Malária / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2011

Esta edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz um dossiê dedicado à malária, subproduto de um seminário que teve lugar na Fundação Oswaldo Cruz em abril de 2007 intitulado “Henrique Aragão e a pesquisa sobre a malária: 100 anos da descoberta do ciclo exoeritrocítico da malária”. Um dos principais desafios da medicina tropical à época em que ela se instituía como campo científico, em fins do século XIX, a malária ainda hoje é considerada a mais importante endemia mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), atinge de trezentos a quinhentos milhões de pessoas e causa cerca de um milhão de óbitos por ano em todo mundo, matando duas vezes mais do que a Aids e muito mais do que qualquer outra doença infecciosa. O presente dossiê traz contribuições sobre a história da malária, enfocando principalmente o Brasil mas numa perspectiva internacional, e isso a meu ver constitui o traço mais original dos trabalhos ora reproduzidos.

Presidente do comitê organizador do seminário a que me referi, Magali Romero Sá assina “Os estudos em malária aviária e o Brasil no contexto científico internacional (1907-1945)”. Analisa aí a gênese, a significação e os desdobramentos de descoberta realizada em 1907 por Henrique Aragão, um dos jovens pesquisadores do instituto ainda chamado Soro-terápico, rebatizado como Instituto Oswaldo Cruz no ano seguinte. A mudança de nome estava associada a uma metamorfose tanto nas instalações físicas da instituição como em seu programa de trabalho, apoiado em ambicioso tripé: pesquisa em diversas vertentes da microbiologia e zoologia médica; fabricação de soros, vacinas e outros produtos biológicos para a medicina humana e veterinária; e cursos de especialização em bacteriologia e medicina tropical, para médicos que iriam atuar em laboratórios, na saúde pública e no combate a doenças de animais e plantas.

As transformações em curso na instituição, que por bom tempo viria a ser o centro de gravidade da medicina experimental e da saúde pública brasileiras, foram alavancadas por diversos acontecimentos, especialmente as campanhas sanitárias contra febre amarela, peste bubônica e varíola, conduzidas por Oswaldo Cruz na capital brasileira, e a destacada participação do Instituto e da Diretoria Geral de Saúde Pública no 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia e na Exposição de Higiene anexa a ele, em Berlim, em setembro de 1907. A medalha de ouro ali conquistada teve enorme repercussão no Brasil e trouxe inesperado reforço aos esforços propagandísticos que fazia o governo para convencer a opinião pública internacional de que o Rio de Janeiro não era mais a cidade pestilenta da qual fugiam capitais e imigrantes. Na urdidura dos laços então estabelecidos com instituições científicas na vanguarda da medicina tropical, antes mesmo da descoberta da tripanossomíase humana que consagraria Carlos Chagas, teve enorme importância o trabalho de Henrique Aragão veiculado em Brazil-Medico, em 1907, e no prestigioso Archiv für Protistenkunde, depois de ser aclamado no Congresso de Berlim como contribuição importantíssima aos estudos sobre a evolução do parasito da malária em seus hospedeiros vertebrados.

Foi a esse fato que se deveu o seminário comemorativo realizado na Fundação Oswaldo Cruz, cem anos depois. Outro trabalho apresentado é “Malaria epidemics in Europe after the First World War: the early stages of an international approach to the control of the disease”. Gabriel Gachelin e Annick Opinel analisam relatórios e diretrizes emanados da Comissão de Malária, formada em 1923 pela Comissão de Higiene da Liga das Nações para fazer face ao recrudescimento da doença em várias partes da Europa, durante e depois da Primeira Guerra Mundial.

Os demais artigos que compõem o dossiê foram capturados depois do seminário de 2007. Juliana Manzoni Cavalcanti, doutoranda do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, em co-autoria com Marcos Chor Maio, analisa os estudos sobre a anemia falciforme publicados no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, correlacionando-os à literatura internacional. Dá ênfase às investigações hematológicas e epidemiológicas feitas no país e às ambivalências das associações estabelecidas então entre essa doença hemolítica e hereditária e a ‘raça negra’.

Em conjuntura subsequente – anos 1950 e 1960, – situa-se o estudo de Renato da Silva, da Universidade Unigranrio, e Gilberto Hochman, da Casa de Oswaldo Cruz, sobre a ascensão e queda de um método de combate à malária concebido no Brasil por Mario Pinotti: o sal de cozinha misturado com cloroquina, adotado em extensas regiões geográficas durante a campanha de erradicação da malária coordenada pela OMS.

Os problemas identificados nos anos 1960, de resistência do plasmódio aos quimioterápicos em uso, e dos mosquitos transmissores da malária ao DDT estão na origem da questão analisada por Ivone Manzali de Sá, pesquisadora colaboradora do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Tirando proveito de sua formação em farmacologia e botânica, a autora examina as pesquisas científicas voltadas para a obtenção de novos antimalariais entre as décadas de 1960 e 1980, em especial nos EUA e na China, sem perder de vista o papel central desempenhado pela OMS na mediação entre os grupos atuantes naqueles países que a Guerra Fria punha em confronto. Mostra Manzali de Sá que os norte-americanos privilegiaram a triagem de moléculas sintéticas inspirados no modelo da quinina, ao passo que a China adotou linha de pesquisa que agregava o conhecimento tradicional, baseado em plantas medicinais, desenvolvendo assim um medicamento que se tornaria a nova referência de droga antimalarial no final dos anos 1980.

Em “O medo do sertão: a malária e a Comissão Rondon (1907-1915)”, Arthur Torres Caser, mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, e Dominichi Miranda de Sá, pesquisadora dessa mesma instituição, analisam o impacto da malária sobre a saúde dos homens que cuidavam da instalação de linhas telegráficas nas regiões hoje pertencentes aos estados de Mato Grosso, Rondônia e Amazonas, onde era endêmica a doença, motivando a criação de um serviço sanitário para seu controle. Estreita relação com esse artigo guarda a seção Fontes, onde André Vasques Vital, mestrando também do referido Programa de Pós-graduação da Casa de Oswaldo Cruz, comenta o artigo ora reeditado “Região do Madeira: Santo Antônio”, do médico Joaquim Augusto Tanajura (1878-1941), chefe do serviço de saúde da Comissão Rondon de 1909 a 1912.

Do seminário realizado na Fundação Oswaldo Cruz em abril de 2007 participou Randall Packard, professor do Instituto de História da Medicina da The Johns Hopkins University e coeditor do Bulletin of the History of Medicine. Aproveitamos a ocasião para entrevistar esse grande especialista em história da malária e das relações internacionais em saúde. A seção Depoimento desta edição da revista traz ainda curto depoimento da doutora Ruth Sonntag Nussenzweig, estrela de primeira grandeza da ciência brasileira que iniciou sua carreira na Escola de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e hoje brilha na da New York University, especificamente no Langone Medical Center, onde se dedica ao desenvolvimento de uma vacina contra a malária.

Nesta edição o leitor encontrará ainda outros cinco artigos espontaneamente submetidos a esta revista e que não têm ligação com o Dossiê Malária. Todos originais e de excelente qualidade, fazem deste número de Manguinhos um ‘livraço’ que não pode faltar nas prateleiras ou discos rígidos de estudiosos e amantes da história das ciências.

Jaime L. Benchimol – Editor científico


BENCHIMOL, Jaime L. Carta do editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.2, abr. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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