Abertura política e redemocratização: igrejas, movimentos sociais e partidos políticos / Crítica Histórica / 2018

A proposta deste dossiê partiu da constatação de que, na produção acadêmica, sobressaem trabalhos dedicados à efervescência política do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, aos acontecimentos que antecederam o Golpe de 1964 e ao período ditatorial que se estabeleceu no Brasil por mais de 20 anos. Entretanto, no que se refere particularmente a esse último período, priorizam-se a primeira década do Regime e, sobretudo, os seus contornos mais repressivos. Pouca atenção tem sido dada mais especificamente ao lento, controlado e controvertido processo de abertura implementado a partir de 1974, sob a presidência do General Ernesto Geisel, e, mais adiante, à redemocratização parcial e ao retorno à legalidade dos partidos.

Estes mais de 10 anos que se seguem à repressão mais intensa não devem, no entanto, ser deixados de lado. São marcados por uma importante mobilização e por um retorno à ação de muitos sujeitos e instituições, entre os quais igrejas, partidos e movimentos sociais. Todos eles são favorecidos por um contexto de maior abertura e procuram se reinserir nele e estabelecer suas práticas e estratégias.

Além disto, este interesse ainda incipiente tem se concentrado, principalmente, nas questões jurídicas e legais e nas mudanças políticas e institucionais ocorridas a partir de então. Fazem-se, inclusive, numa perspectiva mais panorâmica, apenas menções e breves referências a episódios marcantes, sem a devida análise e o aprofundamento necessário para entender a complexidade e a trama que envolvem todo o momento. É o caso, por exemplo, de alusões superficiais e insuficientes a respeito das tratativas que levaram à revogação do AI-5, da campanha pela Anistia, do retorno ao pluripartidarismo ou ainda da campanha pelas Diretas Já. Perscruta-se muito pouco a atuação dos atores os mais diversos possíveis neste cenário tão complexo que levou arduamente ao desmantelamento dos aparelhos de repressão e de censura e ao lento restabelecimento do sistema democrático.

Mais recentemente, algum esforço notório de produção historiográfica tem sido empreendido no sentido de preencher ou ao menos dirimir esta lacuna. As práticas e trajetórias dos atores sociais, neste contexto de abertura progressiva, têm sido reconstruídas e analisadas a fim de compreender os meandros da sua atuação e da sua subjetividade. Como puderam se reinserir neste novo cenário e nos debates travados então? Quais problemas enfrentaram? Quais estratégias puseram em prática? Quais as memórias e narrativas produzem a este respeito? Eis alguns dos inúmeros e importantes questionamentos que podem ser levantados para dinamizar os estudos e as pesquisas nesta direção. Pesquisas que revisitam temas clássicos da historiografia nacional, dando-lhes um enfoque muito mais direcionado ao período pós-1974 e, sobretudo, pós-1979.

Neste quesito, inúmeras são as fontes a serem mobilizadas sob este recorte temporal e sob este olhar, para além do contexto mais abrangente e ressaltando o papel dos sujeitos individuais e coletivos. Entre elas, pode-se destacar a imensa contribuição trazida pela metodologia da História Oral e toda a reflexão teórica que a acompanha a fim de compreender a complexa relação entre a história, a memória e a construção de narrativas referentes aos acontecimentos vivenciados, aos dilemas enfrentados e aos traumas sofridos. Cabe aqui ainda o recurso à memória herdada ou compartilhada, referente àqueles que estiveram bem próximos aos episódios e aos seus atores e que produzem igualmente narrativas sobre eles. Além disto, destacam-se também documentos escritos, como cartas, relatórios, atas de assembleias, reuniões, encontros, documentação produzida por organizações, partidos e movimentos sociais, sem contar os jornais, tradicionalmente mais recorrentes neste tipo de análise.

