Machado de Assis: a poética da moderação – BASTOS (MAEL)

BASTOS, Alcmeno. Machado de Assis: a poética da moderação. Rio de Janeiro: Batel, 2018. 315 pp. Resenha de: AZEVEDO, Sívia Maria. Machado Assis Linha v.12 n.28 São Paulo Sept./Dec. 2019  Epub Nov 25, 2019.

Se a expressiva e longa atuação de Machado de Assis no exercício da crítica teatral vem recebendo importante recepção entre os estudiosos (FARIA, 2008), ainda são relativamente poucos os trabalhos que se debruçam sobre a crítica literária machadiana, comparados aos estudos voltados à prosa de ficção (romances e contos) e, mais ultimamente, à crônica. Por isso mesmo, é muito bem-vindo o livro de Alcmeno Bastos (2018, p. 11), Machado de Assis: a poética da moderação, no qual o autor se propõe “[…] identificar a poética pela qual se guiou Machado de Assis no exercício da crítica literária e teatral, ofício que desempenhou no decurso de grande parte de sua vida intelectual”.

Bastos chama de “poética da moderação” a poética da crítica machadiana pautada pelos princípios defendidos em “O ideal do crítico” (1865) – “ciência”, “consciência”, “coerência”, “independência”, “tolerância”, “urbanidade” -, em relação aos quais, segundo o autor, “[…] Machado de Assis se manteve fiel […], exercendo uma crítica ‘ciente’ e ‘consciente’, marcada pela recusa à agressividade (com raríssimas exceções), sob o império da moderação […]” (BASTOS, 2018, p. 14).

Assim, a “poética da moderação” é o princípio condutor por meio do qual Bastos empreende o rastreamento dos principais textos de crítica literária e teatral de Machado de Assis, na promoção de um diálogo em que, sem deixar de reconhecer especificidades de ambas as áreas, privilegia a coerência de Machado aos postulados estéticos e éticos no exercício da crítica.

Agrupados em blocos temáticos, os textos de crítica literária e teatral de Machado de Assis são submetidos a leituras minuciosas, a começar por aqueles que atendem ao título “profissões de fé”, nos quais Machado identifica as qualidades necessárias para o exercício da crítica, que deveria ter função reguladora e normativa, explorados no capítulo “As profissões de fé: o ideal do crítico e o crítico ideal: ‘ciência’ e ‘consciência’, pilares da crítica machadiana”. Aqui foram selecionados os textos “Ideias sobre o teatro” (1859), “A crítica teatral. José de Alencar: Mãe” (1860) e “O ideal do crítico” (1864), ao lado de alguns pareceres que Machado de Assis exarou, enquanto censor do Conservatório Dramático, atividade que exerceu em 1862-1864 e 1886-1887. Cabe ainda mencionar as duas cartas do Dr. Semana, dirigidas ao Presidente do Conservatório Dramático Brasileiro, Antônio Félix Martins, publicadas em 3 e 17 de abril de 1864, na Semana Ilustrada, nas quais o cronista, em tom irônico, convida a autoridade censória a visitar o Alcazar Lírico para constatar a decadência moral do público e a baixa qualidade das peças encenadas naquele teatro. Bastos atribuiu essas cartas a Machado de Assis por coincidirem com o período em que o escritor atuou como censor- quando “Inúmeras vezes […] externou o ponto de vista de que o teatro tinha função social civilizadora e, portanto não podia aceitar peças que ofendessem a moral” (BASTOS, 2018, p. 46) -, crítica endereçada às peças levadas no Alcazar Lírico, o que vai ao encontro do teor das missivas do Dr. Semana.

O segundo eixo temático responde pelos “balanços críticos”, textos nos quais Machado de Assis empreende uma visão de conjunto da produção literária e dramatúrgica da época, objeto do capítulo “Os balanços críticos: a quantas andavam a literatura e o teatro no Brasil nos anos 1860/70”. Essa seção é contemplada com os textos “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” (1858), “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade” (1873), “A nova geração” (1878) e “O teatro nacional” (1866), seleção que, como se vê, descarta a linha evolutiva, e com isso a divisão da obra machadiana em duas fases. Ao longo desses quase vinte anos, se Machado de Assis imprimiu nuances a seu pensamento crítico, ao tratar de questões como o indianismo, a cor local na aferição da nacionalidade, a adesão dos escritores às novas tendências estéticas oriundas da Europa, tais como o teatro “realista”, nem por isso houve “[…] uma mudança acentuada em suas convicções crítico-teóricas, sempre marcadas pela consideração ponderada das razões em choque” (BASTOS, 2018, p. 58).

As resenhas de Machado de Assis sobre o movimento teatral no Rio de Janeiro, publicadas nas seções “Revista de Teatros” (O Espelho, 1859-160) e “Revista Dramática” (Diário do Rio de Janeiro, 1860-1861), e os estudos, produzidos de forma esparsa, sobre a obra dramática de Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Antônio José, Quintino Bocaiúva, Oliveira Lima, entre outros, integram o capítulo “Machado de Assis vai ao teatro: a militância crítica no estudo (preferencial) de autores e peças contemporâneos e alguns estudos singulares”. Nesses textos, Bastos reconhece a fidelidade de Machado de Assis ao princípio de independência, ao criticar os desempenhos de João Caetano e Eugênia Câmara, aquele, pelo exagero na representação, esta, por estar mais afinada com a comédia do que com a tragédia. A defesa da função social do teatro justificaria a referência de Machado pelo teatro realista, mais adequado à representação da realidade, embora sem deixar de reivindicar a liberdade na criação artística.

Os textos mais propriamente de crítica literária de Machado de Assis, sobre poetas e ficcionistas, sobretudo os contemporâneos, receberam capítulo à parte: “Na crítica literária, um Machado mais atento à poesia (e aos poetas) que à prosa de ficção (ao romance, aos romancistas e aos raros contistas)”. Neste título-resumo (como em outros do livro), Bastos não apenas informa o leitor sobre o perfil do capítulo, mas também, no caso, a preferência de Machado pelos poetas em vez dos romancistas e contistas, o que talvez tenha passado despercebido, mesmo entre os machadianos. Outra novidade foi extrair de várias crônicas de “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias, com base em obra anterior (AZEVEDO; DUSILEK; CALLIPO, 2013), os rápidos comentários de Machado acerca de ficcionistas, alguns dos quais, Coelho Neto, Raul Pompeia, Aluísio Azevedo, José Veríssimo. Em relação aos poetas de seu tempo, nenhum nome importante deixou de receber a atenção de Machado de Assis, que se manifestou tanto sobre os que o tempo consagrou, como Gonçalves de Magalhães, Junqueira Freire, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, quanto sobre os que ficaram esquecidos (Bruno Seabra, Alberto Zaluar, Adélia Fonseca etc.), sem deixar de contemplar os estrangeiros (Garrett, Gomes de Amorim, Guilherme Malta).

Os paratextos escritos por Machado de Assis para os seus romances, livros de contos, poemas e peças teatrais foram analisados no capítulo “Machado de Assis se apresenta ao leitor: a função metadiscursiva dos prefácios, prólogos, das advertências”. A inclusão desses textos no livro em pauta significa que Bastos os compreende como integrantes da bibliografia machadiana sobre crítica literária, o que é mais outra novidade trazida pela obra. A defesa de um “realismo seletivo”, a conformidade das ações das personagens às motivações interiores, o consórcio entre dados procedentes da realidade e a invenção do autor são princípios norteadores da crítica literária e teatral, a repercutir nos paratextos machadianos, com ressalvas em relação ao prólogo de Memórias póstumas de Brás Cubas, por já integrar o tecido ficcional, e aos de Esaú e Jacó e Memorial de Aires, pela ambiguidade quanto à autoria dos textos apresentados ao leitor.

Os últimos capítulos do livro foram dedicados a Eça de Queirós e José de Alencar, respectivamente, “Uma polêmica logo descontinuada (por ‘tédio à controvérsia’?): Eça de Queirós e a questão do realismo” e “José de Alencar: o romancista e o dramaturgo lidos e admirados pelo crítico Machado de Assis”. No primeiro, Bastos aborda a célebre querela em torno d’O Primo Basílio, em 1878, sobre o qual Machado de Assis se manifestou em artigos, nos quais reiterou suas convicções acerca da representação ficcional da realidade. Essa foi das raras ocasiões em que Machado se pronunciou mais duramente como crítico literário; ainda assim, o tom severo da sua crítica ficou muito distante do acirrado debate travado na imprensa carioca da época, do qual participaram vários nomes de peso (NASCIMENTO, 2008). No capítulo sobre José de Alencar, localizado não por acaso no fecho do livro, que se abrira com ele como epígrafe, na carta enviada em 1868 a Machado de Assis, apresentando-lhe Castro Alves, o pesquisador carioca resenha três modalidades de intervenção crítica de Machado acerca da obra de Alencar: a crítica literária (Iracema, 1866), a crítica teatral (Verso e reverso, O demônio familiar, As asas de um anjo, Mãe, O que é o casamento?, 1866) e o prefácio (edição comemorativa de O guarani, 1887, que acabou não acontecendo), sem esquecer as provas de admiração manifestadas em várias ocasiões, em crônicas e discursos.

Como balanço geral, o livro de Alcmeno Bastos vem trazer importante contribuição aos estudos machadianos, quanto à atuação de Machado de Assis no exercício da crítica literária e teatral, ao promover frutífero diálogo entre essas duas áreas de militância crítica, norteadas pelos princípios da “poética da moderação”.

Referências

AZEVEDO, Sílvia Maria; DUSILEK, Adriana; CALLIPO, Daniela Mantarro (Orgs.). Machado de Assis: crítica literária e textos diversos. São Paulo: Editora UNESP, 2013. [ Links ]

BASTOS, Alcmeno. Machado de Assis: a poética da moderação. Rio de Janeiro: Batel, 2018. [ Links ]

FARIA, João Roberto (Org.). Machado de Assis: do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. [ Links ]

NASCIMENTO, José Leonardo. A recepção de O Primo Basílio na imprensa brasileira do século XIX: estética e história. São Paulo: Editora UNESP , 2008. [ Links ]

Sílvia Maria Azevedo – É professora adjunto de Teoria Literária e Literatura Comparada, do Departamento de Literatura, UNESP/Assis, tendo publicado artigos e livros sobre Machado de Assis, dentre os quais a organização das seguintes antologias Badaladas Dr Semana (São Paulo: Nankin, 2019, t. I e II), História de quinze diasHistória de trinta dias (São Paulo: Editora UNESP, 2001), Machado de Assis: crítica literária e textos diversos (São Paulo: Editora UNESP, 2013), em colaboração com Adriana Dusilek e Daniela Mantarro Callipo. É autora da reedição de O Momento Literário, de João do Rio (São Paulo: Editora Rafael Copetti, 2019), com Tania Regina de Luca, e da obra Brasil em imagens: um estudo da revista Ilustração Brasileira (1876-1878) (São Paulo: Editora UNESP, 2010). https://orcid.org/0000-0001-7679-1919. E-mail: [email protected].

