Política e Justiça na I República. Um regime entre a legalidade e a excepção. vol. II (1915-1918) – CHORÃO (LH)

CHORÃO, Luís Bigotte. Política e Justiça na I República. Um regime entre a legalidade e a excepção. vol. II (1915-1918). Lisboa: Letra Livre, 2018, 669 pp. Resenha de MATOS, Sérgio Campos. Ler História, v.75, p. 291-295, 2019.

1 Há hoje duas tendências muito frequentes nos estudos históricos, que aliás não são recentes. A primeira é a sua subordinação a agendas políticas parciais e a pré-conceitos que reduzem a multiplicidade de possibilidades que qualquer conjuntura histórica encerra em si mesma – esquecendo que qualquer tempo passado transporta consigo uma memória plural e expectativas de futuro que não se podem reduzir a um caminho único ; por exemplo, toma-se a I República em todo o seu percurso, indiferenciadamente e sem distinções mais finas, como um regime “radical e violento” ou até como um “regime terrorista” – o que impede a sua compreensão histórica. A outra tendência, que podemos designar de narrativista, prende-se com a ilusão de que uma narrativa linear de acontecimentos numa escala meramente individual e em ordem cronológica é suficiente para compreender os problemas. Esta tendência exprime-se na atracção pela biografia entendida do modo mais simples : como se a sucessãolinear de acontecimentos que se vão sucedendo numa vida pudesse explicá-la. O que não quer dizer que não encontremos excelentes biografias publicadas nos últimos anos por autores portugueses.

2 Ora, Luís Bigotte Chorão foge a estas duas tendências. Consciente da complexidade da época que estuda, escolheu um caminho bem mais difícil, prosseguindo um projecto iniciado há anos – o de analisar detalhadamen-
te as relações entre política e direito no tempo da I República. Um projecto coerente que se distingue por interesses históricos amplos. O autor já publicou um volume sob o mesmo título em 2011,1 e incide agora nos anos que coincidem com a I Guerra Mundial, anos críticos em que a recém-instaurada República foi posta à prova perante outras potências europeias que constituíam ameaças à sua integridade territorial e à própria independência nacional : o Império alemão e a Espanha. O problema do relativo isolamento internacional da I República e as ameaças externas e internas que a atingiam explica em larga medida a intervenção portuguesa na Grande Guerra. A difícil conjuntura em que se dá a intervenção na guerra permite-nos compreender, em larga medida, a dialéctica entre legalidade e excepção num regime que não chegou a durar 16 anos.

3 O historiador baseia-se num largo leque de fontes de carácter muito diverso : imprensa periódica, diários da Câmara dos Deputados e do Senado, memórias, depoimentos, panfletos, variada documentação de arquivo, etc. E dá-nos referências dessas fontes em frequentes e extensas notas. Mas as análises detalhadas que encontramos nas 670 páginas deste livro estão também escoradas em estudos actualizados, muitos deles internacionais (designadamente sobre a Grande Guerra). E também estes passam pelo bisturi crítico de Luís Bigotte Chorão, que por vezes discorda dos seus pares – geralmente com bons e provados argumentos –, sobretudo quando outros historiadores nos dão interpretações parciais de factos, não escoradas em provas. É que o autor é comandado por uma intenção central de veracidade histórica, dando voz aos múltiplos agentes e orientações políticas que sempre se confrontam numa comunidade nacional. O autor é avesso a pré-conceitos que estreitem a compreensão do passado e reduzam o leque de problemas e expectativas que coexistem em determinada conjuntura histórica. Esta é, pois, uma obra em que domina um regime rigoroso de verdade (ou não fosse o seu autor jurista de profissão) e um sentido analítico que não é acessível a qualquer leitor, pois convoca actores históricos, alguns de segundo plano, hoje esquecidos do leitor médio, acontecimentos, problemas e conceitos políticos e jurídicos, tudo isto com um detalhe que por vezes torna a sua leitura difícil para quem desconheça a história da I República.

