Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil | Sergio O. Nadalin

A imigração alemã no Brasil é significativa, principalmente nos três estados do sul do país. O livro “Memórias de Gustav Hermann Strobel” narra a história da família Strobel, que saiu de Glauchau, na Saxônia (região da atual Alemanha), e chegou ao Brasil, juntamente com outros imigrantes germânicos, em 20 de novembro de 1854. Os imigrantes foram levados para a colônia Dona Francisca, atual Joinville, à época província de Santa Catarina. Devido à precariedade da colônia, o pai de Gustav, Christian August Strobel, migrou para São José dos Pinhais, nos arredores da capital da recém-criada província do Paraná.

A história escrita por Gustav Hermann Strobel é uma importante fonte para quem estuda a inserção social dos imigrantes alemães na sociedade paranaense e brasileira de modo geral. O texto, originalmente escrito em língua alemã, recebeu uma primeira tradução em 1987 e foi publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. A tradução para a língua portuguesa foi realizada a partir de manuscritos reproduzidos ao longo do tempo, já que os descendentes de Gustav faziam cópias do texto para que este não fosse perdido.

Em razão de algumas disparidades nos manuscritos é que o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR), pesquisador do CNPq, e Egon Frederico Michells Ribeiro, descendente de Gustav, se empenharam em uma nova tradução para tentar resolver algumas dessas questões (três cópias dele chegaram ao século XXI). O texto original, muito provavelmente, foi escrito entre 1909 e 1928, não sendo possível datar de forma exata e, ao que tudo indica, não foi escrito de uma única vez (NADALIN, 2015, p.13).

A nova tradução é acompanhada de um posfácio em que a professora Cacilda da Silva Machado (UFRJ) e o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR) fazem uma análise da obra. Nessas considerações, os dois pesquisadores ressaltam como as lembranças individuais de Gustav Hermann Strobel são depositárias das memórias herdadas e/ou compartilhadas pelos pais (NADALIN, 2015, p.195). Muitos dos episódios narrados pelo imigrante alemão fazem referência a um período em que este era uma criança, como, por exemplo, a saída de Glauchau e a viagem de navio para o Brasil, quando Gustav contava apenas cerca de 5 anos de idade.

No posfácio os autores também tecem importantes considerações acerca das imagens do imigrante germânico e do nacional a partir das reminiscências de Gustav. Importante destacar que o texto original foi redigido de forma retrospectiva, ou seja, os fatos descritos dizem respeito a situações ocorridas várias décadas antes. Supondo que o manuscrito tenha sido concluído em 1928, e visto que a família desembarcou na colônia Dona Francisca em 1854, as memórias do autor cobrem mais de 70 anos. Portanto, Sergio Odilon Nadalin e Cacilda da Silva Machado destacam como o discurso de Gustav Hermann Strobel está ancorado na sua vivência em sociedade e na memória coletiva, seja para reforçar ou para negar pontos de vista (NADALIN, 2015, p.215).

As Memórias, propriamente ditas, estão divididas em dezoito capítulos, tendo um capítulo complementar que inexistia na edição em língua portuguesa publicada em 1987. O memorialista descreve não apenas fatos vivenciados por ele, mas também narra acontecimentos transmitidos principalmente por seus pais, Christian e Christiana (reforçando o que foi dito acima sobre o discurso social presente nas linhas grafadas). Assim, podemos entender como, grosso modo, os sete ou mesmo oito capítulos iniciais relatam fatos ocorridos na época em que Gustav tinha menos de 10 anos de idade.

A exposição dos motivos para a família deixar a Saxônia, as expectativas e a decepção ao desembarcarem em Dona Francisca, bem como a mortalidade a bordo do navio que cruzou o Atlântico trazendo a família e demais pessoas da Europa para o Brasil são lembranças que ajudam a compreender o processo (e)imigratório transatlântico. Os eventos narrados por Gustav, portanto, não se resumem ao processo vivido apenas pela família Strobel. Era difícil a decisão de deixar a Europa para embarcar numa aventura em direção à América, pois a possibilidade de regresso era mínima. Será, então, que os imigrantes estavam conscientes da quase nulidade da chance de regressar à Glauchau, ou qualquer outra região da atual Alemanha, caso o encontrado no Brasil não correspondesse às expectativas?

