Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana | R. Cytrynowicz

Do que se conhece das publicações existentes, o Guia de visitação do Cemitério Israelita da Vila Mariana é a primeira publicação no Brasil voltada a um cemitério judaico, que apresenta roteiros. A realização da obra tornou-se possível por meio do apoio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, por meio da aprovação em edital do Programa de Ação Cultural do ano de 2020. O livro é de autoria do historiador Roney Cytrynowicz, graduado em Economia, mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, suas pesquisas tem como foco a história dos judeus no Brasil. Cytrynowicz (1990, 2000) é autor de obras sobre os judeus durante a 2ª Guerra Mundial e a barbárie do Holocausto. Também tem se dedicado à literatura infantil e a publicação em vários veículos de comunicação e científicos. Ainda, foi diretor do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, atual Centro de Memória do Museu Judaico de São Paulo, a principal instituição que preserva um grande acervo documental relativo à memória, à história e à cultura dos imigrantes judeus no país. Leia Mais

Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867-1933 | Francis Manzoni

Francis Manzoni Feiras livres
Francis Manzoni, 2020 | Foto: Sesc-SP

O livro Mercados e feiras livres em São Paulo (1867-1931), do historiador Francis Manzoni, lançado pela Edições Sesc em 2019, é fruto de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual Paulista cinco anos antes. O autor apresenta à comunidade de historiadores e ao público geral o universo do abastecimento e da alimentação da capital paulista, em diálogo com a urbanização, o mundo do trabalho e os conflitos dos diferentes sujeitos que formaram a cidade, como negros, migrantes e estrangeiros. Tais agentes são compreendidos como os protagonistas de uma história feita por lavradores, carroceiros, carregadores, vendedores ambulantes, tropeiros e comerciantes que atuavam no ramo alimentício e de produtos de uso cotidiano pela população da cidade entre o final do século XIX e o começo do século XX. A obra destaca como os mercados públicos paulistanos, as feiras e o comércio ambulante tiveram um papel central no abastecimento e foram parte constitutiva do processo de urbanização que São Paulo experienciou a partir das últimas décadas do Oitocentos.

Como define o autor na introdução do livro, busca-se conduzir o leitor ao chamado “tempo do Brasil sem agrotóxicos”, quando da construção do primeiro mercado da capital paulista, na Várzea do Carmo, em 1867, até a inauguração do Mercado Municipal de São Paulo, na rua da Cantareira, em 1933. Manzoni defende a necessidade de se analisar a história da cidade a partir das práticas cotidianas e dos modos de vida, da multiplicidade de trabalhos e lutas. Segundo o autor, essas perspectivas foram geralmente silenciadas diante da “imagem de uma São Paulo rica, moderna e europeizada, minimizando outros modos de viver, trabalhar e lutar que eram numericamente menos expressivos, mas que subsistiram no interior e no entorno da metrópole do café” (MANZONI, 2019, p. 12). Leia Mais

Maria Antônia, um retrato além da moldura | Fernando Santos da Silva

Perseguir os significados que a Rua Maria Antônia, no distrito da Consolação, adquiriu na vida urbana da cidade de São Paulo desde a sua origem é o principal objetivo do livro Maria Antônia, um retrato além da moldura, de Fernando Santos da Silva (2019). Trata-se de uma produção fruto da pesquisa desenvolvida pelo autor para seu mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e que, transformada em livro, foi publicada em 2019 pela editora Appris.

Já na Introdução, o autor convoca o leitor a pensar sobre a possibilidade de a Rua Maria Antônia ser considerada um lugar de memória. Isso posto, formula a hipótese de que as instituições culturais e educacionais ali implantadas exerceram, em certo sentido, um papel fundamental, transformando-a em uma via urbana que representava a dinâmica da vida intelectual na cidade que se modernizava. Sabe-se que a criação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade de São Paulo (USP) são desdobramentos dessa relação simbiótica entre cultura e cidade que abre novas perspectivas para a leitura do lugar. Para Silva (2019), a história da Rua Maria Antônia está ligada à memória estudantil como um espaço simbólico de referências a essas duas grandes instituições que vêm formando várias gerações de intelectuais do país. Leia Mais

Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores | Tuca Vieira

Abrir e folhear o Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, de Tuca Vieira (1), é como ter um encontro consigo mesmo. Num primeiro momento, algo como um encontro solitário, uma descoberta não esperada. Mas logo o Atlas mostra sua dimensão pública, com um conjunto de imagens que expõe a cidade, oferecendo um reconhecimento que pode ser coletivo e que está agora compartilhado. Ou seja, as 203 fotos do livro são, enfim, um mapeamento de São Paulo, um conjunto que deu conta da sua diversidade, complexidade, imensidão – adjetivos sempre associados à cidade. Deu conta apresentando simultaneamente fragmentos e unidade, um todo que, mesmo para seus habitantes, parece lhes escapar.

Cidade vertical e densa na região central, edifícios industriais nos ainda “vazios urbanos”, antigos edifícios já integrados a um entorno desfigurado e adensado, favelas fotografadas na sua extensão ou na visão do pedestre, regiões de mananciais,  igrejas, muros e grades, caixas d’água, postes, fiações elétricas, habitações formais e informais, pontos de ônibus, bancas de jornais, rios (que hoje são canais), estacionamentos, ruas, avenidas e vielas, edifícios comerciais, bares, padarias, quitandas, estacionamentos… Todos esses programas e situações urbanas que sem as fotos dizem pouco. Leia Mais

Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867- 1933) | Francis Manzoni

Quem eram os caipiras e quais os significados de ser um, na São Paulo, de fins do século XIX e inícios do século XX? Esse é ponto de partida do historiador Francis Manzoni para a consistente pesquisa de mestrado em História (UNESP) que resultou no livro Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867-1933). Ao nos conduzir por uma São Paulo diferente daquela dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas lavouras de café, o autor nos apresenta uma gama variada de personagens e costumes que teimavam em resistir aos delírios da burguesia paulista pela (re)construção de uma metrópole moderna e europeizada.

Investigando as relações sociais presentes nos mercados e feiras livres da São Paulo, Manzoni opera na intersecção de campos como a História Social do Trabalho e a História Urbana, dialogando com uma série de estudos que foram realizados nos últimos anos sobre a importância das Praças de Mercado para as principais cidades brasileiras, e que tiveram como preocupação a compreensão das relações, conflitos e tensões sociais que tiveram nas Praças de Mercado o seu núcleo irradiador. Dentre esses estudos temos, por exemplo, o livro publicado por Martins (2010) sobre a Praça de Mercado de Campinas, em que o autor identifica e analisa as múltiplas faces e finalidades dos mercados na cidade do interior paulista, assim como os significados das articulações sociais, econômicas e culturais dos frequentadores daqueles espaços. Outra publicação é o livro de Richard Graham (2010) sobre as relações formadas, e vivenciadas, pelos trabalhadores e trabalhadoras do comércio de gêneros empenhados em alimentar a cidade de São Salvador, na Bahia. Cabe destacar também o livro de Juliana Barreto Farias (2015), sobre a forte presença de africanas nas Minas na Praça de Mercado do Rio de Janeiro, em que a autora iluminou uma série de estratégias de sobrevivências de trabalhadoras escravizadas e livres, assim como as dinâmicas sociais vivenciadas na Praça de Mercado da maior cidade brasileira. Leia Mais

Bexiga em três tempos. Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável | Nadia Somekh e José Geraldo Simões Júnior

O Bexiga, coração da Bela Vista, se acomoda em um pequeno vale que acolhe as águas de chuva que descem da encosta da avenida Paulista e do Morro dos Ingleses para desembocar na avenida 9 de Julho, lugar de direito do pequeno rio Saracura. Com platibandas, arcos, frontões, varandas diminutas, paredes desgastadas pelo tempo ou pintadas em cores vibrantes e alegres, o casario alinha-se rente às calçadas das ruas pacatas (1).

Homens consertam automóveis estacionados no meio-fio, mulheres cultivam flores plantadas em vasos dispostos na calçada. Em cômodo da casa aberto para a rua, muitos trabalham: mecânicos, manicures, barbeiros, cabelereiras, sapateiros, carpinteiros, serralheiros, costureiras, alfaiates, ofícios extintos em outros lugares da cidade. Atividades mais afamadas – bares, restaurantes, cantinas e padarias – disputam o endereço com depósitos de material de construção e ferro-velho, frequentados por carroças que trafegam com anacrônica lentidão pelas ruas estreitas da localidade. Leia Mais

O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala | Boris Fausto

Os chamados faits divers, ou seja, tudo o que é fora do comum, insólito ou inesperado, têm frequentado, desde o final do Oitocentos, as páginas da imprensa e assegurado o sucesso de várias publicações. A fórmula tem se adaptado a cada novo veículo, seja o rádio, a televisão ou a internet. Os crimes bizarros constituem-se em fonte inesgotável, como atesta, por exemplo, os programas das redes de televisão abertas, que cotidianamente esmiúçam detalhes de perversidades variadas. Para ficar apenas num exemplo, basta citar o caso ocorrido em fevereiro de 2020, no programa policialesco da TV Record de São Paulo, Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci, que informou, ao vivo, para uma mãe que sua filha acabara de ser assassinada pelo namorado. O caso gerou fortes críticas, tendo em vista a espetacularização barata da dor alheia, regada por altas doses de falta de ética.

Tais práticas, é importante lembrar, remontam ao final do século XIX, momento em que os jornais, então os principais veículos de comunicação, narravam, não sem doses de sensacionalismo, a repercussão de crimes, conforme demonstra Boris Fausto no seu novo livro, O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala. São Paulo, 1908-1928. O autor organizou a obra em duas partes: a primeira, intitulada “O crime da Galeria de Cristal”, contém dez capítulos [71] e outra, sob o título “Os crimes da mala”, divide-se em doze capítulos. [72] A obra abre-se com uma introdução e encerra-se com conclusão e anexo, que traz o diário de um dos réus, publicado originalmente em 1908 no jornal O Estado de S. Paulo. Leia Mais

Pequenos acasos cotidianos. Presentes e desastres da vida cotidiana | Juliana Russo

Toda vez que abro um livro da Juliana Russo recebo de cara um convite. Nesse Pequenos acasos cotidianos não seria diferente (ela também é autora do livro São Paulo infinita). Mas este convite não é formal nem explícito. É um convite velado, sutil, sensível, subterrâneo, palavra tornada desenho. É um convite imediato, mas que precisa ser composto, combinado e descoberto pelo leitor ao virar página por página. Nesse passo a passo das folhas o convite emerge… um caminhar convidando o leitor a caminhar! Um caminhar pelo livro, um caminhar pela cidade.

Juliana nos apresenta esses desenhos, belos e às vezes desengonçados e imprecisos traços, como um convite a acompanhá-la numa caminhada qualquer de um dia qualquer por uma cidade que poderia ser qualquer. Calhou de ser São Paulo (Perdizes ao Centro e de volta), calhou de ser dia 9 de agosto de 2017. O que vemos nesse livro é um relato de viagem, um “mapa de percurso” como queria Michel de Certeau – o cara da Invenção do cotidiano (1), um mapa mentalizado de um caminhar pela cidade observando e lembrando, recordando, recortando, resgatando rastros de um tempo que passa, de um cotidiano que continua. Juliana segue os rastros do cotidiano, anota-os, resgatando-os e colecionando-os. Os presentes (tanto o adjetivo quanto o substantivo) e os desastres desenhados pelo simples desejo de torná-los presente, fixos e eternos. “Os lugares têm uma lembrança própria” sussurra Juliana em algum momento do relato, do mapa, da caminhada. Leia Mais

São Paulo. Uma biografia gráfica | Felipe Correa

São Paulo, uma biografia gráfica é um novo volume que propõe uma análise complexa da cidade metropolitana de São Paulo, oferecendo também instrumentos para um desenvolvimento futuro mais sustentável.

Fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores coordenado por Felipe Correa, o livro – com excelente qualidade gráfica e impressão – é uma narrativa visual e de textos, que coloca em questão o não-desenho urbano de São Paulo durante a transição rápida de uma cidade com pouco mais de trinta mil habitantes (1870) para os atuais 20 milhões da área metropolitana. A análise – cujo ponto de partida é a leitura das bases de orografia e hidrografia – aborda uma visão sistêmica de outras “camadas” e temas, tais como áreas abandonadas. Leia Mais

Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: [email protected]

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O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 – CARRERI (RHH)

CARRERI, Marcio Luiz. O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930. Curitiba: CRV, 2017. 164p. Resenha de: SOTANA, Edvaldo. Política e literatura: um estudo sobre Oswald de Andrade. Revista História Hoje, v. 7, nº 13, p. 248-252 – 2018.

O livro intitulado O socialismo de Oswald de Andrade é fruto da tese de doutorado desenvolvida por Marcio Carreri no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Algumas indagações motivaram a pesquisa do professor do curso de história da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp). Dentre elas, destacam-se: “Que contribuição um homem da cultura pode dar para as ideias políticas?” e “É possível situar Oswald de Andrade como um socialista, primeiramente como escritor e também como homem de ação e, fundamentalmente, reconhecer sua contribuição para o pensamento social brasileiro?” (Carreri, 2017, p.16). Leia Mais

O socialismo de Oswald de Andrade: cultura/ política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 | Marcio Luiz Carreri

Obra originária de pesquisa para obtenção do título de doutor em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP no ano de 2017. O livro “O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930”, partindo da capa e seus contraste em preto e branco em que o autor destaca seus personagens principais que compõe sua narrativa histórica, como a Pagú, Mario de Andrade e sobretudo o Oswald tendo por base a foice e o martelo em vermelho, e acima de todos a figura emblemática de Marx.