4 Há uma preocupação de situar as dificuldades políticas de múltiplos ângulos, tendo em conta problemas estruturais, económicos e sociais, dados da história económica comparada – por exemplo, “o PIB per capita de Portugal era de cerca de um terço do dos países mais desenvolvidos, o mais pobre da Europa ocidental e dos mais pobres de toda a Europa” (p. 210) – com largas referências à crise das subsistências e à política de abastecimentos durante a guerra. Sem esquecer as políticas sociais debatidas na época ; o modo como foi considerada a participação de Portugal na Grande Guerra entre os juristas da Faculdade de Direito de Lisboa e a acção de vários ministros da justiça ; a atenção a problemas sociais – caso da vadiagem, ou do agudizar da conflituosidade e violência social que, na conjuntura de princípios de 1916, o autor caracteriza como “uma insurreição popular contra a carestia de vida, tendo por finalidade o assalto aos estabelecimentos comerciais de géneros alimentícios, calçado, roupa e casas de penhores” (p. 414). Mas a lente do historiador dá também atenção a faits-divers e a acontecimentos singulares sintomáticos que se repercutiram politicamente, caso do acidente de Afonso Costa num carro eléctrico, logo explorado criticamente pelos jovens futuristas ligados à Orfeu, entre eles Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos. Ou o caso do soldado Ferreira de Almeida, único exemplo de um militar a ser executado, em Setembro de 1917, sentenciado que fora a pena de morte, acusado de ter passado para o lado do inimigo – em contraste com as centenas de militares de outras nacionalidades que foram sentenciados à pena máxima.

5 Destacarei cinco tópicos em que o autor abre horizontes de pesquisa pouco explorados pela historiografia portuguesa, situando-os numa perspectiva transnacional, e contribuindo para alargar o conhecimento da situação de Portugal no tempo da guerra, tanto no cenário interno como no âmbito internacional. O primeiro tem que ver com amnistias e indultos. O autor alude à “generosa tradição amnistiadora” da República, com múltiplos diplomas que remontam aos primórdios do regime (o primeiro datado de 4 de Novembro de 1910, três em 1911, um em 1912, um em 1913, quatro em 1914) além dos indultos e das comutações de penas (p. 40) – o que envolve o problema das relações do novo regime republicano com os seus detractores, e mostra bem a moderação que caracterizou o exercício da justiça na I República. Se o regime de separação de serviço de funcionários adoptado em 1915 suscitou reservas, desde logo pela sua natureza de lei de excepção (lei nº 319 de Junho de 1915, que afastava aqueles que não dessem “uma completa garantia da sua adesão à República e à Constituição”), a verdade é que as sucessivas amnistias e indultos adoptados durante a I República se inscrevem numa tradição humanista do democratismo republicano em que deve igualmente situar-se a abolição da pena de morte (só retomada em 1916 para alguns crimes militares). Por exemplo, segundo a lei de 17 Abril de 1916, só os funcionários que tivessem sido membros do anterior governo de Pimenta de Castro continuaram fora de serviço, mas a receber os seus vencimentos e sem prejuízo de aposentação ou reforma.

6 O segundo tópico é o que respeita às diferentes e matizadas posições políticas face à Grande Guerra : do intervencionismo ao pacifismo e direito das gentes ; posições partidárias, incluindo as de políticos socialistas e anarquistas, radicalmente contrários à intervenção. E sem esquecer tomadas de posição muito significativas no plano internacional. Por exemplo, a de Charles Maurras, que qualificava a guerra de “à la sauvage” e de extermínio : “L’attentat dont les passagers innocents de la Lusitania sont victimes achève de prouver que nous sommes en présence d’une guerre à l’antique et à la sauvage : dépossession, extermination” (p. 346, n. 1141). A este respeito, acrescentemos, Sigmund Freud, num notável ensaio sobre a Grande Guerra,2 referir-se-ia a um regresso a comportamentos instintivos e primitivos.

7 O terceiro tópico que destaco é o problema da neutralidade no grande conflito. Rui Barbosa, um jurista brasileiro citado, notou que a neutralidade, ao tempo, assumiu “um papel diferente daquele que desempenhara outrora”, até pela razão da interdependência dos estados entre si (p. 147). Luís Bigotte Chorão mostra como a violação da neutralidade da Bélgica teve profundo impacto nas diplomacias e opiniões publicas europeias. E lembra que a neutralidade desta pequena nação constituíra “uma condição do reconhecimento da sua independência de acordo com os tratados de 15 de Novembro de 1831 e de 19 de Abril de 1839, assinados em Londres” (p. 122). Aliás, na prática, Portugal já violara a neutralidade antes de entrar na guerra na Europa (p. ex. abastecendo e permitindo a passagem de tropas inglesas pelos seus territórios). E a declaração de 7 de Agosto de 1914, que Bernardino Machado, então chefe do governo, lera no parlamento foi uma “proclamação de neutralidade” que traduziu a dupla posição de Portugal de não-beligerante e de aliado da Grã-Bretanha.