As histórias coletadas de Machado de Assis – ASSIS (MAEL)

ASSIS, Machado de. As histórias coletadas de Machado de Assis. Margaret Jull Costa; Robin Patterson. Nova York: Liveright, 2018. 934 pp. Resenha de: THOMSON-DEVEAUX, Flora. Machado Assis Linha v.12 n.28 São Paulo set./ dez. 2019.

Por qualquer medida, as histórias coletadas de Machado de Assis ( ASSIS, 2018) é uma adição bem-vinda à família de traduções machadianas. Margaret Jull Costa e Robin Patterson da antologia, de longe, o maior volume em Inglês de histórias Machado à data, e de um alto perfil editora-inclui todas as histórias publicadas em forma de livro durante a vida do autor. Das mais de 200 histórias que Machado publicou ao longo de sua vida, tanto em periódicos quanto em antologias, esta coleção inclui 76, das quais dez aparecem em inglês pela primeira vez: “Luís Soares”, “Linha reto e linha curva “(Linha reta, linha curva),” Luís Duarte “(casamento de Luís Duarte),” Ernesto de Tal “,” Ernesto Qual é o nome dele), “Aurora sem dia” (muito calor, pouca luz), “Dona Benedita, “” O segredo do bonzo “,”1

Isso por si só representa um ganho significativo. Embora a primeira tradução em inglês de um dos contos de Machado tenha chegado um século antes, os esforços editoriais subsequentes tendiam a favorecer uma gama bastante limitada de narrativas, apenas se ramificando em uma enxurrada de antologias na última meia década. Em um artigo de 2015, Luana Ferreira de Freitas e Cynthia Beatriz Costa pesquisados traduções em língua Inglês de histórias de Machado e observou que essas publicações tendem a privilegiar o trabalho mais tarde do autor (como com as novelas, a primeira das quais para entrar Inglês foi Memórias póstumas de Brás Cubas , em 1952, e o último foi Ressurreição, em 2013). “O Enfermeiro”, “O Alienista” e “A Cartomante” foram as peças mais implacavelmente traduzidas, a ponto de os autores do estudo se referirem a elas brincando como inclusões “obrigatórias” em qualquer coleção de histórias de Machado em língua inglesa. Freitas e Costa (2015 ) contaram um total de 82 histórias traduzidas no início de 2015; quando adicionamos as sete novas traduções de Miss Dollar: Stories de Machado de Assis ( ASSIS, 2016 ) e as dez das Collected Stories, isso nos leva a 99. Esse total, basta dizer, é responsável por quase todas as histórias com as quais a maioria dos leitores casuais ou menos casuais de Machado estaria familiarizada; Entre as centenas de narrativas que aguardam tradução estão “Nem uma nem outra”, “O óculos de Pedro Antão” e “Pobre Cardeal!”

Enquanto muitas publicações anteriores dos contos de Machado optaram por destacar uma das obras mais conhecidas em seus títulos (“A missa do galo”, “O alienista” e “A igreja do diabo” emprestaram seus nomes a algumas), a estrutura cronológica das histórias coletadas significa que os falantes de inglês que procuram uma introdução a Machado de Assis começarão não com os “maiores sucessos”, mas com os únicos que foram traduzidos tardiamente em 1870 Contos Fluminensese, gradualmente, abrem caminho para narrativas mais conhecidas. Embora lógico, isso representa uma novidade para os anglófonos, permitindo que os leitores acompanhem o desenvolvimento de Machado como escritor de contos ao longo de duas décadas. De acordo com essa decisão de preservar a estrutura de cada coleção de histórias, a presença de Jull Costa e Patterson é geralmente discreta. Eles não forneceram nenhum prefácio e evitam notas – não uma decisão óbvia, pois as histórias fazem referência a incidentes e conceitos que podem ser remotos, mesmo para muitos leitores brasileiros.

Embora, como observado, a grande maioria das histórias nesta antologia tenha sido traduzida anteriormente (algumas estreando em inglês apenas alguns anos atrás), a repetição não é redundância; cada nova tradução dessas narrativas notáveis ​​enriquece nossas leituras delas. A análise comparativa das traduções pode lançar luz sobre a experiência do leitor – as divergências das traduções que revelam os pontos em que o texto força o leitor / tradutor a suportar a maior carga interpretativa – e vamos ver o original de novo. Neste espírito, eu gostaria de avaliar as histórias recolhidasobservando como a antologia aborda um dos contos mais traduzidos de Machado (“O alienista”) e um de seus contos menos traduzidos (“O relógio de ouro”, publicado apenas uma vez antes, em um e-book em 2014 [ ASSIS, 2014 ]). No último caso, um conto aparentemente ingênuo revela complexidade insuspeita quando se ramifica na tradução. No caso de “O alienista”, uma leitura comparativa das traduções existentes pode nos ajudar a vislumbrar os padrões de tomada de decisão de Jull Costa e Patterson, bem como a esclarecer casos em que Machado engenhosamente tece referências de maneiras que até agora frustrou todos os cantos.

“O alienista”, a saga do ambicioso e fatalmente praticante de saúde mental Simão Bacamarte, foi publicado pela primeira vez em inglês em 1963, traduzido por William Grossman como “O Psiquiatra” ( ASSIS, 1963 ). Foi seguido pela tradução de Rhett McNeil de 2014. o mesmo título, bem como versões por John Chasteen em 2013 e Jull Costa e Patterson em 2018, ambos intitulados “o Alienista”. (O título anterior foi criticado como anacrônico; a tradução de Grossman foi posteriormente levemente editada e relançada como “The Alienist”.)

Esse intervalo de versões do mesmo texto fornece uma base rica para comparação. Para julgar a natureza de uma tradução e chegar a um sentido mais específico dos padrões que ela exibe, geralmente é mais produtivo lê-la contra interpretações existentes no mesmo idioma do que mantê-la no padrão virtualmente impossível do idioma de origem. Ao estabelecer o lado de quatro tradutores a lado, podemos examinar manifestações do estilo e filosofia por trás de cada uma de suas traduções, bem como as formas em que eles iluminam as possibilidades inerentes a fonte de texto ou, conforme o caso, visivelmente executado contra suas dificuldades. Aqui, por uma questão de brevidade, examinaremos apenas o primeiro capítulo da história.

Como a tradução de Jull Costa e Patterson é o objeto de interesse aqui, tenho observações privilegiadas sobre seu estilo. A dicção de seus bobs tradução e tece para caber tom flutuante de Machado, passando de informalidade de “meteu-se em Itaguaí” ( ASSIS, 1979 , p. 253), ou “tomou-se fora de Itaguaí” ( ASSIS, 2018 , p . 315), a referência do Bacamarte para “louros imarcescíveis” ( ASSIS, 1979 , p. 254), ou “louros cada vez mais duradoura” ( ASSIS, 2018 , p. 316). Isso fica mais claro ao contrário, como Grossman, Chasteen, e McNeil adotar soluções mais formais para o primeiro exemplo ( “passou a residir” [ ASSIS, 1963 , p. 1] para o primeiro e “voltou a” [ ASSIS,ASSIS, 2013a , p. 1] para os dois últimos), dificultando a detecção de uma diferença de tom em relação ao segundo. A dupla parece ter um cuidado especial em não procurar equivalentes fáceis, preferindo “cantos e recantos” ( ASSIS, 2018 , p. 316) a “esquina” ao traduzir a frase “recanto psíquico” ( ASSIS, 1979 , p. 254) . Quando confrontados com “O escrivão perdido nos cálculos aritméticos” ( ASSIS, 1979 , p. 255), Grossman e Chasteen relatam que o funcionário público se “perdeu” em seus cálculos ( ASSIS, 1963 , p. 3; ASSIS, 2013b , np), enquanto nas histórias coletadas e na tradução de McNeil ele teria entrado em “p. 317) e “confundidos” ( ASSIS, 2013a , p. 4), respectivamente. A dupla também encontra uma solução elegante para o paralelismo da descrição de Machado dos lunáticos locais como “não curado, mas descurado” ( ASSIS, 1979 , 254), em “não curado e não tratado” ( ASSIS, 2018 , p. 316).

Essas comparações quase impressionistas; mas um elemento que influencia a subjetividade é o tratamento de termos culturais e historicamente específicos. Neste trecho, a equipe de tradutores geralmente os preserva; considerando que, em 1963, Grossman traduziu “Rua Nova” como “Rua Nova” e encobriu dois “tostões” como “um imposto de valor determinado” ( ASSIS, 1963 , p. 3) Jull Costa e Patterson preservam os termos em português ( ASSIS, 2018 , p. 317). No binário implacável entre domesticação e exteriorização, isso os colocaria mais perto do segundo extremo, esperando que os leitores pudessem navegar por esses sistemas presumivelmente desconhecidos de nomenclatura e moeda de rua. Chasteen e McNeil dividiram a diferença, mantendo a “Rua Nova”, mas brilhando “ASSIS, 2013b , np) e “dois níquel” ( ASSIS, 2013a , p. 4), respectivamente.

No geral, percebe-se uma mudança de paradigma entre a primeira tradução e o resto, sem surpresa à luz do meio século que as separa. Grossman, como em sua tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas , intervém muito mais ativamente do que seus colegas do século XXI em termos de alteração da estrutura e ênfase das frases. Por exemplo, sua descrição de Dona Evarista, que “possuía um rosto composto por feições nem individualmente bonitas nem mutuamente compatíveis” ( ASSIS, 1963 , p. 1) é, embora certamente divertida, muito menos discreta do que “D. Evarista era mal composta de feições “( ASSIS, 1979p. 253) Todos os tradutores subsequentes são mais inclinados a seguir a estrutura das frases de Machado, embora Jull Costa ea versão de Patterson, talvez involuntariamente, omite a frase que começa “A IDEIA de metros loucos OS NA MESMA Casa, Vivendo em Comum […]” ( ASSIS , 1979 , p. 254).