Trata-se de escrita leve e fluente, sem o peso do academicismo que se exige para uma tese de doutorado em história, porém com o rigor metodológico dela. Marcio em seu trabalho consegue perfeitamente trafegar entre duas linhas tênues e belas que é a da confluência entre literatura e história, com o mérito de trafegar por essa zona quente sem se esquecer do metier, do construto da história. Dessa forma a literatura entra como pano de fundo para o fazer historiográfico de uma época de “tensões na modernidade de São Paulo” como diz o título. Leia Mais

O socialismo de Oswald de Andrade: cultura/ política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 | Marcio Luiz Carreri

Obra originária de pesquisa para obtenção do título de doutor em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP no ano de 2017. O livro “O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930”, partindo da capa e seus contraste em preto e branco em que o autor destaca seus personagens principais que compõe sua narrativa histórica, como a Pagú, Mario de Andrade e sobretudo o Oswald tendo por base a foice e o martelo em vermelho, e acima de todos a figura emblemática de Marx.

Trata-se de escrita leve e fluente, sem o peso do academicismo que se exige para uma tese de doutorado em história, porém com o rigor metodológico dela. Marcio em seu trabalho consegue perfeitamente trafegar entre duas linhas tênues e belas que é a da confluência entre literatura e história, com o mérito de trafegar por essa zona quente sem se esquecer do metier, do construto da história. Dessa forma a literatura entra como pano de fundo para o fazer historiográfico de uma época de “tensões na modernidade de São Paulo” como diz o título. Leia Mais

Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.

Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.

A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).

No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.

A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.

O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.

A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.

O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.

O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.

A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.

O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).

Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.

Renan Giménez Azevedo

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Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do século XX – CAMARGO (FH)

CAMARGO, Daisy de. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 220p. Resenha de: BOTARO, Luis Gustavo Martins. Faces da História, Assis, v.1, n.2, p.223-228, jul./dez., 2014.

Nos últimos anos têm crescido o número de pesquisas e trabalhos acadêmicos que envolvem a cidade e o espaço urbano enquanto objeto de reflexão1. Sob diversos aspectos, as cidades são discutidas enquanto pano de fundo de disputas políticas, relações sociais e culturais em distintos momentos históricos. Entre essas diferentes perspectivas de análise, há de se destacar o enfoque sob uma abordagem cultural, por meio das representações criadas sobre o urbano, despertando a atenção dos pesquisadores. Sendo assim, a pesquisa de doutorado da historiadora Daisy de Camargo, publicada, em livro, em 2012, aborda os espaços, materiais e práticas da embriaguez da cidade de São Paulo na virada do século XIX para o século XX. A pesquisa perpassa as transformações e reformas urbanas da cidade naquele período que atingem, também, o cotidiano, modos e costumes da população.

Seu objetivo geral é compreender o consumo de bebidas alcoólicas na cidade de São Paulo, os espaços onde as mesmas eram consumidas, as relações sociais nesses locais, os gestos e práticas da embriaguez. As analogias desses espaços e práticas com as propostas e reformas urbanas para a cidade de São Paulo: a emergência de uma nova dinâmica urbana que ganha vida com as transformações urbanas desejadas de um lado e, por outro, as interferências e controle dos espaços onde se comercializava e consumia as bebidas alcoólicas, no cotidiano e nas práticas daqueles que frequentavam esses locais da embriaguez.

Daisy de Camargo, atualmente, dedicou-se à história material e das sensibilidades. Produziu seu texto a partir do gênero narrativo, mas sem abandonar os conceitos e a linguagem acadêmica. Tratou sobre as reformas urbanas da cidade de São Paulo na virada do século, tema muito explorado pelos pesquisadores. Contudo, o diferencial de sua obra são os personagens e as fontes com os quais ela dialogou.

Leitora de Walter Benjamin e de Baudelaire, a autora destaca que o trabalho do historiador é selecionar os cacos do passado e, nesse processo, exercer uma ressignificação do mesmo. Esse processo se dá a partir do cruzamento de distintos registros históricos, ou seja, a partir da seleção de símbolos elaborados por homens num determinado tempo histórico. Para representar suas experiências, o historiador estabelece um diálogo dele com os “trapos” do passado e, nesse processo, reelabora-o e ressignifica-o. A autora também utiliza, como aporte metodológico, a micro-história, proposta por Carlo Ginzburg, visto que, ao tratar sobre os “retalhos” do passado, os dados marginais são considerados reveladores e permitem levar a um quadro histórico mais profundo (CAMARGO, 2012, p.16).

Para composição desses vestígios do passado, a autora utilizou uma gama heterogênea de fontes históricas. Vale ressaltar os documentos produzidos por instituições do Estado como: relatórios dos chefes da polícia, inquéritos policiais, inventários de bens post-mortem, plantas das cidades e dos espaços em que se comercializava e se consumia bebidas alcoólicas. Camargo também utilizou, em seu trabalho, os romances de memorialistas, jornais da época, imagens como pinturas, fotografias e caricaturas.

Com as fontes e a metodologia definida, Daisy de Camargo dividiu o seu trabalho em duas partes: num primeiro momento, a autora elencou os espaços de venda e consumo das bebidas alcoólicas, como os armazéns de secos e molhados, as tabernas e quiosques. Mapeando todos os locais onde se encontravam tais estabelecimentos, como, por exemplo, a Rua Esperança, um dos principais pontos de embriaguez, posteriormente “engolido” pelas reformas urbanas da cidade de São Paulo. Numa segunda etapa, a autora retratou os agentes sociais da ebriedade, a perseguição aos seus costumes e a restrição à embriaguez, bem como algumas imagens que possibilitam uma leitura crítica sobre suas práticas.

Um dos objetivos de Daisy de Camargo foi escrever uma história material da embriaguez, na cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. Sendo assim, a partir de inventários post-mortem, a autora conseguiu reconstruir os espaços das tavernas: a variedade de tipos de bebidas para diferentes ocasiões, os distintos objetos para o consumo de álcool, copos de tamanhos variado sendo cada qual para um tipo específico de bebida. Ainda sobre os materiais que compõe um espaço da ebriedade e sociabilidade, Camargo destacou os móveis (como o balcão, mesas, cadeiras e bancos) que podem ser, constantemente, rearranjados segundo os interesses de cada grupo e a ocasião. Além de espaços para a venda e consumo de álcool, Daisy de Camargo ressalta que, em alguns casos, tavernas eram, também, locais de produção de bebidas, fazendo alusão a alguns materiais e produtos descritos nos inventários, como pequenos alambiques e rótulos de bebidas.

Baseada nos registros de memorialistas, nos códigos de postura e na imprensa paulista, a autora identificou que, em meados de 1850, já havia uma preocupação das autoridades públicas na fiscalização das tavernas e tascas da cidade de São Paulo. Segundo a autora estes locais eram representados como ambientes sem as condições mínimas de higiene, espaços de baixa moralidade, de vícios e da embriaguez, frequentado por gente de toda sorte, entendidos enquanto desqualificados (CAMARGO, 2012, p. 58-65).

Uma das consequências da fiscalização sobre as tavernas e tascas da cidade de São Paulo, por exemplo, foi o “desaparecimento” nos almanaques de tais estabelecimentos comerciais, ou seja, a categoria de “tavernas” ou “fábricas e destilação”2. Entretanto, não significava um desaparecimento efetivo, devido à perseguição, mas a mudança da designação que o caracterizava, passando a ser denominado por “armazéns de secos e molhados”. A fiscalização e atenção do poder público, nos anos subsequentes, ganhou ainda mais força, concomitante com os ideais de higiene, moralidade, racionalidade, modernidade e progresso desejados pela elite para toda a sociedade paulistana.

Entre os últimos anos do século XIX e início do século XX, a perseguição às tavernas e tascas na cidade de São Paulo desencadeou a construção de outros espaços para a venda e consumo de álcool. Dentre eles, os quiosques, de propriedade, em sua maioria, de imigrantes ou descendentes de portugueses3. Construído de estruturas pré-fabricadas e importado da Europa, esses estabelecimentos, inicialmente, eram símbolos da modernidade, por sua padronização e identificação com os quiosques da cidade de Paris (CAMARGO, 2012, p. 74-75). Entendido, pela autora, como espaço de lazer, os quiosques eram frequentados por negros forros e brancos pobres e seus hábitos não eram compatíveis com as condutas discutidas e que passariam a ser incorporadas no espaço urbano.

Devido ao número de reclamações nos jornais, frente a tais locais do prazer e sociabilidade, bem como a fiscalização movida pelos ideais modernizadores dos espaços e costumes, os quiosques desapareceram com as reformas urbanas dirigidas pelos prefeitos Antônio Prado e Barão de Duprat. Nesse processo, no lugar desses espaços da embriaguez, ergueram-se cafés luxuosos, restaurantes, lojas e vitrines com suas novidades, num movimento de cosmopolitismo da cidade. Assim sendo, foi possível apontar o desaparecimento desses espaços de baixa moralidade no centro da cidade, assim como aqueles que os frequentavam. A autora considerou que os quiosques no Brasil foram um exemplo da ressignificação da modernização urbana: enquanto na Paris de Haussmann os quiosques foram símbolos da modernidade, no Brasil, devido a anterior perseguição às tavernas, tornaram-se locais de venda, consumo de álcool e da sociabilidade daqueles marginalizados na sociedade.

Daisy Camargo apontou outro espaço de sociabilidade, venda e consumo de álcoois no início do século XX: os cabarés. A autora analisou esses espaços por meio do romance Madame Pommery, de Hilário Tácito, escrito nas primeiras décadas do século XX. Diferente da rusticidade das tascas e tavernas, os cabarés eram locais luxuosos, ornamentados, um misto de restaurante, hotel e bar. Gerenciados, em sua maioria, por mulheres, esses locais eram frequentados por coronéis vindos do interior, que encontravam diversão nos jogos de azar, o prazer no consumo de bebidas alcoólicas e nas prostitutas que ali frequentavam (CAMARGO, 2012, p. 86). Consumia-se, além das bebidas comuns das tavernas, o haxixe, a cocaína e a champanhe, esta, por sua vez, entendida como uma bebida do ser urbano que se pretendia civilizado e interligado à cultura francesa.

De acordo com a autora, os cabarés que emergiam no centro da cidade, enquanto manifestação de outras formas de embriaguez e prazer eram “traduções do luxo das tavernas” (CAMARGO, 2012, p. 87), mas que não deixaram de ser perseguidos devido à conduta daqueles que os frequentavam, sendo visto como um espaço do vício e da imoralidade. Esses locais também sofreram as consequências das reformas colocadas em prática nas primeiras décadas do século XX, desaparecendo para que em seu lugar se constituísse o alargamento das ruas e a construção de prédios públicos, teatros, praças, cafés, restaurantes luxuosos, ou seja, espaços condizentes com os anseios da elite. Para a autora, além do desaparecimento dos cabarés, tascas e tavernas do centro da cidade, esse fenômeno era acompanhado da exclusão daqueles que frequentavam tais espaços, um controle do Poder Público em relação ao prazer, aos costumes e práticas de determinados segmentos ainda mais marginalizados da sociedade, que buscavam, a sua maneira, resistir e buscar seus espaços num ambiente em constante transformação.

Por meio de processos criminais, a autora conseguiu identificar as apreensões que tinham como justificativa a embriaguez. Na maioria dos casos, os “infratores” eram brancos pobres, estudantes, imigrantes pobres e negros, que além de serem acusados de embriaguez, logo, eram associados a “vadiagem” (CAMARGO, 2012, p. 96-102; 132-133). Para os homens das leis, com formação em Direito, a embriaguez era associada à vadiagem, sendo que o ébrio era classificado como um perigo social, com propensão a cometer delitos, a tumultuar a ordem pública e a falta de interesse ao trabalho, na contramão do que era desejado.

Todavia, nos testemunhos daqueles que eram aprendidos, em sua maioria, afirmavam exercer algum tipo de atividade, como lavadeiras e carregadores de bagagem nas estações de trem, por exemplo. Segundo Daisy de Camargo, havia um desprezo do poder público e da sociedade sobre aqueles que exerciam trabalhos informais, sem normas e regras pré-estabelecidas, considerados, assim, vadios aqueles que não se sujeitavam ao expediente convencional.