8 O quarto tópico refere-se ao pangermanismo e anti-pangermanismo. As páginas que o autor dedica a este respeito trazem para primeiro plano um factor fundamental para a compreensão da Grande Guerra, o da propaganda e contra-propaganda, recorrendo a esclarecedora bibliografia francesa, brasileira, alemã e portuguesa. Considera a germanofilia de um intelectual e historiador como Alfredo Pimenta. Ou a posição crítica em relação ao pan-germanismo de autores tão diversos como o sociólogo E. Durkheim ou o jornalista A. Charadame, entre outros. Note-se que a propaganda pangermanista obedecia à intenção de criar um grande império alemão na Mitteleuropa. Lembremos que, muito mais tarde, Norbert Elias contribuiu para a compreensão deste projecto expansionista invocando a tardia unificação política da Alemanha – com o consequente tardio investimento na partilha colonial –, o sentimento de declínio que dominou as suas elites, e a curta experiência liberal por que passou, tudo factores que explicariam a seu ver esse expansionismo.3

9 Por fim, destaque-se o problema do perfil político da I República, um regime entre legalidade e excepção – débil legalidade, segundo o autor. Lembre-se que o conceito de estado de excepção envolve a suspensão do ordenamento jurídico como medida provisória e extraordinária, em domínios específicos. Ora, a I República viveu uma situação excepcional durante a Grande Guerra, como afirmou um jornalista de A Capital em 1915 : “Quem dirá que esta situação não é excepcional ? E sendo excepcional, evidentemente todos os problemas da vida portuguesa tomam aspectos excepcionais” (p. 215). Exemplos : a censura prévia adoptada por proposta do ministro da justiça Mesquita Carvalho (lei nº 495, de 28 de Março de 1916) ; as medidas excepcionais adoptadas contra a presença em território nacional de súbditos alemães (pp. 507 e ss) ; ou ainda o já referido afastamento do serviço, com carácter definitivo, dos funcionários que não garantissem “adesão à República e à Constituição” (lei nº 319 de Junho de 1915, criticada por Raul Proença). Mas qual a fronteira entre excepção e legalidade ? Em que sentidos deve tomar-se este conceito de excepção ? Pode aplicar-se indiferenciadamente a toda a vigência da I República ? Evidentemente que não. Se for no sentido de regime ditatorial moderno, nele não há separação de poderes. Poderá decerto esclarecer-se melhor esta tensão entre legalidade e excepção num próximo volume. Se houve momentos em que a I República resvalou para a ditadura num sentido oitocentista do termo – caso da governação de Pimenta de Castro –, noutros, diríamos, aproximou-se de um modelo autoritário contemporâneo, com Sidónio Pais – regime aqui bem visto “em ruptura com a ordem jurídico-constitucional de 1911 e sua substituição” (p. 639).

10 Concluindo, o autor distancia-se criticamente de interpretações redutoras e parciais ainda hoje aceites. Por exemplo acerca do 14 de Maio, que derrubou a ditadura de Pimenta de Castro e foi designada como “segunda revolução republicana” : “a história interna do 14 de Maio [comprova] não ter sido a decisão revolucionária exclusiva de democráticos, e mais, a solução governativa saída da revolução foi diferente da tentada pela Junta Revolucionária” (p. 364). Resultado de prolongada investigação, com dados e interpretações novas, este livro carreia fundamentos para uma compreensão mais distanciada da I República de um ponto de vista que faltava : o da relação entre o estado e o direito. Novidade tanto mais significativa quanto nos últimos anos se têm multiplicado os estudos sobre a participação de Portugal na Grande Guerra sem que este ângulo tenha sido privilegiado sistematicamente como Luís Bigotte Chorão o faz. Seria bom que, no final do seu projecto – haverá mais um ou dois volumes até chegarmos a 1926 ? –, o autor nos desse uma síntese mais breve e acessível a um público médio, não especializado, acompanhada de uma orientação de fontes e bibliografia seleccionadas. Está de parabéns não só o historiador, por mais este resultado do seu rigoroso ethos profissional, mas também o editor Letra Livre pelo cuidado que investiu na execução gráfica do livro.