Além de ajudar a sistematizar as observações sobre os estilos dos tradutores, essas comparações geralmente revelam pontos de dificuldade inflexíveis colocados pelo original. De fato, o primeiro capítulo de “O Alienista” também inclui uma frase cuja pura peculiaridade é sistematicamente diluída na tradução. Após o casamento de Simão Bacamarte com a desajeitada Dona Evarista, seu tio se sente obrigado a comentar a improvável partida. Nesse contexto, Machado descreve o tio da seguinte forma: “caçador de pacas diante do eterno, e não menos franco” ( ASSIS, 1979 , p. 254). Grossman e Chasteen descrever a tio como “francos” ( ASSIS, 1963 , p. 1) e “romba” ( ASSIS, 2013b ,np), respectivamente, simplesmente traduzindo “franco” e deixando de fora o resto; enquanto Jull Costa e Patterson o caracterizam como “um intrometido inveterado nos assuntos dos outros” ( ASSIS, 2018 , p. 315). McNeil, entretanto, o vê como “um homem incorrigível conhecido por sua franqueza” ( ASSIS, 2013a , p. 1), interpretando as “pacas” como mulheres, presumivelmente mais convencionalmente atraentes que Dona Evarista.

A construção “caçador perante o Eterno” é uma referência bíblica ao rei Nimrod, tradicionalmente reproduzida em Inglês como “um poderoso caçador diante do Senhor”, com uma paca largeish -a, manchado do Sul e da América Central roedor-imprensado nele. Na minha interpretação, que parece ser compartilhada por Jull Costa e Patterson, essa combinação transmite tanto o senso de auto-importância do tio (caçador poderoso) quanto a verdadeira escala de suas atividades (na forma da humilde paca ). Pode-se considerar substituir o animal por outro roedor que daria aos leitores de língua inglesa a tarefa inglória de caçá-lo – talvez “poderoso caçador de esquilos diante do Senhor”. 2Independentemente da solução, essa onda, muitas vezes suavizada na tradução, pode nos apontar para a estranheza muitas vezes negligenciada das mudanças de expressão de Machado. Acredito que este seja particularmente emblemático por sua combinação indiferente de cores locais e referências canônicas, produzindo uma síntese que até agora se perdeu na paráfrase.

De “O Alienista”, podemos recorrer a uma narrativa muito menos lida e, portanto, muito menos traduzida. Eu li a tradução de Jull Costa e Patterson de “O Relógio de ouro” com alguma curiosidade, como eu já havia traduzido um trecho do que para o livro de João Cezar de Castro da Rocha Machado de Assis: Rumo a uma poética da emulação . É assim, na minha tradução, como ele apresenta o trecho da história:

“O relógio de ouro”, publicado no Jornal das Famílias em abril e maio de 1873 e reproduzido no mesmo ano no Midnight Stories , apresenta uma anedota simples que serve para anunciar a complexidade de abordagens futuras sobre o assunto. . Tudo gira em torno de uma suspeita inocente, que é resolvida facilmente: o relógio do homem encontrado pelo zeloso Luís Negreiros não era prova de infidelidade, mas um presente de aniversário da própria esposa. ( ROCHA, 2015 , p. 32)

Guiado por essa interpretação, traduzi o final da história, em que a esposa de Luís Negreiros, Clarinha, apresenta a ele o cartão que acompanha o relógio, como segue:

Luís Negreiros recebeu uma carta, Chegou-se à Lamparina e leu estupefato estas Linhas:

“Meu nhonhô. Se amanhã o que faz anos; mando-te esta lembrança.

Tua Iaiá “( ASSIS, 1979 , p. 240)

Luís Negreiros pegou a carta, levou-a para a lâmpada e leu estas linhas com total estupefação:

Meu querido marido. Eu sei que seu aniversário é amanhã; Enviei-lhe este presente.

Sua esposa. ROCHA, 2015 , p. 33)

Eu achava que a parte mais complicada dessa passagem era lidar com o nhonhô e o iaiá – um desafio lingüístico que eu finalmente evitei, usando a leitura de Castro Rocha para decodificar esses nomes de animais historicamente carregados em “marido” e “esposa”. Quando li a tradução de Jull Costa e Patterson, fiquei surpreso. Deles foram os seguintes:

Luís Negreiros pegou a carta, foi até o abajur e ficou surpreso ao ler estas palavras:

Meu querido jovem mestre. Sei que amanhã é seu aniversário e por isso estou lhe enviando este pequeno presente.

Babá. ASSIS, 2018 , p. 290)

Onde eu tinha lido marido e mulher, meus colegas decodificaram nhonhô e iaiá como outro relacionamento inteiramente. Em uma versão publicada eletronicamente da história traduzida por Juan LePuen em 2014, a nota aparece da seguinte forma:

Luís Negreiros pegou a carta, foi até o abajur e, impressionado, leu estas linhas:

Meu nhonhô . Eu sei que é seu aniversário amanhã; Estou lhe enviando este presente.

– tia Iaiá. ASSIS, 2014 , p.) 3

Essa nova divergência me levou a consultar o final da história, que foi publicada no Jornal das Famílias em 1873. Nesta versão anterior, a nota foi assinada por uma Zepherina, e a narrativa concluída da seguinte forma:

“Meu bebê. Sei que amanhã faz anos; mando-te esta lembrança.

– Tua Zepherina . ”

Imagine o leitor ou pasmo, uma vírgula, ou remorso de Luiz Negreiros, admirar uma constância de Clarinha e uma vingança que tomára, e nenhum modo última hora em uma boa Zepherina, que estava totalmente esquecida, sendo perdoado Luiz Negreiros, e tendo Meirelles ou gosto de jantar com a filha e o genro no dia seguinte. ( ASSIS, 1873 , p. 132)

De repente, a história fez mais sentido: indignação silenciosa de Clarinha quando seu marido acreditava que o relógio ter sido um presente dela, quando ela sabia que era sua amante. Quando fui encarregado de entrevistar Jull Costa e Patterson sobre sua tradução para o Suplemento Pernambuco em 2018, escrevi para dizer que achava que todos nós erramos: nem a própria esposa, nem a babá, nem a tia, nem Iaiá poderia ter sido. a outra mulher. “Machado parece ter mudado para nhonhô / iaiá para manter o final deliberadamente indeterminado”, comentei, “o que nenhum de nós fez!” Em sua resposta, Jull Costa (2018) argumentou: “Eu li o final atual como Luís ter destruído um casamento anteriormente feliz por seu ciúme sem sentido.”

Embora possamos debater a probabilidade relativa de uma amante da classe alta versus uma babá poder comprar um relógio de ouro como presente, pode-se dizer de Luís Negreiros o que Antonio Candido escreveu sobre Dom Casmurro: “não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói sua casa e sua vida “( CANDIDO, 1970p. 25) A revisão de Machado da história não apenas remove o autor inequívoco da carta, mas também remove o final feliz. Quem quer que o doador do sexo feminino do relógio, podemos estar certos da fúria do marido e silêncio gelado da esposa, nem apagado tão facilmente. Além disso, e talvez mais importante, essa persistente divergência entre tradutores e leitores em relação a uma narrativa aparentemente “simples” é uma demonstração impressionante de como a linguagem ambígua de Machado se encaixa nas complexidades culturais do português brasileiro para criar “nós” interpretativos.

Estes são alguns exemplos extraídos das quase mil páginas das histórias coletadas . Para os estudiosos, a antologia pode dar origem a muito mais novas apreciações de Machado através das lentes do inglês, dadas as novas traduções e reinterpretações que apresenta. Para os amigos de Machado em língua inglesa, a amplitude e o destaque da coleção por si só seriam uma contribuição valiosa por si só, mas as leituras cuidadosas de Jull Costa e Patterson reforçam esse esforço.

Referências

ASSIS, JM Machado de. O relógio de ouro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, n. 4-5, 1873, p. 117-120; p. 129-132. [  Links  ]

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FREITAS, Luana Ferreira de; COSTA, Cynthia Beatrice. Machado contista em antologias de língua inglesa. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 35, n. 1, p. 69-85, jan-jun 2015. [  links  ]

JULL COSTA, Margaret. [Correspondência]. Destinatário: Flora Thomson-DeVeaux. 5 set 2018. E-mail pessoal. [  Links  ]

ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: Por uma poética da emulação. Trans. Flora Thomson-DeVeaux. East Lansing, MI: Imprensa da Universidade Estadual de Michigan, 2015. [  Links  ]

1 Dizem que a coleção de Jull Costa e Patterson inclui 12 traduções pioneiras; Acredito que isso não consiga explicar “O relógio de ouro” e “Ponto de vista”, que foram traduzidos por Juan LePuen no e-book 2014 Midnight Mass and Other Stories ( ASSIS, 2014 ).

2 Entre os desafios que os leigos podem não estar à espera dos tradutores de Machado de Assis, está decidindo qual roedor é mais engraçado: esquilos, esquilos, ratos ou esquilos? Além disso, seria biologicamente permissível trocar um roedor por um marsupial em nome de trazer a frase “poderoso caçador de gambás diante do Senhor” para o inglês?

3 A tradução de LePuen não indica qual texto fonte ele usou para suas traduções; essa decisão interpretativa pode ter sido informada pela versão da matéria fornecida em dominiopublico.gov.br, na qual a assinatura na nota é transcrita incorretamente como ” Tia Iaiá”.

Flora Thomson-Deveaux – É escritora e tradutora, doutora em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University. Ela publicou ensaios como “Nota sobre o calabouço” (piauí_140) e “#charlottesville” (piauí_132), e traduções, mais recentemente As Outras Raízes: Origens Errante de Pedro Meira Monteiro: Origens Errante nas Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda e os Impasses do Modernidade na Ibero-América (Notre Dame, 2017); A aquisição da política social por financeirização de Lena Lavinas: o paradoxo brasileiro (Palgrave, 2017); e Machado de Assis, de João Cezar de Castro Rocha: Por uma poética da emulação (Michigan, 2015). https://orcid.org/0000-0003-2634-7945. E-mail: [email protected].

Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais – SARAIVA; ZILBERMAN (MAEL)

SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina. Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos, 2019. 208 pp. Resenha de: KRAUSE, James Remington. Machado Assis Linha v.12 n.28 São Paulo Sept./Dec. 2019.