No bojo deste esforço mais recente, propõe-se, portanto, este dossiê com a finalidade de enriquecer o debate e a produção acadêmica em torno de temas nevrálgicos para a compreensão da história nacional. Destes resultaram, em grande medida, os contornos que assumiram posteriormente o sistema político e o regime democrático em construção. Destes ainda resultaram inúmeras e inestimáveis trajetórias e narrativas produzidas por sujeitos que vivenciaram e vivenciam estes acontecimentos passados, relembrando e tecendo memórias a seu respeito. Abordagens específicas podem, inclusive, ser propostas a fim de se fugir do olhar mais genérico e pautado exclusivamente na esfera política mais ampla, nas grandes manobras palacianas, legislativas e da magistratura ou ainda no grande clamor da sociedade por mudanças. É preciso, neste ponto, descer à escala do micro e perceber a complexidade e a subjetividade que gira em torno dela. Nesta perspectiva, a apreensão da historicidade do momento deve suplantar o olhar meramente macro-político e de cunho institucional. Deve voltar-se às bases regionais e locais a fim de perceber como nelas atuam partidos, organizações, associações, grupos, igrejas, mulheres, negros, indígenas, LGBTs, quilombolas, trabalhadores urbanos e rurais e os mais diversos sujeitos individuais ou coletivos.

Com base nestas reflexões iniciais, foram propostos artigos que procuram preencher essa lacuna historiográfica e fazer uma discussão mais direcionada sobre temas específicos deste momento histórico. Para a constituição do dossiê, optou-se então por fazer uma organização temática dos trabalhos selecionados.

Dos seis artigos que o compõem, os dois primeiros abordam a questão política e institucional e situam-na entre o início da transição democrática, em 1974, e a Constituinte de 1987 e 1988. “A Contrarrevolução Democrática: a transição pelo alto e a institucionalização das instituições (1974-1979)”, de Pedro Cardoso, analisa o governo do General Ernesto Geisel e o processo de abertura por meio do papel desempenhado pela Comissão Trilateral e pelo seu membro Samuel Huntington, cientista político estadunidense, na formulação do projeto de distensão. “Conflito intrapartidário e Reforma Agrária: o PMDB na Constituinte”, de Pedro Vicente Medeiros, ressalta o conflito existente no PMDB quanto à definição da Reforma Agrária na Constituinte entre 1987 e 1988. Aprofunda o debate e as divergências internas entre parlamentares do partido que compunham a Subcomissão de Política Agrícola e Fundiária. Embora estes dois primeiros artigos se somem a uma abordagem mais clássica da política institucional do período, ambos o fazem de forma mais aprofundada e levantando problemáticas específicas e centradas em alguns sujeitos e organizações.

O quatro artigos seguintes dedicam-se unicamente à Igreja Católica e a sua atuação ao longo da Ditadura e, sobretudo, a partir da segunda metade dos anos 1970. Como parte da instituição teve um engajamento político e social notório desde os anos 1960, a maior parte dos autores optou por remontar a esta década, enveredando em seguida nos anos 1970 e 1980, quando se fortaleceu a atuação católica nos conflitos e debates. “O caminho percorrido pela diocese de Propriá- SE até a redemocratização do país (1964-1985)”, de Osnar Gomes dos Santos, concentra-se na mudança de posição ocorrida na diocese sergipana de Propriá em meados da década de 1970. Sob a autoridade de Dom José Brandão de Castro, a mesma passou do apoio declarado aos militares ao engajamento em favor da luta pela terra e da organização de sindicatos rurais. A sua atuação foi desde então destacável e chegou, inclusive, a entrar em atrito com as elites da região, que pressionaram para a sua aposentadoria precoce. “Relações de trabalho, Igreja Católica e direitos na Zona Canavieira de Pernambuco: organização e mobilização de trabalhadores rurais no Regime Militar”, de Cristhiane Laysa Andrade Teixeira Raposo, também opta por uma abordagem mais abrangente da atuação da Igreja, desta vez em relação aos trabalhadores rurais e a sua luta por direitos na Zona Canavieira de Pernambuco. Ainda que de maneira breve, a autora destaca o período da abertura e o papel nele exercido pela instituição católica, quando se intensificam a sua oposição ao Regime e o seu pleito em favor do retorno à democracia. “A Ação Católica Rural: mudanças e desafios políticos de 1978 a 1985”, de Maria do Socorro de Abreu e Lima, analisa as práticas desempenhadas pela Animação dos Cristãos no Meio Rural-ACR no trabalho de conscientização dos trabalhadores rurais e o seu posicionamento diante do cenário e dos debates travados. Esse movimento católico passou a abordar cada vez mais questões não só religiosas, mas, sobretudo, políticas. “‘Comunistas na Igreja’: a atuação dos católicos progressistas no incentivo à participação popular na Região Sisaleira da Bahia nos anos finais do século XX”, de Cristian Barreto de Miranda, encerra o dossiê abordando o papel de católicos da cidade de Conceição do Coité, na Região Sisaleira da Bahia, no fomento à participação popular no período que se seguiu ao fim da Ditadura. Mais uma vez, ressaltam-se as práticas adotas pela Igreja em favor das camadas mais pobres e dos trabalhadores.

