Machado de Assis: permanências – GUIMARÃES; SENNA (MAEL)

GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de. Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras, 2018. 324 pp. Resenha de: SALOMÃO NETTO, Sônia. Machado Assis Linha v.12 n.27 São Paulo May/Aug. 2019  Epub July 29, 2019.

Machado de Assis: permanências é uma abrangente coletânea de dezessete ensaios, organizada por Hélio de Seixas Guimarães e Marta de Senna, estudiosos machadianos e promotores de algumas importantes iniciativas, como a revista eletrônica Machado de Assis em linha, da qual são editores, e Machado de Assis em hipertexto, com o patrocínio da Casa de Rui Barbosa.

É impossível, no espaço de uma resenha, comentar tal número de trabalhos especializados com a profundidade que merecem. Vamos buscar, por isso, ressaltar algumas linhas que sobressaem no todo, evitando a mera descrição dos estudos. Como sugere o título, a coletânea trabalha com a ideia da “permanência”, atualizando os dois sentidos principais do termo: o de legado ou transmissão e o de presença ou continuidade no que se refere à obra machadiana.

No eixo do legado as abordagens enfatizam o tema da memória: da fruição à incorporação do cânone literário até a ressonância, conforme nos indica Paul Dixon (2018, p. 239) a partir de uma análise do narrador problemático em Machado e Wood Allen, o qual precisa o conceito de permanência: “It’s not that it influenced me; it resonated with me”. No diapasão memorialístico do legado, portanto, Ana Maria Machado – leitora e escritora – vai se encarregar de mostrar-nos como caiu “na copa do chapéu de um homem que passava”, eficaz início machadiano de um conto despretensiosamente denominado “História comum”, de 1883, utilizado com efeito duplo no artigo que comentamos. Os fios da intertextualidade, ou da memória literária, entrelaçam-se com muitas outras obras pertencentes a uma tão variada quanto harmônica linhagem da qual nos interessa pinçar a relação de Capitu com a Emília de Monteiro Lobato ou com a “mulher do tenente francês”, de John Fowles, para chegarmos a A audácia desta mulher ou a Infâmia, mas também a muitos dos personagens femininos corajosos da literatura de Ana Maria Machado para leitores mirins.

Já Alfredo Bosi, em “Augusto Meyer: crítica machadiana e memória”, contextualiza o discurso do crítico gaúcho, revisitando um dos mais agudos intérpretes da máscara machadiana transposta a seus personagens. Vai buscar, desse modo, o homem do subterrâneo no próprio processo memorialístico do grande crítico para comentar a diferença da fruição da memória da infância – lírica em Meyer – e praticamente ausente em Machado de Assis, autor guiado por uma “lucidez extrema” que Augusto Meyer, com suma penetração e perspicácia, revela como uma das molas do niilismo machadiano. Para Bosi, a distância existencial entre os dois escritores propiciou a fecunda leitura crítica.

Até aqui o legado é fruição e ressonância. Em Hélder Macedo ele será um pouco mais, já que programaticamente trabalhado como cânone, como ilustra a análise de Cristina Cerdeira sobre Pedro e Paula, em que a gêmea, agora uma mulher, consegue ter voz própria para escolher o seu destino e narrar a sua história, ao contrário não só de Capitu, mas também da Flora amada por ambos os gêmeos de Esaú e Jacó. As “cousas futuras” vão se realizar numa outra perspectiva histórica, num outro contexto que, inclusive, joga luz sobre a passagem da Monarquia para a República, no Brasil, bem exemplificada pelo falso dilema da tabuleta do Custódio e da impossibilidade de escolha dos gêmeos entre os partidos liberal e conservador.

Lúcia Helena, em “‘Somente a antropofagia nos une’: Machado de Assis e Oswald de Andrade. Uma lição levada adiante”, apresentará uma síntese dos diversos mecanismos da narrativa machadiana a partir do tema da ruína e da corrosão, principalmente, chamando a atenção para o fato de que estamos relendo esta obra no âmbito do capitalismo globalizado em que se delineiam as questões das fronteiras, dos limites e das passagens. Oswald de Andrade, talvez com menor densidade reflexiva, seguiu o mestre na denúncia etnocêntrica, criando a riquíssima metáfora antropofágica que, como eu também penso, o ruminador Machado já havia preparado no final do século precedente.