Organizado por duas machadianas renomadas, Juracy Assmann Saraiva e Regina Zilberman, Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais “é resultado de investigações dos membros dos grupos de pesquisa ‘Ficção de Machado de Assis: sistema poético e contexto'” (SARAIVA; ZILBERMAN, 2019, p. 7). Como explicam as organizadoras na introdução, o livro “atende a um amplo escopo de leitores, que encontram em Machado de Assis motivação para aprofundar seu conhecimento sobre a literatura e sobre os imponderáveis da natureza humana” (SARAIVA; ZILBERMAN, 2019, p. 12). Com esse fim, reúne-se uma dúzia de artigos de temas abrangentes de críticos já estabelecidos e emergentes. Apesar de seu enfoque, todo leitor crítico de Machado irá achar algo de grande valor nesse conjunto de ensaios.

No seu ensaio “O estranho narrador de Quincas Borba e o problema do realismo”, Antônio Marcos Vieira Sanseverino problematiza a “instabilidade de posição do narrador”. Por um lado, o narrador externo e heterodiegético tende a reforçar a “objetividade realista” oitocentista do cotidiano brasileiro, sob a ótica do período escravista (SANSEVERINO, 2019, p. 15). Por outro lado, ele “faz questão de interromper o fluxo narrativo para comentar, desqualificar [e] rebaixar” o protagonista Rubião (SANSEVERINO, 2019, p. 35). Através de uma análise nítida e meticulosa dos comentários sardônicos do narrador, Sanseverino (2019, p. 29; p. 36) demonstra que ele “é um cidadão culto, erudito, da elite letrada brasileira que olha para Rubião com desprezo”, e por extensão para o leitor, “mostrando que ambos são incapazes de compreender os acontecimentos narrados”.

Atílio Bergamini, em “Machado marmota: os primeiros anos do contista”, oferece uma análise dos primeiros contos de Machado “como um todo”. Ele focaliza em alguns topoi unificadores, como “a viagem, a negociação, a traição e o engano” nos seguintes contos: “Três tesouros perdidos”, “O país das quimeras: conto fantástico”, “Frei Simão”, “Virginius: narrativa de um advogado”, “O anjo das donzelas”, “Casada e viúva”, “Questão de vaidade” e “Confissões de uma viúva moça” (BERGAMINI, 2019, p. 50). Segundo Bergamini (2019, p. 53), ao longo dos anos, houve um deslocamento na perspectiva de Machado de um “encadeamento ‘externo’ de ações limitadas” a um “encadeamento ‘interno’, em que a consciência e personagens se torn[ou] o foco do interesse”. Outrossim, “o objeto dos modos de ler se tornou o sujeito da análise, com vistas a uma crítica do sujeito dos modos de ler” (BERGAMINI, 2019, p. 53). Desde o início é possível traçar esse percurso que iria caracterizar a ficção do período maduro do autor.

Em “Costura entre moda e literatura, em Dom Casmurro“, Cátia Silene Kupssinskü analisa a moda como mais um sistema simbólico de significação no romance machadiano. A moda parisiense na burguesia carioca oitocentista representava a modernização e civilização presentes do Brasil. Dentro desse sistema, os comentários de Bento Santiago sobre a moda servem predominantemente para assinalar diferenças de classe social, sobretudo dos personagens de José Dias e Capitu. Assim, Machado “oferece ao leitor a oportunidade de preencher lacunas propostas pelo jogo literário, questão que se dá por meio da apreensão dos significados sociais inerentes à moda” (KUPSSINSKÜ, 2019, p. 69).

Em seu ensaio “A mulher negra e a mestiça em obras de Machado de Assis”, Cláudia Santos Duarte e Marinês Andrea Kunz (2019, p. 75) analisam a presença de “mulheres negras escravizadas”, e até certo ponto “as mulheres livres das camadas mais pobres” no romance Esaú e Jacó, no poema “Sabina”, e nos contos “Mariana” e “O caso da vara”. Segundo afirmam as autoras, Machado “[descreve] suas personagens com seus anseios, suas paixões, as violações, a objetificação, as condutas e a situação periférica que instauraram na mulher negra uma história de abusos, de superação e, principalmente, de resistência” (DUARTE; KUNZ, 2019, p. 80).

Pisando em território familiar, Débora Bender analisa as alusões a peças teatrais em “Cultura dramática em Dom Casmurro“. Bender focaliza principalmente a intertextualidade entre Dom Casmurro e Fausto de Goethe e Otelo e Macbeth de Shakespeare, chamando o romance “um misto” dessas três peças, sobretudo na sua capacidade de “revelar e problematizar a essência humana” (BENDER, 2019, p. 93). No final das contas, a arte, para Machado, “tem a função de educar seus receptores e de denunciar mazelas sociais, daí ser um púlpito e uma tribuna” (BENDER, 2019, p. 93), o que sua inspiração em consagradas obras dramáticas providencia.

Em “‘A causa secreta’ sob a luz da semiótica: um estudo do limiar”, Ernani Mügge analisa o conto desde um olhar narratológico, segundo conceitos semióticos de Dino del Pino. Mügge divide o conto em três segmentos. Segmento 1, o limiar de entrada, consiste nos primeiros dois parágrafos do conto, nos quais se apresentam os personagens com um tom inquietante. O Núcleo Diegético apresenta-se em analepse, narrando os eventos desde os primeiros encontros entre Garcia e Fortunato até o clímax e o começo do dénouement, isso é, o momento de abertura do conto. Segmento 2, o limiar de saída, é o desfecho propriamente dito – a doença e morte de Maria Luísa, o beijo de Garcia no seu cadáver e os soluços sadomasoquistas de Fortunato. Neste enquadramento, Mügge analisa os posicionamentos relacionais entre sujeito e objeto através de estímulos distais e proximais. Uma vez que o narrador se situa fora do espaço-tempo diegético, o leitor também usufrui de uma focalização externa ao texto e assim presencia o universo artístico machadiano.

Juracy Assmann Saraiva estuda a importância de espaços festivos em “Reflexão estética e manifestações populares em Memórias póstumas de Brás Cubas“. Por um lado, os “leitores ilustrados”, com um conhecimento dos textos consagrados do cânone, podiam apreciar a intertextualidade que Machado tentava criar através das alusões (SARAIVA, 2019, p. 111). Por outro lado, os leitores contemporâneos de Machado também reconheciam as múltiplas referências a “aspectos da sociedade carioca” daquela época como “ritos de integração no espaço familiar, festas cívicas e religiosas, normas de ordenamento social, superstições ou crendices, a medicina popular [e] formas de lazer” (SARAIVA, 2019, p. 128; p. 112). Ao decifrarem as referências implícitas e explícitas aos dois âmbitos – o erudito e o cotidiano – os leitores, como assinala Saraiva (2019, p. 127), conseguem “compreender não só a metabiografia do autor-defunto, mas também aquilatar posicionamentos do escritor diante do texto que produz”.

Kenneth David Jackson (2019, p. 131), em “A miscelânea machadiana: os estranhos objetos e as criaturas das fábulas morais”, analisa como Machado segue e desenvolve a tradição de fabulista ao personificar uma porção de “objetos esdrúxulos”. Machado apresenta esses “agentes independentes e inusitados” como sinédoques ou metonímias, convertendo-os em fetiches que “afastam os tabus ao dizer de outra maneira o que não pode ser dito [e que] servem de referência irônica e satírica à melancólica humanidade” (JACKSON, 2019, p. 133). Os leitores que desenredam a “retórica de dissimulação e de substituição” conseguirão “perceb[er] e particip[ar] da estratégia sutil do jogo, armado por um autor que fala por inferências, subentendidos e alusões, inventando novos contextos para fábulas sobre o comportamento e a sabedoria humanos” (JACKSON, 2019, p. 140).

Marcelo Diego começa seu artigo, “A obra de arte total de Machado de Assis”, delineando as influências principais no desenvolvimento do romance brasileiro: o romance europeu setecentista, o romance-folhetim, as narrativas de viagem, os tratados naturais e a ópera. Diego (2019, p. 148) alega que a ópera europeia “teve um impacto maior sobre a literatura brasileira do que sobre a ópera brasileira”. Ele observa que “espacialmente, a cultura da ópera e a cultura do romance floresceram em um mesmo ambiente, junto a um mesmo público” (DIEGO, 2019, p. 149). O compositor alemão Richard Wagner desenvolveu seu conceito de ópera total que possibilitava a imersão total do espectador em todas as formas de arte (literatura, teatro, música, artes visuais). Do mesmo modo, Machado procurava uma totalidade mergulhadora no romance. Se Wagner “buscava o sentido de totalidade ao aproximar ao máximo o espectador da ação de suas óperas, Machado buscava esse mesmo sentido ao afastar o leitor da ação dos seus romances, chamando atenção para a natureza ficcional deles” (DIEGO, 2019, p. 149).

Em “‘Capítulo dos chapéus’: uma epopeia invertida”, Paul Dixon analisa várias alusões a poemas épicos em alguns dos mais célebres textos machadianos. Depois de apresentar exemplos do tropo machadiano (Quincas Borba e a OdisseiaDom Casmurro e Os Lusíadas), Dixon faz uma leitura comparada – mas, como o título indica, invertida – entre A Ilíada, o épico clássico de Homero, e o conto “Capítulo dos chapéus”. Ao trocar papéis e características dos personagens (Mariana por Aquiles e Conrado por Agamenão), Dixon oferece uma interpretação do “desfecho um pouco indefinido” que também é uma reviravolta. Em vez de ver Mariana como “uma pessoa débil, sem estômago para escaramuças na guerra dos sexos, [ela] é uma pessoa com uma consciência mais aguda das posições autênticas de uma pessoa justa e livre (DIXON, 2019, p. 159).

Em “‘A Sereníssima República’ – ética e política na última década da monarquia brasileira”, Regina Zilberman (2019, p. 164) alega que na década de 1880 foi através do conto que Machado divulgava “suas preocupações estéticas e políticas”. O conto, segundo uma nota do autor, aborda o tema de “nossas alternativas eleitorais […] através da forma alegórica” (ZILBERMAN, 2019, p. 164). Zilberman (2019, p. 164) explica que Machado se referia à Lei Saraiva que “instituiu a eleição direta para todos os cargos do império e o uso do título de eleitor, documento que habilitava à participação no pleito”. Para poder votar, ela explica, “cada cidadão deveria ser alfabetizado e comprovar” que possuía certo valor de renda líquida, “o que restringiu drasticamente o número de eleitores no país” (ZILBERMAN, 2019, p. 164-165). Se há uma moral na alegoria sobre a república das aranhas, segundo Zilberman (2019, p. 175), “não se trata de escolher entre monarquia e república, voto direto ou sorteio, mas de honestidade eleitoral, ausente nos pleitos”. Para Machado, “não era a forma de governo que fazia a diferença, e sim a ação das pessoas que almejavam o poder e utilizavam os mecanismos legais disponíveis para obtê-lo” (ZILBERMAN, 2019, p. 175).