O conhecimento racional, baseado nos preceitos da ciência, que dominavam as instituições públicas do Brasil e da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX, transformou o ébrio num personagem da anticonduta. Os pensamentos sobre a saúde e a moral, discutidos por sanitaristas e pelos homens das leis, defendiam a necessidade de conscientização e disciplinarização das camadas mais pobres da sociedade, para criar bons hábitos e educação sanitária, nesse sentido, passaram a associar o uso do álcool com a degeneração física e moral. Segundo a autora, observa-se uma transformação na figura do ébrio, antes representado por aquele, que sob os efeitos do álcool, tinha atitudes engraçadas, com as vestimentas desarrumadas, postura inclinada, com tom de voz elevado e altas gargalhadas, passando a ser entendido enquanto indivíduo que pode vir a cometer delitos, que se tornou uma desgraça à família e ameaça aos padrões que a sociedade buscava consolidar. Cria-se, portanto, uma nova doença: o alcoolismo, difundido pela medicina e que relacionava a bebida à imoralidade, à degeneração física e moral.

O movimento de proibição do uso de álcool, por ações de conscientização da população, por meio de panfletos, educação sanitária e prisões foi entendido, pela autora, como um controle e cuidado do indivíduo, buscando o cuidado com a toda a sociedade. A regulação do uso do álcool está associada a um controle anímico do corpo, numa ânsia de orientação dos sentidos sobre o argumento da defesa do coletivo.

Em suma, Daisy de Camargo faz uma relação entre as reformas urbanas da cidade de São Paulo, que iniciaram ainda no período imperial, mas que ganharam ímpeto com o governo republicano e os espaços de venda e consumo de álcool. Por meio de uma variedade de fontes históricas, a autora alcançou as experiências, as práticas de consumo, a organização interior e a sociabilidade nas tavernas, cabarés e quiosques da cidade. Cada qual com uma temporalidade e experiência de seu tempo, enfrentavam e resistiam aos ideais que acompanhavam a virada do século, sob os preceitos da Medicina, Engenharia e do Direito.

Portanto, a autora, além de conseguir perpassar pela história social e material da ingestão de álcoois, conseguiu reconstruir as práticas do consumo, a perseguição e controle do indivíduo e suas formas de prazer e diversão que, por sua vez, não estavam em consonância com os valores e princípios desejados para a cidade que se modernizava.

Com uma narrativa fluida e envolvente, Daisy de Camargo propõe uma análise consistente sobre um tema bastante discutido na historiografia: a modernização da cidade de São Paulo. Dentro da perspectiva da história cultural e social, a autora abordou o assunto a partir da questão da embriaguez e do prazer, por meio de uma variedade de fontes que possibilitou dar voz a personagens marginalizados, o que tornou o trabalho ainda mais sólido e ímpar. Um livro importante e necessário àqueles que buscam novas questões e fontes para lidar com a história das cidades e dos modos de vida urbano.

Notas

1 Podemos destacar aqui alguns trabalhos, como: Nicolau Sevenko (1992), Sidney Chalhoub (1996), Sandra Pesavento (2002), Fransérgio Follis (2004), Heloísa Barbuy (2006), Marshall Berman (2007).

2 Designação encontrada pela autora sobre aqueles estabelecimentos que produziam/comercializavam bebidas alcoólicas nos almanaques sobre os estabelecimentos comerciais e industriais da cidade de São Paulo entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX (CAMARGO, 2012, p. 44- 55; 64-65).

3 A autora analisa duas tavernas em específico, nos capítulos 1 e 2, que por sua vez, são de propriedade de portugueses.

Referências  BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São Paulo: UNESP, 2004.

PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2ª Edição. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frenéticos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Luis Gustavo Martins  Acessar publicação original

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O caminho dos pés e das mãos:  Tae kwon do, artes marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000) – MARTA (PH)

MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos pés e das mãos:  Tae kwon do, artes marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000). Vitória da Conquista: Edição UESB, 2013, 176p. Resenha de: CABRAL, Alantiara Peixoto. Introdução e disseminação do Tae Kwon Do em São Paulo: memória dos mestres.  Projeto História, São Paulo, n. 49, pp. 429-434, Abr. 2014.

A presente resenha resulta de uma aplicada leitura da obra citada, na qual o autor de forma encantadora, evidente e inteligente apresenta a disseminação do Tae kwon do no Brasil, utilizando como cenário da pesquisa a cidade de São Paulo. A leitura é tão prazerosa que o leitor se sente envolvido na “história”. Este livro corresponde à dissertação apresentada em 2004 no programa de pós-graduação em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a orientação da Professora Doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga. Atualmente Felipe Eduardo Ferreira Marta é doutor pelo mesmo programa.

O autor procurou investigar a importação e adaptação das artes marciais no Brasil, particularmente na história da cidade de São Paulo. Para tal, utilizou-se da metodologia da história oral, obtendo como fontes os relatos dos mestres pioneiros no ensino da arte marcial tae kwon do no Brasil e de mestres brasileiros. Partindo da hipótese que além dos aspectos econômicos, o cultural contribuiu para o desenvolvimento e a esportivização do tae kwon do no estado de São Paulo. Estefania Knoz Canguçu Fraga, autora do prefácio, afirma que este trabalho representa um elo entre a pesquisa realizada como iniciação científica e o doutorado, “o elo que não se perdeu” 1.

O período sobre o qual o autor se debruça está situado entre os anos de 1970 e 2000, precisamente no momento em que o tae kwon do é introduzido no Brasil, com a chegada dos mestres Sang Min Cho, Sang In Kim e Kun Mo Bang. O autor tem o mérito de ir construindo uma narrativa em crescente tensão que permite entender como se configurou a chegada dos coreanos à cidade de São Paulo e a construção histórica do tae kwon do nesta nova paisagem a partir das memórias edificadas pelos depoimentos.

Felipe Marta resgata o que foi vivido pelos depoentes da pesquisa, a fim de construir uma história. As reminiscências são construídas pelos depoentes na relação passado e presente dentro de um processo contínuo, no qual busca de maneira eficaz as relações estabelecidas, entre teoria (literatura oficial e especializadas) e a prática vivida pelos entrevistados. O autor escreve de maneira tão graciosa que não permite que a memória seja mero objeto, mas a torna vívida e produtiva.

Dessa forma, a obra se estrutura em três capítulos intitulados: Arte Marcial, Filosofia Oriental; Rumo ao desconhecimento: Imigração coreana, imigração de mestres coreanos e a origem do tae kwon do em São Paulo; Oriente e ocidente, Coreia e Brasil.

O capítulo I é apresentado da seguinte forma: em busca do “DO”; tae kwon do e o passado da Coreia; e criador e criatura. Neste capítulo o autor aproxima as categorias artes marciais e as filosofias orientais, apresentando o tae kwon do como uma arte marcial, técnicas de defesa pessoal, com uma história e uma filosofia particular de origem oriental. Esta luta é abarcada por princípios filosóficos que são: os espíritos, o juramento e o sufixo “DO”.

Ainda destaca a atuação do General Choi Hong, personagem principal no processo de desenvolvimento do tae kwon do. Em 1967, Choi Hong Hi funda na Coreia a International Taewondo Federation (ITF) com a intenção de preparar vários mestres e disseminar a prática do tae kwon do pelo mundo. Em 1972 é exilado da Coreia do Sul, fato que contribuiu para a criação da WTE, Word Taekondo Federation, em 1973.

O autor de maneira inteligente apresenta a relação existente entre as artes marciais e as filosofias orientais, relacionando os elementos do tae kwon do constitutivo na memória dos depoentes, dos documentos e da literatura analisada, e por fim dedica suas últimas palavras do capítulo para expressar sobre o geral Choi Hong Hi, a partir das memórias dos depoentes, já que nas literaturas oficiais este nome não é apresentado. Assim, o autor utiliza-se especificamente da memória para resgatar os impasses travados no passado, especificamente na Coreia,  Já no capítulo seguinte os impasses são apresentados especificamente no contexto do Brasil, da seguinte forma: imigração coreana, imigração de mestres coreanos e do tae kwon do em São Paulo; Imigração coreana no Brasil; Imigração de mestres coreanos e a origem do tae kwon do em São Paulo.

Desse modo, o autor discute as diferenças entre ser um “mestre imigrante” e ser um “imigrante coreano” nas novas terras, dito em outras palavras, as diferenças entre ser um mestre de tae Kwon do e ser um coreano em terras brasileiras, especificamente na cidade de São Paulo. O povo coreano não tinha o hábito de sair da sua terra e carregavam os valores de que “os filhos não devem abandonar o solo em que seus ancestrais estão sepultados” 2, estes valores mudaram após dificuldades enfrentadas nos campos econômicos, políticos e militar pelo país no início dos anos 60 e o governo estabelece a política de emigração.

Assim, os imigrantes coreanos passaram a integrar a paisagem da cidade de São Paulo, vindos na condição de colonos agrícolas cheios de esperança, sonhos e em busca de novas oportunidades. No entanto, sofreram dificuldades na nova terra por conta dos costumes, da cultura e do idioma que eram bastante diferentes, acarretando intensa adversidade na comunicação. Em outras palavras, um corpo carregado de uma história oriental teve que se adaptar a uma história de corpo ocidental.

Todavia os “mestres coreanos” vieram com objetivos diferentes da motivação dos “imigrantes”, em consequência de um pedido supostamente feito a Choi Hong Hi pelo governo brasileiro, para que os mestres de tae kwon do viessem para treinar a policia no combate aos terroristas e grupos de esquerda na época de 1970.

É possível observar nos detalhes ricos da obra todos esses aspectos, deixando evidente que “o caminho inicial dos mestres coreanos, ao contrário dos demais imigrantes coreanos, não teria sido num primeiro momento o do ‘arco-íris’ e sim o ‘dos pés e das mãos’. Em outras palavras o tae kwon do”.3  O último capítulo trata dos meios e planos adotados pelos imigrantes coreanos e mestres coreanos para sobreviver à nova realidade. Está dividido em três tópicos: Mestres de tae kwon do e imigrantes coreanos tentando ir “além do arco-íris”; Ser um “coreano num lugar onde não havia coreano; e Arroz com feijão ou churrasco com sal e açúcar;  Os últimos tópicos narram a trajetória dos imigrantes rumo à integração à sociedade brasileira e o papel das novas gerações neste processo. Estas diferentes gerações são classificadas como “1.0”, “1.5” e “2.0”. Os imigrantes que vieram com a idade adulta são caracterizados como geração “1,0”, os que imigraram com idade infantil são denominados “1.5” e os descendentes destas gerações anteriores, mas que nasceram no Brasil são designados “2.0”. Esta classificação guarda um sentido de superioridade, no qual os 2.0 e 1.5 são superiores aos “1.0”. 4  Os “mestres coreanos” tinham um prestígio na Vila Coreana. Inicialmente sua função foi atribuída à difusão do tae kwon do e a um relacionamento próximo com as pessoas do regime militar, o que favoreceu a atuação de uma liderança política na colônia. Esses mestres ainda que de maneira limitada transitavam entre a cultura brasileira e a cultura coreana.

Com o fim do regime militar e a ascendência da geração “1.5” e “2.0” este prestígio da geração dos mestres “1.0” foi caindo, conquanto esta primeira geração gozou do momento de ascensão e lentamente muitos se afastaram do tae kwon do e seu objetivo se aproximou aos dos “imigrantes coreanos”, conquistar a sua elevação financeira.

As novas gerações, “1.5” e “2.0”, se afastaram da cultura coreana, influenciando o novo desenvolvimento do tae kwon do. A geração “2.0” passa a transmitir os valores orientais de forma secundária. Com a nova aproximação com o esporte o tae kwon do perde sua identidade, sendo possível a observação de três formas de desenvolver essa prática no país, a dos mestres “1.0”, a dos mestres “1.5” e a dos mestres brasileiros, sendo estes últimos os que mais potencializaram a prática do tae kwon do como esporte no Brasil.

Em síntese o autor apresenta a partir da memória dos depoentes situações acerca da história do tae kwon do, no período de 1970-2000, que inclui lembranças e esquecimentos dos sujeitos sociais entrevistados. A obra apresenta-se como um instrumento para debate, reflexões e futuros estudos sobre as artes marciais no Brasil, apresentando-se como um importante instrumento para os estudos da sociedade brasileira, contribuindo de maneira significativa para conhecimentos posteriores, devendo ser apreciada por todos, especialmente pelos que se interessam pela história dos esportes no Brasil.

Notas

1 MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. O caminho dos pés e das mãos: Tae kwon do, arte marciais, esporte e colônia coreana em São Paulo (1970-2000). Vitória da Conquista: Edição UESB, 2013,p. 12.

2 Idem p. 74.

3 Idem p.101.

4 Idem p. 110.

Alantiara Peixoto Cabral – Mestranda pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Título: Formação continuada em educação física: memória dos atores principais deste processo. Orientador: Dr. Felipe Eduardo Ferreira Marta. E-mail: [email protected].

Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo | C. Mafra e R. de Almeida

Qual é a religião de uma cidade? Em um país de uma cultura tão rica e complexa como a nossa, essa pergunta é muito difícil de responder, e, em se tratando das duas nossas maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, a resposta parece impossível de conseguir.