Hélio de Seixas Guimarães e Pedro Meira Monteiro problematizam a presença machadiana a partir de leituras pontuais do debate modernista. Guimarães, no seu “Presença inquietante: sobre a incorporação de Machado de Assis ao cânone literário brasileiro (1908-1958)”, reconstrói o percurso da absorção da herança machadiana – do encômio fúnebre, realizado na Academia Brasileira de Letras por Rui Barbosa, às primeiras comemorações acadêmicas, logo a seguir, por conta de Euclides da Cunha e Olavo Bilac -, aprofundando um dos temas principais do debate na correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade: a controvérsia sobre o conceito de tradição na literatura brasileira. Guimarães indica as ambiguidades de Mário – com o seu Machado mais para “admirar” do que para “amar” – e a evolução de Drummond, considerado o principal herdeiro do legado machadiano. De fato, poderíamos dizer que só o filho que refaz a viagem do pai, como Telêmaco na Odisseia, é digno da sua herança. Já Meira Monteiro, no mesmo diapasão, – “Machado de Assis: uma flor desajeitada no jardim modernista”  lembra a questão das “raízes do Brasil”, na cabeça da geração de 1930, cujo ímpeto construtivo buscava abandonar o passado em prol de um futuro vigorosamente forjado. O que fazer, então com esta “flor de estufa” que era Machado de Assis? Afinal, nas palavras de Mário de Andrade, ele “não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo”. Seguindo, desta vez, a evolução do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Meira Monteiro sublinha como Machado passa da imagem de um escritor isolado, diverso, uma “estátua incômoda”, ao de esfinge. Mas aqui eu perguntaria: podemos considerar verdadeira a ideia de um Machado estático, híbrido e mero contemplador da realidade presente, como avaliavam os modernistas da primeira hora? O estudo de Meira Monteiro nos auxilia nesta resposta.

Outros dois artigos que realizam importantes mergulhos na correspondência e, portanto, na memória “privada” de uma época, são o de Marisa Lajolo (“Monteiro Lobato: assíduo, dedicado e amoroso leitor de Machado de Assis”) e o de Sandra Guardini Vasconcelos (“Rosa, leitor de Machado”). Marisa Lajolo revela o percurso de Monteiro Lobato ao longo das avaliações machadianas, principalmente em cartas a Godofredo Rangel, seu fiel amigo. O estusiasmo com a filiação machadiana dos autores publicados pelo Lobato editor se estende a Leo Vaz (O professor Jeremias, 1920) e ao próprio Godofredo Rangel (Vida ociosa, 1917). Como revela a autora, no ano da comemoração do centenário de nascimento de Machado, 1939, Monteiro Lobato é convidado a escrever sobre o escritor carioca no jornal argentino La Prensa. O artigo ressalta a origem humilde, afro-brasileira, e uma certa “predestinação” que se tempera pelo esforço pessoal e pelo autodidatismo. Mas os comentários lobatianos também revelam o cuidado com a institucionalização literária, marco que iguala os dois autores, grandes profissionais da escrita, através de jornais, do teatro, da tradução. Machado cria a Academia Brasileira de Letras; Lobato compra a Revista do Brasil e a seguir funda a Companhia Editora Nacional. Quanto ao estudo de Sandra Guardini, temos a confirmação do trabalho de bastidores que o autor de Grande sertão: veredas realizava em sua própria obra e que já conhecíamos da correspondência com os seus tradutores. A estratégia se estende agora ao exame realizado sobre as obras dos grandes autores que o precederam. Analisando o Fundo João Guimarães Rosa do arquivo do IEB-USP, Guardini nos revela que Rosa, por exemplo, estava forjando o seu estilo, a sua língua, o seu projeto, anotando tudo o que poderia servir-lhe. No Diário de Hamburgo, escrito pelo então jovem diplomata, Machado de Assis parece ser o modelo a ser desenhado, desafiado e superado. Curiosa é a análise aparentemente apressada da obra machadiana que surge numa espécie de “lista” a ser estudada.