Em “Também se goza por influxo dos lábios que narram: Dom Casmurro e o ensino de Literatura”, Tatiane Kaspari apresenta um roteiro de leitura do romance machadiano baseado nas teorias de recepção (Jauss e Iser) e performance (Zumthor). A abordagem pedagógica, alicerçando-se nos princípios de roteiros de leitura estabelecidos por Juracy Saraiva Assmann, apresenta três etapas metodológicas: “preparação para a recepção do texto; leitura compreensiva e interpretativa; transferência e aplicação de leitura” (KASPARI, 2019, p. 183). O roteiro de leitura é dividido em nove módulos com exercícios de pré-leitura, leitura e pós-leitura, acompanhados por “comentários ao professor”. Kaspari fornece uma análise cuidadosa do texto que será de utilidade para leitores experientes e iniciantes de igual forma.

Referências

BENDER, Débora. Cultura dramática em Dom Casmurro. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos, 2019. [ Links ]

BERGAMINI, Atílio. Machado marmota: os primeiros anos do contista. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DIEGO, Marcelo. A obra de arte total de Machado de Assis. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DIXON, Paul. ‘Capítulo dos chapéus’: uma epopeia invertida. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

DUARTE, Cláudia Santos; KUNZ, Marinês Andrea. A mulher negra e a mestiça em obras de Machado de Assis. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

JACKSON, Kenneth David. A miscelânea machadiana: os estranhos objetos e as criaturas das fábulas morais. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

KASPARI, Tatiane. Também se goza por influxo dos lábios que narram: Dom Casmurro e o ensino de Literatura. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

KUPSSINSKÜ, Cátia Silene. Costura entre moda e literatura, em Dom Casmurro. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

SANSEVERINO, Antônio Marcos Vieira. O estranho narrador de Quincas Borba e o problema do realismo. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

SARAIVA, Juracy Assmann. Reflexão estética e manifestações populares em Memórias póstumas de Brás Cubas. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

______; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos, 2019. [ Links ]

ZILBERMAN, Regina. ‘A Sereníssima República’ – ética e política na última década da monarquia brasileira. In: SARAIVA, Juracy Assmann; ZILBERMAN, Regina (Orgs). Machado de Assis em perspectiva: ficção, história e manifestações sociais. São Leopoldo: Oikos , 2019. [ Links ]

James Remington Kraus – É professor adjunto na Universidade Brigham Young e já publicou diversos artigos sobre a recepção de Machado de Assis e João Guimarães Rosa em tradução inglesa e também sobre o desenvolvimento do conto fantástico brasileiro. https://orcid.org/0000-0001-8129-5389. E-mail: [email protected].

Machado de Assis: permanências – GUIMARÃES; SENNA (MAEL)

GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de. Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras, 2018. 324 pp. Resenha de: SALOMÃO NETTO, Sônia. Machado Assis Linha v.12 n.27 São Paulo May/Aug. 2019  Epub July 29, 2019.

Machado de Assis: permanências é uma abrangente coletânea de dezessete ensaios, organizada por Hélio de Seixas Guimarães e Marta de Senna, estudiosos machadianos e promotores de algumas importantes iniciativas, como a revista eletrônica Machado de Assis em linha, da qual são editores, e Machado de Assis em hipertexto, com o patrocínio da Casa de Rui Barbosa.

É impossível, no espaço de uma resenha, comentar tal número de trabalhos especializados com a profundidade que merecem. Vamos buscar, por isso, ressaltar algumas linhas que sobressaem no todo, evitando a mera descrição dos estudos. Como sugere o título, a coletânea trabalha com a ideia da “permanência”, atualizando os dois sentidos principais do termo: o de legado ou transmissão e o de presença ou continuidade no que se refere à obra machadiana.

No eixo do legado as abordagens enfatizam o tema da memória: da fruição à incorporação do cânone literário até a ressonância, conforme nos indica Paul Dixon (2018, p. 239) a partir de uma análise do narrador problemático em Machado e Wood Allen, o qual precisa o conceito de permanência: “It’s not that it influenced me; it resonated with me”. No diapasão memorialístico do legado, portanto, Ana Maria Machado – leitora e escritora – vai se encarregar de mostrar-nos como caiu “na copa do chapéu de um homem que passava”, eficaz início machadiano de um conto despretensiosamente denominado “História comum”, de 1883, utilizado com efeito duplo no artigo que comentamos. Os fios da intertextualidade, ou da memória literária, entrelaçam-se com muitas outras obras pertencentes a uma tão variada quanto harmônica linhagem da qual nos interessa pinçar a relação de Capitu com a Emília de Monteiro Lobato ou com a “mulher do tenente francês”, de John Fowles, para chegarmos a A audácia desta mulher ou a Infâmia, mas também a muitos dos personagens femininos corajosos da literatura de Ana Maria Machado para leitores mirins.

Já Alfredo Bosi, em “Augusto Meyer: crítica machadiana e memória”, contextualiza o discurso do crítico gaúcho, revisitando um dos mais agudos intérpretes da máscara machadiana transposta a seus personagens. Vai buscar, desse modo, o homem do subterrâneo no próprio processo memorialístico do grande crítico para comentar a diferença da fruição da memória da infância – lírica em Meyer – e praticamente ausente em Machado de Assis, autor guiado por uma “lucidez extrema” que Augusto Meyer, com suma penetração e perspicácia, revela como uma das molas do niilismo machadiano. Para Bosi, a distância existencial entre os dois escritores propiciou a fecunda leitura crítica.

Até aqui o legado é fruição e ressonância. Em Hélder Macedo ele será um pouco mais, já que programaticamente trabalhado como cânone, como ilustra a análise de Cristina Cerdeira sobre Pedro e Paula, em que a gêmea, agora uma mulher, consegue ter voz própria para escolher o seu destino e narrar a sua história, ao contrário não só de Capitu, mas também da Flora amada por ambos os gêmeos de Esaú e Jacó. As “cousas futuras” vão se realizar numa outra perspectiva histórica, num outro contexto que, inclusive, joga luz sobre a passagem da Monarquia para a República, no Brasil, bem exemplificada pelo falso dilema da tabuleta do Custódio e da impossibilidade de escolha dos gêmeos entre os partidos liberal e conservador.

Lúcia Helena, em “‘Somente a antropofagia nos une’: Machado de Assis e Oswald de Andrade. Uma lição levada adiante”, apresentará uma síntese dos diversos mecanismos da narrativa machadiana a partir do tema da ruína e da corrosão, principalmente, chamando a atenção para o fato de que estamos relendo esta obra no âmbito do capitalismo globalizado em que se delineiam as questões das fronteiras, dos limites e das passagens. Oswald de Andrade, talvez com menor densidade reflexiva, seguiu o mestre na denúncia etnocêntrica, criando a riquíssima metáfora antropofágica que, como eu também penso, o ruminador Machado já havia preparado no final do século precedente.

Hélio de Seixas Guimarães e Pedro Meira Monteiro problematizam a presença machadiana a partir de leituras pontuais do debate modernista. Guimarães, no seu “Presença inquietante: sobre a incorporação de Machado de Assis ao cânone literário brasileiro (1908-1958)”, reconstrói o percurso da absorção da herança machadiana – do encômio fúnebre, realizado na Academia Brasileira de Letras por Rui Barbosa, às primeiras comemorações acadêmicas, logo a seguir, por conta de Euclides da Cunha e Olavo Bilac -, aprofundando um dos temas principais do debate na correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade: a controvérsia sobre o conceito de tradição na literatura brasileira. Guimarães indica as ambiguidades de Mário – com o seu Machado mais para “admirar” do que para “amar” – e a evolução de Drummond, considerado o principal herdeiro do legado machadiano. De fato, poderíamos dizer que só o filho que refaz a viagem do pai, como Telêmaco na Odisseia, é digno da sua herança. Já Meira Monteiro, no mesmo diapasão, – “Machado de Assis: uma flor desajeitada no jardim modernista”  lembra a questão das “raízes do Brasil”, na cabeça da geração de 1930, cujo ímpeto construtivo buscava abandonar o passado em prol de um futuro vigorosamente forjado. O que fazer, então com esta “flor de estufa” que era Machado de Assis? Afinal, nas palavras de Mário de Andrade, ele “não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo”. Seguindo, desta vez, a evolução do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Meira Monteiro sublinha como Machado passa da imagem de um escritor isolado, diverso, uma “estátua incômoda”, ao de esfinge. Mas aqui eu perguntaria: podemos considerar verdadeira a ideia de um Machado estático, híbrido e mero contemplador da realidade presente, como avaliavam os modernistas da primeira hora? O estudo de Meira Monteiro nos auxilia nesta resposta.

Outros dois artigos que realizam importantes mergulhos na correspondência e, portanto, na memória “privada” de uma época, são o de Marisa Lajolo (“Monteiro Lobato: assíduo, dedicado e amoroso leitor de Machado de Assis”) e o de Sandra Guardini Vasconcelos (“Rosa, leitor de Machado”). Marisa Lajolo revela o percurso de Monteiro Lobato ao longo das avaliações machadianas, principalmente em cartas a Godofredo Rangel, seu fiel amigo. O estusiasmo com a filiação machadiana dos autores publicados pelo Lobato editor se estende a Leo Vaz (O professor Jeremias, 1920) e ao próprio Godofredo Rangel (Vida ociosa, 1917). Como revela a autora, no ano da comemoração do centenário de nascimento de Machado, 1939, Monteiro Lobato é convidado a escrever sobre o escritor carioca no jornal argentino La Prensa. O artigo ressalta a origem humilde, afro-brasileira, e uma certa “predestinação” que se tempera pelo esforço pessoal e pelo autodidatismo. Mas os comentários lobatianos também revelam o cuidado com a institucionalização literária, marco que iguala os dois autores, grandes profissionais da escrita, através de jornais, do teatro, da tradução. Machado cria a Academia Brasileira de Letras; Lobato compra a Revista do Brasil e a seguir funda a Companhia Editora Nacional. Quanto ao estudo de Sandra Guardini, temos a confirmação do trabalho de bastidores que o autor de Grande sertão: veredas realizava em sua própria obra e que já conhecíamos da correspondência com os seus tradutores. A estratégia se estende agora ao exame realizado sobre as obras dos grandes autores que o precederam. Analisando o Fundo João Guimarães Rosa do arquivo do IEB-USP, Guardini nos revela que Rosa, por exemplo, estava forjando o seu estilo, a sua língua, o seu projeto, anotando tudo o que poderia servir-lhe. No Diário de Hamburgo, escrito pelo então jovem diplomata, Machado de Assis parece ser o modelo a ser desenhado, desafiado e superado. Curiosa é a análise aparentemente apressada da obra machadiana que surge numa espécie de “lista” a ser estudada.