Notas

1 Política e Justiça na I República. Um regime entre a legalidade e a excepção. Vol. I (1910-1915). (…)

2 Ver “Considerações de actualidade sobre a guerra e a morte” [1915], in O mal-estar na civilização (…)

3 Ver Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. R. Janeiro: Zahar (…)

Sérgio Campos Matos – Universidade de Lisboa, Centro de História, Portugal. E-mail: [email protected]

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Na Primeira Presidência da República Portuguesa. Um rápido relatório – ARRIAGA (LH)

ARRIAGA, Manuel de. Na Primeira Presidência da República Portuguesa. Um rápido relatório (estudo introdutório e notas de Joana Gaspar de Freitas e Luís Bigotte Chorão). Horta: Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, 2013. Resenha de: MATOS, Sérgio Campos. Ler História, n.66, p. 174-178, 2014.

1 Em boa hora decidiu a Associação dos Antigos Alunos do liceu da Horta reeditar esta obra do primeiro presidente da República portuguesa, publicada originalmente em 1916, um ano depois da sua demissão. A nova edição em fac simile vem enriquecida com um estudo introdutório e anotações da autoria de Luís Bigotte Chorão e Joana Gaspar de Freitas que contribuem para a compreensão deste relevante testemunho político, não raro esquecido pelos historiadores. Refira-se de passagem que as notas dos referidos historiadores, muito úteis do ponto de vista informativo, alargaram o formato do livro numa margem direita que, além do valor das notas, oferece ao leitor espaço para nele inscrever apontamentos pessoais manuscritos.

2 Como se pode caracterizar esta obra? Trata-se de «um rápido relatório», como refere o subtítulo. Mas, mais do que isso, diremos que, em larga medida, o texto se inscreve no género memorialístico, não fosse a intenção de Manuel Arriaga deixar um testemunho pessoal sobre o seu exercício da função presidencial. E não só, também envolve uma memória do seu percurso político anterior.

3 Há neste livro uma preocupação do seu Autor que comanda a escrita, numa luta contra o tempo: a de registar a sua versão dos acontecimentos em que estivera envolvido enquanto presidente da república (1911-1915). Tanto mais que fora muito criticado e, em conjunturas como a do início de 1915, acusado de ter sido ditador. Arriaga já tinha uma idade avançada e sentia a morte rondar. Queria deixar para a posteridade o testemunho de alguém que vivera por dentro os acontecimentos. Salientemos, em primeiro lugar, os problemas centrais que a leitura da obra suscita. Num segundo momento, destacaremos o contributo que os organizadores desta nova edição fornecem ao leitor.

4 Note-se o lugar donde fala o autor e a obsessão memorial de Arriaga que não pode deixar indiferente o leitor. Arriaga não se considerava «político de profissão» e posiciona-se num lugar acima dos conflitos de facção entre os republicanos. Diz a certa altura que só podia candidatar-se à presidência em nome da união dos portugueses e das diversas tendências políticas. Nunca como representante de uma facção. Antecipava assim o lema «presidente de todos os Portugueses» que será nos finais do século XX, num contexto bem diverso, invocado por outros presidentes da República. Constrói-se neste livro uma ética da independência em relação aos partidos políticos que se afirma na intenção de conciliar interesses partidários e de acabar com lutas entre facções. Insinua-se neste plano um discurso utópico que o leva, quase nas «últimas palavras» a pronunciar a seguinte exortação: «Acabem, pois, com as discórdias entre cidadãos da mesma Pátria; com a intolerância das ideias contrárias que arrasta consigo a incompatibilidade das pessoas; com os enredos, as maledicências e as calúnias que deturpam a verdade dos factos, e nos deixam ficar aos olhos dos estrangeiros numa situação deprimente!» (p. 189). Arriaga distanciava-se assim de uma intriga política que se esgotava em pequenos conflitos de interesses pessoais e de clientelas. Mas seria possível acabar com os conflitos em política? Veremos adiante como esta aspiração se traduz numa visão idealizada da política.

