A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial – MACMILLAN (LH)

MACMILLAN, Margaret. A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, Fevereiro de 2014. Resenha de: PIRES, Ana Paula. Ler História, v.66, p. 169-174, 2014.

1 A crise de Julho de 1914 e as origens da Primeira Guerra Mundial têm sido debatidas de forma exaustiva e continuada desde os primeiros dias de Agosto de 1914, quando a Guerra eclodiu no continente europeu. Apesar deste tema ser um clássico da historiografia dos conflitos militares – em 1991 o historiador norte-americano John Landgon identificou 25 000 livros publicados só em língua inglesa sobre as origens da Grande Guerra1– a verdade é que, como tem sido visível, neste início de centenário, através do enorme fluxo de publicações sobre o tema, as questões políticas, económicas, sociais e diplomáticas em torno das consequências do assassínio, em Sarajevo, do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, a 28 de Junho de 1914, continuam a ser um campo vasto de investigação e análise. Contudo, mais do que procurar identificar os antecedentes da Primeira Guerra Mundial, estudos recentes, tanto de historiadores como de politólogos, têm sublinhado a polarização da Europa durante o período da belle époque e os impactos resultantes da divisão do continente em dois sistemas de alianças (a tríplice entente e a entente cordiale) no desenvolvimento e consolidação de diversas teorias internacionais de conflito2. Os recentes debates teóricos em torno das origens da Grande Guerra, tanto no âmbito da historiografia, como das relações internacionais, têm concentrado a sua atenção em torno de questões centrais para o estudo das origens do primeiro conflito mundial, nomeadamente o papel dos homens; diplomatas, políticos e militares, que tiveram nas suas mãos a decisão da entrada da Europa em guerra.

2 Foi em torno destes homens, da sua personalidade, ambições e ligações familiares que a historiadora canadiana Margaret MacMillan centrou o seu mais recente e sugestivo livro A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial. MacMillan uma professora de história da Universidade de Oxford – cujas principais áreas de investigação são a história das relações internacionais e o imperialismo britânico entre o final do século XIX e o início do século XX – é bisneta de um desses protagonistas, David Lloyd George, primeiro-ministro britânico entre 7 de Dezembro de 1916 e 22 de Outubro de 1922. Num esforço hercúleo e ao longo de mais de 800 páginas, MacMillan identificou e analisou, a partir da acção de políticos e diplomatas, mais ou menos conhecidos, as ambições das principais potências europeias da época concluindo que, e esta é a sua tese principal, apesar da Grande Guerra ter sido fruto de escolhas individuais, os homens que conduziram a Europa ao confronto, líderes fracos e atormentados, acabaram por desempenhar um papel menor em todo este processo complexo, ainda que, segundo o argumento de MacMillian, nenhum dos líderes europeus tivesse tido coragem, força, ou vontade suficientes para contrariar os argumentos dos que consideravam inevitável a eclosão de uma guerra no continente.

3 Recorde-se, de resto, que em Portugal o primeiro-ministro Afonso Costa, tinha defendido, em Maio de 1913, quase no final da primeira guerra balcânica, a necessidade do nosso País definir com brevidade a sua atitu-
de num cenário eminente de eclosão de uma guerra na Europa, a Repú-
blica tinha, segundo Afonso Costa, «(…) obrigação de, lançando os olhos para o mapa da Europa, ver qual é a sua situação e preparar-se para a sustentar (…)»3.

