O caminho dos pés e das mãos:  Tae kwon do, artes marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000) – MARTA (PH)

MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos pés e das mãos:  Tae kwon do, artes marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000). Vitória da Conquista: Edição UESB, 2013, 176p. Resenha de: CABRAL, Alantiara Peixoto. Introdução e disseminação do Tae Kwon Do em São Paulo: memória dos mestres.  Projeto História, São Paulo, n. 49, pp. 429-434, Abr. 2014.

A presente resenha resulta de uma aplicada leitura da obra citada, na qual o autor de forma encantadora, evidente e inteligente apresenta a disseminação do Tae kwon do no Brasil, utilizando como cenário da pesquisa a cidade de São Paulo. A leitura é tão prazerosa que o leitor se sente envolvido na “história”. Este livro corresponde à dissertação apresentada em 2004 no programa de pós-graduação em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a orientação da Professora Doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga. Atualmente Felipe Eduardo Ferreira Marta é doutor pelo mesmo programa.

O autor procurou investigar a importação e adaptação das artes marciais no Brasil, particularmente na história da cidade de São Paulo. Para tal, utilizou-se da metodologia da história oral, obtendo como fontes os relatos dos mestres pioneiros no ensino da arte marcial tae kwon do no Brasil e de mestres brasileiros. Partindo da hipótese que além dos aspectos econômicos, o cultural contribuiu para o desenvolvimento e a esportivização do tae kwon do no estado de São Paulo. Estefania Knoz Canguçu Fraga, autora do prefácio, afirma que este trabalho representa um elo entre a pesquisa realizada como iniciação científica e o doutorado, “o elo que não se perdeu” 1.

O período sobre o qual o autor se debruça está situado entre os anos de 1970 e 2000, precisamente no momento em que o tae kwon do é introduzido no Brasil, com a chegada dos mestres Sang Min Cho, Sang In Kim e Kun Mo Bang. O autor tem o mérito de ir construindo uma narrativa em crescente tensão que permite entender como se configurou a chegada dos coreanos à cidade de São Paulo e a construção histórica do tae kwon do nesta nova paisagem a partir das memórias edificadas pelos depoimentos.

Felipe Marta resgata o que foi vivido pelos depoentes da pesquisa, a fim de construir uma história. As reminiscências são construídas pelos depoentes na relação passado e presente dentro de um processo contínuo, no qual busca de maneira eficaz as relações estabelecidas, entre teoria (literatura oficial e especializadas) e a prática vivida pelos entrevistados. O autor escreve de maneira tão graciosa que não permite que a memória seja mero objeto, mas a torna vívida e produtiva.

Dessa forma, a obra se estrutura em três capítulos intitulados: Arte Marcial, Filosofia Oriental; Rumo ao desconhecimento: Imigração coreana, imigração de mestres coreanos e a origem do tae kwon do em São Paulo; Oriente e ocidente, Coreia e Brasil.

O capítulo I é apresentado da seguinte forma: em busca do “DO”; tae kwon do e o passado da Coreia; e criador e criatura. Neste capítulo o autor aproxima as categorias artes marciais e as filosofias orientais, apresentando o tae kwon do como uma arte marcial, técnicas de defesa pessoal, com uma história e uma filosofia particular de origem oriental. Esta luta é abarcada por princípios filosóficos que são: os espíritos, o juramento e o sufixo “DO”.

Ainda destaca a atuação do General Choi Hong, personagem principal no processo de desenvolvimento do tae kwon do. Em 1967, Choi Hong Hi funda na Coreia a International Taewondo Federation (ITF) com a intenção de preparar vários mestres e disseminar a prática do tae kwon do pelo mundo. Em 1972 é exilado da Coreia do Sul, fato que contribuiu para a criação da WTE, Word Taekondo Federation, em 1973.

O autor de maneira inteligente apresenta a relação existente entre as artes marciais e as filosofias orientais, relacionando os elementos do tae kwon do constitutivo na memória dos depoentes, dos documentos e da literatura analisada, e por fim dedica suas últimas palavras do capítulo para expressar sobre o geral Choi Hong Hi, a partir das memórias dos depoentes, já que nas literaturas oficiais este nome não é apresentado. Assim, o autor utiliza-se especificamente da memória para resgatar os impasses travados no passado, especificamente na Coreia,  Já no capítulo seguinte os impasses são apresentados especificamente no contexto do Brasil, da seguinte forma: imigração coreana, imigração de mestres coreanos e do tae kwon do em São Paulo; Imigração coreana no Brasil; Imigração de mestres coreanos e a origem do tae kwon do em São Paulo.