A outra importante presença machadiana está no teatro, ao qual Machado se dedicou durante muitos anos como dramaturgo e crítico teatral, além de ter escrito óperas e ter seguido o rico movimento operístico do seu tempo. Na verdade, o teatro está presente na sua poética e integra o seu cânone estilístico. No entanto, essa parte de sua obra foi por muito tempo relegada a produção menor. João Roberto Faria (Machado de Assis encenado por Ziembinski e Ruggero Jacobbi) recupera a história desse juízo crítico negativo, que tem como origem a opinião do amigo Quintino Bocaiuva em carta a Machado. Faria centra-se na encenação de Lição de botânica – realizada por Ruggero Jacobbi em São Paulo, em 1954, e a seguir no Rio de Janeiro, em 1956 – e na de O protocolo, em 1958, com direção de Ziembinski, no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, recolhendo a crítica positiva e mais articulada em torno dessas duas montagens. No âmbito da modernização do teatro brasileiro, os dramaturgos e cenógrafos estrangeiros – italianos na sua maior parte -, homens de teatro que eram, souberam apreciar o estilo enxuto de Machado e a sua filosofia teatral inspirada em Musset. Nesta perspectiva, Machado é considerado por especialistas, inclusive pelos críticos brasileiros Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado e Bárbara Heliodora, entre outros, que não comparam as suas peças com os romances. Cabe acrescentar, à longa lista de preciosas citações que nos traz Faria, a apreciação consagradora que Ruggero Jacobbi (1961, p. 74-76) nos deixa no seu Teatro in Brasile sobre Machado.

A busca da permanência machadiana será realizada também através de um trabalho comparativo, em que Marta de Senna (“Dom Casmurro e São Bernardo: vozes na solidão”) aprofunda as semelhanças entre os dois romances segundo a situação do narrador memorialista que escreve a partir da própria ruína e solidão. Os narradores realizam, segundo a autora, uma “tentativa de entender, ao narrar, aquilo que não conseguiram compreender ao viver” (SENNA, 2018, p. 228). Simultaneamente, tratando-se do específico terreno memorialístico, em que a realidade do acontecido se mistura com a subjetividade do vivenciado, podem escolher, ainda por cima, o que e como narrar. Não resta dúvida de que a memória é mais psicossocial em Machado e mais tragicamente sociológica em Graciliano. De qualquer modo, e esta parece ser a conclusão de Marta de Senna, tanto Capitu quanto Madalena eram luvas muito finas para as mãos desajeitadas de Bentinho e Paulo Honório.

Nesta linha comparativa coloca-se também o estudo de Lúcia Granja. No seu caso, trata-se de uma investigação dos mecanismos de poder nas relações interpessoais e, mais especificamente, do processo de silenciamento feminino em Dom Casmurro e em Um copo de cólera, de Raduan Nassar, a partir da relação erótico-amorosa. Naturalmente, esses mecanismos são reveladores de um contexto histórico-social específico que a autora não deixa de indicar na sua análise. Em relação aos mecanismos de representação e às pulsões que se expressam através de uma forma narrativa específica, os trabalhos de Bluma Waddington Vilar (“O caloteiro e o cobrador ou como deixar de pagar segundo Machado de Assis e Rubem Fonseca”) e de Marcelo Diego (“Machado e Nelson, matrizes da perversão”) podem ser associados ao de Lúcia Granja e aos demais artigos que se inscrevem na linha comparativa. Assim, a relação entre moral e dívida, através da obra de Machado de Assis e de Rubem Fonseca, ganham espaço e jogam luz recíproca sobre o problema da dívida social. Tema, aliás, de grande interesse no mundo globalizado de hoje, cujas franjas de algodão da pobreza apresentam uma conta muito alta a ser paga – fome e miséria, imigração desordenada, guerrilhas e terrorismo – em relação ao manto de veludo do progresso e da acumulação de capital. Nesse sentido, o grande moralista e o estupendo investigador das causas secretas que foi Machado de Assis se coaduna com outro grande inquiridor ou delegado das causas perdidas, dos crimes e da marginalidade urbana que é Rubem Fonseca no seu conto-paradigma: “O cobrador”.

Já Marcelo Diego, partindo do tema da perversão, investiga em Nelson Rodrigues as raízes submersas na obra do Bruxo do Cosme Velho; principalmente em contos como “A causa secreta”, “Singular ocorrência”, “O enfermeiro”, “O caso da vara”, “Conto alexandrino” e “Pai contra mãe”. O universo micropolítico de Nelson Rodrigues, concentrando-se na família, por sua vez, descreve os mecanismos macropolíticos da sociedade brasileira das décadas de 1950-1960, numa implosão de culpa, mutilação, crime ou suicídio. Ambos os autores souberam captar as dinâmicas intestinas de uma cidade, o Rio de Janeiro, a partir das nuances, das falhas e das usuras que escondem o bas fond de uma cidade. Na obra de Machado de Assis aparecem, como bem indica o autor, na casinha de Dona Plácida na Gamboa, ou na rótula de Genoveva no conto “Noite de almirante”. Mas há muitas outras, como a loja de Marcela, corroída pelas bexigas, em plena rua dos Ourives, no Memórias póstumas. Poderíamos aqui chamar em causa também o tema do grotesco na literatura brasileira urbana.

Outra contribuição do volume é a de Regina Zilberman. Na linha comparatista que estamos indicando, seu texto apresenta sugestiva possibilidade de leitura, a partir da ideia de “plágio antecipado” de Pierre Bayard. Através de um articulado percurso que envolve A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, e Memórias póstumas de Brás Cubas, a autora mostra como ambos os romances lidam com a tradição e o próprio modo de narrar. Se o modelo bíblico nutriu as Memórias póstumas, este joga luz sobre a narrativa de Scliar, e ambos discutem literariamente o problema da autoria, através de uma hipótese do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C..

Na mesma linha, ainda, o trabalho de Ieda Lebensztayn, desta vez sobre um herdeiro falido: Léo Vaz (O professor Jeremias), ao qual Monteiro Lobato vaticinara um lugar futuro na literatura brasileira. Curiosamente, o próprio Machado que o sufocou – com a peja da imitação – o está trazendo à tona, no âmbito de uma necessária revisão crítica de estereótipos tantas vezes repetidos e que o trabalho de Ieda Lebensztayn vem resgatar e contextualizar.

Que homenagem maior poderia ser dedicada ao legado machadiano, no seu duplo sentido de transmissão e permanência, senão a experiência da reescrita de “Missa do galo” (Missa do galo – variações sobre o mesmo tema, 1977) por um grupo de peso capitaneado por Osman Lins? Juracy Assman Saraiva, no seu “Leitores nas margens de ‘Missa do Galo'”, repercorre as várias versões que, em última análise, são fruto de leituras provocadas por um conto voluntariamente ambíguo como os olhos de Capitu.

Como balanço final, a coletânea cumpre o seu objetivo, mobilizando um grupo composto por variadas formações críticas e profissionais. Todos nós, e aqui me incluo, lidamos com um autor que, para formar o seu próprio cânone, não poupou esforços nem leituras (SALOMÃO, 2016). Um autor que construiu e fecundou mais do que os modernistas da primeira hora pudessem admitir e que, como pensava de Garrett, “só por si valia uma literatura” (ASSIS, 1979, p. 931).

Referências

ASSIS, Machado de. Obras completas. Organização de A. Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1979. v. 3. [ Links ]

DIXON, Paul. Machado de Assis, Wood Allen e o narrador problemático. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Orgs.). Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras, 2018. p. 238-252. [ Links ]

JACOBBI, Ruggero. Teatro in Brasile. Bolonha: Cappelli Editore, 1961. [ Links ]

SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: EdUerj, 2016. [ Links ]

SENNA, Marta de. Dom Casmurro e São Bernardo: vozes na solidão. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Orgs.). Machado de Assis: permanências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7Letras , 2018. p. 225-237. [ Links ]

Sonia Salomão Netto – É ex-professora da UFRJ e da UERJ, ensina atualmente na Sapienza, Universidade de Roma, e já publicou diversos ensaios e estudos sobre a história da língua portuguesa, entre os quais, os volumes Da palavra ao texto, estudos de linguística, filologia, literatura (Viterbo, Sette Città, 2007, com reedições) e A língua portuguesa nos seus percursos multiculturais (Roma, Nuova Cultura, 2012). Além disso, coordenou a tradução de Quincas Borba, de Machado de Assis (Viterbo, Sette Città, 2009), e integra o conselho editorial da Coleção Brasil-Itália, da Editora da UERJ. http://orcid.org/0000-0002-2929-6701. E-mail: [email protected]

Epígrafes e diálogos na poesia de Machado de Assis – MIASSO (MAEL)

MIASSO, Audrey Ludmilla do Nascimento. Epígrafes e diálogos na poesia de Machado de Assis. São Carlos: EdUFSCar, 2017. 505 pp. Resenha de: RIBAS, Maria Cristina Cardoso. Machado Assis Linha v.12 n.26 São Paulo Jan./Apr. 2019.

O título deste livro, circunscrito a epígrafes machadianas, pode suscitar uma curiosidade mais imediata: como epígrafes, tidas pelo senso comum (do qual, em alguns momentos, somos todos partícipes) como adorno ou ateste de erudição, justificam a existência de um trabalho dessas proporções?

A questão provavelmente advém de uma tendência contemporânea: o automatismo de determinados olhares compromete a percepção das sutilezas discursivas, o que torna quase invisível – a este modo de ver – a presença de textualidades interligadas e justapostas, tidas como acessório do elemento principal. Neste distúrbio de refração ocular, utilizando lentes adequadas para refocalizar o objeto e neutralizar a miopia discursiva, tenazmente instalada no delicado espaço entre a citação e o poema, lado à “paixão pelo gesto arcaico de recortar-colar” (COMPAGNON, 1996, p. 12), Audrey Ludmilla do Nascimento Miasso percebeu a distorção do foco, traduzida em aparente desinteresse, a qual redundou na escassez de estudos sobre o tema.