4 Ao analisar a tomada de posição da Rússia no desenrolar da crise de Julho de 1914, MacMillan revela-nos, precisamente, os contornos sinuosos da diplomacia russa, e descreve o papel extremamente importante desempenhado pelo círculo mais próximo de Nicolau II, na tomada de posição do País, destacando, em particular, a influência do ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Sazonov, acérrimo defensor da ideia de que a missão histórica da Rússia era proteger as nações balcânicas. Há semelhança do que Sean McMeekin4 havia já defendido Sergei Sazanov foi um dos homens que, com o apoio da França, mais teria contribuído para a transformação de um conflito regional num confronto continental. A autora não hesita ainda em rejeitar o argumento tradicional que atribuiu a Guilherme II a principal responsabilidade pela eclosão da guerra, afirmando, logo nas páginas iniciais do livro, que a conflagração nunca foi inevitável: «A Europa não tinha de entrar em Guerra em 1914; teria sido possível impedir uma Guerra generalizada até ao último minuto do dia 4 de Agosto em que os britânicos decidiram finalmente participar nela»5. Milhões de pessoas não teriam que ter morrido durante a I Guerra Mundial, e o velho continente e o Mundo, defende MacMillan, teriam evitado a ruína e o sofrimento. A autora acaba ainda por não atribuir a Alfred von Schlieffen a responsabilidade pela estratégia militar ofensiva prosseguida pela Alemanha, no entanto, seguindo uma linha de raciocínio bastante próxima da tese de Fritz Fischer, defende que os alemães adoptaram uma posição de agressividade, a que as potências da entente cordiale reagiram6.

5 O volume encontra-se dividido em vinte capítulos, redigidos unicamente com base em fontes secundárias, cada um dedicado à analise de um momento específico do percurso que levou a Europa da guerra à paz. O próprio título escolhido por MacMillan para o livro deixa, desde logo, subentendido que a Europa era um continente extraordinariamente pacífico antes da harmonia do sistema internacional ter sido quebrada em 1914. Em 1900, ano escolhido para abrir o volume, coincidente com a Exposição Universal de Paris e com as segundas olimpíadas da idade moderna, não existia uma guerra que envolvesse as principais potências europeias há 85 anos. Uma das principais qualidades da obra é, sem dúvida, a forma como MacMillan consegue transportar o leitor para uma Europa efervescente e em plena transformação cultural, científica, política e económica, reconstruindo de forma detalhada a atmosfera de confiança relativamente ao futuro que contaminava um continente «(…) habituado à paz(…)»7.

6 A leitura dos primeiros capítulos do livro descreve-nos um mundo interconectado, assente numa economia global única apoiada numa rede cada vez mais densa de circulação de pessoas, capitais e mercadorias, realidade visível, aliás, num movimento de interdependência contínua, e crescente, entre países desenvolvidos e o mundo subdesenvolvido8. É neste contexto que importa perceber as posições anti-guerra da city londrina e a postura britânica que, no início do século, defendia que a única forma de evitar um colapso total no crédito europeu era, num cenário de guerra na Europa, a Grã-Bretanha optar pela neutralidade. Recorde-se que desde 1890 todas as potências europeias, os Estados Unidos da América e o Japão, partilhavam a mesma unidade monetária internacional: o padrão-ouro, o que acabou por determinar que as transacções fossem calculadas com base em moedas de valor praticamente imutável. A rede de transacções de bens e pessoas estendera-se trazendo para o centro da economia-mundo espaços remotos e periféricos (segundo MacMillan o crescimento exponencial da marinha alemã foi o principal responsável pelo envenenamento das relações entre germânicos e britânicos). As exportações europeias quadruplicaram entre 1848 e 1875, a navegação mercante mundial passou, entre 1840 e 1870, de 10 para 16 milhões de toneladas, e a rede de caminhos-de-ferro, cresceu de 200 000 quilómetros, em 1870, para cerca de 1 milhão pouco antes da Primeira Guerra Mundial.