Desse modo, o autor discute as diferenças entre ser um “mestre imigrante” e ser um “imigrante coreano” nas novas terras, dito em outras palavras, as diferenças entre ser um mestre de tae Kwon do e ser um coreano em terras brasileiras, especificamente na cidade de São Paulo. O povo coreano não tinha o hábito de sair da sua terra e carregavam os valores de que “os filhos não devem abandonar o solo em que seus ancestrais estão sepultados” 2, estes valores mudaram após dificuldades enfrentadas nos campos econômicos, políticos e militar pelo país no início dos anos 60 e o governo estabelece a política de emigração.

Assim, os imigrantes coreanos passaram a integrar a paisagem da cidade de São Paulo, vindos na condição de colonos agrícolas cheios de esperança, sonhos e em busca de novas oportunidades. No entanto, sofreram dificuldades na nova terra por conta dos costumes, da cultura e do idioma que eram bastante diferentes, acarretando intensa adversidade na comunicação. Em outras palavras, um corpo carregado de uma história oriental teve que se adaptar a uma história de corpo ocidental.

Todavia os “mestres coreanos” vieram com objetivos diferentes da motivação dos “imigrantes”, em consequência de um pedido supostamente feito a Choi Hong Hi pelo governo brasileiro, para que os mestres de tae kwon do viessem para treinar a policia no combate aos terroristas e grupos de esquerda na época de 1970.

É possível observar nos detalhes ricos da obra todos esses aspectos, deixando evidente que “o caminho inicial dos mestres coreanos, ao contrário dos demais imigrantes coreanos, não teria sido num primeiro momento o do ‘arco-íris’ e sim o ‘dos pés e das mãos’. Em outras palavras o tae kwon do”.3  O último capítulo trata dos meios e planos adotados pelos imigrantes coreanos e mestres coreanos para sobreviver à nova realidade. Está dividido em três tópicos: Mestres de tae kwon do e imigrantes coreanos tentando ir “além do arco-íris”; Ser um “coreano num lugar onde não havia coreano; e Arroz com feijão ou churrasco com sal e açúcar;  Os últimos tópicos narram a trajetória dos imigrantes rumo à integração à sociedade brasileira e o papel das novas gerações neste processo. Estas diferentes gerações são classificadas como “1.0”, “1.5” e “2.0”. Os imigrantes que vieram com a idade adulta são caracterizados como geração “1,0”, os que imigraram com idade infantil são denominados “1.5” e os descendentes destas gerações anteriores, mas que nasceram no Brasil são designados “2.0”. Esta classificação guarda um sentido de superioridade, no qual os 2.0 e 1.5 são superiores aos “1.0”. 4  Os “mestres coreanos” tinham um prestígio na Vila Coreana. Inicialmente sua função foi atribuída à difusão do tae kwon do e a um relacionamento próximo com as pessoas do regime militar, o que favoreceu a atuação de uma liderança política na colônia. Esses mestres ainda que de maneira limitada transitavam entre a cultura brasileira e a cultura coreana.

Com o fim do regime militar e a ascendência da geração “1.5” e “2.0” este prestígio da geração dos mestres “1.0” foi caindo, conquanto esta primeira geração gozou do momento de ascensão e lentamente muitos se afastaram do tae kwon do e seu objetivo se aproximou aos dos “imigrantes coreanos”, conquistar a sua elevação financeira.

As novas gerações, “1.5” e “2.0”, se afastaram da cultura coreana, influenciando o novo desenvolvimento do tae kwon do. A geração “2.0” passa a transmitir os valores orientais de forma secundária. Com a nova aproximação com o esporte o tae kwon do perde sua identidade, sendo possível a observação de três formas de desenvolver essa prática no país, a dos mestres “1.0”, a dos mestres “1.5” e a dos mestres brasileiros, sendo estes últimos os que mais potencializaram a prática do tae kwon do como esporte no Brasil.

Em síntese o autor apresenta a partir da memória dos depoentes situações acerca da história do tae kwon do, no período de 1970-2000, que inclui lembranças e esquecimentos dos sujeitos sociais entrevistados. A obra apresenta-se como um instrumento para debate, reflexões e futuros estudos sobre as artes marciais no Brasil, apresentando-se como um importante instrumento para os estudos da sociedade brasileira, contribuindo de maneira significativa para conhecimentos posteriores, devendo ser apreciada por todos, especialmente pelos que se interessam pela história dos esportes no Brasil.

Notas

1 MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos pés e das mãos: Tae kwon do, arte marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000). Vitória da Conquista: Edição UESB, 2013,p. 12.

2 Idem p. 74.

3 Idem p.101.

4 Idem p. 110.

Alantiara Peixoto Cabral – Mestranda pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Título: Formação continuada em educação física: memória dos atores principais deste processo. Orientador: Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta. E-mail: [email protected].