A outra importante presença machadiana está no teatro, ao qual Machado se dedicou durante muitos anos como dramaturgo e crítico teatral, além de ter escrito óperas e ter seguido o rico movimento operístico do seu tempo. Na verdade, o teatro está presente na sua poética e integra o seu cânone estilístico. No entanto, essa parte de sua obra foi por muito tempo relegada a produção menor. João Roberto Faria (Machado de Assis encenado por Ziembinski e Ruggero Jacobbi) recupera a história desse juízo crítico negativo, que tem como origem a opinião do amigo Quintino Bocaiuva em carta a Machado. Faria centra-se na encenação de Lição de botânica – realizada por Ruggero Jacobbi em São Paulo, em 1954, e a seguir no Rio de Janeiro, em 1956 – e na de O protocolo, em 1958, com direção de Ziembinski, no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, recolhendo a crítica positiva e mais articulada em torno dessas duas montagens. No âmbito da modernização do teatro brasileiro, os dramaturgos e cenógrafos estrangeiros – italianos na sua maior parte -, homens de teatro que eram, souberam apreciar o estilo enxuto de Machado e a sua filosofia teatral inspirada em Musset. Nesta perspectiva, Machado é considerado por especialistas, inclusive pelos críticos brasileiros Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado e Bárbara Heliodora, entre outros, que não comparam as suas peças com os romances. Cabe acrescentar, à longa lista de preciosas citações que nos traz Faria, a apreciação consagradora que Ruggero Jacobbi (1961, p. 74-76) nos deixa no seu Teatro in Brasile sobre Machado.

A busca da permanência machadiana será realizada também através de um trabalho comparativo, em que Marta de Senna (“Dom Casmurro e São Bernardo: vozes na solidão”) aprofunda as semelhanças entre os dois romances segundo a situação do narrador memorialista que escreve a partir da própria ruína e solidão. Os narradores realizam, segundo a autora, uma “tentativa de entender, ao narrar, aquilo que não conseguiram compreender ao viver” (SENNA, 2018, p. 228). Simultaneamente, tratando-se do específico terreno memorialístico, em que a realidade do acontecido se mistura com a subjetividade do vivenciado, podem escolher, ainda por cima, o que e como narrar. Não resta dúvida de que a memória é mais psicossocial em Machado e mais tragicamente sociológica em Graciliano. De qualquer modo, e esta parece ser a conclusão de Marta de Senna, tanto Capitu quanto Madalena eram luvas muito finas para as mãos desajeitadas de Bentinho e Paulo Honório.

Nesta linha comparativa coloca-se também o estudo de Lúcia Granja. No seu caso, trata-se de uma investigação dos mecanismos de poder nas relações interpessoais e, mais especificamente, do processo de silenciamento feminino em Dom Casmurro e em Um copo de cólera, de Raduan Nassar, a partir da relação erótico-amorosa. Naturalmente, esses mecanismos são reveladores de um contexto histórico-social específico que a autora não deixa de indicar na sua análise. Em relação aos mecanismos de representação e às pulsões que se expressam através de uma forma narrativa específica, os trabalhos de Bluma Waddington Vilar (“O caloteiro e o cobrador ou como deixar de pagar segundo Machado de Assis e Rubem Fonseca”) e de Marcelo Diego (“Machado e Nelson, matrizes da perversão”) podem ser associados ao de Lúcia Granja e aos demais artigos que se inscrevem na linha comparativa. Assim, a relação entre moral e dívida, através da obra de Machado de Assis e de Rubem Fonseca, ganham espaço e jogam luz recíproca sobre o problema da dívida social. Tema, aliás, de grande interesse no mundo globalizado de hoje, cujas franjas de algodão da pobreza apresentam uma conta muito alta a ser paga – fome e miséria, imigração desordenada, guerrilhas e terrorismo – em relação ao manto de veludo do progresso e da acumulação de capital. Nesse sentido, o grande moralista e o estupendo investigador das causas secretas que foi Machado de Assis se coaduna com outro grande inquiridor ou delegado das causas perdidas, dos crimes e da marginalidade urbana que é Rubem Fonseca no seu conto-paradigma: “O cobrador”.