5 No que toca a estratégia memorial, Manuel de Arriaga erige-se a si próprio no estaututo de «cronista de si mesmo», partindo do princípio que a sua verdade não poderá ser relatada senão por si próprio. Daí correr contra o tempo. Mas também Arriaga selecciona documentos – e são muitos os que transcreve, especialmente cartas que lhe foram dirigidas por protagonistas políticos ou que ele próprio expediu. E há um relevante documento que Joana de Freitas e Luís Bigotte Chorão transcrevem: o seu testamento, publicado na imprensa periódica da época (O Século de 6 de Março de 1917) mas logo esquecido. O testamento é muito revelador da personalidade do primeiro presidente da República, na detalhada especificação dos objectos pessoais – incluindo livros – que deixa a familiares e ao amigo António José de Almeida. Destaque-se a passagem em que refere que deixa os documentos do seu arquivo pessoal ao seu filho Roque de Arriaga «para fazer deles o uso que melhor entender, com a condição expressa e categórica de inutilizar, de reduzir a cinzas, na sua presença, todos os papéis que se refiram a desinteligências e intrigas entre republicanos (ou que se dizem republicanos), pois não desejo ver ligado o meu nome, por qualquer forma, a uma causa que tanto conturbou a minha vida política e a encheu de inquietações e de torturas durante a minha presidência da República» (p. 53). Insinua-se aqui uma estratégia memorial que, todavia, não terá sido inteiramente cumprida pelo seu filho (vd. Correspondência política…). Se Roque tivesse cumprido rigorosamente esta instrução do pai, muita correspondência teria sido destruida, inclusivamente algumas das cartas que o próprio Manuel de Arriaga transcreveu nesta obra e que, justamente, dão conta de profundas divergências entre republicanos. Donde, pode concluir-se que no testamento há sobretudo uma intenção de distanciação relativamente ao grande obstáculo que o ex-presidente encontrou na sua acção política: a impossibilidade de construir uma estratégia consensual entre os partidos em que se fragmentara o velho PRP. Refira-se ainda que o próprio governo não cumpriu uma outra vontade do testamento: que o seu funeral fosse singelo, «sem convites, sem coroas, sem discursos» como pretendia o primeiro presidente da república. Na verdade, acabou por ter honras de Estado, com a presença do Presidente Bernardino Machado e de diversos políticos no velório, entre eles o chefe do governo, Afonso Costa e vários minsitros, Norton de Matos e Augusto Soares.

6 Teve Arriaga uma estratégia política? Sem dúvida. Essa estratégia ficou marcada pela intenção de, a partir de uma reconciliação entre católicos e não católicos, entre ultramontanos e anticlericais, entre republicanos e monárquicos, construir uma convergência nacional que, em torno dos valores republicanos, superasse as clivagens que se haviam acentuado na sociedade portuguesa desde 1911. Daí, em 1913, as suas propostas de clemência em relação aos bispos e padres que se haviam oposto às medidas laicizadoras da República. Mas sobretudo essa estratégia estava centrada na nomeação de ministérios suprapartidários. É verdade que Arriaga nomeou personalidades prestigiadas para chefiar esses governos: João Chagas, Augusto de Vasconcelos e Duarte Leite. Em princípios de 1913, esgotada esta via, e ante a recusa de António José de Almeida em chefiar um governo «por lhe faltar apoio parlamentar» (p. 80), acabou por nomear o lider do partido maioritário, Afonso Costa. Apesar da sua larga maioria parlamentar, a pressão política e da opinião pública contra a prática do governo (caso do não cumprimento das disposições do artº 25 da Constituição) terão levado o Presidente da República a dirigir uma carta-programa aos lideres dos três partidos políticos republicanos solicitando o seu apoio para um governo extra-partidário. O próprio Arriaga reconhece que foi esta sua proposta que levou à demissão Afonso Costa (p. 84). Insistiu depois na construção de um pacto de compromisso dos três partidos. Mas este pacto envolvia um programa: «revisão da lei da separação (…) uma amnistia ampla para os crimes políticos» e novas eleições (p. 91). Afonso Costa não aceitou o pacto, alegando que «embora determinada pela intenção de bem servir o país, está em contradição com os princípios constitucionais» e saía «inteiramente para fora do quadro constitucional das atribuições do Chefe do Estado, e não corresponde a menhuma indicação parlamentar» (p. 93). E demitiu-se. Por seu lado António José de Almeida considerou a proposta utópica. E Brito Camacho mostrou-se disponível para a apoiar. Teve Arriaga consciência de que exorbitava dos poderes que a Constituição atribuia ao Presidente? Creio que sim, pois em diversas passagens se refere às limitações dos seus poderes, até mesmo em política externa. «A nossa liberdade de acção, além de restrita pelo código, está sujeita ao referendo dos respectivos ministros e à ditadura permanete das maiorias parlamentares que, como se sabe, não derivam da pureza do sufrágio» (p. 129).