Isso se pensarmos em uma religião, mas, quando ampliamos o leque religioso e deixamos que ele se abra para outras religiões, percebemos uma multiplicidade de crenças. É isso que propõe o livro Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, uma coletânea do núcleo de antropologia urbana da Universidade de São Paulo que aborda as múltiplas crenças que encontramos no Rio e em São Paulo. Leia Mais

A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana / Massimo Canevacci

A obra produzida em 2004 foi relançada em 2011 – em evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (PGAU-Cidade), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É constituída pelos estudos do Antropólogo, Doutor em Letras e Filosofia Massimo Canevacci, docente de Antropologia Cultural na Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma. Em seu início, apresenta uma instigante epígrafe de Walter Benjamin: “Não saber se orientar numa cidade não significa muito. Perder-se nela, porém, como a gente se perde numa floresta é coisa que se deve aprender a fazer” (BENJAMIN, 1971, p.76)1.

No texto de Massimo Canevacci, esse desejo de querer “perder-se na cidade” traduz-se como condição para realizar a metodologia da comunicação urbana. É o ponto de partida para a compreensão do fenômeno comunicacional, por intermédio de uma visão antropológica inovadora ancorada no conceito de “polifonia”. O autor utiliza tal conceito para analisar a cidade de São Paulo sob o prisma de diversas técnicas interpretativas que levam à identificação de um “paradigma inquieto” a partir do qual a cidade é interpretada.

Com um estilo refinado e envolvente, a escrita de Canevacci leva o leitor a transitar por um universo temático em que se destaca a multiplicidade conceitual, reflexo da tentativa de analisar a complexidade dos ritmos que caracterizam o espaço urbano, os espaços comportamentais e psicológicos dos indivíduos que transitam por ele. Na introdução, o relato de sua primeira visita à capital paulista, no ano de 1984, instiga o leitor a tentar compreender as dimensões do aparato simbólico da cidade.

Para Canevacci, o tecido urbano de São Paulo pode ser conhecido a partir da alternância de três ritmos de comportamento e controle espaço-temporal: a imobilidade doméstica, a hipervelocidade noturna e a lentidão do passeio solitário. Contudo, através da experiência, o autor pôde constatar o excesso de “metropolitanidade” como elemento de “irrepresentabilidade simbólica” da grande metrópole.

A impossibilidade de “mapear simbolicamente” o paulistano somente a partir de uma exploração superficial dos espaços públicos e privados nutre o conceito de “polifonia”, central na obra do antropólogo. O aspecto polifônico da cidade é caracterizado pelo entrecruzamento de diversas vozes copresentes nas ruas, avenidas, lojas, shopping centers, centros culturais e outros espaços da comunicação urbana.

Desse modo, busca o estabelecimento de passos para análise da cidade polifônica. Cada capítulo se desenvolve em torno de um tema específico, na tentativa de caracterizar cada aspecto da cidade a partir da abstração epistemológica do perder-se na cidade, destacando-se a autonomia das “vozes” que constroem seu caráter polifônico.

Assim, na primeira parte do livro, o autor apresenta os critérios epistemológicos para o desenvolvimento da pesquisa antropológica no âmbito da metrópole. Canevacci caracteriza a comunicação como eixo central para a discussão de tal pesquisa no seio da sociedade “pós-moderna”. Para tanto, o antropólogo desenvolve cinco capítulos.

No primeiro capítulo, são discutidas as particularidades da pesquisa urbana antropológica. O autor enfatiza a comunicação que ocorre no interior da “zona cinzenta”, formada pela interação entre as diferentes construções da cidade e os videopanoramas reprodutíveis.

O segundo capítulo evoca o tema do abandono sedutor à metrópole. Segundo o autor, tal discussão fora fomentada pelo futurismo a partir da oposição a uma espécie de “passadismo”, característico da tradição artística.

O terceiro capítulo aponta o nexo entre pensamento abstrato e forma-cidade. Com base na idéia de “pensamentos selvagens”, o autor evoca Claude Levi-Strauss, Canevacci para introduzir o estruturalismo como eixo de análise do contexto urbano.

O quarto capítulo apresenta uma tentativa de compreender a metrópole atual a partir das polifonias comunicativas. Desse modo, o autor recorda o olhar de Walter Benjamin sobre Paris como modelo de procedimento para compreensão do caráter polifônico em qualquer metrópole da contemporaneidade.

O último capítulo da primeira parte evoca a perspectiva literária para interpretação da condição urbana atual. Nesse capítulo, o autor elege o realismo fantástico de Italo Calvino como exemplo de estilo narrativo que evoca o sentido expresso pela polifonia urbana.

Na segunda parte do livro, Canevacci apresenta uma seleção de imagens que retratam os modos de comunicação urbana na grande metrópole paulista. A partir da interpretação de vinte e um sítios urbanos significativos para a cidade de São Paulo, o autor tenta “mapear” visualmente a cidade, desvendando as redes de significados que se formam através da comunicação polifônica.

O caráter empírico-aplicado da análise associa-se a uma escrita cujo estilo literário seduz o leitor e o estimula a conhecer as “vozes” que compõem o ethos da cidade. O complexo de tráfegos-miasmas-engarrafamentos é o caminho a ser percorrido pelo flâneur para compreender o estilo particular da cidade, a multiplicidade dos circuitos metropolitanos e os movimentos que definem sua urbanidade.

Em A cidade polifônica, Massimo Canevacci rompe com os meios tradicionais do métier antropológico. Através de uma instigante análise da metrópole comunicacional, o autor busca compreender seus sujeitos múltiplos, atores no processo interativo que formata o caráter sócio-espacial da cidade.

A cidade é compreendida como um organismo subjetivo que inventa valores e modelos de comportamentos estruturados por uma linguagem própria, baseada em intervalos delimitados pela ação dos indivíduos que habitam o espaço urbano. A leitura é indicada para todos aqueles que buscam compreender os sentidos de mobilidade, hibridismos e sincretismos culturais, substância da polifonia urbana na metrópole contemporânea.

Diêgo Marinho Martins – Mestrando PPGCULT-UFMA. São Luís, MA- Brasil. E-mail: [email protected].


CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel, 2004 (reimpresso em 2011). Resenha de: MARTINS, Diêgo Marinho. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.13, p.252-254.jul. 2012. Acessar publicação original. [IF].

 

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (PL)

São Paulo, capital, 2 de março de 1938. Enquanto a cidade começava a se recuperar dos muitos dias de festas e bailes de carnaval e o país se preparava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo da França, um crime ocorrido na Rua Wencelsau Braz chamou a atenção da polícia, da opinião pública e da população. As vítimas foram dois imigrantes chineses, que possuíam um restaurante no mesmo local onde moravam – cenário que viria a ser o de suas mortes. Seus dois empregados, um brasileiro e um lituano, também foram mortos.

O crime chamou a atenção pelo número de mortos, mas também pela maneira fria com a qual as vítimas foram supostamente tratadas. Nos dias de hoje, com a banalização da violência gerada principalmente pelos meios de comunicação, este crime não se diferencia significativamente de outros que podem ocorrer no dia a dia, em especial numa cidade grande e repleta de diferenças sociais como São Paulo. Mas em 1938, ele ficou marcado como um dos maiores crimes da época, sendo comentados por jornais, programas de rádio e pelas pessoas nas ruas, que a todo tempo lembravam “O Crime do Restaurante Chinês”. Leia Mais

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (PL)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Quarta-feira de cinzas e sangue: “O Crime do Restaurante Chinês” de Boris Fausto e o Brasil dos anos 1930. Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 5, n.9, p. 71-73, out., 2011.

São Paulo, capital, 2 de março de 1938. Enquanto a cidade começava a se recuperar dos muitos dias de festas e bailes de carnaval e o país se preparava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo da França, um crime ocorrido na Rua Wencelsau Braz chamou a atenção da polícia, da opinião pública e da população. As vítimas foram dois imigrantes chineses, que possuíam um restaurante no mesmo local onde moravam – cenário que viria a ser o de suas mortes. Seus dois empregados, um brasileiro e um lituano, também foram mortos. Leia Mais

O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30 | Bóris Fausto

Considerações iniciais

Há no panorama teórico da historiografia uma intensa discussão conceitual, que tem sido descrita como uma disputa entre paradigmas rivais (CARDOSO, 1997: 3). De um lado, aqueles que embasam seus esforços numa ótica iluminista, o que significa acreditar na capacidade da razão humana em descobrir e ordenar as forças em atuação no universo. Entre estes, ainda de acordo com Cardoso, podem ser enquadrados os marxistas, positivistas e mesmo aqueles ligados à “Nova História”. Trabalhos realizados a partir dessas diretrizes tendem a buscar uma visão holística do processo histórico, agregando os fenômenos sob explicações totalizantes.

Na outra ponta estão aqueles que abandonam tentativas generalizantes de explicação, enfatizando a singularidade dos objetos e a impossibilidade de reuni-los sob uma mesma rubrica sem que se percam suas qualidades fundamentais. A esses se atribui a filiação a certo “paradigma pós-moderno”. O movimento tendencial parece apontar para a ascensão da ótica pós-moderna em detrimento do paradigma iluminista. Leia Mais

Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo – BICUDO (CP)

BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos Chor Maio. São Paulo, Editora Sociologia e Política, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Tânia Mara Campos. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

Ouvi falar da dissertação de mestrado de Virgínia Leone Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945), pelo organizador da sua edição recente, Marcos Chor Maio (FIOCRUZ e CNPq), pouco antes de seu lançamento em novembro de 2010 – ocasião do centenário de nascimento da autora. O entusiasmo de suas palavras me levou a lhe perguntar sobre o ganho teórico e político do resgate dessa obra, no sentido de mensurar seu possível impacto no meio acadêmico e entre movimentos sociais. Ao me responder, Maio apontou vários dos seus aspectos produtivos no contexto atual, mas minha curiosidade em conhecer o material e identificar esses e outros aspectos persistiu até ter em mãos um exemplar dessa edição, que possui apresentação de Rodrigo Almeida (Editora Sociologia e Política), prefácio de Elide Bastos (UNICAMP), introdução do organizador e contracapa com elogios de destacados nomes das Ciências Sociais e Psicanálise.

Apresento nesta resenha, portanto, respostas à minha pergunta. De saída, ressalto ensinamentos de Virgínia Bicudo que poderiam ser transpostos para o esclarecimento de que minhas considerações resultam do diálogo com comentários anteriores, bem como da minha trajetória pessoal e de cientista social. Minha leitura está atravessada por outras interpretações e a elas concatenada. Em paralelo, nota-se a construção do objeto da dissertação (atitudes de indivíduos de cor referentes ao preto, mulato e branco em São Paulo), entretecida no cruzamento de tradições disciplinares, dimensões subjetiva e social do fenômeno, relações intra e intergrupos, articulação entre raça e classe, grupos distintos de dados, enfim, no esforço constante de triangulação teórico-metodológica.

Por intermédio das argumentações de Bicudo, faz-se presente o pensamento de Park (1931) sobre conflito cultural e formação da identidade, numa junção entre Antropologia, Sociologia e Psicologia Social pela Escola de Chicago. A ele se vinculam Stonequist (1937), com atenção voltada para pessoas divididas entre diferentes mundos sociais, Faris (1937), com interesse por atitudes sociais, Pierson (1942), com tese orientada por Park e que, por sua vez, orientou Oracy Nogueira e Virgínia Bicudo. Ambos, colegas de turma, inspiraram-se mutuamente e tiveram grande afinidade no tratamento da questão racial, chegando a resultados distintos de Pierson. Enquanto este privilegiava o preconceito de classe, aqueles afirmavam que a ascensão social não apagava as distâncias das marcas de cor.

Também, por meio da dissertação falam negros e pardos de bairros populares e médios paulistanos, pertencentes à classe social denominada inferior (trabalhadoras domésticas, serventes, motoristas e operários, analfabetos ou com curso primário) e à classe intermediária (profissionais liberais e funcionários públicos, com, no mínimo, o secundário). Esse conjunto de depoimentos, organizados por grupos de cor em interseção com classe, constitui parte do material empírico da investigação. Além dele, são encontrados relatos de ex-militantes da Frente Negra Brasileira, organização política da década de 1930, bem como textos do seu jornal Voz da Raça.

Por fim, de modo indireto, comparecem no estudo pessoas de “não cor”. O reconhecimento de que o sentimento de inferioridade dos pretos e mulatos advém das atitudes dos brancos, trazendo-os para suas conclusões, ainda que não os tenha entrevistado, mostra como Bicudo atentava-se à dimensão dialógica e de conflito embutida nos discursos dos/as entrevistados/as e na posição de subalternidade que ocupavam no quadro geral das relações raciais. Assim, ela anuncia a importância de se retirar o problema da marginalidade desses grupos de si mesmos.

Se conseguíamos definir os mecanismos psicológicos pelos quais os indivíduos se ajustavam, éramos forçados a depreender em função de que condições se estabeleciam. Parece-nos legítima a possibilidade de conhecerem-se até certo ponto as atitudes raciais de um grupo étnico, através das reações de outro grupo com o qual interaja. Fomos, pois, conduzidos a formular hipóteses sobre as imposições sociais decorrentes da estrutura social, o que equivale a dizer que também procuramos nas atitudes de pretos e mulatos o reflexo da atitude dos brancos (Bicudo, 2010:157).