Desta maneira, espera-se estar contribuindo para o aprofundamento das discussões referentes à abertura política e à redemocratização situadas a partir de 1974 e estendendo-se até o final dos anos 1980, com os trabalhos da Constituinte de 1987 e 1988. Pelos importantes episódios vivenciados nesses mais de 10 anos e pela sua influência na configuração que assume posteriormente a democracia em construção, tal momento tem valor inestimável e merece, inclusive, que outros pesquisadores se interessem cada vez mais por ele e por leituras mais direcionadas e diversificadas a seu respeito.

Por fim, os textos do fluxo contínuo deste número trazem discussões importantes que circulam da história política, à história social do crime e história do catolicismo. O artigo “Classes populares, cultura política e Constituinte (1984-1988)” de Charleston José de Sousa Assis propõe-se a estudar a cultura política brasileira, com foco nos anos da transição democrática e “a partir das sugestões da população à Assembleia Nacional Constituinte, encaminhadas por carta ao Congresso Nacional”. Em seguida em “Instruir-se para instruir”: a Ação Católica Brasileira e a formação da Juventude Estudantil Católica no Brasil (1935-1966), Carolina Maria Abreu Maciel analisa a Ação Católica Brasileira a partir da experiência da JEC, suas influências teóricas para formação de quadros para a instituição religiosa. Já Patrícia Marciano de Assis no texto Reflexões sobre Chefatura de Polícia do Ceará enquanto instituição policial do Império historiciza o papel da chefatura tendo como perspectiva sua ação no controle da população pobre, como forma de manutenção das estruturas de poder. O artigo “O paraíso dos criminosos”: imprensa, política e crimes na cidade do Rio de Janeiro durante as eleições do início do século XX de Ana Vasconcelos Ottoni procura abordar como a imprensa retratava as “supostas relações entre política e as ocorrências de crimes na cidade do Rio de Janeiro durante as eleições do início do século XX”. Encerra o número a resenha intitulada “O símbolo histórico de um movimento pela terra: A desapropriação da Fazenda Annoni no Rio Grande do Sul” que apresenta a obra de Simone Lopes Dickel, Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social, publicado em 2017, e defendida como dissertação de mestrado em 2016, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo- RS. Nela Caroline da Silva aponta como a autora estabelece um diálogo entre a História e o Direito, apontando a questão fundiária e social da terra em uma construção histórica de luta no período 1972-1993.

Boa Leitura!

Samuel Carvalheira de Maupeou – Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará-UECE.

Equipe Editorial Revista Crítica Histórica


MAUPEOU, Samuel Carvalheira de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 9, n. 18, dezembro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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