De acordo com o capítulo 4 das “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, a maioria dos germânicos que chegaram no mesmo navio, não só estavam decepcionados com o cenário que encontraram em Dona Francisca como foram tomados de espanto

À medida que avançávamos rio acima, o silêncio tomava conta dos viajantes […] A decepção era visível nos rostos de cada um, pois a vegetação fechada que víamos nas margens era um tanto assustadora (NADALIN, 2015, p.40).

Concomitantemente à desolação, veio a revolta; os conterrâneos de Christian August Strobel se sentiram enganados. Porém, o regresso à Europa era algo deveras irreal para imigrantes que chegaram à América gastando as poucas economias que possuíam: “Todos estavam dispostos a retornar à Europa. Fácil dizer, mas difícil realizar” (NADALIN, 2015, p.42).

O contraste entre a expectativa do momento da partida com a realidade no desembarque obrigou o patriarca da família a migrar. Christian Strobel saiu a pé de Joinville em direção a São José dos Pinhais à procura de emprego; após um período de tempo providenciou para que a esposa e os filhos fossem ao seu encontro. Posteriormente a família ainda migrou para Campo Largo da Roseira e, depois, para Curitiba. Essas constantes mudanças demonstram como a vida do imigrante no Brasil não está marcada pela imobilidade espacial e muito menos à fixação definitiva em uma gleba de terra. Mas é necessário lembrar que o pai de Gustav era carpinteiro, portanto possuía um ofício que lhe permitia buscar trabalho em centros urbanos e não depender exclusivamente dos produtos da terra.

As Memórias desses pioneiros da imigração alemã ajudam a pensar as dificuldades dos imigrantes (não apenas de origem germânica), bem como também permitem analisar as táticas de sobrevivência em um novo espaço social. Enquanto Christian trabalhava longe de casa exercendo seu ofício de carpinteiro, sua esposa Christiana, junto com filhos menores, cultivavam alimentos no quintal, tanto para a subsistência como para gerar algum excedente que pudesse ser vendido ou trocado. Como o pai de Gustav passou a ser (re)conhecido entre a “comunidade” germânica, não raro a casa servia de hospedagem a alguns migrantes, de origem alemã principalmente.

A questão étnica está presente em todo o texto de modo implícito, mas em alguns pontos ela fica explícita. No capítulo 11 Gustav fala de uma corporação de escavadores, homens que abriam valetas para delimitar as propriedades, onde todos tinham origem germânica. O autor das Memórias sempre está relacionando a vida da família e o trabalho desta com o fluxo de novos alemães que chegavam e partiam (o capítulo 12 é exemplar a respeito disso). Claro que sempre sem desconsiderar os contatos culturais cada vez mais estreitos com os brasileiros e demais grupos imigrantes de outras origens.

Entre muitos episódios interessantes, um caso contado no capítulo 13 diz respeito à questão religiosa dos imigrantes. Gustav lembra que em determinada ocasião um imigrante, amigo da sua família, saiu dos arredores de Curitiba em direção à Joinville para conseguir um padre alemão que ouvisse sua Confissão. Embora houvesse padres latinos na região, o homem não conseguia ficar em paz se não confessasse com sacerdote da mesma origem que ele e na sua língua materna. A viagem não era simples, pois estradas entre a capital do Paraná e Santa Catarina eram praticamente inexistentes na segunda metade do século XIX, e o meio de transporte era basicamente o lombo de uma montaria (que poucos possuíam) ou as solas dos sapatos.

As memórias da família Strobel serviram também de fonte para que Sergio Odilon Nadalin (2007), a partir dos prenomes escolhidos para os membros da família, ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil, pudesse analisar a identidade teuto-brasileira em Curitiba. A forma de nomear as pessoas pode trazer consigo elementos de distinção étnica:

ao optar por um nome de batismo, os pais de uma criança são ou estão influenciados por uma determinada herança, ou seja, os nomes são emprestados de um estoque cultural, e a maneira de grafá-los refere-se à língua falada e escrita (NADALIN, 2007, p.17).

Portanto, o fator língua é fundamental para o estudo da identidade teuto-brasileira em Curitiba. Por isso o esforço do imigrante alemão que viajou dezenas de quilômetros em busca de um confessor, conforme explicitado anteriormente, é compreensível na construção étnica no Brasil. Da mesma forma que as escolhas de nomes não são aleatórias, conforme ressaltado (NADALIN, 2007).