A sensibilidade na escolha desse tema de pesquisa, que foi pioneiro dentre as dissertações de universidades brasileiras sobre a questão racial, e a competência em lhe oferecer complexo tratamento empírico e analítico só foram possíveis a partir do lugar existencial de Bicudo. Segundo o organizador da obra, ela era uma mulher parda paulistana. Filha de mãe imigrante italiana pobre, com negro possuidor de educação secundária e do desejo frustrado, por preconceito racial, de tornar-se médico, terminando a vida como funcionário dos Correios. Seu pai era afilhado de fazendeiro, senador e fundador do jornal O Estado de São Paulo, de quem herdou o sobrenome Bicudo. Virgínia formou-se normalista e fez o curso de educadores sanitários, sendo contratada pelo Serviço Escolar do Departamento de Educação. Em 1936, iniciou a graduação em Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) – instituição vinculada à USP à época. Por ocasião do bacharelado conheceu Durval Marcondes, médico e psicanalista, que implantou o Serviço de Higiene Mental Escolar estadual em 1938, quando Bicudo tornou-se visitadora psiquiátrica. Nos anos 40, começou a ministrar as disciplinas Higiene Mental e Psicanálise na ELSP e ingressou na sua primeira turma de mestrado. Assim, iniciou uma carreira de protagonista no campo da Saúde, Ciências Sociais e Psicanálise. Seu percurso foi peculiar e grandioso face aos resultados de sua própria pesquisa, os quais mostram a discriminação ceifadora da mobilidade social e realização pessoal.

Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para compensar o sentimento de inferioridade. Ao mesmo tempo em que se empenham em desenvolver valores pessoais, para eliminar a concepção desfavorável, procuram a autoafirmação na conquista da aceitação incondicional por parte do branco. Consequentemente resulta uma luta por status social mais árdua, dadas as barreiras das distâncias sociais na linha de cor. (…) obtêm ascensão social os indivíduos de cor dotados de inteligência e que desde a infância tiveram estímulos sociais nos contatos primários com brancos. Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as conseqüências do conflito mental (Bicudo, 2010:160).

A revelação clara de sua “consciência de cor”, expressão empregada por Virgínia para designar o grau de discernimento dos sujeitos em relação à participação de suas características afrodescendentes nas interações, circuitos sociais e conflitos psíquicos, encontra-se no seu trabalho e nas motivações para desenvolvê-lo. Nas primeiras páginas, ela afirma ter estado atenta ao elo com os/as entrevistados/as. Quanto a si, procurou estar ciente das questões pessoais que lhe conduziram à investigação, bem como das suas atitudes sobre o objeto para que tivesse autocrítica, limitando suas projeções nas entrevistas e análises. Quanto aos sujeitos abordados, procurou estabelecer condições psicoafetivas favoráveis à livre expressão. Esse cuidado com os processos de transferência e contratransferência, tendo em conta sua consciência de cor e da posição de autoridade profissional diante dos sujeitos interpelados, sugere influência psicanalítica no entendimento sobre a formação do vínculo e aguçado tato para lidar com fenômeno tão íntimo. Porém, ter criado um ambiente favorável à expressão não se deveu apenas ao domínio de técnicas de abordagem, como também profunda empatia com o outro. Além disso, a explicitação desse cuidado sugere a necessidade em defender-se, de antemão, de acusações de falta de objetividade e neutralidade científicas sob o crivo avaliador positivista.

Sua trajetória pessoal seria facilmente incorporada aos casos da dissertação, enquanto mulher mulata, pertencente aos estratos da classe social baixa na infância e em ascensão à classe intermediária na idade adulta. Ela quebrou barreiras raciais e sociais em diversos momentos da vida e encontrou no exercício intelectual um caminho para elaborar suas experiências traumáticas. Maio (2010a, 2010b) relata que Virgínia mencionou o sofrimento como um motivo de sua opção pelas Ciências Sociais na ELSP, uma vez que lá se estudava o problema do negro e se acolhia estudantes não elitistas. Esperava descobrir causas e meios de lidar com sua dor, que compreendia como originada nos intercursos sócio-culturais. Há registros em que diz ter sido vista ofensivamente como negrinha pobre quando pequena e, após ter crescido, como mulher emancipada – haja vista que era a única mulher na primeira turma de Sociologia e Política da ELSP, em 1938. Seu processo de branqueamento foi notório. Seus traços afrodescendentes foram minimizados desde as mudanças sócio-econômicas do pai, passando pela sua instrução e ocupação, até sua aparência. Seu sofrimento deslocou-se da cor e centrou-se na condição de mulher inadequada a espaços físicos e simbólicos.

O que se poderia denominar de “consciência de gênero” de Bicudo, nos parâmetros da “consciência de cor”, não aparece formulado em seu estudo. A condição de gênero não foi problematizada, nem em relação a si nem em relação às mulheres entrevistadas. Essas aparecem em número de 17, frente a 31 casos expostos. São majoritariamente negras e mulatas das classes sociais inferiores, enquanto os homens se concentram nas classes intermediárias. Tal distribuição dos/as entrevistados/as confirma os antecedentes históricos da atual presença de negras e pardas nas camadas mais pobres e de menor escolaridade do país. Enquanto as mulheres enunciam curtas respostas à pesquisadora, homens se estendem em longas reflexões, reafirmando também a tradição patriarcal de que eles detêm a palavra. Esse cruzamento de classe, raça e gênero não fez parte dos objetivos da autora, nem foi sinalizado. Contudo, algumas pontuações a respeito podem ser feitas.

Primeiramente, Bicudo identificou a preferência de negros e mulatos de se casarem com mulheres cujos traços fossem mais claros que os seus. Em contraposição, as negras e mulatas casavam-se com consortes da mesma cor ou mais escuros, para não sentirem rejeição ou, entre as pardas, não serem chamadas de “negras” pelo marido ou suas famílias. Contudo, com pouquíssima viabilidade, várias dessas desejavam os brancos. A dinâmica matrimonial aponta para tramas veladas da discriminação, uma vez que os homens subalternos, para se identificarem, se aliarem imaginariamente com os dominantes e ascenderem na hierarquia social, reeditavam com as afrodescententes a relação de poder a que eram submetidos. Logo, essas mulheres estavam (e ainda estão) em situação pior que a dos homens de cor e das brancas, fadadas a amargar as mais baixas posições numa estrutura social que conjuga racismo com sexismo.

Em segundo lugar, ressalta-se que seis dos sete casos dos negros de classe inferior são mulheres, face à totalidade de homens nos casos dos negros intermediários. Atravessa os grupos uma forte questão de gênero. A análise de Bicudo indica maior simpatia do primeiro grupo, o das mulheres, aos brancos, já que se viam tratadas melhor por estes que pelos negros e mulatos. Essas atitudes se fundamentariam no sentimento de inferioridade do grupo. Ao perceberem os contatos com brancos mais harmoniosos, as negras responderiam a um mecanismo de evitação do conflito com eles, compensando a subalternidade e acabando por ter baixa consciência de cor.

Ao se introduzir a questão de gênero, pode-se supor outras chaves interpretativas, relativizando a auto-rejeição associada a esse grupo, a qual seria a mais alta dos grupos estudados. Ou seja, elas possuiriam conflitos com negros e mulatos por vivenciarem realmente violenta discriminação advinda deles, uma vez que representariam a alteridade de dentro, aquela parte de si mesmos por eles abominada. Só que é com elas que partilhariam relações comunitárias e sobre a inferiorização delas é que galgariam degraus na escalada do poder. Já, para os brancos, as negras pobres representariam uma alteridade distante, menos ameaçadora, fora da possibilidade de interações afetivas e sociais próximas, o que lhes proporcionaria contatos amenos.

As discussões sociológicas dos anos 1940 mal concebiam a diferença de cor fundadora da desigualdade social (o que acentua o mérito de Bicudo em tratar do assunto), muito menos vislumbravam a inclusão da diferença sexual na pauta. Apenas no fim da década, intelectuais e feministas problematizaram sistematicamente tais questões e criticaram as teorias vigentes nos meios acadêmicos. Estas eram psicanalíticas e, obviamente, Bicudo as conhecia. Grosso modo, dizia-se que o psiquismo, atrelado ao corpo feminino, talhava as mulheres à maternidade, às atividades domésticas e pouco intelectuais, bem como lhes imputava a auto-desvalorização e vitimização. Interessante como Bicudo não se rendeu a argumentos dessa natureza para explicar as atitudes das negras de classe inferior, generalizando o grupo para ambos os gêneros. Qualquer determinismo, psíquico ou biológico, na análise dos dados lhes retiraria o peso sócio-cultural, impossibilitando reflexões psicossociais ao dilema racial.

Ao se jogar luz sobre a condição de gênero de Bicudo, juntamente com os resultados de sua pesquisa, nota-se que sua audácia era enorme e que, provavelmente, corria risco constante de ser desautorizada. Afinal, a academia se erigiu em base androcêntrica, branca e européia/norte-americana. Como ela poderia trazer à tona sua identidade de gênero nos loci da produção de conhecimento, onde se excluíam mulheres e afrodescendentes? Onde ideias eram pensadas por sujeitos considerados sem história, sem classe ou qualquer marca social, assim como ideias eram tidas fidedignas da realidade e, não, formuladas a partir de pontos de vista? Provavelmente, sua consciência de gênero (somada à de cor) a levou a estratégias de acomodação frente à discriminação. Expor-se mulher ou tratar dessa questão colocaria a perder o árduo trabalho que já se mostrava à margem das referências intelectuais da época.

Talvez por ter rompido com o mito da democracia racial, que concebia equilíbrio social entre as raças formadoras do povo brasileiro, bem como com as proposições sobre o preconceito de cor estar subsumido ao de classe, seu estudo tenha tido circulação restrita. Suas considerações, embora exploratórias e passíveis de revisões, anteciparam interpretações sobre relações raciais no país nas décadas seguintes e ficaram silenciadas em período mais recente. Hoje, seu resgate contribui para se refazer a história das Ciências Sociais, do pensamento social e das mulheres afrodescendentes no Brasil. A recente reedição de sua dissertação, portanto, é louvável diante do grande valor do seu conteúdo e de sua autora.

Referências

Bicudo, Virgínia L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por Maio, Marcos C. São Paulo, Sociologia e Política, 2010.         [ Links ]

Faris, Ellsworth. The Nature of Human Nature, and other Essays in Social Psycology. New York, McGraw-Hill, 1957.         [ Links ]

Maio, Marcos C. A contribuição de Virgínia Leone Bicudo aos estudos sobre as relações raciais no Brasil. In: Bicudo, Virgínia L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo, Sociologia e Política, 2010a, pp.23-60.         [ Links ]

__________. Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu (35), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2010, pp.309-355.         [ Links ]

Park, Robert. Human Nature, Atitudes, and the Mores. In: Young, K. (ed.) Social Atitudes. New York, Henry Holt & Co., 1931, pp.17-45.         [ Links ]

Pierson, Donald. Negroes in Brasil: a study of race contact at Bahia. Chicago, University of Chicago Press, 1942.         [ Links ]

Stonequist, Everett. The Marginal Man: a study in personality and culture conflict. New York, Charles Scribner’s Sons, 1957.         [ Links ]

Tânia Mara Campos Almeida – Professora do Departamento de Sociologia – UnB, E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (CTP)

FAUSTO. Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: ROSALBA, Patrícia Salvador Moura. O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.

São Paulo, década de 1930, carnaval, festas, copa do mundo, crimes e justiça, são alguns dos temas retratados por Boris Fausto no livro O Crime do Restaurante Chinês. O autor faz um estudo detalhado sobre um episódio criminoso que acometeu o casal de chineses Ho-Fung e Maria Akiau e mais duas vítimas, dois homens que trabalhavam no estabelecimento comercial do casal. Para a produção do livro, Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal. Esmiúça os jornais publicados durante o marco temporal mencionado e o prodigioso processo criminal que detalha um dos fatos policias que mais chamou atenção da opinião pública paulistana na década de 1930. Resgata em sua memória a beleza e a mestria do carnaval de 1938, vivenciada sob a companhia da família por meio da participação do corso da Avenida São João, sempre ao cair da noite no domingo e terça-feira de carnaval. Relembra como o tal crime marcou a sua infância através das imagens estampadas nos jornais e que aterrorizaram suas noites, dos comentários que escutava nas ruas e no ambiente familiar sobre o episódio. Boris vivia, sentia, sofria com os fatos que conhecia sobre o crime na época de sua infância. As lembranças, a curiosidade do excelente pesquisador e sua trajetória profissional no campo acadêmico, contribuíram para que Boris Fausto construísse um enredo envolvente e misterioso com revelações que surpreendem o leitor a cada página e capítulos. Trouxe a baila discussões importantes que marcaram e ainda estão presentes na cultura brasileira como a importância da imprensa na formação da opinião pública, os dispositivos técnicos utilizados pelo sistema de justiça criminal para solucionar crimes, teorias raciais, a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados nas grandes cidades e, sobretudo, a grande euforia provocada por dois momentos importante de exacerbação da cultura brasileira, o carnaval e a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França em 1938, aliás, rituais cristalizados nacionalmente que, em suas várias versões, continuam a movimentar os espaços culturais brasileiros provocando momentos de euforia coletiva.

