Sé, sobre os diversos “trabalhismos” que, na esteira do legado de Vargas, encontraram em Brizola seu último grande representante. A seguir, na trilha dos “jogos e diálogos” sugeridos por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Fernando Nicolazzi e José Carlos dos Anjos, propomos que atentem para os desafios colocados pela obra de Foucault aos historiadores e as suas convergências e divergências com o pensamento de E. P. Thompson e o de Pierre Bourdieu.

Os demais artigos abordam facetas e temáticas distintas e instigantes do conhecimento histórico. Roberto Wu e Enrique Serra Padrós examinam questões teórico-metodológicas referentes, respectivamente, às noções de experiência e tradição em Benjamin e Gadamer e aos desafios da chamada história do tempo presente. Eliane Cristina Deckmann Fleck apresenta as reduções jesuítico-guaranis do século XVII como um espaço de reinvenção de significados, tendo em vista a apropriação seletiva e criativa e a ressignificação de expressões da cultura indígena guarani e da cultura cristã ocidental. Marcelo Basile trata de revoltas ainda pouco conhecidas ocorridas na Corte no período regencial brasileiro. Renato Amado Peixoto realiza um criativo exercício de análise da Carta Niemeyer de 1846, a primeira Carta Geral do Brasil, discutindo a leitura dos produtos cartográficos pelos historiadores. Ricardo Luiz de Souza investiga as noções de tradição, identidade nacional e modernidade na obra de Joaquim Nabuco. Finalmente, Letícia Borges Nedel enfoca as disputas de memórias relacionadas ao “herói missioneiro” Sepé Tiaraju.

Como os leitores poderão notar, a revista apresenta um novo projeto gráfico, fruto da criatividade de Daniel Clós e da contribuição do talentoso cartunista Santiago, a quem agradecemos. Agradecemos igualmente às profissionais de Letras Nara Widholzer, que revisou os textos, e Marília Marques Lopes, que traduziu os títulos para o inglês e revisou os abstracts; aos alunos Evandro dos Santos e Sandro Gonzaga, pelo apoio na organização da revista; à Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS, na pessoa da Pró-Reitora Marininha Aranha Rocha, pelo imprescindível auxílio financeiro, através do programa de apoio à editoração de periódicos; e aos pareceristas ad hoc dos artigos enviados para este número, Eliane Colussi (da UPF), João Adolfo Hansen (da USP), Carla Brandalise, Carla Simone Rodeghero, Céli Regina Jardim Pinto, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, José Augusto Avancini, Paulo Vizenti, Regina Célia Lima Xavier, Temístocles Cezar e Benito Schmidt (da UFRGS).

Desejo a todos uma boa leitura…

Benito Bisso Schmidt – Editor.


SCHMIDT, Benito Bisso. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v.11, 19 / 20, jan. / dez., 2004. Acessar publicação original [DR]

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Imagens da Nação / Anos 90 / 2001

Chega ao número 15 a Revista Anos 90, trazendo um dossiê sobre “Imagens da Nação”. Uma série de artigos discutem esta questão, sob distintos enfoques: AnneMarie Thiesse discute o caráter ficcional das identidades nacionais, Luiz Alberto Grijó contempla uma análise das figuras políticas da nacionalidade, Aglika Stefanova, em belo artigo, aborda a visualização do nacional pelos caminhos da telenovela, o que faz Cesar Augusto Barcellos Guazzelli através do humor, enquanto que Rodrigo S. Motta discute a elaboração de atitudes políticas, como a do anticomunismo e Rafael Rosa Hagemeyer trilha os caminhos da música para chegar ao campo das identidades e do político.

Em acréscimo, nossa Revista traz a seu público um artigo que enfoca problemas teóricos para os historiadores (Pedro S. P. Caldas), além de um outro, onde as autoras discutem o estado de acervos documentais institucionais (Regina Weber, Nívea Heinen, Lizete Kummer).

Completando o elenco de matérias deste número, Anos 90 traz a resenha do livro de Celso Furtado, O longo amanhecer – ensaios sobre a formação do Brasil, publicado em 1999, feita por João H. dos Santos e do livro de Paulo G. Visentini, e Luís Milman, Neonazismo, negacionismo e extremismo político, publicado em 2000.

Boa leitura!

Comissão editorial


Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v.9, n.15, 2001. Acessar publicação original [DR]

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Anos 90 | UFRGS | 1993

Anos 90 4 Anos 90

Anos 90 (Porto Alegre, 1993-) é o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). Tem por objetivo divulgar pesquisas avançadas e recentes da área da história e de áreas afins que contribuam para a produção do conhecimento histórico e estimular o debate e investigações nessas áreas. Seu conteúdo é de acesso livre, disponibilizado na internet.

A Anos 90 publica artigos inéditos em língua portuguesa, espanhola, inglesa e francesa, resultantes de pesquisas recentes realizadas por doutores em história e em áreas afins, que tenham sido aprovados no processo de avaliação cega por pares, conforme as normas da revista, em regime de fluxo contínuo ou para dossiês temáticos.

Anualmente a Anos 90 lança chamada para submissão de propostas de dossiês temáticos que são avaliadas pela Comissão Editorial Executiva e por especialistas externos. Os organizadores das propostas aprovadas são responsáveis por indicar à Comissão Editorial os doutores especialistas que serão avaliadores  dos artigos submetidos ao dossiê. Os artigos submetidos aos dossiês passam pelo mesmo processo de avaliação cega por pares pela qual passam os demais artigos e resenhas submetidos em regime de fluxo contínuo. Eventualmente, dependendo da avaliação realizada pela Comissão Editorial, pelos organizadores dos dossiês e pelo e Conselho Consultivo, a Anos 90 também pode publicar entrevistas, traduções e documentos históricos.

Periodicidade contínua

Acesso livre

ISSN 1983-201x

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