Já Marcelo Diego, partindo do tema da perversão, investiga em Nelson Rodrigues as raízes submersas na obra do Bruxo do Cosme Velho; principalmente em contos como “A causa secreta”, “Singular ocorrência”, “O enfermeiro”, “O caso da vara”, “Conto alexandrino” e “Pai contra mãe”. O universo micropolítico de Nelson Rodrigues, concentrando-se na família, por sua vez, descreve os mecanismos macropolíticos da sociedade brasileira das décadas de 1950-1960, numa implosão de culpa, mutilação, crime ou suicídio. Ambos os autores souberam captar as dinâmicas intestinas de uma cidade, o Rio de Janeiro, a partir das nuances, das falhas e das usuras que escondem o bas fond de uma cidade. Na obra de Machado de Assis aparecem, como bem indica o autor, na casinha de Dona Plácida na Gamboa, ou na rótula de Genoveva no conto “Noite de almirante”. Mas há muitas outras, como a loja de Marcela, corroída pelas bexigas, em plena rua dos Ourives, no Memórias póstumas. Poderíamos aqui chamar em causa também o tema do grotesco na literatura brasileira urbana.

Outra contribuição do volume é a de Regina Zilberman. Na linha comparatista que estamos indicando, seu texto apresenta sugestiva possibilidade de leitura, a partir da ideia de “plágio antecipado” de Pierre Bayard. Através de um articulado percurso que envolve A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, e Memórias póstumas de Brás Cubas, a autora mostra como ambos os romances lidam com a tradição e o próprio modo de narrar. Se o modelo bíblico nutriu as Memórias póstumas, este joga luz sobre a narrativa de Scliar, e ambos discutem literariamente o problema da autoria, através de uma hipótese do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C..

Na mesma linha, ainda, o trabalho de Ieda Lebensztayn, desta vez sobre um herdeiro falido: Léo Vaz (O professor Jeremias), ao qual Monteiro Lobato vaticinara um lugar futuro na literatura brasileira. Curiosamente, o próprio Machado que o sufocou – com a peja da imitação – o está trazendo à tona, no âmbito de uma necessária revisão crítica de estereótipos tantas vezes repetidos e que o trabalho de Ieda Lebensztayn vem resgatar e contextualizar.

Que homenagem maior poderia ser dedicada ao legado machadiano, no seu duplo sentido de transmissão e permanência, senão a experiência da reescrita de “Missa do galo” (Missa do galo – variações sobre o mesmo tema, 1977) por um grupo de peso capitaneado por Osman Lins? Juracy Assman Saraiva, no seu “Leitores nas margens de ‘Missa do Galo'”, repercorre as várias versões que, em última análise, são fruto de leituras provocadas por um conto voluntariamente ambíguo como os olhos de Capitu.

Como balanço final, a coletânea cumpre o seu objetivo, mobilizando um grupo composto por variadas formações críticas e profissionais. Todos nós, e aqui me incluo, lidamos com um autor que, para formar o seu próprio cânone, não poupou esforços nem leituras (SALOMÃO, 2016). Um autor que construiu e fecundou mais do que os modernistas da primeira hora pudessem admitir e que, como pensava de Garrett, “só por si valia uma literatura” (ASSIS, 1979, p. 931).

Referências

ASSIS, Machado de. Obras completas. Organização de A. Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1979. v. 3. [ Links ]

DIXON, Paul. Machado de Assis, Wood Allen e o narrador problemático. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Orgs.). Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras, 2018. p. 238-252. [ Links ]

JACOBBI, Ruggero. Teatro in Brasile. Bolonha: Cappelli Editore, 1961. [ Links ]

SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: EdUerj, 2016. [ Links ]

SENNA, Marta de. Dom Casmurro e São Bernardo: vozes na solidão. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Orgs.). Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras , 2018. p. 225-237. [ Links ]

Sonia Salomão Netto – É ex-professora da UFRJ e da UERJ, ensina atualmente na Sapienza, Universidade de Roma, e já publicou diversos ensaios e estudos sobre a história da língua portuguesa, entre os quais, os volumes Da palavra ao texto, estudos de linguística, filologia, literatura (Viterbo, Sette Città, 2007, com reedições) e A língua portuguesa nos seus percursos multiculturais (Roma, Nuova Cultura, 2012). Além disso, coordenou a tradução de Quincas Borba, de Machado de Assis (Viterbo, Sette Città, 2009), e integra o conselho editorial da Coleção Brasil-Itália, da Editora da UERJ. http://orcid.org/0000-0002-2929-6701. E-mail: [email protected]