A perspectiva teórico-metodológica utilizada pelo autor está ancorada nos estudos denominados de micro-história. Com base em autores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Le Roy Ladurie, a micro- história se constituiu como um gênero muito estudado que influenciou e influencia a construção de diversos estudos históricos. Portanto, Fausto ainda nos presenteia com detalhes metodológicos desta forma de fazer história, na medida em que evidencia em sua escrita as principais características dessa metodologia. Reduziu a sua escala de observação, com a narração do crime do restaurante chinês, no qual buscou significados importantes que falam da cultura paulistana e que passariam despercebidos na leitura ampla de grandes episódios. Concentrou a observação em pessoas comuns como Arias de Oliveira, Ho-Fung, Maria Akiau, José Kulikevicius e Severino Lindolfo Rocha, ambos marcados socialmente através dos estereótipos de algoz e vítimas. Extraiu dos discursos presentes nos jornais e nos processos, dos fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão social muito importante para entender e explicar a cidade de São Paulo dos anos 30 e suas peculiaridades, utilizando-se do estilo narrativo para contar a história. O livro está dividido em dezesseis capítulos, acrescentados de uma breve explicação e de uma introdução, nos quais a autor narra o acontecimento policial de 1938 em detalhes, com imagens ricas, fotos que apresentam São Paulo nos anos de 1930, manchetes dos jornais relatando o crime, além das fotografias das pessoas envolvidas no processo criminal, desde as vítimas, acusado e autoridades do Sistema criminal e médico. São fotos surpreendentes acompanhadas de explicações que envolvem o/a leitor/a na teia dos acontecimentos e os/as deixa com vontade de não parar de ler. Uma trama que envolve o debate entre saber, poder e ciência, esmiuçado em laudos periciais, testes psicológicos, teorias científicas, interrogatórios, depoimentos, confissões, relatórios, denúncia e sentenças, e coloca na cena principal o acusado Arias de Oliveira, negro, pobre, analfabeto e interiorano, cujo corpo e mente são analisados, estudados, destrinchados pelo Estado, numa ação que evidencia as interfaces da biopolítica. Para aguçar a curiosidade de quem ainda não teve o privilégio de tal leitura, recorro ao estilo descritivo e informo que em uma manhã da quarta-feira de cinzas de 1938, foram encontrados quatro corpos em um restaurante chinês, situado à Rua Wenceslau Braz nº 13. Os corpos espalhados no chão dividiam espaço entre mesas e cadeiras, e foram identificados como sendo de Ho-Fung, chinês, imigrante e proprietário do restaurante e de sua mulher Maria Akiau. Além do casal, também compuseram a cena do crime mais dois corpos de homens que foram identificados como o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Rocha, ambos trabalhavam no restaurante havia pouco tempo antes do crime. Os assassinatos contra os dois empregados do restaurante foram cometidos com diversos golpes de um cilindro de madeira, que era usado como pilão na cozinha do estabelecimento comercial. O dono do restaurante, além de ser espancado e ter várias fraturas na cabeça, também foi asfixiado, aparentemente, numa tentativa de não deixar dúvidas sobre sua morte. Maria Akiau, que foi assassinada por último, lutou com o criminoso, como demonstrou o laudo, através da constatação de marcas de unha em partes de seu corpo, e foi esganada com um laço de tecido apertado em seu pescoço. A partir da cena encontrada, a apuração dos assassinatos se desenrola e várias questões brotam, sem respostas imediatas. A principal delas se dirigia ao responsável pelo crime, ou seja, quem teria sido o assassino monstruoso? É nessa teia de acontecimentos que se chega ao principal suspeito, Arias de Oliveira. A história se desenvolve, de maneira rica em resgate de fatos históricos, e por meio de uma verdadeira aula de metodologia e análise de fontes documentais. Além do mais, coloca o/a leitor/a em contato com a memória pessoal de Boris Fausto em plena década de seu nascimento, revelações sobre sua família, seus medos, o marcante carnaval de 1938 e relatos indiciosos e inesperados sobre esse fato que lhe marcou e que ficou registrado, segundo o próprio Fausto “nas ilusões da memória” p.217 como “o mais aterrorizante elemento da cena do crime” p. 217, mas que não aparece registrado em nenhuma fonte analisada pelo autor. O livro em questão trata da história de São Paulo, e porque não dizer da História do Brasil, ligando acontecimentos culturais importantes a um crime que tomou as páginas dos jornais paulistanos em uma década marcada por importantes mudanças em âmbito nacional. Destaco que, uma das principais contribuições do autor é reflexão sobre as formas de se fazer história, através de uma discussão pertinente com a memória. Recomendo ao leitor a se debruçar sobre as páginas do Crime do Restaurante Chinês, certamente será uma prazerosa leitura, repleta de enigmas e descobertas.

Nota

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa – Aluna do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente -GET e do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades-NIGS da UFSC.

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Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.

Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.

Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.

Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.

Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:

A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).

Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:

Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).

Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.

Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.

Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.

É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).

Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:

O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).

Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.

O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.

Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.

Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.

É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).

Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:

Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).

Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.

É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.

Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).

Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.

Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.

Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.

Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.

Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?

Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.

Notas

1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links] 2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links] 6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links] 7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links] 8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links] 15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]

Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

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O crime do restaurante chinês – FAUSTO (H-Unesp)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 246 p. Resenha de: PEREIRA, Vantuil. Uma “outra” São Paulo da década de 1930. História [Unesp] v.29 no.1 Franca  2010.

A década de 1930 sempre exerceu certo enlevo para quem estuda a História do Brasil Contemporâneo. Em grande medida, a Revolução de 1930 pautou tanto as ações políticas, quanto as ações acadêmicas. Assim, no campo acadêmico, olhar para aquele decênio significa tentar compreender fenômenos como o populismo, o estudo das “modernas” formas de fazer política, o estilo constituinte dos partidos contemporâneos.

É resultado deste período a estruturação daquilo que Wanderley Guilherme dos Santos denominara “cidadania regulada”, isto é, uma inserção social controlada pelo Estado, no qual os direitos inerentes de cidadania são constituídos de forma parciais e com uma clara intenção homeopáticas.

A essa época consta também os traços ou resquícios de um tempo não muito distante. Pertencem a mesma década as principais formulações racistas e autoritárias, expressas na eugenia ou na proposição de que não haveria um sentimento de povo no Brasil, apenas visões parciais e localistas. Por seu turno, a sociedade não estaria preparada para o exercício político; não estava acostumada com instituições democráticas. Do mesmo modo, o pensamento científico ganhava terreno, ampliando suas relações socais concretas.

Diferentemente de verificar como um Estado autoritário impactou na vida de um militante comunista ou sindicalista, esta historiografia deixa de olhar como estas instituições impactaram no cotidiano das pessoas comuns. Embora as ideias racistas não tivessem sido introduzidas no Brasil naquela época, foi em 30 que as discussões raciais ganharam terreno. Elas resultaram de uma articulação entre a academia e a vida cotidiana da população através dos aparelhos repressivos que, mediado pelo Estado, interferiram no dia-a-dia da população.

Ao lançar vistas para os anos de 1930, tem-se pelo menos dois outros aspectos instigantes. O primeiro se refere a uma preocupação principal com a construção do edifício e as bases do Estado moderno nacional, seja pelo viés industrial e urbano, seja pelo pensamento político e jurídico daí emanado. Em segundo lugar, dá-se ênfase a compreensão do fenômeno político que foi Getulio Vargas, uma espécie de mito moderno o qual, ao longo das décadas seguintes à sua chegada ao poder, acabou por instituir uma espécie de paradigma político e social na história recente do país.

Desse modo, frequentemente a história política dos anos 30 esteve às voltas com as narrativas das grandes personalidades que, obviamente, não se restringiam à persona de Getúlio, podendo-se falar em figuras como Gustavo Capanema, Juarez Távora, Francisco Campos, etc. Portanto, tratar-se-ia de um enfoque histórico a partir dos grandes homens ou, no mais das vezes, de uma história política renovada que procurava construir uma releitura das ações, padrões políticos, mentalidades e culturas políticas dentro de uma lógica motivada “pelo alto”.

Raros são os estudos deste período que versam sobre a compreensão do mundo das camadas populares, dos homens e mulheres comuns, embora sejam tocados pela construção do Estado, pelos discursos de Getúlio Vargas e toda carga simbólica que ele representara. Ao mesmo tempo, podemos perguntar como a urbanização acelerada, o fortalecimento e consolidação de uma opinião pública, calcada no rádio, moldaram as vidas ou como esses elementos repercutiram no cotidiano da gente comum, pois coadjuvado com a imprensa escrita, irradiavam valores de um “novo” momento nacional.

Em grande medida, a impossibilidade de se alcançar os impactos das transformações daquela década se deveu, por um lado, pela própria perspectiva histórica de valorização da história política tradicional, pela resistência em ver na gente comum uma cultura ou capacidade de reação às ações do Estado. Por outro lado, inexistiam métodos capazes de perceber tais nuances específicas das camadas sociais mais pobres.

Esses limites começam a ser quebrados no Brasil a partir da década de 1980 quando, sob influência da micro-história, ocorre uma junção das análises com a eleição do cotidiano como campo de observação com o enfoque sociocultural. A preocupação aqui está em examinar como a classe operária (e não seus dirigentes) é formada, ou como ocorrem resistências populares a partir de uma “outra historia”. O cotidiano é visto a partir do contraditório, revela tensões, desconexões aparentes, conflitos com os poderes e das resistências a esses poderes.

Henrique Espada (2006) argumentaria que seria importante o historiador olhar com atenção para as paisagens que aparentemente não se transformam. Sugere-se, portanto, que se tome, se não um procedimento, ao menos a qualidade de uma observação ou de uma perspectiva frente aos objetos da análise. Assim, a metodologia ou as fontes disponíveis para se chegar às pessoas comuns não são as mesmas que para se compreender o modo de pensar das grandes personalidades.

Como afirmavam E. P. Thompson, George Rudé e Eric Hobsbawm, as pessoas comuns – quase que invariavelmente -, não deixaram documentos escritos para a posteridade e não tinham arquivos disponíveis para guardar as suas memórias. Dessa forma, um procedimento para auscultar este segmento social se faz através de um tratamento intensivo das fontes, ao seu modo peculiar de ler os indícios, isto é, a atenção do historiador deverá ser redobrada, ele deve estar atento a todos os detalhes, aos não ditos. Em diversas oportunidades ele está trabalhando ao nível das trajetórias individuais, da realidade cotidiana e de ardis recorrentes nas extensas redes de pequenos poderes onde os atores sociais se revelam em toda a sua humanidade.

Ao valer-se da metodologia e do enfoque micro-histórico, O crime do restaurante chinês de Boris Fausto, vem cobrir parte desta lacuna do período do Estado Novo. O autor traz contribuições valiosas para o entendimento do modo de pensar e de como as pessoas comuns sobreviviam no interior de uma cidade de São Paulo em transformação.

O autor se relaciona com a micro-história ao considerar aspectos determinantes daquela metodologia, tais como a redução da observação do historiador. Fausto não se preocupa em tratar, por exemplo do Estado como ente privilegiado, ele busca apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros

Do mesmo modo, para dar consubstanciação à sua proposta, ele concentra sua escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir suas vozes. Aqui, entra um terceiro elemento, pois há uma preocupação em extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante.

Embora reconheça que sua obra possa ser lida como uma “boa história”, Fausto marcará sua posição de historiador ao revelar dois aspectos imprescindíveis de seu trabalho. Embora apele para o recurso da narrativa, contraria a história das grandes estruturas, sem se confundir com o estilo das narrativas tradicionais, predominantes no século XIX. E, por fim, mas não menos importante, situa sua obra no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando assim, claramente, a obra ficcional.

No último ponto, Fausto retoma alguns ensinamentos de Carlo Ginzburg e suas preocupações em distinguir seu modo de construção narrativo da corrente que propugna por um ataque cético à cientificidade das narrações históricas (GINZBURG, 2007, p.10-13). Afirma que as narrações históricas não falariam da realidade, mas sim de quem as construiu. O crime do restaurante chinês tem um estilo preferencial pela narrativa, admite Fausto, mas não a narrativa ficcional, pois a trama se apoia em fontes históricas, conclui o autor.

Em seu lugar, Fausto atuará mais como um camponês arando um terreno árido, procurará se situar mais como um “vasculhador” de testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugeria, isto é, contra as intenções de quem os produziu.

Uma das grandes forças de O crime do restaurante chinês é que sua escala de observação é reduzida. Vários personagens são pessoas comuns, invisíveis no plano dos grandes acontecimentos, que não figuram na galeria dos grandes mitos da história nacional. Contudo, dentro da proposta micro-histórica, o modo de pensar, as vidas e as interações das pessoas comuns servem para inseri-las em um amplo contexto social que serve como chaves de entendimento de ângulos ignorados do contexto da época. São “fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança”, dir-nos-ia Boris Fausto.

O autor argumenta que a problemática só poderá ser entendida se compreender o contexto geral em que a vida das pessoas está envolvida. Assim, ele situará suas análises ao longo da repercussão do próprio crime do restaurante chinês, isto é, na São Paulo da década de 1930, ou, com maior incidência, nos anos que vão de 1938 a 1942. Naquele momento, a cidade não era a megalópole dos dias atuais. Todavia, ela já vivia os problemas dos grandes centros urbanos, sobretudo se considerarmos que nela já habitavam mais de 1 milhão de pessoas. Os vestígios do passado insistiam em não desaparecer, ainda que os meios de informação estivessem bastante disseminados, pela via dos jornais e das emissoras de rádio, que alcançavam não só a classe média como setores das classes populares. Outro aspecto da cidade era a presença de uma multiplicidade étnica, em grande medida resultante da imigração em massa de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX. “Em meados dos anos 1930, nela conviviam imigrantes e seus descendentes, velhos paulistanos em crescente minoria e migrantes internos que começavam a chegar em grande número, de Minas Gerais e do Nordeste” (FAUSTO, 2009, p.10).