A pesquisadora estuda o projeto poético machadiano desde 2008, tendo publicado vários trabalhos sobre o tema (MIASSO, 2016). Sua dissertação de mestrado – defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura (PPGLit) da UFSCar e orientada por Wilton Marques, professor do Departamento de Letras dessa Universidade -, foi transformada, com apoio da Fapesp, no livro que ora temos em mãos.

Na apresentação do volume, Hélio de Seixas Guimarães refere-se à leitura em espiral das epígrafes machadianas, imagem bastante adequada ao livro de Audrey, justamente por sinalizar a importância da dinâmica de um retorno que, passando pelos mesmos lugares, vai também além deles, formulando novas possibilidades significativas. Para o crítico e pesquisador da USP, a autora busca “examinar um problema aparentemente periférico e menor em seus mais variados aspectos, ampliando seu alcance e tirando dele consequências que extrapolam em muito a delimitação de seu ponto de partida” (GUIMARÃES, 2017, p. 11). E mais: diante da constatação de que as epígrafes vão diminuindo ao longo da obra poética, Hélio Guimarães retoma a imagem da autora em sua hipótese: como se elas escorressem pelos versos e estrofes, misturando-se a elas.

Vale dizer que o livro de Audrey sobre as epígrafes machadianas traz também uma epígrafe quase autoexplicativa, de Jean Michel Massa (1971) – forte presença no livro organizado por Jobim (MASSA, 2001) sobre a biblioteca de Machado de Assis. Pinçada com precisão pela autora, a citação de Massa ilustra a estratégia de citação machadiana, o seu modo de “recorta-cola” tão milimetricamente descrito no livro. Escrita encadeada, a autora trabalha as epígrafes de Machado formulando uma composição epigráfica, desenhando as citações dentro das citações, trazendo à cena a montagem da montagem de Machado, hábil operador que copia, refaz, suprime, traduz, deforma, esquece, modifica, ilumina, erra.

Passando a apresentação espiralada de Hélio Guimarães e a epígrafe de Massa, adentramos o primeiro capítulo. Em tom de convite, a autora nos convoca: “De início, vamos ao encontro de Machado adolescente, contando com seus quinze anos e já poeta” (MIASSO, 2017, p. 37). E segue historiando as primeiras publicações, inclusive aquelas anteriores à fama do bruxo do Cosme Velho e ao seu (re)conhecimento pelo público. Gentilmente, a autora vai pincelando informações consensuais, como o dado de que o periódico de Paula Brito fora o principal meio em que ele publicaria seus versos até 1858. Lançando mão do “nós” – “vamos”… “notamos”… salta aos “nossos” olhos… – na autorreferência da própria voz, vai obtendo um efeito inclusivo e afeito ao leitor, dispersando informações em doses homeopáticas. Curiosamente, a dispersão dos dados atravessa a organização sequencial dos poemas, mobilizando intertextos que se justapõem, segundo a acurada pesquisa da autora, no modo composicional das epígrafes machadianas.

Dentre os inúmeros exemplos que se desdobram ao longo dos capítulos, vão sendo compartilhados os efeitos dessas epígrafes sobre a leitura, inclusive quando rareiam ou deixam de aparecer. Pelas minuciosas descrições apresentadas, não soam como aleatórias. Ao falar de Crisálidas, Audrey ressalta a epígrafe traduzida para o português e extraída das Méditations poétiques (1820), de Alphonse de Lamartine, ainda que, conforme a autora, no Inventário proposto por Jean-Michel Massa não seja citada a obra de Lamartine. A primeira conclusão resultante neste trecho é o efeito da tomada de um poeta romântico francês. Nas palavras da autora, “[…] alerta o leitor de qual será a visão que o jovem crítico apresentará da poesia”. Citando aqui a epígrafe, antecedida pela questão “o que é a poesia?”, lê-se: “uma palavra que o anjo das harmonias segreda no mais íntimo d’alma” (MIASSO, 2017, p. 39).

Nas linhas seguintes (MIASSO, 2017, p. 41), ela faz reverberar, no leitor, o seu propósito: “Tentar encontrar aquilo que saltava aos olhos de Machado no início de sua carreira”. Ao mesmo tempo, vai instalando a dúvida na estratégia machadiana de captação das epígrafes: a proveniência é direto da fonte, ou colhida à epígrafe de outrem, citação da citação, fragmento em segundo ou terceiro grau – como, por exemplo, relata acerca dos versos de Dumas pai no poema “Vem!” (publicado em O Paraíba, 11/4/1858): “se teriam sido retirados de sua fonte primeira, a peça ‘Teresa’ (1832), ou teriam sido reaproveitados da epígrafe de Álvares de Azevedo” (MIASSO, 2017, p. 44). Seguem informações minuciosas acerca deste procedimento – que a autora chama, sem lastro pejorativo, na expressão de Genette (2009), de “aproveitamento de segunda mão” -, bem como de suas repercussões no sentido e no teor composicional dos versos. Deste exemplo bastante detalhado, algumas conclusões merecem realce. Nas palavras da autora: 1. Decorre o possível equívoco de pensar “que a epígrafe funciona da mesma maneira nos diferentes poemas que dela se apropriam”; 2. Urge, portanto, o entendimento de que “A epígrafe não é um corpo extático e não tem seu sentido definido”, mas [a autora cita Compagnon (1996, p. 48)], “muda de sentido segundo a força que se apropria dela: ela tem tantos sentidos quantas são as forças suscetíveis de se apoderar dela” (MIASSO, 2017, p. 45). Com isso, Audrey ativa o diálogo intertextual e intersubjetivo da grafia poética, ressaltando a potência não de sua precisão, mas de sua instabilidade e incompletude.

Ao mencionar outro poema dentre os dispersos que escolhe destacar – “Teu canto” (publicado em A Marmota Fluminense, 15/7/1855) -, a pesquisadora ressalta o fato de a epígrafe ser assinada “pelo próprio Machado”. Em sua análise, conclui que a predileção machadiana em fase inicial de carreira poderia ser pela própria epígrafe, em lugar de considerá-la apenas um meio para reafirmar suas leituras; ou seja, reitera o procedimento como tática para dar pistas ao leitor sobre o que viria ler e produzir. E arremata seu entendimento, aproximando-o do que Genette (2009) chamou de efeito-epígrafe.

A seguir, e em vários outros momentos, a autora sinaliza o quanto as epígrafes sugerem a conexão dos primeiros poemas machadianos com o romantismo francês, relatando que, até 1864, algumas delas são colhidas a Victor Hugo, Alexandre Dumas, Alfred Musset, Gautier e La Rochefoucauld; com o romantismo português de Almeida Garrett e o romantismo brasileiro de Magalhães, Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo. Importante lembrar as fortes conexões anteriores ao Romantismo como a ligação visceral com Shakespeare, com a Bíblia – Machado era fã do Eclesiastes – e, em menor escala, com textos históricos dos livros da Crônica da Companhia de Jesus e da História dos índios cavaleiros.

A autora traz, ainda, o apoio do discurso cronístico machadiano, sobretudo a parte publicada em A SemanaO Cruzeiro e A Marmota. Interessante observar que Machado imita e ressignifica passagens e imagens bíblicas presentes no imaginário ocidental, através da aparente repetição da fonte. A diferença se instala justamente na repetição do evento ou forma imagética, ancorada na suposta fidelidade que a crescente respeitabilidade conferida a Machado garantia junto ao público leitor.

A autora investe tenazmente nas pistas que desentranha às epígrafes machadianas e as rastreia com precisão de escavadora. Movimento propulsor da pesquisa, no início ela aposta na veracidade dos indícios. Sabiamente abre, porém, espaço para a ambiguidade. Onde há fumaça pode haver não apenas fogo, mas lentes embaçadas que impedem a percepção de que indícios podem representar despistes ou funcionar como deflagradores de um turning point na leitura. Machado trabalhou as epígrafes e as respectivas referências com omissão, erro ou detalhamento nem sempre explícitos dos lugares de captação.

Nas palavras da autora, sobre a leitura dos poemas epigrafados incide um “momento de interpretação”, não bastando a percepção da intertextualidade ou o reconhecimento da fonte. Com esta perspectiva, as epígrafes se desdobram e deixam ver o lado informativo sobre os contextos de produção, os dados objetivos circunscritos à publicação pelas editoras, os contratos materiais e pactos de leitura implícitos assinados por Machado, os projetos dos poemas, e a problematização de hipóteses e efeitos de sentido que interseccionam tais esferas no momento da leitura. Por um viés visto até então como menor, o trabalho de Audrey é primoroso e acessa, pelo detalhe, no desfiar da bainha, a complexidade da escrita de Machado em suas eternas e humanas contradi(c)ções. “As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão […]” (ASSIS, 1884, p. 15). Este livro abre, pelas bordas, um espaço interessantíssimo para os leitores e estudiosos de Machado. Vale a convocação.

Referências

ASSIS, Machado de. A igreja do diabo. In: ______. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. [ Links ]

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: UFMG, 1996. [ Links ]

GENETTE, Gérard. Epígrafes. In: ______. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. [ Links ]

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Apresentação. In: MIASSO, Audrey Ludmilla do Nascimento . Epígrafes e diálogos na poesia de Machado de Assis. São Carlos: EdUFSCar, 2017. [ Links ]

MASSA, Jean Michel. A biblioteca de Machado de Assis: quarenta anos depois. In: JOBIM, José Luís. A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2001. p. 21-91. [ Links ]

______. A juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. [ Links ]

MIASSO, Audrey Ludmilla do Nascimento . Epígrafes e diálogos na poesia de Machado de Assis. São Carlos: EdUFSCar , 2017. [ Links ]

______. O diálogo bíblico em “A cristã nova”, de Machado de Assis. In: ALMEIDA, Kenia Maria de; PEREIRA, João Paulo; SILVA, Ayub Glenda (Orgs.). A poesia e a bíblia: entre a reverência e a paródia. Uberlândia: Edibrás, 2016. [ Links ]

Recebido: 25 de Janeiro de 2019; Aceito: 01 de Março de 2019

Maria Cristina Cardoso Ribas – É Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Procientista Uerj/Faperj e membro efetivo do Programa de Pós-graduação em Letras no Instituto de Letras, Uerj e do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Formação de Professores da Uerj. A área de concentração é Literatura, Teoria e História e as linhas de pesquisa são Teoria Literária, Literatura Comparada, Literatura Brasileira e Estudos de Intermidialidade. Concluiu o Pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense. Publicou, entre outros trabalhos, Onze anos de correspondência: os machados de Assis, pela 7Letras e PUC-Rio; “Re-reading Literature in Contemporary Cinema: Intermediality in Machado de Assis’ Story “Father Against Mother” (1906) and Sergio Bianchi’s film How much is it worth or is it per kilo?” (In: Brigitte Le Juez; Nina Shiel; Mark Wallace (Orgs.). (Re)writing without borders: contemporary intermedial perspectives on literature and the visual arts, 2005); “O tempo na narrativa machadiana ou quando a ficção refaz a ciência” (Rivista di Studi Portoghesi e Brasiliani); Estudo a O Alienista: a ciência da loucura e a loucura da ciência, pela EdUerj. E-mail: [email protected].

Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção – GRANJA (MAEL)

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. 111 pp. Resenha de: SALA, Thiago Mio. Machado em meio à civilização do jornal. Machado Assis Linha v.12 n.26 São Paulo Jan./Apr. 2019.

Em Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção, Lúcia Granja retoma alguns de seus trabalhos relativos à produção cronística e ficcional do célebre autor de Quincas Borba e à história literária do século XIX, mas, diferentemente do que se poderia pensar num primeiro momento, não se trata da simples compilação de artigos, capítulos de livros ou trechos de teses. A obra consiste, na verdade, no reexame da produção recente da distinta pesquisadora à luz de novas ideias, reflexões e, sobretudo, de um pressuposto que confere ao livro em questão um sabor original quando se consideram as relações entre letras e comunicação: o papel do suporte editorial na produção do sentido. Em conformidade com tal perspectiva, Lúcia Granja procura examinar o fazer jornalístico e literário de Machado tendo em vista, para além da dimensão de artefato verbal do texto, a forma midiática na qual o escritor se fixou e se manteve durante grande parte de sua trajetória, isto é, o jornal.

Matriz importante para tal proposta analítica são os trabalhos do historiador francês Roger Chartier, com destaque para os estudos por ele conduzidos em torno do conceito de “mediação editorial”. Segundo Chartier (2002, p. 61-62), os escritos não existiriam “fora dos suportes materiais por meio dos quais foram veiculados, pois a construção de seus significados estaria diretamente ligada às formas que permitiriam sua leitura, audição ou visão”. Em outras palavras, para além do aparente truísmo, aquilo que costuma ser tratado como exterior e apartado da história do livro e da literatura, isto é, a análise das condições técnicas e materiais de produção ou de difusão dos objetos impressos e a dos conteúdos que eles transmitem (CHARTIER, 2002, p. 62), ganha importância quando se tem em vista, em perspectiva ampliada, os efeitos de sentido produzidos por um texto. Seguindo os passos de Chartier, mas caminhando por conta própria e com desenvoltura pela produção de Machado e por nosso jornalismo oitocentista, Granja se detém no exame das formas particulares e sucessivas de transmissão dos textos do autor em oposição a uma leitura abstrata, que desconsidera a poética do suporte periódico.

Todavia, para além de uma compreensão reduzida do papel da imprensa diária ou de uma descrição instrumental do espaço ocupado pelo texto machadiano nas diferentes folhas, Lúcia procura entender o suporte jornalístico enquanto peça-chave de um sistema midiático e civilizacional que floresce no século XIX. Para tanto, vale-se, em chave crítica, da produção de uma plêiade de autores franceses dedicados ao estudo do periódico do Oitocentos em conformidade com tal enquadramento: Dominique Kalifa, Marie-Ève Thérenty, Allain Vaillant e Marie-Françoise Melmoux-Montaubin, entre outros. Em linhas gerais, tais pesquisadores procuram examinar o intercâmbio entre formas literárias e jornalísticas, bem como o novo regime de comunicação instituído: se o jornal, por um lado, emprestava à literatura atributos como o ritmo da vida moderna, coletivização da escrita (numa única página de jornal passam a conviver diferentes rubricas com espaços delimitados), remissões internas e externas, fragmentação, periodicidade, ficção da atualidade (assuntos na ordem do dia passam a oferecer temas para a produção artística) etc., por outro, recebia dela esquemas narrativos e retóricos que permitiam seu desenvolvimento.

Mais especificamente, observa-se que o livro se divide em apenas duas partes. Na primeira, Granja trata, sobretudo, das características plásticas e estruturais dos rodapés dos jornais no século XIX, promovendo o devido contraponto entre Brasil e França. Ao abordar a crônica machadiana e, em chave comparatista, a produção folhetinesca do escritor francês Théophile Gautier, a pesquisadora examina não apenas a textualidade das realizações de ambos os autores, mas a materialidade destas, ou seja, o fato de elas terem sido publicadas em suportes editoriais e em enquadramentos históricos específicos. Assim, sem prescindir da análise intrínseca (linguística e literária) dos escritos de Machado e Gautier, também ganha destaque, na pena da pesquisadora, o estudo dos significados a eles agregados no processo de sua transmissão e difusão. Além disso, ela ressalta como os escritores-jornalistas em questão, enquanto artistas dotados de consciência tipográfica e concepção metarreflexiva do texto, integraram a lógica da materialidade do jornal na própria construção de suas obras.

Estabelecidas tais bases, a segunda parte do livro dedica-se a uma análise mais vertical de um corpus reduzido, com destaque para o exame de um conto, uma crônica e aspectos de um romance. Trata-se, mais especificamente, de “Conto alexandrino” (publicado de início em 13 de maio de 1883, na Gazeta de Notícias, e, um ano depois, recolhido em Histórias sem data); crônica de 7 de julho de 1878 (estampada na série “Notas semanais” do jornal O Cruzeiro, na qual ganha atenção o caso bizarro de um homem que teria expelido um feto natimorto); e Memórias póstumas de Brás Cubas. Em chave metonímica, tal conjunto cuidadosamente selecionado permite divisar com mais clareza o modo como “as revoluções ideológicas e reconfigurações sociais operadas pelo jornal em nível mundial teriam resultado em transformações estéticas para um escritor carioca daquele século, afastado dez mil quilômetros da ‘capital do século XIX’, mas completamente inserido naquela civilização do jornal e do impresso” (GRANJA, 2018, p. 15).

De acordo com tal perspectiva, que toma as folhas periódicas não apenas como espelhos do mundo exterior, mas como espécies de substitutos dele, Lúcia procura entender os cruzamentos entre realidade (recriada pelo imaginário jornalístico) e ficção na prosa machadiana. Assim, os movimentos trepidantes da modernidade espacializados nas páginas dos jornais se tornam motivos da própria produção literária de Machado. Nesse processo, ao recuperar a divisão e a disposição da primeira versão de Memórias póstumas de Brás Cubas publicada em periódico, a autora revela a forma por meio da qual o escritor desconstrói os modos de leitura ligados ao romance-folhetim. Prosseguindo na análise da correspondência entre os efeitos produzidos pelo referido romance em jornal e no livro, Granja (2018, p. 99) caracteriza a novidade literária da narrativa concebida por um defunto autor como “uma transposição de uma manobra retórica da crônica jornalística e da própria poética da escrita dos jornais”, elevando o jornal a protagonista da originalidade e do impacto da referida obra que ganhará perenidade no suporte livresco.

Para a construção de tal percurso argumentativo em torno do papel do suporte e do fazer jornalístico-literário de Machado, Granja se vale não só de seu trabalho como professora e pesquisadora, mas também como editora. Em parceria, respectivamente, com Jefferson Cano e com John Gledson, ela esteve à frente da edição anotada, em livro, das séries cronísticas Comentários da semana e Notas semanais, ambos os volumes publicados pela editora da Unicamp em 2008. Tais experiências lhe possibilitaram o contato íntimo com o texto de Machado ambientado em seu suporte primeiro, bem como lhe conferiram a percepção in loco dos gêneros textuais nos quais o escritor investia. Desse modo, pôde articular as relações existentes entre crônicas, contos e romances com a materialidade das páginas onde tais produções foram originalmente estampadas.

A ênfase no particular permite que Granja lance um novo olhar sobre as respostas que a obra literária de Machado de Assis propõe a questões estéticas e contextuais do tempo em que circulou quer em periódico, quer, posteriormente, em livro. Nesse sentido, sem questionar o talento individual do artista, a pesquisadora interpreta a singularidade dele de acordo com as demandas da “civilização do jornal” (KALIFA et al, 2011, p. 7-21). Segundo tal perspectiva, portanto, o autor de Dom Casmurro passa a ser encarado, em sentido mais amplo, como um “escritor-jornalista” (MELMOUX-MONTAUBIN, 2003), isto é, como um intelectual e artista de seu tempo que não apenas se revelava consciente do lugar da imprensa enquanto universo textual responsável pela ampla e contínua difusão de conteúdos, mas que também se valeu das formas forjadas nesse novo e pulsante sistema de escrita para conferir à sua literatura o ritmo da vida moderna.

***

Por fim, em consonância com a orientação seguida por Lúcia Granja a respeito da importância dos diferentes suportes e das dinâmicas particulares de produção e circulação dos escritos estampados nestes, convém destacar que o livro da autora, em seu formato eletrônico e-pub, pode ser baixado gratuitamente no site da editora da Unesp (disponível em <http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788595462816,machado-de-assis-antes-do-livro-o-jornal>). Todavia, para os desejosos em ter o livro em mãos e efetuar uma leitura mais detida dele, é ainda possível, no mesmo endereço, encomendar a impressão da obra sob demanda. Se o novo procura se impor, a materialidade, a verticalidade e a contiguidade do impresso tradicional felizmente, neste caso, também estão ao alcance dos leitores.

Referências

CHARTIER, Roger. A mediação editorial. In: ______. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2002. [ Links ]

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. [ Links ]

KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. La civilisation du journal: une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. [ Links ]

MELMOUX-MONTAUBIN, Marie-Françoise. L’écrivain-journaliste au XIXe siècle: un mutant des lettres. Saint-Étienne: Éditions des Cahiers Intempestifs, 2003 (Collection Lieux Littéraires 6). [ Links ]

Thiago Mio Salla – É doutor em ciências da comunicação e em letras pela Universidade de São Paulo. Enquanto docente e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH/USP, dedica-se às áreas de Literatura Brasileira, Teorias e Práticas da Leitura e Editoração. E-mail: [email protected].