7 Se é inegável que Arriaga desenvolveu uma estratégia e intentou arbitrar a vida política, também é evidente que a constituição de 1911 não lhe fornecia instrumentos para o fazer: não podia dissolver o congresso, não dispunha de um conselho de estado para se aconselhar, os seus actos tinham que merecer a aprovação dos ministros. É neste quadro que deve entender-se o seu isolamento. Um exemplo: em 15 de Janeiro de 1915, numa conjuntura difícil, Arriaga convocou diversas personalidades para consultas sobre a política a adoptar em relação à Grande Guerra, incluindo os principais lideres partidários. A essa reunião faltaram os seus ex-apoiantes António José de Almeida e Brito Camacho (p. 122).

8 A ausência de um forte partido conservador que alternasse no poder com o Partido Democrático, e dificuldade em encontrar políticos independentes e em constituir ministérios suprapartidários fragilizava ainda mais a posição do Presidente da República. Compreendem-se assim os apelos quase desesperados a homens como João Chagas (p.66) e depois a Pimenta de Castro («não me abandone»). E a ilusão de que este último «poderia salvar-nos» (p. 170). Exorbitou dos seus poderes? Sem dúvida. Como explicá-lo se, tudo indica, Arriaga não tinha perfil para ser um ditador? Aliás a ditadura de Pimenta de Castro corresponde ao tipo de ditadura praticada no século XIX, quando os executivos funcionavam prescindindo do parlamento e depois mediante o chamado bill de idemnidade se aprovavam ou não as medidas promulgadas por decreto pelos executivos anteriores.

9 Manuel de Arriaga foi não raro qualificado de idealista na política. Acrescente-se que foi idealista não só na intervenção política mas também na visão que construiu do povo português e da sua história. Por diversas vezes refere-se à revolução republicana do 5 de Outubro como «a mais bela que até hoje se arquiva na história» (p.24). Olha o passado nacional numa óptica que coincide no essencial com a narrativa que os historiadores republicanos haviam construido, responsabilizando a monarquia e a Companhia de Jesus pelo desvio da missão histórica da nação. E caracteriza o povo português como «afectivo» e «apaixonado pelas belezas do seu país», «meio panteísta e meio pagão./Adora o cristianismo porque está de acordo com a sua indole bondosa; ama as parábolas de Cristo e não se importa com os dogmas da Irgeja» (p. 26).

10 Voltemos à presente edição e, particularmente ao aprofundado estudo introdutório da autoria de Joana G. de Freitas e Luís Bigotte Chorão. Em primeiro lugar, é de louvar o distanciamento crítico dos seus autores em relação à fonte que estão a examinar. Em segundo lugar são de registar as novidades que este estudo encerra, entre elas, a receptividade que a obra teve, com três tiragens logo em 1916, num total de 3000 exemplares, o que mostra a elevada procura que teve na época, decerto não apenas entre a elite política: a memória dos primeiros anos da I República e da presidência de Arriaga estava ainda muito viva. Depois os autores chamam a atenção para uma posição política que Manuel de Arriaga adoptou em finais de Julho de 1911 e que terá deixado marcas: no entender de Arriaga, nenhum dos membros do governo provisório deveria ser elegível no acto eleitoral que se ia seguir para escolher quem iria desempenhar o cargo de Presidente da República. As notas fornecem ainda elementos valiosos para que se compreenda a resistência que as iniciativas presidenciais desencadearam entre os seus adversários políticos, nomeadamente as razões porque escolheu Pimenta de Castro. Podemos então concluir com uma pergunta: porque razões acabou Manuel de Arriaga por adoptar uma prática política presidencial que ultrapassou os limites constitucionais? Creio que esta pergunta só pode encontrar resposta se tivermos em conta o profundo sentimento de crise, agravado pela Grande Guerra, que se vivia nesse anos. E, porventura, as insuficiências da Constituição de 1911.

Sérgio Campos Matos – Faculdade de Letras da UL. E-mail: [email protected].

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