7 É a este Mundo que a eclosão da Grande Guerra em Agosto de 1914 vem colocar um ponto final. A síntese de MacMillan não coloca, no entanto, como vimos, a Europa no rumo da guerra (a historiadora canadiana descreve de forma clara quais as consequências das crises, sucessivas, que abalaram o continente durante os anos finais da «Belle Époque»: a primeira crise marroquina de 1905-06, a anexação da Bósnia em 1908, a crise de Agadir de 1911 e as duas guerras balcânicas de 1912 e 1913) defendendo que a Europa em 1914 era um continente em paz, cujos líderes, políticos e diplomatas, apesar de crises e tensões sucessivas, tinham sempre conseguido evitar uma guerra generalizada: «Durante as crises anteriores, algumas delas tão graves como a de 1914, a Europa não ultrapassara certos limites (…)»9. A questão a que MacMillan procura responder ao longo do livro, é porque é que esse equilíbrio tradicional de poderes não funcionou no Verão de 1914, arrastando a Europa e o Mundo para um conflito de dimensões sem precedentes, elencando várias possíveis causas: uma Rússia ferida pelos revezes que tinha sofrido nos Balcãs e pela derrota sofrida em 1904-05 na guerra com o Japão; uma Alemanha ávida por construir um império e por ver a sua posição de potência emergente consolidada no continente e, olhando para a Europa do Sul e para o Mediterrâneo, uma Itália que desejava ascender ao estatuto de grande potência.

8 A 23 de Julho, após a garantia dada por Guilherme II de que, em caso de guerra, a Alemanha alinharia ao lado do Império Austro-Húngaro, Viena dirigiu um ultimato à Sérvia. Nos primeiros dias de Agosto, cinco das principais potências europeias (Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria e Alemanha) estavam já em guerra; apenas a Itália conseguira permanecer neutral. Um conflito secundário, situado nos Balcãs transformara-se numa guerra europeia, cujas repercussões se fariam sentir no extremo oposto do Continente. Neste jogo de destruição e morte não havia lugar para empates: travava-se uma «(…) guerra que só poderia ser totalmente ganha ou totalmente perdida»10. Não deixa de ser irónico, no entanto, como Margaret MacMillan demonstra, ter sido o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, que em conflitos anteriores na região dos Balcãs tinha intervindo a favor da paz detendo a impetuosidade do chefe das forças armadas austro-húngaras Conrad von Hotzendorf, o principal detonador da grande guerra. A morte de Francisco Fernando retira de cena, segundo a autora, um dos principais advogados da paz do império austro-húngaro.

9 O livro de MacMillan não nos fornece uma explicação nova quanto às causas que estiveram por trás da eclosão da Grande Guerra, contudo o que a historiadora canadiana faz, magistralmente, é descrever o drama humano que conduziu à primeira guerra mundial, numa escrita que coloca, muitas vezes, frente a frente, o ano de 1914 e a nova realidade geo-política actual, relembrando ao leitor os perigos inerentes ao desenvolvimento do nacionalismo, numa narrativa em que fica claro que tanto no século XXI como em 1914, o Mundo transporta em si o potencial para reavivar a violência à escala global, mas onde, tal como há cem anos, a guerra continua a não ser inevitável, ainda que a inevitabilidade se continue a afigurar, muitas vezes, como uma das suas principais causas.

Notas

1 Cf. Christopher Clark, «The First Calamity» in London Review of Books, Vol. 35, n.º 16, 29 August 2 (…)

2 Jack Levy e John A. Vasquez, «Historians, political scientists, and the causes of the First World W (…)

3 Diário da Câmara dos Deputados, 86.ª Sessão Ordinária do 3.º Período da 1.ª Legislatura, de 1 de Ma (…)

4 Sean McMeekin, The Russian origins of the First World War, s/l, Belknap Press, Dezembro de 2011.

5 Ver, Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Gu (…)

6 Fritz Fischer, Germany’s Aims in the First World War, s/l, W.W. Norton & Company, 2007.

7 Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz…, p. 24.

8 Veja-se David Stevenson, 1914-1918. The History of the First World War, London, Penguin Books, 2004 (…)

9 Cf. Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz…, p. 24.

10 Expressões utilizadas por Eric Hobsbawm. Cf. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos – História Breve do (…)

Ana Paula Pires – IHC-FCSH-UNL.

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