A endogamia também é um fator importante no estudo da identidade construída pelos imigrantes de origem germânica no Brasil. No período de 1870 a 1939 na Comunidade Evangélica Luterana da capital paranaense, chegava a 87% os casamentos em que os dois noivos eram de origem alemã (NADALIN, 2012, p.56). Mas, não podemos concluir que os imigrantes de origem alemã vivessem isolados, inclusive a etnicidade se constrói e é mais visível no contato com o diferente, conforme apontado por Fredrik Barth (2011). A percepção da marca étnica, seja pelos nomes de batismo ou pela endogamia nas uniões matrimoniais, só é possível de análise na comparação com quem não faz parte da comunidade teuto-brasileira.

Essa distinção étnica em face do “outro” pode ser vislumbrada no capítulo 13. Nele há menção à alegria que os carpinteiros da família Strobel sentiam por terem um ferreiro da mesma origem, com quem conseguiam seus instrumentos de trabalho: “Estávamos felizes por termos agora um ferreiro alemão que confeccionava boas ferramentas para nós” (NADALIN, 2015, p.115. Grifo original). A questão étnica fica explícita nessa informação, pois a qualidade de tais apetrechos estava diretamente ligada à origem de quem os fabricava/fornecia. Ainda no capítulo 13, Gustav narra a admiração dos brasileiros com as técnicas alemãs de construção.

Nos capítulos finais a narrativa de Gustav versa, entre outros aspectos, a respeito das construções executadas pelo pai, e por ele também, na capital paranaense, demonstrando as mudanças na urbe e a contribuição alemã nessas transformações. Também há no capítulo 16 menção à ineficiência brasileira e às hostilidades entre alemães e franceses devido à guerra franco-prussiana. Essas duas questões são descritas em razão dos problemas na gestão do Hospital da Misericórdia. Devido aos desmandos dos brasileiros no hospital, freiras enfermeiras da França foram chamadas para gerir a instituição. Apesar de pontuar as animosidades que as freiras tinham em relação aos pacientes de origem alemã, Gustav não deixa de ressaltar que elas em pouco tempo restauraram a ordem no hospital (NADALIN, 2015, p.163).

Mas essas questões não diminuem a riqueza do texto escrito por Gustav Hermann Strobel. São justamente esses posicionamentos do autor que permitem uma análise dos contatos culturais e da construção de uma identidade teuto-brasileira. As “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, escritas pelo filho varão mais velho da família, Gustav, demonstram como a identidade e a cultura alemã no Paraná se formou e se transformou ao longo do século XIX e início do século XX, à medida que os contatos culturais aumentaram, às vezes de forma amistosa e às vezes de modo conflituoso.

As reminiscências de Gustav Hermann Strobel permitem que as análises tomem diversos caminhos: possibilita a conjugação de memórias individuais e coletivas; propicia a análise do passado e sua relação com o presente; dá ênfase na construção e transformação da sociedade paranaense; ressalta como as identidades se constroem no contato com o outro.

Portanto, a nova tradução coordenada pelo professor Sergio Odilon Nadalin não é esforço vão. As reminiscências de Gustav Strobel, relançadas em livro pelo Instituto Memória, cumpre o desejo do autor de perpetuar a história da família Strobel na memória das futuras gerações (ele mesmo havia incumbido seus descendentes de redigir cópias do manuscrito). Além disso, a nova edição amplia o acesso a uma fonte histórica que tem servido para problematizar aspectos da teuto-brasilidade.

Referências

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015.

______. A constituição das identidades nacionais nos territórios de imigração: os imigrantes germânicos e seus descendentes em Curitiba (Brasil) na virada do século XX. Revista Del CESLA, Varsóvia, n.15, p.55-79, 2012. Disponível em:. ______. João, Hans, Johann, Johannes: dialética dos nomes de batismo numa comunidade imigrante. História Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.14-27, jan./abr. 2007. Disponível em:

Lourenço Resende da Costa –  Doutorando em História pela UFPR, Mestre em História pela UNICENTRO, professor de História pela SEEDPR. Bolsista CAPES.


NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015. Resenha de: COSTA, Lourenço Resende da. As memórias de um imigrante alemão no Brasil: a História da família. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.603-608, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]