Fausto reconhece que a obra está envolta de elementos de sua própria memória, pois parte do que ele retira dos relatos e da narrativa é decorrente das lembranças da sua infância, do carnaval de 1938, dos encontros familiares, das desgraças, etc. A memória reconstruída por Fausto é como uma fotografia de sua infância. O que foi lembrado é interessante na medida em que nos revela parte da trama.

O escritor admite que na sua memória “ficaram apenas as imagens do último carnaval [em família], do mistério sem rosto da morte da minha mãe. Ficaram também as imagens do crime do restaurante chinês, na versão em que Arias de Oliveira era considerado o autor da chacina” (FAUSTO, 2009, p.217), motivadas pelas cenas estampadas nos jornais, pelos comentários repercutindo o massacre.

No presente, ocorre um confronto entre o historiador e sua memória. A memória reconstruída do autor procura não o julgamento, mas a compreensão daquelas cenas, a partir das evidências, das fontes. O “juiz” transforma-se em historiador. Lembrar agora pode ser visto não como algo inocente, pois, olhando por trás dos ombros do delegado e nas tintas da imprensa que repercutia o crime, fica consciente de que, a autoridade depositada nestas instituições são elas mesmas apenas vozes contraditórias que se juntam ao processo.

As cenas que atormentavam um pequeno menino não deixavam de ser as da exposição de uma memória coletiva. As percepções de Boris Fausto, ainda que aparentemente passem à margem dos acontecimentos daqueles anos, implicam nas tramas que circundavam a sociedade: o crime, o futebol, o carnaval, as leituras que a imprensa construía sobre os envolvidos nos acontecimentos do carnaval de 1938 e a primária ideia de justiça.

O crime do restaurante chinês é uma chave de abertura dos caminhos mais amplos, seja ele o funcionamento do aparelho policial e judiciário – aqui estariam ausentes o uso da força como mecanismo de dominação e a obtenção da confissão do acusado negro Arias de Oliveira – , ou os novos mecanismos propugnados pela ciência criminológica, auxiliada pela psicologia e pelas técnicas desenvolvidas pelo professor positivista italiano Cesare Lombroso. Portanto, recorrentemente, estão contidas as teorias racistas, que procuravam demonstrar os tipos de homens capazes de cometer crimes e, consequentemente, a discussão da natureza da criminalidade e do perfil dos infratores.

Dividido em 16 capítulos curtos e objetivos, o livro é de fácil compreensão e acessibilidade (tanto para um leitor leigo quanto para um acadêmico). A obra conta o desenrolar do crime (ou chacina, como afirma o autor) do restaurante chinês, ocorrido no carnaval de 1938. No morticínio morreram o proprietário do restaurante, sua mulher e dois empregados do casal. Auxiliado pela riqueza de detalhes produzidos por jornais como o Estado de São PauloFolha da Manhã e Correio Paulistano, Fausto constrói a trama procurando problematizar e relativizar cada detalhe do crime. Coadjuvado pela imprensa, será na friúra do inquérito policial que ele procurará reconstruir a personalidade de todos os envolvidos. Contudo, o que o mundo da chacina revela, ao contrário de um mundo glamourizado, é a vida de “migrantes pobres, analfabetos ou semianalfabetos”, alguns que com esforço vinham escalando alguns degraus da ascensão social (FAUSTO, 2009, p.41-43).

Seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos – que permite a compreensão do desenrolar dos acontecimentos -, não deixa de tocar nas intrigas e emaranhados que envolvem a trama, desde a existência de uma possível máfia chinesa, passando pela contrariedade de familiares do proprietário do restaurante chinês, as pressões “desatinadas” da imprensa sensacionalista, a busca pelos culpados, chegando ao negro Arias de Oliveira – o acusado de ter cometido o crime do restaurante chinês.

No ínterim da narrativa, Fausto percebe uma disputa política envolvendo, de um lado, a polícia que, pressionada pela repercussão popular de um grande crime, isto é, episódio que se destaca pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, na importância dos protagonistas, ou por tudo isso junto (FAUSTO, 2009, p.39) que, na atualidade, se encontra banalizado não só pela generalização dos acontecimentos, mas, sobretudo, pela capacidade da imprensa em torná-los corriqueiros. De outro lado, ao chegar ao preto Arias, a ação da polícia desencadeia uma ação por parte da chamada burguesia “de cor”, responsável por atividades culturais e pela criação de entidades como a Frente Negra Brasileira, que se propunha a lutar contra a discriminação racial. A Frente se colocara na defesa de Arias de Oliveira, evitando que ele ficasse desamparado ou nas mãos de um defensor público. Entra em cena, o jovem advogado Paulo Lauro, importante para as três absolvições que Arias receberia ao longo de três anos.

Ao lermos O crime do restaurante chinês, a riqueza de fotografias nos transporta para os acontecimentos, permite que nos envolvamos cada vez mais na trama. Ao nos depararmos com a acusação de Arias de Oliveira, perguntamo-nos a cada momento qual será o desfecho dos acontecimentos.

O que podemos antecipar é que Arias de Oliveira volta à obscuridade, sem que o crime deixe de figurar na memória coletiva da cidade de São Paulo. Ele é memória coletiva para os militantes negros.

Do mesmo modo, pode ser compreendido como uma memória não rememorada de mil outros “Arias de Oliveira” que não tiveram o mesmo destino de se verem fora das prisões e suas vidas transformadas pelas agruras da justiça. Diante deste possível desfecho, fica cada vez mais provocativo pensarmos o potencial da construção historiográfica a partir de homens e de mulheres comuns que foram impactados pela nova ordem de coisas, pela ética do trabalho, pelo racismo, pela exclusão disseminada a partir da consolidação do capitalismo no Brasil, na São Paulo que era o seu exemplo mais concreto já a partir da década de 1920.

O livro de Boris Fausto é uma obra que contempla um jeito novo de fazer história: não perde a perspectiva de se construir conhecimento. Articula a relação entre o contar uma boa história (científica, porque baseada nas fontes) e uma outra (narrativa), ao gosto do leitor comum, que procura os prazeres de uma boa estória.

Vantuil Pereira – Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – UFRJ – Univ. Federal do Rio de Janeiro – Av. Pasteur, 250, CEP: 22290-240, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura – WOLF (VH)

WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Jardim América, o subúrbio jardim em versão brasileira. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, p. 157-161, jan., 2003.

São Paulo, a maior metrópole brasileira, é freqüentemente evocada por sua impressionante massa edificada, composta por edifícios altos, espalhada por extensa área, e por sua confusa, densa e violenta periferia. Porém, em meio ao mar de concreto armado e bem longe do caos da periferia, despontam bairros residenciais marcados pela exuberante presença do verde e por casas afastadas das ruas sinuosas e arborizadas. São os bairros-jardins, que dão forma ao núcleo da São Paulo cosmopolita e próspera, a região que os paulistanos simplesmente chamam de Jardins.

Jardim América, Jardim Europa, Jardim Paulistano são hoje símbolo da cidade, talvez exatamente por seu caráter de exceção. Constituem o ambiente que os paulistanos desejariam ver e ter em toda a sua cidade. Surgiram na década de 1910, como uma alternativa para a expansão dos bairros até então ocupados pelas elites — Campos Elísios, Higienópolis e a Avenida Paulista. Caíram no gosto das camadas altas e médias. Foram modelados a partir dos subúrbios-jardins que, ao longo da segunda metade do século XIX, tomaram forma nas cercanias de grandes cidades britânicas e americanas — Londres, Nova York, Chicago. E, por sua vez, serviram de modelo para diversos outros bairros residenciais, enquanto consolidaram-se entre os anos 1920 e 1950 como espaço de vida das faixas mais ricas e dinâmicas da população da cidade. Por tudo isso, foram tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), nos anos 1980, após intensa pressão popular.

Os Jardins vêm despertando a atenção de historiadores, arquitetos e urbanistas. Os historiadores — com destaque para Nicolau Sevcenko, em seu Orfeu extático na metrópole, e para Roney Bacelli, com sua dissertação A presença da Cia. City em São Paulo (1915-1940) e a implantação do primeiro bairro-jardim — interessados nas articulações da constituição dos Jardins com a modernização da sociedade paulista e nas possibilidades que o estudo dessa região abre para a história social e cultural da metrópole brasileira. Os arquitetos e urbanistas — entre eles Hugo Segawa e Dacio Araújo Benedicto Ottoni — fascinados pelas conexões entre o estabelecimento dos Jardins e uma das mais influentes utopias urbanísticas do fim do século XIX, a cidade-jardim proposta em 1898 pelo inglês Ebenezer Howard (1850-1928) como alternativa para as congestionadas cidades européias, numa obra com título eloqüente: Tomorrow: a peaceful pathto social reform1. Fascínio esse amplificado por serem os arquitetos que traçaram o Jardim América, o primeiro dos bairros-jardins paulistanos, os ingleses Raymond Unwin (1863-1940) e Barry Parker (1867-1947), os mesmos que, sob a liderança de Howard, conceberam e implantaram acerca de 70 quilômetros ao norte de Londres, a partir de 1903, a primeira garden city britânica, Letchworth. E por serem eles, também, os arquitetos que, entre 1903 e 1907, projetaram Hampstead, um bem sucedido garden-suburb nos arredores de Londres, já sem vínculos com Howard mas incorporando muito da experiência por eles desenvolvida em Letchworth.

Cidade-jardim, subúrbio-jardim e bairro-jardim são concepções urbanísticas surgidas a partir dos anos 1850 como respostas aos problemas decorrentes da rápida urbanização que marcou a Europa e a América do Norte no século XIX. O subúrbio-jardim pode ser entendido como o desdobramento de configurações urbanas que desde a Antiguidade estiveram presentes na cidade ocidental: chácaras e casas de campo nos arredores das cidades, possibilitando aos privilegiados a fuga dos densos ambientes urbanos. No século XIX, o desenvolvimento de estradas de ferro e linhas de bonde tornou viável o estabelecimento dos espaços de vida de grande número de pessoas em subúrbios cada vez mais distantes dos centros urbanos, expandindo as cidades. A Garden city de Howard foi, por sua vez, desdobramento desse processo de expansão urbana, propondo a criação de comunidades autônomas e de crescimento controlado, integrando campo e cidade. Com o subúrbio jardim, arquitetos britânicos e americanos também buscaram associar campo e cidade, porém sem pretenderem a autonomia característica da garden city. O subúrbio-jardim deve, assim, ser entendido como extensão da grande cidade, enquanto a cidade-jardim coloca-se como uma nova cidade, distinta da metrópole à qual se articula. Por fim, o bairro jardim surgiu da aplicação do modelo do subúrbio-jardim a contextos essencialmente urbanos, como no caso de São Paulo.

O primeiro bairro-jardim paulistano, o Jardim América, é o objeto do livro de Silvia Ferreira Santos Wolff. Longe de fazer a história de um bairro, a autora constrói seu objeto a partir de uma inquietação. Como pesquisadora do Condephaat, Silvia Wolff constatou que o processo de tombamento dos bairros-jardins e os mecanismos legais adotados em 1985 para a preservação desses bairros visavam sobretudo a conservação da paisagem urbana, do verde, das ruas e das praças. Ou seja, a preservação do espaço urbano. Quanto à conservação dos edifícios, pouca coisa, quase nada. Ora, sabemos que o traçado e a paisagem urbana dependem do modo como os edifícios configuram o espaço da cidade. Seria possível, portanto, preservar o espaço urbano sem conservar a arquitetura que o constitui? Por que a arquitetura do Jardim América (e de outros bairros, como o Pacaembu) não despertou maior interesse do Condephaat?

Para responder a essas questões, Silvia Wolff repassou em sua tese de doutoramento em Arquitetura, desenvolvida na USP sob orientação do Professor Carlos Lemos, o estabelecimento do Jardim América, empreendimento imobiliário comercial, distante das concepções utópicas da cidade-jardim e próximo ao subúrbio-jardim anglo-americano. Considerando que a arquitetura das casas do Jardim América vem sendo pouco estudada, por ser ela produção arquitetônica de transição entre duas produções mais valorizadas no campo da arquitetura — o ecletismo classicizante das últimas décadas do século XIX e a arquitetura modernista que se tornou hegemônica na paisagem paulistana após a Segunda Guerra Mundial —, Silvia Wolff levou a cabo um extenso levantamento arquitetônico das edificações do Jardim América com base no acervo do arquivo da Cia. City, empresa responsável pela implantação desse bairro-jardim. Levantamento que, apoiado por cuidadosa revisão da concepção urbanística da cidade-jardim e do subúrbio-jardim, é o ponto alto do trabalho e traz contribuições para pesquisadores interessados no estudo das grandes cidades brasileiras e nos modos de vida de seus habitantes.

A pesquisa histórica desenvolvida por Silvia Wolff nos arquivos da Cia. City deve ser destacada, pois aponta caminhos instigantes para arquitetos e historiadores que, tomando a produção arquitetônica como produção cultural, procuram lançar novas luzes sobre as transformações urbanas, especialmente desvelando as convergências e conflitos entre os interesses privados e o poder público na acelerada expansão das cidades brasileiras, no século XX. Conhecida como Cia. City, a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited foi organizada em 1911, com escritórios em São Paulo, Londres e Paris, associando o arquiteto Joseph Bouvard e o banqueiro Édouard Fontaine de Laveleye, ambos franceses, a um grupo de investidores e proprietários de terras nos arredores de São Paulo, integrantes da elite paulista e com acesso franco à cúpula político-administrativa do estado. Cincinato Braga, político paulista, Horácio Belfort Sabino, advogado e proprietário de terras, e Victor da Silva Freire, professor da Escola Politécnica e diretor de Obras Públicas da Prefeitura de São Paulo, estiveram ligados ao início da atuação da Cia. City. Lord Balfour, presidente da São Paulo Railway Co. e governador do Banco da Escócia, também fazia parte da primeira diretoria da empresa. Com os capitais reunidos, a Cia. City comprou aproximadamente 12 km² de terras nas vizinhanças das áreas que já vinham sendo ocupadas pelas camadas altas da sociedade local. Constituída, a companhia iniciou a urbanização de partes dessas terras e a venda dos lotes, entrando no movimentado mercado imobiliário paulistano. Ainda hoje a Cia. City é atuante nesse mercado e seu sucesso derivou, em grande medida, das estratégias inovadoras e bem traçadas que marcaram seus primeiros anos. Estavam entre essas estratégias, por um lado, técnicas de venda a prazo dos lotes, de financiamento da construção das casas e de seleção dos compradores e, por outro lado, a busca de soluções urbanísticas que tornassem diferentes e atraentes seus loteamentos.

Isto explica a contratação, em 1913, de Raymond Unwin e Barry Parker para a elaboração do projeto do Jardim América e a vinda do segundo a São Paulo, em 1917, para conduzir a implantação do bairro-jardim. Em Londres, Unwin e Parker projetaram a concepção básica do loteamento, lançando mão do know-how acumulado nos projetos da cidade-jardim de Letchworth e do subúrbio-jardim de Hampstead. Em São Paulo, entre 1917 e 1919, Barry Parker desenvolveu o projeto, participou dos trabalhos de urbanização, definiu padrões urbanísticos para o Jardim América, influenciou a legislação urbanística da cidade (através de contatos com o diretor de obras da Prefeitura, Victor da Silva Freire) e estabeleceu padrões arquitetônicos para as casas do bairro-jardim, projetando algumas delas, inclusive. O levantamento da passagem de Parker por São Paulo é outro ponto destacado no trabalho de Silva Wolff e, sem dúvida, interessa aos historiadores e arquitetos que estudam as grandes cidades brasileiras.

Em resumo, o livro de Silvia Wolff, deve ser entendido como um trabalho que, desenvolvido a partir do campo da arquitetura e do urbanismo, situa-se na fronteira entre o campo da história e o campo da história da arquitetura e do urbanismo. Lançando mão do método histórico para o estudo da produção arquitetônica e da cidade, a autora traz uma importante contribuição à história social e cultural de São Paulo.

Por fim devemos elogiar a qualidade da edição e o modo como os numerosos desenhos, mapas, fotos e reproduções de peças publicitárias, pertencentes ao acervo do arquivo da Cia. City, estão associados ao texto, especialmente na parte dedicada ao levantamento e análise da arquitetura do Jardim América. Porém, não podemos deixar de lamentar a ausência de um glossário dirigido aos leitores menos familiarizados com os termos usualmente empregados na arquitetura e urbanismo. Num trabalho de fronteira, como esse de Silvia Wolff, é sempre útil lembrar que nem todos os dicionários comuns explicam o que vem a ser um traçado hipodâmico ou uma sash window.2

Notas

1 Amanhã: um caminho pacífico para a reforma social. Em 1902, essa obra seria reeditada com o título: Garden cities of tomorrow — Cidades-jardins de amanhã. Para os interessados, vale consultar a tradução brasileira, editada em São Paulo, em 1996, pelas editoras Hucitec e Annablume, reeditado em 2002.

2 Traçado hipodâmico é nada mais que o velho traçado em tabuleiro de xadrez, no qual ruas se cruzam ortogonalmente definindo quarteirões retangulares. O termo evoca Hipódamo, o grego que, no século VI a.C., teria sido o primeiro a propor esse traçado regular. Sash window é um tipo de janela comum nas casas inglesas, com duas folhas envidraçadas (sash) que podem ser levantadas ou abaixadas com facilidade, lembrando o funcionamento de uma guilhotina. Daí vem o termo brasileiro: janela de guilhotina.

Tito Flávio Rodrigues de Aguiar – Arquiteto. Doutorando em História, UFMG.

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[DR]

 

O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra | Antônio Pedro Tota || Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial | Roney Cytrynowicz

Os trabalhos de Roney Cytrynowicz e Antônio Pedro Tota têm em comum o fato de analisarem a história brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, suas abordagens e enfoques são bastante diversos, refletindo também preocupações temáticas e conceituais e, naturalmente, escolha de fontes e bibliografia.

O livro de Antônio Tota aborda um tema fascinante e, ao mesmo tempo, pouco estudado pelos historiadores nacionais: a ofensiva cultural realizada pelo governo americano no Brasil, dentro do espírito da ‘política da boa vizinhança’. São poucos os trabalhos sobre o tema — a começar pelo já clássico livro de Gerson Moura Tio Sam chega ao Brasil (1984). Este fato torna-se ainda mais evidente quando comparamos a produção nacional com o grande número de trabalhos americanos sobre o tema: basta conferirmos a própria bibliografia utilizada por Tota. O autor, além de trabalhar com uma vasta bibliografia norte-americana sobre seu tema, utilizou fontes textuais, sonoras e iconográficas, tiradas de arquivos norte-americanos e brasileiros. Suas fontes são, principalmente, governamentais, o que naturalmente reflete o recorte de seu objeto: a ação do Office of Coordinatior of Inter-American Affairs (OCIIA) no Brasil, com o objetivo de “seduzir” os brasileiros para uma aliança com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar da inexistência de referências explícitas, a linguagem e a estrutura do livro nos fazem acreditar que se trata originalmente de uma tese de doutoramento. Leia Mais

Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915) | Carlos José Ferreira dos Santos

A primeira impressão que o livro de Carlos José suscita é de espanto. Será possível que ele pretenda refutar a imensa influência da imigração européia no crescimento e na transformação da cidade de São Paulo entre fins do século XIX e início do XX? Mais especificadamente, será que ele pretende negar a esmagadora presença física e cultural dos italianos na população paulistana e o seu papel decisivo na industrialização e nas lutas operárias daquele momento, conforme décadas de trabalho historiográfico tem demonstrado? [1]

Essa impressão se desvanece com facilidade na leitura do trabalho. Longe de negar o poder do dilúvio italiano que mudou profundamente a vida da cidade naquele período, ele procura anexar a este contexto um dado novo e relativamente pouco explorado: a presença de uma população de trabalhadores pobres nacionais, via de regra negros, que deram uma contribuição decisiva à vida da cidade daqueles anos, mas que permanecem escondidos nas brumas da História. Leia Mais

Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930 – RAGO (VH)

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930. Editora Paz e Terra, 1985. Resenha de: FARIA Maria Auxiliadora. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.147-148, jun., 1986.

A convite, do prefaciador Edgar de Decca e da própria Autora. participei da viagem. E o fiz com gosto por estar, como outros, preocupada em resgatar na tecitura histórica da República Velha práticas cotidianas do operariado brasileiro.

No Brasil, esta tentativa é nova. E como tudo que é novo, inquietante. Ao se tentar por exemplo, reconstituir os processos de morar dos trabalhadores. suas formas de lazer e de educação, sua sexualidade e mesmo as sutilezas de suas resistências frente às diversas instâncias do Poder, revela-se o até então irrevelado. Redimensiona-se o papel histórico da classe operária, recuperando-a não em suas generalizações mas em suas particularidades, ou no seu cotidiano.

Para penetrar nesse mundo novo necessário se faz, tal como propõe a Autora, empreender uma viagem. Todavia, não se pode levar na bagagem preconceitos há muito arraigados: que a classe operária brasileira da Primeira República era social e politicamente atrasada; que os anarquistas não propuzeram nenhuma forma organizada de resistência; e além de outras ”verdades consagradas” a de que as classes dirigentes, ocupadas na manutenção do Estado Oligárquico cujo sustentáculo econômico era o setor agrário-exportador, não construiram, a nível do espaço urbano em geral e da fábrica em particular, dispositivos especiais de domesticação do operariado.

O cenário é quase sempre a cidade de São Paulo, apesar de o subtítulo referir a: Brasil 1890·1930. O objeto de estudo: o cotidiano do operariado e, em especial dos adeptos da doutrina anarquista. E assim que Margareteh Rago tenta, e com êxito, desvendar as inúmeras formas utilizadas no processo de adestramento dos operários para torná-los mais produtivos, mais dóceis e mais disciplinados. Aptos a desfrutar, portanto, de um espaço – a cidade- que longe de ser o local mesmo do conflito deveria tornar-se o da harmonia.

No sumário do lívro, mais que um índice, um apelo da Autora, um chamamento à leitura: “Fábrica satânica/fábrica higiênica- A colonização da mulher -A preservação da infância- A desodorização do espaço urbano”. Introduz em cada um desses capítulos não apenas emocionantes relatos fundados em dados empíricos, mas também e principalmente, ricas interpretações subsidiadas por pensadores como E.P. Thompson e Michel Foucault. Utiliza-se também de O. Montgornery e Mário Tronti. quando se preocupa em analisar práticas explícitas ou veladas de resistência operária. Assim, a Autora contribui decisivamente à construção de uma nova historiografia sobre a classe operária e o movimento anarquista na Primeira República.

Mas se a contribuição é decisiva, não se pode negar que o arrojo de M. Rago ao penetrar “no interior das fábricas, dos bairros e vilas operárias do inicio da industrialização do país” para atingir os objetivos propostos, resultou num certo comprometimento da análise no tocante a temas polêmicos. como sejam: o mito do amor materno, o aleitamento infantil, o problema do menor abandonado ou mesmo a questão da segregação social do espaço urbano, que ela preferiu chamar de “desodorização do espaço”. A ideologizaçâo que atribui ao saber médico, leva o leitor menos atento a repudiar a evolução da medicina e a introdução de técnicas sanitárias e higiências no espaço urbano. Assim também, a atribuir à medicina preventiva, e ao incentivo à amamentação um lugar de peças decisivas num plano diabólicamente tramado no sentido exclusivo de domesticar a mulher operária e preparar cidadãos saudáveis e aptos a se integrarem ao mercado de trabalho. Ainda sobre a mulher conclui, à pág. 206, que o projeto de domesticação da classe operária redefiniu papéis e que a ela (mulher) “foi designado o triste destino de vigilante do lar e de mãe de família. Todos os comportamentos que se produziram fora destes parâmetros recobriram-se do estigma da culpabilidade e da imoralidade. Entre as figuras da Santa Maria e da Eva, nenhum espaço foi permitido à mulher. a despeito de todas as solicitações que o mundo industrial lançava sobre ela”.

Da idéia de “triste destino” talvez lhe tenha ocorrido outra, que deu título ao livro: “Do cabaré ao lar”, ou aí estaria o duplo de que tanto fala o prefaciador? Como ele mesmo afirma. que a liberdade do literato não é a mesma do hitoriador, ocorreu-me o que se contava no meu tempo de estudante: Um aluno, não sei bem se de História ou de Sociologia, teria ido à biblioteca em busca do livro “Raizes do Brasil” do saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Não o encontrando na prateleira apropriada, pediu auxilio a uma funcionária que lhe passou a seguinte advertência:- “Você está equivocado. Esse livro deve ser procurado na seção destinada às obras de botânica”.

Quem empreender com a Autora a viagem proposta certamente colocará o livro na prateleira adequada, e o destacará como obra inconfundível. A densídade com que desvenda a trama do cotidiano operário apesar de pequenos desvios de percurso, acaba por desmistificar algumas verdades. Entre outras, a de que, apesar de todas as tentativas de silenciamento, operários em geral e anarquistas em particular, foram capazes de apresentar formas: de resistência ao conjunto de normas disciplinares que lhes foram impostas nos primeiros anos de industrialização brasileira.

Maria Auxiliadora Faria – Professora Adjunta do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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Crime e cotidiano – A criminalidade em São Paulo, 1880-1924 – FAUSTO (RBH)

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano – A criminalidade em São Paulo, 1880-1924. São Paulo: Brasiliense, 1984. Resenha de: LAPA, José Roberto do Amaral. Crime e cotidiano de Boris Fausto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8/9, p.213-215, set.1984/abr.1985.

José Roberto do Amaral Lapa – Departamento de Hhistória do IFCH/Unicamp.

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